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Dignidade da natureza, não da pessoa

A noção da dignidade não pode ter a conotação, insinuada em nossos dias, de um valor absoluto. E tampouco pode ganhar essa conotação com a ligeireza com que os mais altos dignatários da Igreja se permitiram aceitá-la. A linguagem católica pode falar em dignidade da natureza humana, dignidade que lhe advém sobretudo porque a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, o Verbo de Deus, preferiu esta natureza e não outra e assumindo-a, fazendo-a sua, emprestou-lhe um valor inesperado e uma eminência imerecida.

Mas a noção de uma natureza que tem, de si mesma, uma dignidade própria, afasta a possibilidade de uma graciosa distribuição de "dignidade" às pessoas que individualizam tal essência abstrata. O conceito de "pessoa", também ele utilizado com ligeireza suspeita, parece servir do desempenho das pessoas concretamente consideradas. Ora só o desempenho de cada um e, mais ainda, o desempenho ultimado (no céu ou no inferno) é que permitirá "a posteriori", falar-se em dignidade "desta" ou "daquela" pessoa humana.
 
Utilizar o conceito de dignidade, próprio da natureza humana, para afirmar "a priori" uma dignidade da pessoa humana tem a bem conhecida conseqüência de deixa de lado a questão do bem agir ou do mau agir. Em poucas palavras, é um conceito espúrio, malicioso, pérfido, cuja conseqüência é afastar, deixar no esquecimento, as noções do bem e de mal. Trata-se de mais uma das artimanhas do inferno que, sob pretextos de uma sociologia barata, visa sobretudo a eliminação de categorias morais. O mesmo ocorre com inúmeras outras abordagens: os assassinos, ladrões e traficantes, sobretudo quando são negros de favelas, são sempre o "produto de uma infância desvalida", o produto da miséria, o produto de uma "sociedade de minorias privilegiadas" etc. Em outras palavras, para estes, não há, não se põe, não se lembra a existência de um decálogo, de uma obrigação de reto agir.
  
Marginais dos morros são moralmente absolvidos de antemão ainda que, por uma retardada norma legal, não se discuta, por enquanto, que a polícia tenha que perseguí-los e os tribunais que julgá-los. Mas já são perseguidos e julgados por uma questão de mera rotina de preceitos do Código Penal que, por enquanto, não se discute mas já não têm mais vínculo real, concreto, com o senso moral (ou amoral) vigente. São já uma casca vazia. Cedo levantar-se-ão bispos, intelectuais, jornais ou advogados dessa mesma índole para "questionar" como dizem, os fundamentos, a validade desses preceitos, condenações, penitenciárias, etc. Todo esse sistema já é "questionável" e só por um acaso (ou por uma astúcia) não o foi ainda.
  
Esse "questionamento" já existe, aliás, nos países soviéticos. Ali já se organiza (e ainda por cima com ares humanitários) um regime de "reeducação", sinistro programa de robotização dos homens que se desenvolve ao longo de uma gama variada de métodos, desde a pretensão de "convencimento" utilizando-se um pseudo-intelectualismo cheio de trapaças intelectuais até, nos casos extremos de recalcitrantes que se recusam a ser "reeducados", o internamento em hospitais psiquiátricos em que requintados processos de desmantelamento da personalidade, à base de injeções com drogas especiais (haloperidol, triftasina), são utilizados e foram denunciados ao Ocidente por diversas vítimas libertadas por pressões norte-americanas, por exemplo, o relato do matemático russo Pliutch, em Viena, alguns anos atrás.
  
Mas, enquanto não alcançamos para nós, com as bençãos da CNBB, esse progresso que já existe nos países comunistas, o conceito espúrio de "dignidade da pessoa humana" serve já, em termos práticos, para se criar toda uma atmosfera de incalculável exigência que se pretende "moral": ninguém quer saber se alguém é um homem de bem, um pai de família normal que, embora um pecador, como todos somos, vive pacificamente com sua família, trabalha com dedicação e consegue esse feito tornado heróico em nossos dias: cumprir seus deveres de estado; ou se se trata de um traficante de drogas que serve a uma organização que leva à loucura milhares de jovens, destrói as famílias que são atingidas por essa praga, arruína a vida de muitos. Ninguém quer saber se temos, nos conflitos sociais que se multiplicam, de um lado, policiais cumpridores de seus deveres e de outro marginais assaltantes e assassinos. Ninguém quer saber se os pobres, miseráveis, "sem terra", ou que outra etiqueta adotem, são arregimentados e insuflados à reivindicação indiscriminada e, em pé de guerra, tenham ou não tenham direito, exigem destes ou daqueles a satisfação, na "marra", como dizem, das suas exigências. Nada disso interessa à CNBB, ao PT, ao JB, à OAB ou à Televisão. Só interessa impedir que os criminosos sejam perseguidos de modo eficaz porque, segundo eles, a "dignidade da pessoa humana" está sendo arranhada ou até violentada. Tortura nunca, Tortura nunca mais. Ora, com essa tática de imantar palavras que aterrorizam a todos, os jornais, os "intelectuais", verdadeiros ou falsos, os que exercem influência na sociedade, bispos, professores, políticos, todos, tolhem a ação enérgica que poderia efetivamente conter a onda crescente de uma mentalidade que se sabe, que se sente estimulada por todos, por tudo, a mentalidade do "eu quero", "eu quero já", "eu exijo", num festival de insolências e de baixeza generalizada em que cada um e todos, o povo ele mesmo, só vê seu próprio interesse pessoal imediato e torna assim venal o seu voto, para utilizar uma expressão de Santo Agostinho. Nessa hora mesma em que mais se desqualificou para o exercício do direito de voto, direito que, como diz Santo Agostinho em artigo que citamos há tempos, deveria ser-lhe retirado, nessa hora é que o frenesi de demagogia que se derramou em Brasília pretende tudo atribuir ao povo e a ele, e a ele só, vincular toda legitimidade e até o exercício quotidiano do poder.
  
A tática subliminar hoje empregada todos os dias por jornais como o Jornal do Brasil, visa a paralisar a polícia e a denegrir, por enquanto ainda discretamente, o Exército. Quem acompanha a leitura dos jornais todos os dias, há anos, com a atenção voltada para esse aspecto, furtando-se todos os dias à perversa influência com crítica atenta, mas guardando hoje a memória do que leu ontem, quem se lança a este combate que exaure, que consome a saúde, que requer um esforço para manter o equilíbrio até ao ponto de precisar de orações constantes, quem faz isso, sabe que nesse jornal e em outros órgãos de comunicação e em seus organismos paralelos, a mentira constante, insistente, pérfida, venenosa, quotidiana, monta e cada vez mais uma onde, um ambiente de maldade, de surda exigência, de fedorenta hostilidade que mal disfarça a filiação, dos que fazem essa obra, à usina de ódio em que bebem seu rancor. E como já dissemos nesta revista, bem falou deles o grande poeta Fernando Pessoa: "... e olhando para mim, viu-me lágrimas aos olhos e sorria com agrado julgando que eu sentia, o ódio que ele sentia e a compaixão que ele dizia que sentia". Ele falava do pregador socialista, da mentalidade do Jornal do Brasil e de todos os outros membros dessa central de ódios que vomita sem cessar sua baba para envenenar a mentalidade comum do brasileiro.
  
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Desmontar essa malha de perfídias que os conceitos espúrios e as palavras imantadas montaram, é tarefa difícil. Há sempre uma mistura, uma confusão de conceitos, uma insinuação de valores em palavras astuciosas e mal intencionadas que exigem longas explicações e, às vezes, cuidadosas colocações para evitar armadilhas de retardamento que prejudicariam valores reais. Por exemplo, a tentação que hoje pode fazer-nos incorrer em grave falta: a de abandonarmos qualquer ação de socorre aos pobres porque todas as formas de atenção e cuidado para com eles estão permeadas de veneno astuciosamente introduzido nos conceitos, nos métodos de ação, nas organizações especializadas que se ocupam com eles. E é preciso muito cuidado nessa tarefa de separar o joio do trigo, não só para preservar os valores verdadeiros como para evitar a ingênua colaboração em termos práticos com qualquer obra ou organização que seja suspeita de estar contaminada. Na verdade, o que nos parece aconselhável nesse particular é rejeitar tudo, absolutamente tudo aquilo que esteve alguma vez mergulhado nesse mundo de perfídias eclesiásticas e preservar apenas aquilo que era característico das obras da Igreja antes que desabasse sobre nós essa calamidade. Devemos saber, por exemplo, que é com paternalismo, sim, que devemos procurar ajudar os menos dotados. Devemos saber que grandes obras que corrijam a miséria não são e não podem ser o resultado de ações individuais ou de pequenas organizações, mas devemos, principalmente, saber que, ao contrário do que hoje ensinam os bispos da nova igreja pós-conciliar, é com a CARIDADE que se socorre os pobres e não com cretinissimas idéias de "participação" ou "co-gestão" ou "justiça" no sentido prostituído com que "eles" usam essas palavras. Devemos saber que nada disso podemos querer praticar senão dentro de um contexto de procura da santidade e que santidade é que é o verdadeiro sentido da palavra "justiça" no Antigo e no Novo Testamento. Devemos rejeitar de nosso vocabulário e anatemizar como dignas do inferno palavras como "conscientizar", deliberadamente inventada para significar, não "ganhar consciência de alguma coisa", mas "inculcar nos outros uma pseudoconsciência de algum pseudodireito que gera na alma deles uma inclinação reivindicatória", obra maldita que se desenvolveu em nosso país desde alguns anos atrás por ação de alguns bispos pervertidos.
  
Na verdade, quando se contempla o emaranhado de conceitos e o poder de imantação de palavras com que se faz a trama de perversidades, anomalias, deformações monstruosas com que convivemos hoje, não podemos reter uma certa admiração. Sim, admiração. É obra que visivelmente impõe a idéia de uma inteligência e de um poder superiores, superiores aos seres humanos. É uma coisa que se vê, é um dedo quase experimental que deixa a sua marca nessa obra de perdição. É uma evidente assinatura maligna, marca indiscutível do inferno.
  
Quanto à idéia de "dignidade" da pessoa humana, lembremos que uma pessoa concreta e real que singulariza uma natureza humana, será digna ou indigna conforme seu comportamento moral.
  
Indigno, nem por isso estará condenado ao opróbio já que se pode levantar, arrepender-se, pedir perdão e recuperar, sob castigo adequado, a dignidade perdida. Digno, nem por isso pode ser louvado com frases definitivas ou estátua em praça pública, porque aquele que "crê estar de pé, veja que não caia", como diz São Paulo. Por isso é que a inteligência adequada do conceito "dignidade da pessoa humana" não pode prescindir do elemento finalizador de todo um contexto, de toda uma vida: o céu para os bons, os verdadeiramente dignos; o inferno, para os maus, os definitivamente indignos. Esta, a sabedoria católica, óbvia e compatível com o senso comum natural, com a antiga sabedoria grega.
  
E a Tradição católica, expressa nas palavras da Santa Missa ― a mais rica e perene "encarnação" da Tradição oral da Igreja ― já nos havia ensinado: "Deus, qui humanae substantiae dignitatem mirabiliter condidisti et mirabilius reformasti..." (Ofertório da Santa Missa). A tradução é: "Ó Deus, que de modo maravilhoso criastes em sua dignidade a natureza humana e de modo mais maravilhoso ainda a reformastes...".
 
(Revista Permanência, Nov.-Dez de 1987)

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