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Um teólogo anti-liberal

Pe. Dominique Bourmaud, FSSPX

O HOMEM

O Cardeal Louis Billot (1845-1931), natural da Lorena, na França, entrou jovem para a Companhia de Jesus e logo foi nomeado professor de teologia. Em 1885, foi chamado a Roma pelo Papa Leão XIII para ensinar teologia dogmática na Universidade Gregoriana. Ao longo de 26 anos (1885-1911), foi professor sem páreo de gerações de estudantes eclesiásticos, futuros bispos e cardeais.

Leão XIII teve de lutar contra os que queriam remover o Pe. Billot de Roma. Para mantê-lo na Sé Romana, São Pio X em 1909 nomeou-o consultor do Santo Ofício, e em 1911, contrariando a tradição jesuíta de não aceitar dignidades, elevou-o a cardeal-diácono.

Em 12 de fevereiro de 1922, Pio XI foi coroado. O cardeal-diácono que devia coroar o novo pontífice estivera enfermo e o Cardeal Billot foi apontado para substituí-lo. Ao receber a tiara deste cardeal, o Papa Ratti não tinha idéia de que cinco anos depois teria que retirar das mesmas mãos o barrete cardinalício.

Em 1927, o Cardeal Billot “aposentou-se” para “preparar-se para a morte”. Essas foram as palavras no anúncio oficial, mas as verdadeiras razões foram outras, como veremos. Na verdade, a aposentadoria não foi nenhuma sinecura para o octogenário. Ocupou-se da republicação de suas obras, mantendo o vigor intelectual até o fim de sua vida, como evidenciado nas suas correspondências e conversas. Um “apaixonado por Deus, pela Igreja e por Cristo, Rei da França”, morreu no noviciado jesuíta de Galloro, aos 86 anos.

O Pe. Henri Le Floch, que foi reitor do Seminário Francês em Roma por 23 anos, posto que deixou três dias após a renúncia do cardeal, escreveu-lhe um tributo: Cardeal Billot, homem da Igreja, teólogo, professor, patriota, e defensor da verdade contra os erros do Liberalismo, Modernismo e Sillonismo. O título do livro revela o seu teor: Le Cardinal Billot, lumière de la théologie – Cardeal Billot, luz da teologia.

 

ATRITOS COM O GOVERNO DE PIO XI

Pio XI queria continuar os trabalhos do Concílio Vaticano I e consultou os cardeais sobre a conveniência da sua reconvocação. De acordo com as investigações do Pe. Giovanni Caprile, 26 respostas se conservam nos arquivos do Vaticano, e apenas duas foram negativas: as do Cardeal Andreas Frühwirth (1845-1933) e a do Cardeal Billot. Este argumentou que, por causa das dificuldades e perigos, a era dos concílios ecumênicos parecia terminada, sobretudo pelo risco de os modernistas se aproveitarem do concílio para “fazer a revolução, o novo 1789, objeto dos seus sonhos e esperanças”.

Como francês, Billot só pôde estar exasperado com a virada dos acontecimentos na França dos anos 1920. O núncio papal em Paris pareceu ter apoiado a coalizão maçônica da esquerda de Herriot-Blum. Alguns dias depois, em audiência, Pio XI reclamou amargamente a Billot:

— Eminência, vossos compatriotas votaram muito mal.

— Santidade, vosso núncio tudo fez para que isso acontecesse.

— O meu núncio? Meu núncio? Ele obedece às minhas ordens! É a minha política, minha política, minha política...

Noutro tópico, algumas páginas de Charles Maurras, líder do movimento monárquico Action Française, tiveram o privilégio invejável de serem reproduzidas no tratado De Ecclesia, do Cardeal Billot, sobre as relações entre as autoridades religiosa e secular. Vale aqui citar a opinião de Maurras sobre a democracia:

“Nosso profundo respeito pela nação nos obriga a dizer que, para resolver questões importantes e de interesse geral, as quais requerem anos de estudo, prática e meditação, basta considerar a voz dos incompetentes. E para ter êxito  nas escolhas mais delicadas, basta o sufrágio dos ignorantes... O governo do número tende à desorganização do país. Destrói à força tudo o que o tempera, o que por natureza é diferente: religião, família, tradições, classes, organizações de todos os tipos etc.”

O Cardeal Billot teve conhecimento direto da Action Française, a qual descreveu como “estimada pelos bons e temida pelos maus”. Ele teve de encarar o Cardeal Gasparri, Secretário de Estado, na véspera da condenação do movimento. O infeliz encontro foi o duelo de duas grandes mentes, o maior dos teólogos e o maior dos canonistas disputando sobre um movimento político. O canonista invocou apenas a “vontade superior”. Não há dúvida de que, no julgamento da Action Française, as obras pagãs de Charles Maurras não causaram tanta preocupação quanto seu espírito contra-revolucionário. Numa carta, Billot expressou seu pensamento: “Não é tanto o seu Chemin de Paradis ou Anthinée que eles odeiam, mas o seu anti-liberalismo, anti-democratismo, anti-republicanismo.”

Em 19 de setembro de 1927, o Cardeal Billot foi despido da púrpura que aceitara tomar somente por causa da ordem do seu venerado Pio X, tendo recebido em troca uma pequena estátua de Nossa Senhora; e em seguida aposentou-se. O cardeal, que nunca fora consagrado bispo, voltou a ser o Pe. Louis Billot da Companhia de Jesus.

 

PIO XII E O CARDEAL BILLOT

Pio XII, tão-logo eleito, levantou a excomunhão que pesara sobre a Action Française e os seus membros.

Em 1º de Outubro de 1939, em audiência especial, o Pe. Le Floch apresentou o seu trabalho sobre o Cardeal Billot a Pio XII, que muito o apreciou. Da mesma forma, na alocução pelo quarto centenário da Universidade Gregoriana, em 18 de outubro de 1953, Pio XII mostrou ter o cardeal em boa memória, pois entre tantos professores da sua juventude, mencionou somente o seu nome.

“Para os mais velhos dentre vós, relembremos com alegria nossos professores, como Louis Billot, para nomear um que, com distinção de espírito e inteligência, nos estimulou a venerar os estudos sagrados e amar a dignidade do sacerdócio.”

A influência doutrinal do Cardeal Billot em Roma durou muitos anos após a sua morte. Eis um exemplo: a Carta do Santo Ofício ao Arcebispo de Boston, de 8 de agosto de 1949, contra o Pe. Feeney sobre o batismo de água, foi reprodução quase literal de um artigo do cardeal publicado em Études.

 

TEÓLOGO ANTI-LIBERAL

Cardeal Billot foi um dos teólogos que viu mais claramente a maldade intrínseca do neoliberalismo resultante da Revolução. Falando do Sillon, o movimento político cristão que fora finalmente condenado por São Pio X devido aos seus princípios ideológicos, Billot explicou: “O cristianismo do Sillon baseia-se sempre no democratismo, e o cristianismo democrata, tratando-se de uma ideologia revolucionária, é uma distorção do Evangelho”.

Ninguém julgou melhor o liberalismo, o filho da Revolução, do que o “teológo de ferro”. Analisou a intrínseca discrepância deste para com os princípios de hierarquia e autoridade, trazendo à luz suas conseqüências sociais divisoras. No livro De Ecclesia, especialmente na seção sobre a relação entre Igreja e Estado, o Cardeal Billot golpeia a essência da Revolução Francesa, ao citar o Presidente Clemenceau: “Desde a Revolução, estamos em estado de revolta contra a autoridade humana, a qual destruímos com um só golpe em 21 de janeiro de 1793 [data do assassinato de Luís XVI]”. E num longo texto explica o ambiente histórico dessa luta hercúlea:

 

“Sem dúvida, a religião havia sido difundida por todo o corpo da sociedade, dos pés à cabeça. Toda a nossa civilização nasceu do cristianismo, e nela o clero detinha lugar proeminente na estrutura política; assim, em todos os lugares, as instituições civis e religiosas interligavam-se fortemente... Pode ver-se porque o ódio anti-religioso dos ímpios revolucionários teve como elemento necessário o ódio às instituições sociais, uma vez que, pela natureza delas, seria impossível divorciá-las da fé... Decretaram, portanto, que deviam ser tiradas pela raiz e completamente destruídas, para que o campo ficasse limpo para a nova ordem social e política, cujo primeiro e principal objetivo era destruir a religião por inteiro.

 

“O pretexto para instalar essa nova ordem era a liberdade; a sua lei era o contrato social; seu método, a demagogia; sua razão última, a criação de um Estado colossal e ateu... com poder ditatorial e absoluto para ditar o que é permitido ou proibido. Nesse Estado, o nome e o culto de Deus seria abolido para sempre... Esse é o fim para o qual tudo mais está ordenado como meio. Essa é a razão da destruição das famílias, da destruição das corporações, da destruição das liberdades municipais e das províncias – para que assim reste apenas uma só autoridade: o Estado ímpio... Esse é o objetivo, e não a liberdade civil. A liberdade é pretexto, é ídolo para seduzir o povo... deus oco que Satã vem criando para reduzir as nações a uma escravidão muito pior do que a da antigüidade.”

 

CONTRA OS CATÓLICOS LIBERAIS

O Cardeal Billot, portanto, pensou que a tarefa mais urgente era a de combater a revolução infiltrada entre os católicos, cujos frutos são “o anti-clericalismo jacobinista e o liberalismo pseudo-católico”. Com sua sólida formação doutrinal, ele não apenas evitou transigir com o liberalismo “católico”, mas considerava necessário “lutar contra esse grande mal dos nossos tempos que é querer agradar a Deus sem ofender o diabo, ou melhor, servir o demônio sem ofender a Deus”.

Escarneceu o liberalismo católico como a “mais perfeita e absoluta incoerência”. Esse tipo de “católico” quer professar ao mesmo tempo tanto o catecismo, com o qual crê que o homem foi feito para servir a Deus em todas as coisas, quanto a Declaração de Direitos do Homem de 1789, que quer o homem independente de Deus, e a esfera civil da religiosa. Os católicos liberais são incoerentes também quando aceitam os princípios católicos, mas rejeitam pô-los em prática. Crêem que, em princípio, a união da Igreja com o Estado é boa, mas na prática é sempre danosa à Igreja. Em suas mentes, a liberdade é a última instância, e todos sabemos que a liberdade, deixada por si só, inclina-se ao mal e à impiedade. O que se apresenta como remédio é, na verdade, a causa de todo o mal.

Um exemplo deve ser suficiente para ilustrar o método dos católicos liberais: Com respeito à religião, a posição católica é a de que há somente uma religião verdadeira e que o Estado deve adotá-la. Os liberais, no entanto, professam o indiferentismo, em que todas as religiões são iguais. Concluem que o pluralismo é a condição ideal para o Estado. O católico liberal, com espírito fraco e conciliador, aceita que a religião católica é verdadeira e deve dirigir as famílias e os indivíduos, mas rejeita a conclusão de que o Estado deve a ela submeter-se, e assim professa abertamente a liberdade religiosa.

O católico liberal, objeto da Ilusão Liberal (título de um livro de Louis Veuillot), em luta com sua incoerência, acaba sendo desprezado por Deus e pelos homens. Encarna em si mesmo o dualismo mencionado na Sagrada Escritura: “Se um edifica, e outro destrói, que proveito lhes resulta daqui senão trabalho? Se um ora, e outro amaldiçoa, de qual ouvirá Deus a voz?” (Eclesiástico 34, 28).

(The Angelus no. 442. Tradução: Permanência)

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