Pe. Dominique Bourmaud, FSSPX
[Nota da Permanência: O leitor interessado encontrará neste site muitos artigos teológicos e espirituais do dominicano Garrigou-Lagrange, monstro do tomismo]
O Pe. Reginald Garrigou-Lagrange (1877-1964) nasceu no Sul da França, mas mudou-se freqüentemente, acompanhando as numerosas mudanças de posto de seu pai, como coletor de impostos. Após estudar medicina, ouviu o chamado divino e juntou-se à província dominicana de Paris, tendo estudado em Flavigny (atualmente Seminário Francês da FSSPX). Suas pesquisas o levaram a buscar estudos filosóficos na Sorbonne, Paris, e a estudar os escritores modernos. Seus interesses acadêmicos permitiram-lhe ser formado em encontros com mentes de primeira classe como o Pe. Ambroise Gardeil, o Pe. Norberto del Prado e Juan Arintero.
Realizações intelectuais
Uma formação tão poderosa fez com que fosse escolhido para ministrar um curso sobre apologética no Instituto Angelicum de Roma aos 32 anos, cujo conteúdo veio a ser depois reunido num livro em latim, de dois volumes, intitulado De revelatione. Em seguida, foi chamado a ministrar cursos sobre dogma e alguns sobre filosofia, mas também deu aulas populares sobre teologia ascética e mística. Para o encanto de seus alunos, deu vários cursos de 1909 a 1960, mesmo quando já havia ultrapassado os 80 anos, mantendo grande entusiasmo. Seus cursos de teologia eram notáveis: abria amplos panoramas para os seus ouvintes e sabia como conectar os mestres da ciência especulativa com os da espiritualidade. Era uma mostra viva da harmonia entre as três sabedorias: filosófica, teológica e mística.
O Pe. Garrigou foi nomeado consultor do Santo Ofício em 1955. Longe de ser uma sinecura, esse trabalho lhe exigia esforço semanal de pesquisa sobre questões doutrinais nos arquivos secretos que lhe eram fornecidos pela Congregação. Desfrutou da mestria do Cardeal Ottaviani, particularmente sua arte na condução da discussão e na sumarização de questões, teses e argumentos. Amigo de grandes autores franceses, como Jacques Maritain e Henri Ghéon, Garrigou-Lagrange foi um escritor prolífico, cuja qualidade do ensino manteve-se sempre em pé de igualdade com a quantidade produzida. Além de inúmeros artigos para a Revue Thomiste e a revista Angelicum, escreveu 23 obras substanciais.
Um escritor espiritual
Além das obras em latim, que reúnem seus cursos formais de filosofia e teologia dados no Angelicum, os leitores podem se surpreender vendo muitos títulos sobre tópicos puramente espirituais. Aos muito famosos Les Trois âges de la vie intérieure, La Mère du Sauveur et notre vie intérieure e L’amour de Dieu et la croix de Jésus, junta-se uma obra menos conhecida intitulada De Sanctificatione sacerdotum secundum nostri temporis exigentias.
Foi no Angelicum, entre os anos 1909 e 1910, que conheceu Juan Gonzalez-Arintero, O.P., e leu sua Evolución mística. Arintero foi uma das figuras mais proeminentes do catolicismo na Espanha e participou da tentativa, no início do século XX, de restaurar a vida contemplativa à sua antiga glória. Juntamente com ele, Garrigou-Lagrange desempenhou um papel central em chamar a atenção para a natureza da contemplação e para nosso chamado universal, ainda que remoto, a ela. Num ponto mais controverso, sobre a natureza da contemplação, sua posição era muito clara: contemplação significava contemplação infusa, um conhecimento amoroso ou sabedoria que vem de Deus; um dom da presença amorosa de Deus, expressa tão claramente por São João da Cruz, Santa Teresa d’Ávila e outros místicos.
Pode-se dizer sobre suas obras aquilo que ele mesmo escreveu no prefácio de seu De Christo Salvatore: que seu único objetivo era lançar luz a partir dos princípios formulados por Santo Tomás de Aquino. Tinha bons motivos para manter esse método conservador:
“Aqui, como em qualquer outro lugar, temos de nos mover do mais certo e conhecido para o menos conhecido, do fácil para o difícil. Por outro lado, se estudássemos de forma dramática e cativante os tópicos difíceis por suas antinomias, poderíamos terminar, como aconteceu com muitos protestantes, negando as verdades mais fáceis e certas. A história da filosofia e da teologia mostra que freqüentemente é isso que acontece. Temos de destacar também que, se nas coisas humanas, onde o verdadeiro e o falso, o bem e o mal, estão misturados, a simplicidade é superficial e nos expõe ao erro, nas coisas divinas, ao contrário, onde há apenas verdade e bem, a simplicidade une-se perfeitamente à profundidade e à elevação, chegando mesmo a, sozinha, ser capaz de conduzir a essa elevação.”
Garrigou e Maritain
Os dominicanos enviaram o Pe. Garrigou a Paris, para estudar na Sorbonne. Foi no curso de filosofia de Henri Bergson, provavelmente no Collège de France, que conheceu Jacques Maritain. Este, por sua vez, é único entre os tomistas, por se tratar de um convertido; filósofo existencialista em sua juventude, foi seu encontro com o tomismo que o atraiu para a Igreja. Em geral, Maritain foi um sólido filósofo tomista. Mesmo Garrigou, inquestionavelmente um dos melhores tomistas do século passado e diretor espiritual de Maritain durante certo tempo, tece-lhe elogios por suas obras filosóficas.
Não fica claro quando a amizade que havia unido esses homens começou a rachar. A divisão quanto à condenação da Action Française em 1926 foi provavelmente um ponto de partida. Maritain, que havia se envolvido com o socialismo na juventude, tendia a apoiar os revolucionários espanhóis contra Franco e, na França, Charles de Gaulle em vez de Pétain. Essas visões políticas opostas aumentaram o atrito. Quando compreendeu a posição liberal de seu amigo, Garrigou-Lagrange aconselhou-o a deixar as questões políticas de lado e a se dedicar à sua especialidade, a filosofia tomista. Na época de Humanismo Integral, em que Maritain defendia a liberdade religiosa como um direito humano natural, a amizade tinha acabado. Diz-se que quando Maritain, o convertido, tentou persuadir o super-tradicional Garrigou-Lagrange sobre a democracia, este se indignou e disse algo como: “Agora você resolveu dar lição a nós, que somos católicos há séculos, sobre uma nova doutrina social católica?!?” Maritain esperou que Garrigou pedisse desculpas, mas ele nunca o fez.
Há um livro que resume o relacionamento entre os dois famosos tomistas, chamado The Sacred Monster of Thomism (O Monstro Sagrado do Tomismo), de Richard Peddicord; deve, porém, ser lido com cuidado, pois o autor é bem “maritainiano” em sua abordagem política.
Combate ao neomodernismo
Durante sua longa vida, o Pe. Garrigou sempre viu o modernismo como o inimigo número um. Explica a revista L’Ami du Clergé: “Ele considerava uma questão de consciência refutar o modernismo e todas as suas aplicações. Seria falso crer que fosse naturalmente beligerante... mas tinha um tal amor pela Verdade que não podia vê-la ameaçada sem partir para a luta com toda a sua coragem e o seu talento.” Foi isso que o motivou a escrever um livro em defesa da Fé e da filosofia perene, Le sens commun, e também Dieu, son existence et sa nature.[1]
Marcel de Corte, o grande filósofo belga do século XX, foi salvo dos disparates modernistas pelos escritos de Garrigou: “Continuei a crer porque vi que me era impossível abandonar a Fé sem negar ao mesmo tempo esse realismo que a minha raça havia depositado na profundeza mais íntima de meu ser.” De Corte continua com um severo diagnóstico do pensamento moderno:
“Está chegando o tempo em que a única filosofia que será excluída da sociedade cristã será aquela que comandou, por mais de mil anos, seu desenvolvimento intelectual. A filosofia dos intelectuais cristãos de hoje é tudo o que se pode querer, menos grega e tomista: parece que os panfletos relativos à ‘filosofia’ imanente e à mitologia da evolução universal submergiram quase todas as mentes. É necessário ter uma alma de ferro para caminhar sozinho na antiga estrada real do pensamento tradicional católico. Hoje, é o realismo, a metafísica do senso comum, a firme adesão à evidência e aos primeiros princípios dos seres e do pensamento que são corpos estranhos, inassimiláveis e até perigosos nas estruturas sociais do catolicismo presente. Não nos surpreendamos. Como disse o Cardeal de Retz: ‘É uma constante que todos queiram ser enganados’.”
Ao lidar com o neomodernismo, Garrigou ficou em evidência ao escrever La synthèse thomiste, com um apêndice, La nouvelle théologie où va-t-elle?,[2] que concluía com estas fortes palavras:
“Não consideramos que os escritores que acabamos de descrever tenham abandonado a doutrina de Santo Tomás; eles nunca aderiram a ela, nunca a entenderam realmente. Essa observação é dolorosa e preocupante. Como tal maneira de ensino poderia formar algo além de céticos? De fato, eles não propõem qualquer alternativa à doutrina de Santo Tomás. Aonde vai a nova teologia? Aonde, senão descendo a ladeira do ceticismo, da fantasia e da heresia?”
Após ter aparecido na revista Angelicum, esse artigo foi recebido com sarcasmo e insultos, o que revela que o autor acertou em cheio. Em sua defesa, escreveu outros artigos, como L’immutabilité des vérités définies et le surnaturel e Le Monogénisme n’est-il nullement révélé, pas même implicitement?.[3] Como se pode ver, eles iriam formar a base para a encíclica Humani Generis de Pio XII, que foi um syllabus de erros neomodernistas.
A estima que Pio XII sentia por Garrigou-Lagrange levou-o a escrever por ocasião do 80º aniversário deste:
“Uma razão mais forte leva-nos a oferecer nossas congratulações e felicitações àqueles que, por seus talentos e ciência, realçam o nome católico e obtêm um merecido favor de nossa parte... Estamos bem cientes da eminente piedade com que cumpres teus deveres religiosos, do renome que tens adquirido a serviço da filosofia tomista e da teologia sagrada, essa teologia que tens ensinado por cinqüenta anos, quarenta e oito deles nesse refúgio romano da sagrada doutrina chamado Angelicum. Temos sido freqüentemente testemunhas do talento e zelo com que tens, por palavra e por escritos, defendido e salvaguardado a integridade do dogma cristão.”
(The Angelus, 445. Tradução: Permanência)
[1] “O senso comum” e “Deus, sua existência e sua natureza”. [N. do T.]
[2] A síntese tomista, com seu apêndice “Aonde vai a nova teologia?” (Ver em http://permanencia.org.br/drupal/node/881) . [N. do T.]
[3] “A imutabilidade das verdades definidas e o sobrenatural” e “O Monogenismo não é de forma alguma revelado, nem mesmo implicitamente?”. [N. do T.]