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O governo de Deus (seguido de artigo de Gustavo Corção)

A vinda do Messias, o Filho de Deus, centro da História, é o fundamento de toda a Criação e da Redenção da humanidade decaída.
 
Depois que Ele veio abriram-se os caminhos ainda fechados para a ascensão das almas para o Senhor. Agora, tendo-O como modelo a imitar, guia a seguir, os homens não precisam mais de profetas através dos quais consultem o Senhor sobre a paz ou a guerra porque O têm a Ele, pendurado na Cruz. “Tomai sobre vós a vossa cruz de cada dia e segui-me” é o que Ele nos diz. Trata-se portanto de encarar a vida pessoal de cada um na perspectiva única possível para uma alma religiosa, a da procura ardente da própria santificação, sabendo que ela só de Deus nos pode vir mas que de nosso pedir também depende o conceder. Deus dispôs as concessões de seus dons segundo as orações dos que as devem receber, embora sempre nos cumule abundantemente de graças que recebemos sem suspeitar, embora Ele nos ame primeiro antes que tenhamos um começo de consciência disso.

O Itinerário espiritual ascendente em que a santidade já favorece a santidade, até a sua plena realização no céu, não só depende essencialmente de Deus como vincula nossa vida, nosso interesse maior, nosso coração todo ao agrado do Pai. Ora, esse agrado consiste essencialmente em receber o Filho na oblação do sacrifício que realizou cruentamente uma só vez mas que repõe diante do Pai em todas as missas até o fim dos tempos. Assim, o principal da vida dessa alma só pode girar em torno da oração contínua, da entrega perfeita a Deus, da contemplação e da felicidade que deve encontrar nas missas, cuja assistência é seu júbilo máximo.
 
Visto assim o interesse de uma alma católica em sua vida pessoal, poderemos compreender como deverá ser polarizada a vida política, a convivência na cidade cristã, o relacionamento entre governantes e governados “depois que Ele veio”. Se antes de Sua vinda era em torno da realização da Promessa que girava o cuidadoso constante das almas piedosas, agora, é em torno do vivo interesse pelo Fim que deveria girar nosso cuidado pessoal e nosso cuidado coletivo.
 
Parecerá, bem sabemos, fúnebre ou “pessimista” como dizem os mundanos, uma tal perspectiva. Esses senhores não saberão compreender que o anseio pelo júbilo do céu não impede o gosto pacificado pelos dons que Deus nos dá para a vida na terra. Mas Ele próprio disse: “Buscai primeiro o reino de Deus e tudo o mais vos será dado por acréscimo” ou “Aquele que renuncia a tudo, pai, mãe, terras, sua própria vida por minha causa, alcançará o reino dos céus, e o cêntuplo daquilo que deixou de lado”. A contradição entre “carne” e “espírito” quase sempre é mal compreendida. Tanto uma como outra palavra dizem respeito ao homem todo e não a uma oposição (falsa) entre corpo e alma. “Carne” quer dizer o homem todo voltado para bens carnais como seu bem maior e “espírito”, o homem todo, inclusive com seu corpo, que sabe que é em Deus que encontrará sua felicidade, que é na verdade d’Ele que achará sua alegria mas que não lhe cabe obter o fim senão quando Ele o determinar, que não lhe compete decidir quando irá para o céu e sim a Deus. Esta alma sabe que Deus a quer no mundo para determinados objetivos preparatórios daquele Fim; que lhe cabe procurar discernir esses objetivos segundo as inspirações de Deus, segundo as indicações das circunstâncias, segundo a sabedoria dos mais sábios.
 
A Igreja sempre ensinou que nossa vida aqui é provisória, que nossa Pátria está no céu. Esta perspectiva é mais séria do que julgam os desdenhosos e suficientes (hoje também perturbados) senhores do mundo mundano em que vivemos. Se nós dizemos “venha a nós o Vosso reino” em nossas orações, cumprimos um dever de manifestar a Deus que nosso anseio é, realmente, que termine o prazo deste mundo e possamos estar com Ele, no céu por toda a eternidade. Mas não desprezamos com este anseio nem um único dos bens que Ele nos dá, não ignoramos a beleza e o apreço que merecem cada um desses bens. Importa ver que a nossa vida coletiva — tanto quanto a pessoal — não terá sentido senão à luz dessas verdades. Importa saber que a urbanidade com os vizinhos, a cordialidade com os familiares, a competência na profissão, a retidão geral nas virtudes, a consideração de nossa vida em sociedade à luz de nossas obrigações e não de pretensos “direitos”, tanto para os que governam como para os governados, tudo isso deve ser visto em relação com nosso futuro, com a plenitude de nossa alegria quando pudermos, no céu, contemplar e amar a Deus como Ele se contempla a si mesmo e como Ele se ama a Si mesmo. Assim veremos que aquela urbanidade e aquela cordialidade são adjutórios importantes para que a graça do Senhor, por nosso intermédio, favoreça a santificação dos que chegam e dos que se formam no mundo em que vivemos; a cooperação de todos, segundo as obrigações de cada um para com o bem comum, deve ter como critério principal a constituição de um ambiente favorável à santificação geral, ao reforço dos princípios e valores católicos que componham ainda a civilização de nosso tempo para que esta encoraje, facilite, proporcione meios de santificação crescente a cada um e de piedade coletiva para honra de Deus por parte de todos.
 
Considerar assim a vida social ou a vida particular de cada um, tão intensamente, tão completamente envolta em assuntos religiosos, em interesses católicos, parecerá, é claro, não apenas aos mundanos mas até a simpatizantes, um excesso. Para quem vive em torno de ir à praia ou cuidar dos trabalhos ou preocupar-se com a política ou com a economia, ver-se convidado a modificar seus parâmetros interiores e olhar uma vida centrada em missas em não em esportes, em apostolado e não nas intrigas políticas ou nas “responsabilidades” de empresas ou ministérios, nosso ideal de vida certamente causará desagrado. Aos que governam, sobretudo aos que encaram o poder como um bem em si mesmo, passível de ser objeto de desejo e não um difícil instrumento para cumprir um pesado encargo que de Deus se recebe, para esses uma proposta com a da visão católica na vida social parecerá um absurdo incompreensível. Falar em sujeitar realmente à execução da vontade de Nosso Senhor Jesus Cristo toda a tarefa de governar um país, além de parecer impossível já que não se ouve palavras sonoras de Deus assinalando o que Ele quer (como imaginariam ser necessário) parecerá também inadequado, abstruso, impróprio como diria um educado e surpreso político a quem se fizesse esta sugestão. Foi às vezes divertido ler as respostas dadas pelos dirigentes dos principais partidos políticos franceses às propostas apresentadas a cada um por um grupo de católicos franceses que os primeiros supunham (e por isso respeitavam) uma força eleitoral mais importante do que realmente eram. A proposta de submeter a toda a direção política do país aos 10 mandamentos, emudecia, ora de espanto, ora de desdém os interrogados. Alguns gaguejavam, em resposta: “Mas... os 10 mandamentos? Aqueles que Deus deu a Moisés?” Também o Cardeal Pio, importante pensador francês de meados do século passado, apresentou ao Imperador Napoleão III o direito de Deus de governar os povos, assim como as almas individuais, isto é, o reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre toda a vida da sociedade, a elaboração de leis, a execução dos atos de governo, etc. O estupefato imperador lhe respondeu:
 
“Mas o senhor acredita que a época em que vivemos comporta este estado de coisas e que seja oportuno o momento atual para estabelecer este reino exclusivamente religioso que o senhor me pede?” Ao que lhe respondeu o Cardeal: “Sire, quando grandes políticos como o senhor me objetam que o momento presente não é propício, eu só posso me inclinar porque não sou um grande político. Mas sou um bispo e como bispo eu lhes respondo: se o momento não é oportuno para que o Senhor Jesus reine então o momento não é oportuno par que os governos durem”. Pois, de fato, o desordenado efeito da rebelião contra Deus na ordem política é que os homens se tornam ingovernáveis, como vimos, porque todos acabam pretendendo ser reis e senhores de si mesmos e encaram a autoridade moral como uma rapina que um homem pretende exercer sobre os demais.
 
E sejamos justos. Mesmo para nós, católicos, a submissão de nossa vida pessoal à direção absoluta das inspirações da graça é árdua empresa que a escassa presença de almas em processo de santificação no mundo em que vivemos, confirma. E no que diz respeito à vida coletiva, igualmente, custa-nos enormemente abandonarmo-nos ao governo divino, deixarmos à bondade infinita de Deus o cuidado de nossos interesses, confiarmos em Sua onipotência, muito mais do que nossos pobres esforços, proporcionará aos seus filhos tudo aquilo que lhes convém segundo a verdadeira perspectiva da nossa vida na terra: preparação, caminho, prelúdio de nossa vida no céu.
 
“Deixa ao Senhor o cuidado de ti”, diz o Salmo 54, mas isso nos custa. Nossa relutância, a esse respeito, assinala Gustavo Corção em artigo de outubro de 1950 “A irrepreensível Providência” (1), tem especial relevo.
 
Nenhuma ilusão nos engana, portanto. Bem sabemos o quanto de inútil, do ponto de vista prático, terão estas considerações já que nenhuma hipótese parece mais remota do que ver qualquer agrupamento humano de algum relevo exercer qualquer influência ponderável para que tais idéias prevaleçam em algum país. A única coisa que justifica, não obstante, o esforço de bem entender tudo isso e de exprimi-lo para eventual auxílio de algum eventual eleitor, é a consciência de que pouco importa o número de votantes ou de aderentes a tais doutrinas, se estas são verdadeiras. E se são verdadeiras, importa enormemente considerar à sua luz os desvios e os horrores do mundo em que vivemos pois temos nestas posições um padrão aferidor para guiar-nos na defesa que pudermos manter e nas súplicas a oferecer segundo as necessidades do combate e as exigências de testemunho. Somos testemunhas do Cristo e como tais importa morrer, se for o caso, sob o grito “Viva Cristo Rei” como morreram os mártires espanhóis. Mas enquanto não chega o momento em que esse testemunho precise ser dado, podemos oferecer outros, pregando o ensinamento da Igreja Católica de 20 séculos, que não muda, e usando para com o mundo inimigo a prudência da serpente, como nos recomendou o Senhor Jesus, ao mesmo tempo em que guardamos, para com Ele, a candura da pomba. Ele mesmo nos ensinou que nosso lema de vida diária, inclusive no trato com a coisa pública (segundo nossa condição e nossas obrigações) é o de vigiar, isto é, cumprir os mandamentos, os conselhos, atender aos deveres de estado, reagir aos acontecimentos conforme requeira o organismo das virtudes que recebemos da graça, e, por outro lado, rezar, isto é, abandonarmo-nos a Ele, nosso Pai, suma Bondade, sumo Poder que não deixará seus filhos ao desamparo, que quando nos entrega às tribulações, purifica-nos para o céu que preparou para nós. Deixemos ao Senhor o cuidado de nosso futuro e a reparação de nosso passado, já fora de nosso alcance. E nenhum desmerecimento faremos aos bens terrestre que exprimem as grandezas e maravilhas da obra de Deus se aspirarmos ardentemente pelo Fim, também em razão da multiplicação dos abusos, das traições dos pastores, do que parece ser a vitória dos maus, para que o homem não prevaleça e se dê conta de que não passa de homem.
                                                                                                               
Revista Permanência n° 126-127 maio-junho, Ano XII.
 
 
 
A IRREPREENSÍVEL PROVIDÊNCIA
 
Gustavo Corção
 
 
De todas as coisas duras e difíceis que Deus nos propõe no grande torneio de amor — o dogma de Seu Corpo, a porta estreita de Seu reino, a imitação de Sua cruz — nenhuma é tão árdua e tão desconcertante como a compreensão e a aceitação de Seu governo no mundo.
 
O acontecimento, isto é, aquilo que vem à tona do presente, que se realiza no tempo, que se torna visível nessa fugaz travessia de um raio de sol, aquilo que ocorre, que nos cruza o caminho, aquilo que “é” em suma, embora do mais fraco e efêmero modo de ser — eis o grande, o supremo desafio de Deus.
 
Ah! Se pudéssemos voltar atrás! Se pudéssemos recompor e recomeçar a partida!
 
Mas o que acontece só acontece porque Deus consente. Não cai um só fio de cabelo, como não cai um Império, sem o divino beneplácito. E nesse sentido tudo o que acontece é bom, essencialmente bom, adoravelmente bom. E nesse sentido nós devemos aceitar os acontecimentos como propostas às vezes enigmáticas de nosso Pai.
 
Mas a aceitação, nessa ordem de idéias, não significa conformidade acabrunhada; não quer dizer que devemos nos entregar à onda dos fatos, ou que nos deixemos “devorar pelo Minotauro da história”. Não. Somos nós que devemos devorar a história. Se agora são repelentes as iguarias que descem do céu numa grande toalha aberta, como os quadrúpedes e répteis que Pedro viu em Joppe, nem por isso podemos fugir, repetindo a palavra do apóstolo que se gabava de não tocar coisas imundas, e impuras.
 
O acontecimento que nos é proposto agora é terrivelmente impuro. Mas Deus quer que o aceitemos. Não para saborear as impurezas, não para aderir, não para chamar de branco o preto e de bom o mau. Deus quer que o aceitemos como ponto de partida, porque está combinado entre Ele e nós que todos os minutos de nossa vida, sejam quais forem as circunstâncias são pontos de partida. Deus quer que o aceitemos como matéria a ser trabalhada, substância a ser transformada, arrumação de peças a ser adotada para uma nova partida nesse grande jogo de amor entre Pai e filhos.
 
E é nesse sentido dinâmico e corajoso, impaciente na obediência e pacientíssimo nas compensações, é nesse sentido forte e espiritual, submisso e altivo, humilde e impetuoso, que nós devemos aceitar os acontecimentos. Porque tudo, tudo o que acontece, tudo o que é empurrado pelo tempo para a festa do real, por mais desagradável que pareça, por mais repelente que seja o amontoado de répteis e quadrúpedes, tem o selo da irrepreensível Providência.
 
Comecemos pois hoje mesmo a nossa aceitação, isto é, o nosso combate.
 
Outubro de 1950.

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