Alguém que me pareceu ser um viajante, a julgar pelas aparências, aproximou-se de mim e indagou-me: "Qual é o caminho mais curto para se ir de um lugar ao mesmo lugar?"
O sol ocultava-se atrás de sua cabeça, de modo que não pude decifrar-lhe o rosto.
— Certamente, respondi, é permanecer no mesmo lugar.
— De modo algum, replicou. O caminho mais curto para se ir de um lugar ao mesmo lugar é dar volta ao mundo.
E foi-se.
White Wynd vivia com a família na Fazenda Branca, ao pé do rio. Ali mesmo nasceu, cresceu e contraiu casamento. A Fazenda era cercada pelo rio por três lados, como um castelo. No quarto havia estábulos e além dos estábulos uma horta, e além da horta um pomar, e além do pomar um muro baixo, e além do muro uma estrada, e além da estrada um pinheiral, e além do pinheiral um campo de trigo, e além o campo de montanhas furando o céu, e além... mas não devemos, a despeito da tentação, catalogar o mundo inteiro.White Wynd não conhecia outro lar senão o seu. O seu mundo estava confinado àquelas paredes. O céu era o telhado.
Tudo isso é que torna tão estranho o seu procedimento.
Nos últimos anos ele já raramente transpunha a soleira da porta. A indolência deixava-o inquieto e mal humorado. Vivia ansiando pelo próximo momento.
A esposa e os filhos, muito embora fossem ótimas pessoas, eram os que mais sofriam com as mudanças de seu temperamento. Mesmo para eles seu coração tornara-se árido e amargo. Recordava-se, confusamente, dos dias difíceis de luta pelo pão, quando, regressando à noite do trabalho, via sua casa brilhar como ouro, como se estivesse povoada de anjos. Mas a lembrança esfumava-se como um sonho.
Cada dia que passava sentia-se mais capaz de compreender outros lares, menos o seu. O seu era apenas uma casa. A nostalgia tomara conta dele, fechando-lhe os olhos e os ouvidos.
Alguma coisa, enfim, se passava dentro dele: um vulcão; um terremoto; um eclipse; uma aurora; um dilúvio; um apocalipse. Não será o apêlo a palavras grandiosas que nos desvendará o mistério de seu coração.
Muitas e muitas vezes a manhã surpreendera a pequena familia reunida na cosinha para a primeira refeição. Na última vez o pai, interrompendo o café, falou cismadoramente:
— Aquele campo verde, brilhando ao sol, como que me lembra um campo de meu próprio lar.
— Seu próprio lar? perguntou a esposa. Esse é o seu lar.
White Wynd ergueu-se e sua figura parecia cobrir toda a sala. Apanhou o chapéu e o bordão, cobertos de pó.
— Pai! exclamou um dos filhos. Aonde vai?
— Para casa.
— Como assim? Se esta é sua casa. Aonde vai, pai?
— Para a Fazenda Branca, ao pé do rio.
— Mas é esta!
Ele as olhava tranqüilamente quando a filha mais velha leu a verdade nos seus olhos.
— Oh! Ele está louco, gritou.
E enterrou o rosto nas mãos.
White Wynd falava calmamente.
— Você, acrescentou dirigindo-se à filha, você me lembra um pouco a minha primogênita... mas não tem o mesmo olhar dela, aquele olhar que era como uma benção depois do trabalho.
— Senhora, disse, voltando-se cortesmente para a esposa boquiaberta, agradeço-lhe a hospitalidade, mas receio que já haja abusado muito dela. E meu lar...
— Pai! Pai! responde-me. Não é este o seu lar?
O velho brandiu o bordão no ar.
— Os portais estão cobertos de teias de aranha e as paredes estão marcadas pelas chuvas. As portas dobram-me e as vigas esmagam-me. Só há ninharia, disputa e rancores atrás dessas rótulas onde tenho vivido há tanto tempo. Lá na casa onde nasci, longe do mundo, há pão e água, fogo e roupa, e todos os mistérios e artifícios do amor. Há descanso para os pés fatigados e rostos tranqüilos para repouso dos corações famintos.
— Onde? Onde?
— Na Fazenda Branca, ao pé do rio.
E atravessou a porta, o sol brilhando-lhe na face. E os moradores da Fazenda Branca olharam-se com espanto.
White Wynd, na ponte de madeira sobre o rio, sentiu o mundo a seus pés. Um grande vento veio-lhe ao encontro, do outro lado do céu (da terra de maravilhosos reverberos). Quem pode saber o que significa para o homem o efeito do primeiro vento soprando em campo aberto? Ele, pelo menos, sentia-se como se Deus houvesse puxado sua cabeça para trás e beijado-lhe a fronte.
Wynd gastara-se no repouso, sem saber que o remédio está no sol, no vento e no próprio corpo. Estava propenso a acreditar que usava agora a bota de sete léguas.
Ia para casa. A Fazenda Branca devia estar atrás de cada bosque e além de cada montanha. Procurava-a como procuramos o país das fadas, em cada volta do caminho. Só não a buscava numa direção, lá onde, a uma milha atrás, erguia-se a Fazenda Branca, fulgurando contra o céu brumoso da manhã.
Sentia-se como um gigante comparado com os dentes-de-leão e os grilos ao seu redor. É um velho costume nosso medir-nos pelas montanhas. Todo objeto pode ser infinitamente grande como infinitamente pequeno. E Wynd cresceu como um crucificado na sua incontida grandeza.
— Ó Deus, vós que me criastes e a todas as coisas, ouvi quatro cantos de louvor. Um por meus pés, que fizestes fortes e ligeiros sobre vossas margaridas; um por minha cabeça, que vós erguestes e coroastes acima dos quatro cantos do céu; um por meu coração, que fizestes igual ao coração dos anjos entoando a vossa glória. E um por aquela nuvenzinha pálida ao longe, sobre as colinas.
E White sentiu-se como um novo Adão recentemente criado. Era o senhor de todas as coisas, inclusive do sol e das estrelas.
Devia ser uma epopéia a história da viagem de White Wynd. Ele viveu esquecido e esmagado nas grandes cidades. Contudo não esmoreceu. Trabalhou nas pedreiras, nas docas de todos os países por onde passou. Viveu inúmeras existências, como uma alma errante. Até entre vagabundos, forçados, marinheiros e pescadores. Cada um contou-lhe o acontecimento decisivo de sua vida. Até o homem alto e magro, de olhos iguais a duas estrelas, estrelas de uma velha obstinação.
Mas ele nunca se desviou dos limites da terra. Uma tarde suave de verão, todavia, sucedeu-lhe a coisa mais estranha de toda a viagem. Esforçava-se penosamente para galgar uma enorme duna, que tudo ocultava, como se fosse a própria cúpula do mundo, quando, de súbito, invadiu-o uma sensação estranha. Olhou para trás a ver se descobria qualquer sinal de fronteira, pois a sua sensação era de quem acabasse de ingressar no país das fadas. Com o espírito abrasado por novos sentimentos, assaltado por lembranças confusas, marchou penosamente no topo da colina. O sol no ocaso raiava na sua glória universal. Entre ele e o sol, à altura dos campos, uma como nuvem branca surgiu ante seus olhos marejados. Não, não era uma nuvem. Era um palácio de mármore. Não, era a Fazenda Branca, ao pé do rio.
Chegara ao fim do mundo. Todo lugar na terra é o começo ou o fim, segundo o coração do homem. Eis a vantagem de se viver num planeta esférico.
Anoitecia. Toda a extensão da terra onde estava fundira-se em ouro. A relva transformara-se em fogo sob seus pés. White Wynd estava tão quieto que os pássaros pousaram no seu bordão.
A terra inteira na sua glória parecia rejubilar-se com a volta do homem pródigo, os pássaros reconheciam-no. A própria Natureza estava na posse do seu segredo, o homem que tinha viajado de um lugar para o mesmo lugar.
Apoiou-se com fadiga no cajado. E mais uma vez ergue a sua voz.
— Ó Deus, vós que me criastes e a todas as coisas, ouvi quatro cantos de louvor. Primeiro por meus pés, que estão feridos e vagarosos, agora que se aproximam de minha casa. Um por minha cabeça, que está dereada e encanecida, agora que a coroastes com o sol. Um por meu coração, porque lhe ensinastes na tristeza e na esperança sempre adiada, que é a estrada que faz a casa. E um pelas margaridas a meus pés.
Desceu a encosta da colina e penetrou no pinheiral. Os raios vermelhos e dourados do sol agonizante derramavam-se sobre as casas da fazenda e os galhos verdes das macieiras. Era agora o seu lar. Mas ele só ficou sendo o seu lar depois de o ter abandonado. Só agora que voltava de uma longa viagem. Era o Filho Pródigo.
Saiu do pinheiral e atravessou a estrada. Transpôs o muro baixo, errou através do pomar e da horta, passou pelos estábulos dos animais. E no pátio de pedra viu sua mulher puxando água.
(G.K.Chesterton,"The Coloured Lands", Trad. Francisco Barbosa de Rezende. publicado n'A Ordem, 01/1958. O título é nosso)