Em um livro recente do Pe. Henri Bouillard, lê-se:
“Quando o espírito evolui, uma verdade imutável não se mantém senão graças a uma evolução simultânea e correlativa de todas as noções, mantendo entre elas uma mesma relação. Uma teologia que não fosse atual seria uma teologia falsa” .
Ora, nas páginas anteriores e nas seguintes, mostra-se que a teologia de Santo Tomás em muitas partes importantes já não é atual. Por exemplo, Santo Tomás concebeu a graça santificante como uma forma (princípio radical de operações sobrenaturais que têm por princípio próximo as virtudes infusas e os sete dons):
“As noções utilizadas por Santo Tomás são simplesmente noções aristotélicas aplicadas à teologia” .
Que se segue daí? “Renunciando à Física aristotélica, o pensamento moderno abandonou as noções, os esquemas, as oposições dialéticas que só tinham sentido em função dela” .Ele abandonou, pois, a noção de forma.
Como evitará o leitor esta conclusão: a teologia de Santo Tomás, por já não ser atual, é uma teologia falsa?
Mas, então, como os Papas amiúde nos recomendaram seguir a doutrina de Santo Tomás? Como, então, diz a Igreja no Código de Direito Canônico, can. 1366, n. 2: “Philosophiæ rationalis ac thelogiæ studia et alumnorum in his disciplinis institutionem professores omnino pertractent ad Angelici Doctoris rationem, doctrinam, et principia, eaque sancte teneant”?
Ademais, como “uma verdade imutável” se pode manter, se as duas noções que ela reúne pelo verbo ser são essencialmente cambiantes?
Uma relação imutável não se concebe sem algo imutável nos dois termos que ela une. De outro modo, poder-se-ia dizer que um grampo de ferro pode imobilizar as ondas do mar.
Sem dúvida, as duas noções que estão unidas numa afirmação imutável são primeiramente confusas e depois distintas, como as noções de natureza, de pessoa, de substância, de acidente, de transubstanciação, de presença real, de pecado, de pecado original, de graça etc. Mas, se no que têm de fundamental essas noções não são imutáveis, como a afirmação que as une pelo verbo ser seria imutável? Como manter que a presença real da substância do Corpo de Cristo na Eucaristia requer a transubstanciação, se essas noções são essencialmente cambiantes? Como manter que o pecado original em nós depende de uma falta voluntária do primeiro homem, se a noção de pecado original é essencialmente instável? Como manter que o julgamento particular após a morte é irrevogável para a eternidade, se essas noções são chamadas a mudar? E como enfim manter que todas essas proposições são imutavelmente verdadeiras, se a noção mesma de verdade deve mudar, e se há que substituir à definição tradicional da verdade (a conformidade do julgamento ao real extramental e suas leis imutáveis) a definição proposta nesses últimos anos pela filosofia da ação: a conformidade do julgamento às exigências da ação ou da vida humana, vida que evolui sempre?
* * *
1° As próprias fórmulas dogmáticas mantêm sua imutabilidade?
O P. H. Bouillard responde: A afirmação que se exprime nelas permanece.Mas acrescenta:
“Perguntar-se-á talvez se ainda é possível considerar contingentes as noções implicadas nas definições conciliares. Não seria isso comprometer o caráter irreformável dessas definições? O Concílio de Trento, sess. 6, cap. 6, can. 10, por exemplo, empregou em seu ensinamento acerca da justificação a noção de causa formal. Não terá ele, pelo fato mesmo, consagrado esse emprego e conferido à noção de graça-forma um caráter definitivo? De maneira alguma. Certamente não era intenção do Concílio canonizar uma noção aristotélica, nem sequer uma noção teológica concebida sob a influência de Aristóteles. Queria simplesmente afirmar, contra os protestantes, que a justificação é uma renovação interior... Utilizou para esse fim noções comuns na teologia de então. Mas é possível substitui-las por outras, sem modificar o sentido de seu ensinamento”(grifo nosso).
Indubitavelmente, o Concílio não canonizou a noção aristotélica de forma e todas as suas relações com outras noções do sistema aristotélico. Mas aprovou-a como noção humana estável, no sentido em que falamos todos do que constitui formalmente uma coisa (aqui a justificação) .
Nesse sentido ele fala da graça santificante distinta da graça atual, dizendo que ela é um dom sobrenatural, infuso, que inere à alma, e pelo qual o homem está formalmente justificado.Se os Concílios definem a fé, a esperança, a caridade como virtudes infusas permanentes, seu princípio radical (a graça habitual ou santificante) deve ser também um dom infuso permanente, e por conseguinte distinto da graça atual ou de uma moção divina transitória.
Mas como se pode manter o sentido deste ensinamento do Concílio de Trento, “a graça santificante é a causa formal da justificação”, se “se substitui por outra noção a noção de causa formal”? não digo “se se substitui por um equivalente verbal”; digo, com o P. H. Bouillard, “se se substitui por outra noção”.
Se ela é outra, já não é a de causa formal: então, já não é verdadeiro dizer com o Concílio: “a graça santificante é a causa formal da justificação”. Há que se contentar com dizer: a graça foi concebida na época do Concílio de Trento como a causa formal da justificação, mas hoje há que concebê-la de outra maneira; essa concepção passada já não é atual e, portanto, já não é verdadeira, pois uma doutrina que já não é atual, como se disse, é uma doutrina falsa” .
Responder-se-á: pode-se substituir a noção de causa formal por outra noção equivalente. Aqui não nos contentamos com meras palavras (insistindo primeiro em outra e depois em equivalente), visto que não se trata somente de equivalência verbal — trata-se de outra noção. Em que se torna a noção mesma de verdade?
Assim, volta sempre a gravíssima questão: A proposição conciliar é mantida como verdadeira per conformitatem cum ente extramentali et legibus eius immutabilibus, an per conformitatem cum exigentiis vitæ humanæ quæ semper evolvitur?
Vê-se o perigo da nova definição da verdade, já não adæquatio rei et intellectus, mas conformitas mentis et vitæ. Quando Blondel em 1906 propunha essa substituição, não lhe previra todas as conseqüências no domínio da fé. Ele mesmo se terá talvez espantado com elas, ou pelo menos ficado muito inquieto.De que vida se trata nesta definição: “conformitas mentis et vitæ”? Trata-se da vida humana. E, então, como evitar a proposição modernista: “Veritas non est inmutabilis plusquam ipse homo, quippe quæ cum ipso, in ipso et per ipsum evolvitur”? Compreende-se que Pio X tenha dito dos modernistas: “æternant veritatis notionem pervertunt” .
É muito perigoso dizer: “as noções mudam, as afirmações permanecem”. Se muda a noção mesma de verdade, as afirmações já não permanecem verdadeiras da mesma maneira nem segundo o mesmo sentido. Então, o sentido dos Concílios já não se mantém, como se teria querido.
Infelizmente a nova definição da verdade se espalha entre os que esquecem o que dissera Pio X:
“Magistros autem monemus, ut rite hos teneant Aquinatem vel parum deserere, præsertim in re metaphysica, non sine magno detrimento esse. Parvus error in principio, sic verbis ipisius Aquinatis licet uti, est magnus in fine”.
E ainda mais se se desdenha de qualquer metafísica, de qualquer ontologia, e se se tende a substituir a filosofia do ser pela do fenômeno, ou pela do devir, ou pela da ação.
Não é a nova definição da verdade o que se encontra sob a nova definição de teologia: “A teologia não é senão uma espiritualidade ou experiência religiosa que encontrou sua expressão intelectual”? E, então, que pensar de asserções como esta: “Se a teologia nos pode ajudar a compreender a espiritualidade, a espiritualidade, por seu turno, fará em muitos casos explodir nossos quadros teológicos, e nos obrigará a conceber diversos tipos de teologia... A cada grande espiritualidade correspondeu uma grande teologia”? Quererá isso dizer que duas teologias podem ser verdadeiras, ainda que se oponham contraditoriamente em suas teses capitais? Responder-se-ão não se se mantiver a definição tradicional da verdade. Dir-se-á sim se se adotar a nova definição do verdadeiro, concebido não com relação ao ser e a suas leis mutáveis, mas com relação a diferentes experiências religiosas. Isso nos aproxima singularmente do modernismo.
Lembremo-nos de que o Santo Ofício condenou, em 1° de dezembro de 1924, doze proposições extraídas da filosofia da ação; entre elas havia, n. 5, a nova definição da verdade:
“Veritas non invenitur in ullo actu particulari intellectus in quo haberetur conformitas cum objecto, ut aiunt scholastici, sed veritas est semper in fieri, consistitque in adaequatione progressiva intellectus et vitae, scil. In motu quodam perpetuo, quo intellectus evolvere et explicare nititur id quid parit experientia vel exigit actio: ea tamen lege ut in toto progressu nihil unquam ratum fixumque bateatur”.
A última de tais proposições condenadas é esta:
“Etiam post fidem conceptam, homo non debet quiescere in dogmatibus religionis, eisque fixe et immobiliter adhaerere, sede semper anxius manere progrediendi ad ulteriorem veritatem, nempe evolvendo in novos sensus, immo et corrigendo id quod credit” .
Muitos, sem se precaver, tornam hoje a esses erros.
Mas, então, como manter que a graça santificante é essencialmente sobrenatural, gratuita, e que não deve nada à natureza humana nem à natureza Angélica?
Isso está claro para Santo Tomás, que sob a luz da Revelação admite este princípio: as faculdades, os “hábitos” e seus atos são específicos por seu objeto formal; ora, o objeto formal da inteligência humana e igualmente da inteligência angélica são imensamente inferiores ao objeto próprio da inteligência divina: a Divindade ou a vida íntima de Deus.Mas, para quem despreza toda e qualquer metafísica, a fim de cingir-se à erudição histórica e à introspecção psicológica, o texto de Santo Tomás torna-se ininteligível. De tal ângulo, que é o que se manterá da doutrina tradicional acerca da distinção, já não contingente, mas necessária, entre a ordem da graça e a ordem da natureza?
A propósito da impecabilidade provável dos anjos na ordem natural, lê-se no livro do P. H. de Lubac Surnaturel (Études historiques) . “Nada anuncia em Santo Tomás a distinção, forjada mais tarde por certo número de teólogos tomistas, entre ‘Deus autor da ordem natural’ e ‘Deus autor da ordem sobrenatural’ [...] como se a beatitude natural [...] no caso do anjo tivesse devido resultar de uma atividade infalível, impecável” . Santo Tomás, ao contrário, distingue amiúde o fim último sobrenatural do fim último natural, e quanto ao que é do demônio, diz, em De malo, q. 16, a.3:
“Pecatum diaboli non fuit in aliquo quod pertinet ad ordinem naturalem, sed secundum aliquid supernaturale” .
Chega-se ao desinteresse completo pelas pronunciata maiora da doutrina filosófica de Santo Tomás, ou seja, as vinte e quatro teses tomistas aprovadas em 1916 pela Sagrada Congregação dos Estudos.
Mais ainda, o P. Gaston Fessard S.J., em Les Études de novembro de 1945, fala do “bem-aventurado torpor que protege o tomismo canonizado, mas também, como diz Péguy, ‘enterrado’, ao passo que vivem os pensamentos consagrados, em seu nome, à contradição”.
Na mesma revista, em abril de 1946, diz-se que o neotomismo e as decisões da Comissão Bíblica são um “parapeito, mas não uma resposta”. E que se propõe em lugar do tomismo, como se Leão XIII na encíclica Æterni Patris estivesse enganado, como se Pio X na encíclica Pascendi, ao renovar esta mesma recomendação, se tivesse extraviado? E para onde vai tal teologia nova com os mestres novos em que se inspira? Por onde vai ela senão pela via do ceticismo, da fantasia e da heresia? Sua Santidade Pio XII dizia recentemente, em discurso publicado pelo Osservatore Romano de 19 de setembro de 1946:
“Plura dicta sunt, at non satis explorata ratione, ‘de nova theologia’, quae cum universis semper volventibus rebus iuna volvatur, semper itura, numquam perventura. Si talis opinio amplectenda esse videatur, quid fiet de numquam immutandis catholicis dogmatibus, quid de fidei unitate et stabilitate?”
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2° Aplicação dos princípios novos às doutrinas do pecado original e da Eucaristia.
Dir-se-á certamente que exageramos, mas um erro ainda que ligeiro acerca das noções primeiras e dos primeiros princípios tem conseqüências incalculáveis, que os que assim se equivocam não prevêem. As conseqüências das visões novas de que acabamos de falar devem, pois, ir bem além das previsões dos autores que citamos. A essas conseqüências, é difícil não vê-las em certas folhas datilografadas que se passaram (algumas desde 1934) ao clero, aos seminaristas, aos intelectuais católicos, vêem-se nelas as mais singulares asserções e negações acerca do pecado original e da presença real.
Por vezes, antes de proporem tais novidades, previnem o leitor dizendo-lhe: Isto parece louco à primeira vista, mas, se se olha de perto não é inverossímil e é admitido por muitos. As inteligências superficiais deixam-se prender aí, e prospera a formula “uma doutrina que já não é atual já não é verdadeira”. Alguns são tentados a concluir: “A doutrina da eternidade das penas do inferno já não é atual, ao que parece, e por isso mesmo já não é verdadeira”. Está dito no Evangelho que um dia a caridade de muitos arrefecerá e que eles serão seduzidos pelo erro.
É uma estrita obrigação de consciência para os teólogos tradicionais responder-lhes. Se não o fizerem, faltarão gravemente a seu dever, e deverão prestar conta disso diante de Deus.
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Nas folhas mimeografadas distribuídas na França esses últimos anos (ao menos desde 1934, pelas que temos em mãos), ensinam-se as doutrinas mais fantasiosas e falsas acerca do pecado original.
Nessas folhas, o ato de fé cristã não é concebido como adesão sobrenatural e infalível às verdades reveladas propter auctoritatem Dei revelantis, mas como adesão do espírito a uma perspectiva geral do universo. É a percepção do que é possível e mais provável mas não demonstrável. A fé torna-se um conjunto de opiniões prováveis. Desse ângulo, Adão parece já não ser um homem individual de que descende o gênero humano, mas antes uma coletividade.
Já não se vê, por conseguinte, como manter a doutrina revelada do pecado original tal qual a explicou São Paulo: “Sicut per unius idelictum in omnes homines in condemnationem, sic et per unius justitiam in omnes homines in justificationem vitae. Sicut enim per inoboedientiam unius peccatores constituti sunt multi, ita per unius oboeditionem iusti constituentur multi” . Todos os Padres da Igreja, intérprete autorizada da Escritura, em seu magistério ordinário ou solene, sempre entenderam que Adão foi um homem individual, como depois Cristo, e não uma coletividade. Propõe-se-nos agora uma probabilidade em sentido contrário ao do ensinamento dos Concílios de Orange e de Trento.
Ademais, a encarnação do Verbo, desse novo ângulo, seria um momento da evolução universal.
A hipótese da evolução material do mundo estende-se à ordem espiritual. O mundo sobrenatural está em evolução para o advento pleno de Cristo.
O pecado, enquanto afeta a alma, é algo de espiritual e pois intemporal. Por conseguinte, pouco importa a Deus que tenha sucedido no início da história da humanidade ou no curso das idades.
O pecado original já não é em nós, portanto, um pecado que depende de uma falta voluntária do primeiro homem, mas provém das faltas dos homens que influíram na humanidade.
Chega-se, assim, a querer mudar não somente o modo de exposição da teologia, mas a natureza mesma da teologia e até a do dogma. Este já não é considerado do ângulo da fé infusa na Revelação divina, interpretada pela Igreja nos concílios. Já não se levam em consideração os Concílios; olha-se aqui do ângulo da biologia completada por elucubrações as mais fantasiosas, que lembram as do evolucionismo hegeliano, o qual já não conservava dos dogmas cristãos senão o nome.
Nisso se está a seguir os racionalistas, e faz-se o que os inimigos da fé desejam: reduzi-la a opiniões sempre cambiantes que já não tem valor algum. Que resta da palavra de Deus dada ao mundo para a salvação das almas?
Nas folhas intituladas Comment je crois, lê-se:
“Se queremos nós, os cristãos, conservar em Cristo as qualidades que fundam seu poder e nossa adoração, não temos nada melhor ou nada diferente a fazer do que aceitar até o fim as concepções modernas da Evolução. Sob a pressão combinada da Ciência e da Filosofia, o Mundo impõe-se cada vez mais à nossa experiência e ao nosso pensamento como sistema conexo de atividades que se eleva gradualmente à liberdade e à consciência. A única interpretação satisfatória desse processo é vê-lo como irreversível e convergente. Assim, defini-se diante de nós um Centro cósmico universal onde tudo vai dar, onde tudo se sente, onde tudo se comanda. Pois bem, é nesse pólo físico da universal Evolução que é necessário, a meu ver, situar e reconhecer a plenitude de Cristo... Descobrindo um ápice para o mundo, a Evolução torna Cristo possível, assim como Cristo, dando um sentido ao mundo, torna possível a Evolução.
Tenho perfeita consciência do que há de vertiginoso nesta idéia [...], mas, imaginando semelhante maravilha, não faço mais do que transcrever em termos de realidade física as expressões jurídicas em que a Igreja depositou sua fé... Tomei por minha conta, sem hesitar, a única direção em que me parece possível fazer progredir e por conseguinte salvar minha fé.
O catolicismo decepcionara-me, em primeira aparência, por suas representações estreitas do Mundo, e por sua incompreensão do papel da Matéria. Agora reconheço que, após o Deus encarnado que ele me revela, não posso ser salvo senão aderindo ao universo. E, com isso, eis que se encontram satisfeitas, consolidadas e orientadas minhas mais profundas aspirações ‘panteístas’. O Mundo em torno de mim se torna divino.
Uma convergência geral das religiões para um Cristo universal, que, no fundo, satisfaz a todas — tal me parece ser a única conversão possível ao Mundo e a única forma imaginável para uma Religião do futuro” .
Assim, o mundo material teria evoluído para o espírito, e o mundo do espírito evoluiria naturalmente, por assim dizer, para a ordem sobrenatural e para a plenitude de Cristo. Assim, a Encarnação do Verbo, o Corpo Místico, o Cristo universal seriam momentos da Evolução, e, desse ângulo de um progresso constante desde a origem, não parece ter havido uma queda no início da história da humanidade, mas um progresso constante do bem, que triunfa sobre o mal segundo as leis mesmas da evolução. O pecado original seria em nós a conseqüência das faltas dos homens que exerceram influência nefasta sobre a humanidade.
Aí está o que resta dos dogmas cristãos nessa teoria que se afasta do nosso Credo na medida mesma em que se aproxima do evolucionismo hegeliano.
Naquela exposição, diz-se: “Tomei por minha conta, sem hesitar, a única direção em que me parece possível fazer progredir e por conseguinte salvar minha fé”. Eis pois que a própria fé não se salva se não progride, e ela muda tanto, que já não se reconhece a fé dos Apóstolos, dos Padres e dos Concílios. É uma maneira de aplicar o princípio da teologia nova: “uma doutrina que já não é atual já não é verdadeira”, e para alguns basta que ela já não seja atual em certos meios. Daí segue estar a verdade sempre in fieri, jamais imutável. Ela é a conformidade do julgamento não com o ser e suas leis necessárias, mas com a vida que evolui sempre. Vê-se até onde conduzem as proposições condenadas pelo Santo Ofício em 1° de dezembro de 1924, e que citamos mais acima:
“Nulla propositio abstracta potest haberi ut immutabiliter vera”; “Etiam post fidem concecptam, homo non debet quiescere in dogmatibus religionis, eisque fixe et immobiliter adhaerere, sed semper anxius manere progrediendi al ulteriorem veritatem, nempe evolvendo in novus sensus, immo et corrigendo id quod credit” .
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Encontramos outro exemplo de semelhante desvio nas folhas datilografadas que tratam da Presença real, as quais circulam há alguns meses no clero. Lê-se nelas que o verdadeiro problema da Presença real não foi até aqui bem formulado:
“Diz-se para responder a todas as dificuldades: Cristo está presente à maneira de uma substância... Essa explicação passa ao largo do verdadeiro problema. Acrescentemos que, em sua clareza enganadora, ela suprime o mistério religioso. Para dizer a verdade, já não há ali um mistério: já não há senão um prodígio”.
Santo Tomás, pois, é que não soube formular o problema da Presença real nem dar sua solução: praesentia corporis Christi “per modum substantiae” seria ilusória; sua clareza é uma clareza enganosa.
Adverte-se-nos que a explicação nova proposta “implica evidentemente substituir, como método de reflexão, o método escolástico pelo método cartesiano e spinozista”.
Um pouco mais adiante lê-se, a respeito da transubstanciação: “esta palavra está isenta de inconveniente, tanto quanto a expressão pecado original. Ela responde à maneira como os escolásticos concebiam esta transformação, e sua concepção é inadmissível”.
Aqui não se está afastado somente de Santo Tomás, mas do Concílio de Trento, sess. XIII, cap. 4 e can. 2, pois que ele definiu a transubstanciação como verdade de fé, e disse até que “quam quidem conversionem catholica Ecclesia aptissime transsubstantiationem apellat”. Hoje os novos teólogos dizem: “esta palavra não está isenta de inconveniente... ela responde a uma concepção inadmissível”.
“Nas perspectivas escolásticas, em que a realidade da coisa é ‘a substância’, a coisa não poderá mudar realmente sem que a substância mude... pela transubstanciação. Nas nossas perspectivas atuais [...] quando em virtude da oferenda feita segundo um rito determinado por Cristo o pão e o vinho se tornaram no símbolo eficaz do sacrifício de Cristo, e por conseguinte de sua presença espiritual, seu ser religioso mudou”, não sua substância. E acrescenta-se: “É isso o que podemos designar por transubstanciação”.
Mas claro está que já não se trata da transubstanciação definida pelo Concílio de Trento, “conversio totius substantiae vini in Sanguinem, manentibus duntaxat speciebus panis et vini” .É evidente que, pela introdução das noções novas, o sentido do Concílio não se mantém. O pão e o vinho tornaram-se somente no “símbolo eficaz da presença espiritual de Cristo”.
Isso nos aproxima singularmente da posição modernista que não afirma a presença real do Corpo de Cristo na Eucaristia, e que diz somente, do ângulo prático e religioso: comporta-te com respeito à Eucaristia como com respeito à humanidade de Cristo.
Nas mesmas folhas entende-se de modo semelhante o mistério da Encarnação:
“Conquanto Cristo seja verdadeiramente Deus, não se pode dizer que por ele havia uma presença de Deus na terra da Judéia... Deus não estava mais presente na Palestina do que alhures. O signo eficaz desta presença divina manifestou-se na Palestina no primeiro século da nossa era, é tudo o que se pode dizer” .
Acrescenta-se por fim: “o problema da casualidade dos sacramentos é um falso problema, nascido de uma falsa maneira de formular o problema”.
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Não pensamos que os escritores de que acabamos de falar abandonam a doutrina de Santo Tomás; eles nunca aderiram a ela nem nunca a compreenderam bem. E isso é doloroso e inquietante.
Com essa maneira de ensinar, como não formar cépticos, já que não se propõe nada de firme para substituir a doutrina de Santo Tomás? Ademais, pretendem eles estar submetidos às direções da Igreja, mas em que consiste essa submissão?
Um professor de teologia escreve-nos: “É, com efeito, em torno da noção mesma de verdade que se dá o debate, e há os que, sem se dar conta disso, se voltam para o modernismo no pensamento como na ação. Os escritos de que me fala o senhor são muito lidos na França. Têm grande influência — sobre os espíritos medianos, é verdade: as pessoas sérias não se deixam iludir. É preciso escrever para os que têm o sincero desejo de ser esclarecidos”.
No dizer de alguns, a Igreja não teria reconhecido a autoridade de Santo Tomás senão no domínio da teologia, não diretamente no da filosofia. Ao contrário, a encíclica Æternis Patris, de Leão XIII, fala sobretudo da filosofia de Santo Tomás. Outrossim, as vinte e quatro teses tomistas propostas em 1916 pela Santa Congregação dos Estudos são de ordem filosófica, e, se estas pronunciata maiora de Santo Tomás não têm valor de certeza, que pode valer sua teologia, a qual constantemente a elas recorreu? Enfim, já o recordei, Pio X escreveu:
“Magistros autem monemus, ut rite hos teneant Aquinatem vel parum deserere, præsertim in re metaphysica, non sine magno detrimento esse. Parvus error in principio, sic verbis ipisius Aquinatis licet uti, est magnus in fine”.
De onde vêm as tendências? Um bom juiz escreve-me: “Recolhem-se frutos da freqüentação sem preocupações dos cursos universitários. Muitos querem freqüentar os mestres do pensamento moderno para os converter, e se deixam converter por eles. Aceitam-lhes pouco a pouco as idéias, os métodos, o desdém da escolástica, o historicismo, o idealismo e todos os erros. Se essa freqüentação é útil para os espíritos já formados, é seguramente perigosa para os outros”.
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Conclusão
Para onde vai a nova teologia? Ela volta ao modernismo. Porque aceitou a proposição que se lhe fazia: a de substituir a definição tradicional da verdade: adaequatio rei et intellectus realis mentis et vitae. Isso está dito mais explicitamente na proposição já citada, extraída da filosofia da ação, e condenada pelo Santo Ofício em 1° de dezembro de 1924:
“Veritas non invenitur in ullo actu particulari intellectus in quo haberetur conformitas cum objecto, ut aiunt scholastici, sed veritas est semper in fieri, consistitque in adaequatione progressiva intellectus et vitae, scil. In motu quodam perpetuo, quo intellectus evolvere et explicare nititur id quid parit experientia vel exigit actio: ea tamen lege ut in toto progressu nihil unquam ratum fixumque bateatur” .
A verdade já não é a conformidade do julgamento com o real extra-mental e suas leis imutáveis, mas a conformidade do julgamento com as exigências da ação e da vida humana que evolui sempre. A filosofia do ser ou ontologia é substituída pela filosofia da ação, que define a verdade em função já não do ser, mas da ação.
Volta-se, assim, à posição modernista: “Veritas non est immutabilis plus quam ipse homo, quippe quae cum ipso, in ipso et per ipsum evolvitur” .Também Pio X dizia dos modernistas: “aeternam veritatis notionem pervertunt” .
É o que previra nosso mestre o Pe. M. B. Schwalm em seus artigos da Revue Thomiste acerca da filosofia da ação e do dogmatismo moral do P. Laberthonnière, e acerca da crise da apologética contemporânea, das ilusões do idealismo e de seus perigos para a fé.
Mas muitos pensaram que o Padre Schwalm tinha exagerado, e deram pouco a pouco direito de cidadania à nova definição da verdade, e mais ou menos cessaram de defender a definição tradicional do verdadeiro: a conformidade do julgamento com o ser extra-mental e suas leis imutáveis de não-contradição, de causalidade etc. Para eles o verdadeiro já não é o que é, mas o que se torna e muda sempre.
Ora, cessar de defender a definição tradicional da verdade, deixa dizer que ela é quimérica, que é preciso substituí-la por outra, vitalista e evolucionista, tudo isso conduziu ao relativismo completo, e é um erro muitíssimo grave.
Ademais, e nisto não se meditou, tal atitude levou a dizer o que os inimigos da Igreja nos querem fazer dizer. Lendo-lhes as obras recentes, vemos que experimentam verdadeiro contentamento, e que eles mesmos propõem interpretações de nossos dogmas, ao tratar do pecado original, do mal cósmico, da encarnação, da redenção, da eucaristia, da reintegração universal final, do Cristo cósmico, da convergência de todas as religiões para um centro cósmico universal.
Compreende-se, com isso, por que disse o Santo Padre, ao falar da “teologia nova” no discurso publicado pelo Osservatore Romano de 19 de setembro de 1946:
“Si talis opinio amplectanda esse videatur, quid fiet de nunquam immutandis catholicis dogmatibus, quid de fidei unitate et stabilitate?”
Por outro lado, como a Providência não permite o mal senão por um bem superior, e como se vê em muitos uma excelente reação contra os erros que acabamos de sublinhar, pode-se esperar que tais desvios sejam ocasião de verdadeira renovação doutrinal, por um estudo profundo das obras de Santo Tomás, cujo valor ressalta cada vez mais, especialmente por contraste com a desordem intelectual dos dias de hoje.
(Pe. Garrigou-Lagrange, Apêndice à sua obra La Synthèse thomiste, Paris, E. Desclée de Brouwer, 1946.)
Tradução: Permanência