Pe. Dominique Bourmaud, FSSPX
O Papa São Pio X e Rafael Merry del Val: difícil imaginar duas personalidades mais diferentes. Aquele nasceu no interior da Venécia, no seio duma família humilde, que conheceu dificuldades e provavelmente até fome. Antes de ser eleito papa, passou a vida em reitorias rurais e chancelarias provinciais, distante da publicidade e dos centros de poder.
Merry del Val (1865-1930), por outro lado, veio duma das mais proeminentes famílias do continente, recebeu educação cosmopolita e poliglota, e foi familiar às embaixadas e círculos mais exclusivos das capitais européias. As vidas desses dois prelados, que pareciam destinadas a trilhar caminhos separados, cruzaram-se quase por acidente e acabaram tão ligadas que mesmo hoje é difícil separá-las.
DE FILHO DE EMBAIXADOR A EMBAIXADOR DO PAPA
De acordo com Pio Cenci, biógrafo de Merry del Val, o próprio Leão XIII o pôs na Academia dos Nobres Eclesiásticos, devido à sua linhagem nobre e suas habilidades lingüísticas, uma vez que dominava perfeitamente os principais idiomas europeus. Antes de se tornar sacerdote, o papa utilizou-o em missões diplomáticas na Inglaterra, Alemanha e Áustria. Na cúria pontifícia, que procurava tão esforçadamente retornar sua presença internacional após a perda do poder temporal em 1870, esse descendente dos ilustres ingleses Merry e da ainda mais ilustre casa espanhola Val foi um enviado de Deus. A ascensão rápida de Merry del Val deveu-se, além dos antecedentes familiares, à sua sólida formação histórico-jurídica, sua capacidade inata de bem relacionar-se, e à sua prontidão, como Bento XV diria, para resolver problemas.
Após graduar-se na Pontifícia Universidade Gregoriana, tornou-se figura de influência em Roma, especialmente na questão anglicana. Seu perfeito conhecimento do ambiente, as viagens freqüentes que fazia sobre o Canal da Mancha, e a estima do Cardeal Vaughan conferiram-lhe a autoridade necessária. Confiou-lhe Leão XIII com a espinhosa questão da validade das ordens anglicanas, e ele conduziu a Santa Sé à resposta negativa, dada oficialmente em setembro de 1896 com a bula Apostolicae Curae, da qual foi o principal arquiteto. Com base na prática estabelecida ao longo de trezentos anos, e numa exaustiva investigação histórica, Leão XIII confirmou a “nulidade” das “ordenações realizadas segundo o rito anglicano”, portanto negando que os seus bispos tenham a sucessão apostólica.
No ano seguinte, viajou para uma longa missão no Canadá como delegado apostólico. O jovem catolicismo canadense, dividido entre as tentações opostas de severidade e lassidão, pedia a ajuda de Roma. Merry del Val agiu com moderação, especialmente no problema das escolas católicas de Manitoba, e foi objeto de um reconhecimento público da parte do Papa na encíclica Affari Vos, de dezembro de 1897.
DE SECRETÁRIO DO CONCLAVE A SECRETÁRIO DE ESTADO
No tempo do conclave de 1903, reunido após a morte de Leão XIII, Merry del Val era bispo e presidente da Academia dos Nobres Eclesiásticos. Por um concurso de circunstâncias, foi promovido in extremis a secretário do conclave, na ocasião da morte do papa. Assim, embora não tivesse podido votar porque não era cardeal, teve de carregar a pesada carga de preparar e conduzir o mais difícil conclave dos últimos dois séculos.
O primeiro encontro com o Cardeal Sarto aconteceu durante o conclave. A Áustria vetara a eleição do Cardeal Mariano Rampolla del Tindaro e, após quatro dias, à sétima votação, escolheu-se para o papado, com o nome de Pio X, o relativamente desconhecido Patriarca de Veneza, Giuseppe Sarto. O jovem Merry del Val, que foi encarregado de buscá-lo e encorajá-lo a aceitar a nomeação, teve então uma primeira vista da santidade do “seu” Papa, que ele encontrou debruçado em oração diante do sacrário, rogando para que lhe afastasse a cruz do papado. Com o fechamento do conclave, Sarto pôde observar o prelado em ação e, assim, avaliá-lo. Dessa maneira, poucas horas após tornar-se Papa, Sarto informou-o, para sua completa surpresa, que decidira manter Mery del Val como Secretário de Estado interino. “Até agora não tenho ninguém”, conta-se que lhe teria dito calmamente. “Fique comigo. Depois veremos.”
Mas São Pio X, com sua aguda intuição, observou e analisou Merry del Val diariamente, e não demorou a entender que esse era o “homem de Deus” que a Providência colocara ao seu lado no Pontificado. Após período probatório de apenas dois meses, Pio X dissipou as dúvidas e, em 18 de outubro de 1903, nomeou-o Secretário de Estado e o fez cardeal. Abençoou-o e, com afeição paterna, lhe disse: “Aceite: é a vontade de Deus. Vamos trabalhar juntos e sofrer juntos por amor à Igreja”, ecoando dessa maneira o “coragem, Eminência” que Merry del Val sussurrara ao Cardeal Sarto poucos meses antes, encorajando-o a aceitar o Pontificado.
Pio X certamente levou em consideração outra qualidade de Merry del Val: sua vida de piedade. O louvor que o Papa Sarto lhe fez em 11 de novembro de 1903, dia em que recebeu o barrete de cardeal, é de uma linguagem tão incomum que merece ser citado na íntegra: “O bom perfume de Cristo, Sr. Cardeal, que espalhastes em todos os lugares, mesmo na vossa residência temporária, e os muitos trabalhos de caridade a que vos dedicastes no vosso ministério de sacerdote, principalmente na nossa cidade de Roma [ele subsidiou um grupo de jovens em Trastevere], granjeou para vós, com admiração, a estima universal.” Um Papa essencialmente religioso escolheu para si um Secretário de Estado com suas próprias características.
O novelista francês René Bazin louvou a decisão de Pio X, que “nomeando o Cardeal Merry del Val como Secretário de Estado, mostrou possuir as principais qualidades de um príncipe, que são conhecer os homens e saber escolher seus ministros para o bem do reino. Elevar de súbito o jovem prelado a tão alta posição exigiu coragem: mas Pio X reconheceu em Rafael Merry del Val um caráter extraordinário e uma inteligência superior.”
No primeiro Consistório, o Papa explicou aos cardeais que pessoalmente observara os seus “nobres dons de alma e caráter, sua notável prudência ao lidar com os assuntos da Igreja. Escolhi-o porque é um poliglota: nasceu na Inglaterra, foi educado na Bélgica, de nacionalidade espanhola, e vive na Itália; filho de diplomata, e ele mesmo um, está acostumado com os problemas das nações. Ele é muito modesto, um santo. Vem todas as manhãs e me informa de todos os assuntos do mundo. Nunca preciso adverti-lo de nada, e ele não conhece transigências”.
A CÚRIA DA IGREJA E A REFORMA DA IGREJA
Merry del Val movia-se graciosamente no mundo diplomático, era capaz de manejar problemas de política internacional, e compreendia a Cúria Romana perfeitamente. Alguém poderia dizer que o novo Secretário de Estado tinha tudo que faltava no papa. São Pio X costumava referir-se a Merry del Val como o “seu” Cardeal. Camille Bellaigue escutou do papa: “Separar-me do Cardeal Merry del Val? Preferiria separar-me da minha cabeça”. Em diversas ocasiões disse que “não podia agradecer suficientemente a Nosso Senhor por ter-lhe conferido tão precioso colaborador”.
A “política internacional” não foi tão primordial para São Pio X como o fora para Leão XIII. Ainda assim, o papa teve de lidar com várias crises internacionais que lhe exigiram toda a atenção e a de seu fiel colaborador, e a mais notável delas foi a dramática separação da Igreja e do Estado na França em 1905. Enfrentando óbvia chantagem, com um só golpe, a firmeza do papa limpou três séculos de galicanismo — a Igreja nacional — tornando o catolicismo francês novamente fiel a Roma. Merry del Val apoiou essa política com lealdade e convicção, tal como o fizera nas decisões de Pio X para reforma radical da Igreja: desde a supressão do direito de veto nos conclaves, seguindo com a reforma da Cúria, até a codificação do Direito Canônico.
A reforma da Cúria Romana, aprovada em 1908, embora visasse diretamente à expansão de seus poderes, fazia-o de tal modo que a Secretaria de Estado passava a ocupar o penúltimo lugar em relevo, dentre os cinco dicastérios romanos. O coração da Cúria de São Pio X não estava na Secretaria de Estado, ao contrário do que aconteceria sessenta anos mais tarde, na reforma de Paulo VI. O coração estava representado pelas onze congregações, sobretudo o Santo Ofício. Talvez por essa razão o papel de Merry del Val, diferentemente de qualquer dos seus antecessores ou sucessores, tenha coincidido com o do papa quase a ponto de se fundirem. Ao se dedicar pouco ou nada à política, mas sim a governar e renovar a Igreja, São Pio X extirpou da Secretaria de Estado muito da margem de manobra que fazia dela um agente autônomo, e estreitou sua vinculação ao papa.
Muito se tem escrito e muitos têm criticado a atitude decisiva do papa no combate ao modernismo, essa ameaça mortal que forjou uma crise interna na Igreja. Novamente, Merry del Val, mais que ninguém, teve o preciso entendimento da gravidade da situação, em que o rebanho universal corria o risco de gangrenar-se por toxinas internas. O anti-modernismo do cardeal precedia sua promoção ao cargo de Secretário de Estado. Ele se opôs à heresia do Americanismo, condenada por Leão XIII na Carta Apostólica de 1899 Testem benevolentiae. No mesmo ano, o prelado se pronunciou sobre outro livro, External Religion, do futuro modernista George Tyrrell, e escreveu ao Cardeal Vaughan sobre as heresias do cientista St. George Jackson Mivart. Ele prometeu a esse cardeal a aprovação pontifícia à sua carta pastoral conjunta, de 1900, que condenava o catolicismo liberal.
Logo que alcançou posição de autoridade como braço direito do Papa, Merry del Val escreveu ao Cardeal Ricardo de Paris o prefácio ao decreto do Santo Ofício que lançou cinco obras do Pe. Alfred Firmin Loisy no Índice de Livros Proibidos, e repudiou a sujeição imperfeita de Loisy. Escreveu a carta de 1904 que dissolveu a seção italiana da Opera dei Congressi, sujeitando o grupo leigo à autoridade da Igreja, em conformidade com os legítimos princípios de ação católica. Favoreceu similar subordinação à Igreja do partido do centro na Alemanha. Em 1910, ainda, participou na condenação papal ao movimento liberal francês Sillon.
Após a morte do Papa, o Cardeal Merry del Val manteve sua enorme devoção a Pio X: elaborou a petição que iniciou seu processo de canonização. No dia 20 de cada mês, o dia da morte do Papa, rezava missa pelo descanso da sua alma. Pediu que fosse sepultado “o mais próximo possível do meu amado pai e pontífice Pio X”. Quando morreu em 1930, seu corpo foi carregado por jovens de Trastevere à cripta de São Pedro e enterrado perto de Pio X. Lê-se a inscrição no mármore: Da mihi animas - Coetera tolle (“dá-me almas - leva o resto”), aplicação mística das palavras de Abraão, “Dá-me a mim as pessoas, e os bens torna-os para ti” (Gen. 14:21). Por requerimento do clero espanhol, sua causa de canonização foi iniciada em 1953. O processo informativo foi completado em 1956 e publicado em 1957. A causa, porém, pouco progrediu desde o Vaticano II.
(The Angelus no. 441. Tradução: Permanência)