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Existe direito à união homossexual?

Pe. Jean Michel Gleize

O que pensar da recente declaração do Papa Francisco? “Pessoas homossexuais têm o direito de pertencer a uma família. Eles são filhos de Deus e têm direito a uma família. Ninguém deve ser excluído ou forçado a ser infeliz por isso. O que temos de fazer é criar uma legislação para a união civil. Dessa forma, eles ficam legalmente cobertos.”  Ao reivindicar para os homossexuais “o direito de pertencer a uma família”, o Papa, claro está, não tem em mente apenas a situação de um homossexual que, ao que pese a sua homossexualidade, teria o direito de permanecer membro da sua família: filho do seu pai e da sua mãe, irmão dos seus irmãos e irmãs. Trata-se de mais do que isso, trata-se do direito de reivindicar uma “lei da união civil” destinada a proteger o direito dos homossexuais de viverem como um casal, como cônjuges, à exemplo do que ocorre no casamento entre o homem e a mulher.

Num livro publicado no ano de 2017, resumindo as “entrevistas” do Papa com Dominique Wolton, Francisco havia claramente descartado a possibilidade de um “matrimônio” entre homossexuais. “Que pensar”, interroga-se o pontífice, “do casamento das pessoas do mesmo sexto? O matrimônio é uma palavra histórica. Desde sempre, na humanidade, e não apenas na Igreja, tratou-se de um homem e uma mulher. Não se pode mudar isso assim [...] não se pode mudar isso. Trata-se da natureza das coisas, e elas são assim. Chamemos isso de união civil. Não devemos brincar com as verdades. É certo que, por detrás disso há a ideologia de gênero. [...] Digamos as coisas como são: o matrimônio ocorre entre um homem e uma mulher. Esse é o termo correto. Chamemos a união do mesmo sexo de união civil”.

Aos olhos do papa, não se pode mudar a natureza das coisas, e o matrimônio é uma palavra empregada para designar a realidade natural, tal como a humanidade sempre a reconheceu: realidade que é a da união de um homem com uma mulher. Não poderíamos, portanto, utilizar esse termo para designar a união de pessoas do mesmo sexo, pois aqui estamos no plano da definição das coisas. Eis o porquê, nesse plano mesmo, da teoria (pois se trata precisamente de uma “teoria”) de gênero corresponder a uma ideologia. Ocorre diferentemente se nos situamos no plano da definição pastoral, pois se trata de qualificar a atitude da Igreja no tocante às pessoas, no contexto da vida em sociedade. Francisco retorna então à Amoris laetitia, no seu no. 291: “A Igreja não cessa de valorizar os elementos construtivos nas situações que ainda não correspondam ou que não correspondam mais ao seu ensinamento sobre o matrimônio”. Isso equivale a dizer que o plano da realidade natural, com as definições que ela comporta, e o plano da compreensão pastoral, que se refere à ordem jurídica da vida em sociedade, podem não se cruzar e serem heterogêneos.

A novidade -- pois se trata de uma – das declarações recentes do papa em relação à declaração dada no livro de 2017, é que o papa agora reivindica um “direito” para a união civil dos homossexuais. Há novidade, certamente, no sentido de que o papa diz em 2020 o que ainda não dizia em 2017. Mas a novidade é só aparente se considerarmos que a afirmação de 2020 já estava em germe (ou virtualmente presente) nos princípios anunciados em 2017. O direito à união civil dos homossexuais já estava inscrito antecipadamente nos parágrafos citados de Amoris laetitia. Francisco só faz explicitar, de modo lento, mas seguro e inevitável, a sequência lógica do seu próprio discurso.

O pressuposto de uma lógica desse tipo deve ser sublinhado. Tudo se passa como se a ordem jurídica e social da lei humana positiva não mais se fundasse na lei natural, e como se o “direito” que a lei civil reconhece pudesse ser dissociado do “direito” que tem de decorrer normalmente da natureza do homem, ao ponto mesmo de se contradizerem. O papa reconhece, com efeito, que o direito da Igreja, que só reconhece como união sexual legítima o matrimônio, definido como a união de um homem com uma mulher, não exclui um outro direito, a saber, o da sociedade civil, na qual o Estado reconhece a união homossexual como legítima. Seja qual for a intenção do papa, está claro que uma concepção semelhante do direito corresponde diretamente a uma concepção materialista e mesmo marxista do homem. O homem não é mais uma realidade estável, conforme a sua essência, mas o termo sempre renovado de uma incessante evolução, na qual o espírito se liberta cada vez mais da matéria. A moralidade e, com ela, a ordem política, não possuiria outro fundamento que a tomada de consciência da necessidade de evolução. A natureza, no sentido em que a compreende a filosofia de Aristóteles e de Santo Tomás, não existe mais. Ou antes: ela se reduz à consciência, único elemento estável por ser objeto de evolução.

João Paulo II, é verdade, havia reprovado em 2003 o reconhecimento jurídico e legal das uniões homossexuais por parte das autoridades civis. O argumento principal apresentado pelo papa polonês era o seguinte: “Nas uniões homossexuais, estão completamente ausentes os elementos biológicos e antropológicos do matrimônio e da família que poderiam fundar razoavelmente o seu reconhecimento jurídico. Essas uniões não estão em condição de assegurar, de modo adequado, a procriação e a sobrevivência da espécie humana”. Por causa disso: “A Igreja ensina que o respeito para com os homossexuais não pode, de modo algum, conduzir à aprovação do comportamento homossexual ou ao reconhecimento jurídico dessas uniões”. Contudo, é preciso dizer que, mesmo o Papa João Paulo II julgou bom afirmar que a liberdade religiosa é a “fonte e a síntese” de todos os outros direitos. Ele escreveu, com efeito: “É necessário que os povos que estão em vias de reformar as suas instituições deem à democracia um fundamento autêntico e sólido graças ao reconhecimento explícito desses direitos. Entre os principais é preciso recordar o direito à vida da qual fazem parte integrante o direito de crescer no seio da sua mãe após a concepção; em seguida, o direito de viver numa família unida e num clima moral favorável ao desenvolvimento da sua personalidade; [...] o direito de fundar livremente uma família, acolher e educar crianças, exercendo de modo responsável a sua sexualidade. Em um sentido, a fonte e a síntese desses direitos é a liberdade religiosa, entendida como o direito de viver na verdade da sua fé e em conformidade com a dignidade transcendente da sua pessoa.” Isso não equivale a introduzir o veneno que, com o passar do tempo, desembocaria em 2017 e em seguida em 2020, na reivindicação do direito legal à união civil dos homossexuais?

É inegável que, ao defender o princípio da liberdade religiosa, Roma promoveu de fato uma sociedade que, concedendo espaço igual a todas as opiniões, teria de ficar neutra. Ela renunciou ao Estado confessional católico, não apenas na prática e no curto prazo, mas ainda no seu princípio mesmo. O campo ficou aberto para uma legislação que, ao ignorar a Deus, não pode mais encontrar o meio de justificar a referência exclusiva à lei natural. Não é de se admirar, portanto, que os governantes das sociedades civis, pelo fato mesmo de organizarem a sociedade sem levar Deus em consideração, a organizem sem levar a natureza em consideração. Por vontade mesma do Concílio Vaticano II, a consciência libertou-se de todo constrangimento da parte dos poderes públicos, sobre o plano da vida em sociedade. O matrimônio e a união civil podem coexistir pacificamente numa sociedade de tal tipo, em justos limites, que não os da fé e da moral. Por essa razão, a política não está mais em continuidade com a natureza. Independente das realidades naturais e das definições necessárias que elas implicam, a nova doutrina social da Igreja é resolutamente personalista: a atitude para com as pessoas não decorre mais dos princípios da natureza. Pode-se recusar a teoria do gênero, precisamente enquanto teoria, como algo contrário às realidades naturais: a prática se encarrega de aceitar aquilo que a teoria reprova.

(Courrier de Rome, Outubro de 2020)

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