Visa o presente estudo investigar o processo e a natureza das faculdades especiais que caracterizam o inventor, esse singular indivíduo que consegue combinar, de um modo novo, os elementos antigos, criando um objeto novo como um abridor de latas ou um Radar.
Convém, entretanto, antes de prosseguir, esclarecer melhor a distinção entre o inventor e o descobridor. O primeiro tipo de atividade pertence ao campo do fazer e define-se pelo ato de imprimir uma forma nova à matéria já conhecida; o segundo pertence ao campo do conhecer e consiste em descobrir e formular novas propriedades e relações já existentes no objeto, mas escondidos à inteligência. A emissão eletrônica constituiu uma descoberta; a válvula eletrônica, foi uma invenção. As leis do pêndulo — esse antiqüíssimo objeto — foram descobertas; o relógio baseado no isocronismo pendular foi inventado.
Andam geralmente combinadas as duas coisas; a descoberta, na maior parte dos casos, não prossegue sem o auxílio de novos instrumentos que constituem invenções auxiliares; a invenção também muitas vezes se detém porque as propriedades de algum dos elementos não estão suficientemente conhecidas. O técnico distingue-se do cientista por ser um indivíduo em que o fazer prevalece sobre o conhecer, e o inventar sobre o descobrir. Os dois grandes resultados da ciência moderna — o Radar e a Bomba — são resultados muitos característicos da distinção que aqui estou tentando. A bomba é sobretudo uma descoberta; o Radar é uma invenção. No primeiro caso o elemento predominante é a propriedade de um corpo, e o elemento secundário é a aplicação dessa propriedade; no segundo caso é curioso notar que nenhum princípio científico novo foi usado, sendo entretanto novo o arranjo desses elementos e novo o objeto.
O técnico, como seu irmão o poeta, é mais inovador do que o cientista e o descobridor. Quem descobre um satélite de Júpiter ou uma nova propriedade do oxigênio está apenas pronunciando pela primeira vez, com verbo humano, o que já estava escondido no céu ou na terra; quem faz um saca-rolhas ou um poema, esta fazendo um objeto que antes dele não existia.
O que vou dizer a seguir do homem que inventa, se aplica de certo modo ao homem que descobre, porque, como já encareci, as duas atividades têm muitos elementos comuns e andam quase sempre entrelaçadas. Por uma questão de método, entretanto, tratarei do inventor sem voltar às inevitáveis relações que fazem dele, acidentalmente, um descobridor.
Vejamos agora quais são as faculdades principais que caracterizam o inventor.
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A primeira que me ocorre é um certo "grau de loucura" que sob melhor exame nos aparecerá como semente de sensatez. É uma espécie de coragem da razão prática que não esmorece quando o que a imaginação lhe propõe tem aparências de subversão. Essa faculdade pode ser definida como uma insubordinação à praxe. O técnico, é facílimo prová-lo, tem uma elevada estima pela norma, pela regra, e até pela rotina, sendo o tipo de homem que mais se preocupa com a boa garantia das repetições. Neste ponto ele se distingue do poeta: o principal mérito de seu trabalho está na garantia de repetição. Por outro lado, entretanto, ele se assemelha ao artista, possuindo uma impulsiva virtude de renovador. É tão avesso à praxe como o poeta, e não se diga que há paradoxo nisto que estou dizendo agora depois de ter dito que o técnico aprecia a norma e a rotina.
O grau de loucura do inventor é uma virtude que distingue veementemente entre a norma e a praxe. Para tornar isto mais claro vou esboçar o retrato do homem-que-não-inventa, do homem-praxe.
Ele é de tal modo feito que cada coisa em que esbarra, ou cada objeto que fita, atingem instantaneamente uma irremissível senectude. Racionalista que nem sequer raciocina, ele inscreve fatos e contrai hábitos ligados quase mecanicamente aos fatos classificados. Se nasce uma criança, esse fato que, por mais que se repita, é sempre uma coisa prodigiosa, o homem praxe, no limiar da porta da parturiente, ouvindo os primeiros vagidos, vendo ainda o sangue da mãe venturosa, encontra frases automáticas que convenham à ocurrência. E alegra-se com esse confortável Universo onde os fenômenos se repetem como os dias da semana, tornando inofensivos os nascimentos e as agonias. As crianças nascem; os doentes morrem; depois do dia vem a noite; depois da noite, o dia. A alegria do homem-praxe não tem condimentos de admirações, mas de conforto. As circunstâncias, natividades e mortes, servem para confirmar o perfeito funcionamento desse relógio monumental que bate as horas da vida: Parabéns! Pêsames! Estimo melhoras...
Se a mãe está nos transes da agonia, ele encontrará um prazer intelectual em dizer com voz cava, como convém: "estamos esperando o desenlace em qualquer momento"; ou então, "os prognósticos são sombrios". A construção de uma destas frases dará ao homem-praxe uma compensação intelectual à mais sincera dor moral porque o seu enunciado põe em boa ordem esse universo onde as mães, a certa idade, costumam falecer.
Na ordem prática, o homem-praxe é a própria negação da aventura; e, por conseguinte, da invenção. Assisti faz tempo, em portão de casa rica, a uma pequena cena que completará o retrato de meu personagem. No momento em que eu passava, um vendedor de bilhetes de loteria acabava por convencer o dono da casa a guardar um bilhete que tinha o final do avestruz, fato este que constituiria o obscuro argumento a favor do bilheteiro.
É possível que o avestruz não tivesse relação alguma com os sonhos do rico proprietário, e não me custa admitir que o meu vizinho se decidira à compra movido pela caridade. O fato é que o meu homem ficou com o bilhete, e já ia tirando a carteira, com monograma de ouro, quando o rapaz declarou: "A sorte grande está nas suas mãos doutor, amanhã venho buscar meus dez por cento..." Voltou-se então o doutor, rápido, exato, preciso: "Não senhor! Cinco por cento! É a praxe".
Por aí se vê que a loteria, a absurda probabilidade, a incrível aventura, o desafio à sorte, a aposta com o destino, já estava, para o meu vizinho, vigorosamente inscrita na agenda das coisas que se fazem conforme os preceitos rigidamente consagrados.
Ora, o inventor é o inverso daquele homem. Poderá ter menos caridade com um pobre rapaz metido dentro duma roupa de riscadinho, mas não pecará por essa terrível falta de generosidade contra a amplidão da vida. Sua loucura poderá levá-lo a atos estapafúrdios, como de pregar um rabo de papel num senador ou jogar malabares com os talhares num jantar de cerimônia. Sua irreverência, sua sede de novas combinações, se não encontrar equilíbrio no adequado objeto, transvasará em incongruências. Mas a praxe, morta e seca, é a coisa que mais lhe repugna.
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A segunda faculdade indispensável ao inventor posto que pareça contrária da primeira, é a que a equilibra e completa. É uma crença fortíssima na estabilidade das coisas. Há uma enorme diferença entre essa confiança do inventor na estabilidade, e a idéia de praxe. O inventor deseja a estabilidade como um alpinista. Ele inventa e inova somente porque é capaz de desejar que um objeto dure. A idéia do progresso e da evolução contínua é a que mais depressa faria desanimar o pesquisador de uma forma nova. Essa idéia, que gera a verdadeira loucura, é a primeira a ser afastada pelo homem que durante meses e anos é capaz de permanecer fiel à sua obra.
De um modo geral o homem sensato só muda de situação porque lhe apetece permanecer noutra situação. Essa nova permanência será longa ou curta sem que a questão se modifique essencialmente; mas se a idéia de permanência não estiver agarrada àquele grau de loucura do inventor, então ele enlouquecerá de fato. A mais brilhante perspectiva que anima o inventor, como a mais alegre promessa que encoraja o indivíduo que muda de casa, é a nova estabilidade, a casa nova. Quem inventa, como quem se casa, sonha com longos dias de fruição e certamente se estancaria seu trabalho se um filósofo do devenir lhe viesse demonstrar a efêmera fragilidade de sua obra. Fora da invenção, em horas de pessimismo, ele dirá que a obra humana é fugaz e que o mais engenhoso aparelho, ao cabo de alguns anos, é objeto de museu; na invenção, porém, ele crê na duração das obras.
Há quem diga que o poeta (e o inventor também) é o sujeito obrigado ao exercício dos dons. Deita no papel seus poemas como a galinha põe um ovo. Não lhe importa o objeto, mas somente o ato de se aliviar dele. Não lhe importa a duração do objeto, mas somente a transição de fora para dentro. Daria eu à essa doutrina o nome de filosofia espasmódica da arte, e provaria, se aqui tivesse mais vagar, que ela não é verdadeira.
Talvez esteja em torno dessa idéia a explicação da esterilidade em muitos sujeitos bem dotados. Desligar a arte (ou a técnica) do interesse pelo objeto, pela sua concretude e duração, é qualquer coisa que me lembra prática do anticoncepcionalismo. Parece-me pois, não somente malsã, essa filosofia do espasmo, mas sobretudo falsa e estéril. O próprio da arte é tender para o termo de um objeto, e se é exato que todo dom pede exercício, é ainda mais completamente exato que o exercício pede a satisfação de um termo.
Diz-me um jovem amigo que à sua vocação poética não importa que os versos sejam publicados ou mesmo apenas conhecidos entre duas pessoas. A única coisa que importa é o momento vivido naquela milagrosa transição em que se alivia de um ovo mágico. Eu creio nesse alívio que todas as aves do universo, inclusive os poetas, sentem quando põem um ovo; mas o ovo é um termo, um definido objeto, e serve como símbolo de fecundidade. E creio, por isso, que todas as aves do universo, inclusive o poeta, gostem de ver a maravilhosa forma nova que branqueja no fundo do ninho.
Creio que foi Rilke que teria dito a algum jovem inquieto que o poeta se conhece quando sente que morreria se não se sentasse para escrever o poema. Não tenho o texto à mão. Mas se Rilke queria dizer que o impulso característico do poeta é o que impele ao ato de escrever, discordarei dele. Para mim, o artista verdadeiro conhecerá sua vocação quando sente, de modo inconfundível, que deve terminar sua obra. O ímpeto de começar um poema, não há quem o não tenha sentido. O ímpeto de acabá-lo é muito mais raro e decisivo. Chegar ao termo é a fórmula principal do artista ou do inventor.
Muitas vezes tem sido feito o paralelo entre a elaboração de um livro e uma gravidez; em ambos os casos deseja-se um termo, mas a diferença é maior do que a semelhança pois o termo do parto é na verdade uma origem. A poesia, desprendida do poeta, continua uma história, mas só podemos dizer que ela continua uma vida abusando das palavras. A obra feita é realmente um termo: em lugar de compará-la a um nascimento eu prefiro compará-la a uma boa morte; e o poeta, nessa nova ordem de idéias, seria o homem que não se cansa de fazer testamentos, parecendo-lhe sempre, cada um que faz, um novo testamento.
O que eu quero dizer, nessa longa digressão, é que o artista deseja um objeto premiado com uma unidade, profunda e real. Se é escritor, o mais legítimo e sensato de seus desejos é o de ver o livro pensando desde já no formato, na grossura, no número de páginas, e na figura que fará, em pé, real, concreto, palpável, entre os outros livros da estante.
Ora, ao inventor o mesmo se aplica. Sua recompensa, ou melhor, a razão de ser de todos os seus esforços é o objeto terminado e dotado de uma robusta permanência. Digam-lhe embora que amanhã ou depois seu engenho será um trambolho na sucata, ele não crerá. Suas virtudes o impedirão de crer na usura, como à maternidade premiada também não pode ocorrer a idéia do que será o filho aos setenta anos. A criação é uma vitória sobre o tempo. Sem esse elemento, sem essa forma nova de loucura tranqüila, complemento da outra, irreverente, o inventor não inventará.
Ele é o único a não crer no progresso técnico, justamente quando está imprimindo um impulso a esse progresso. Para ele, esse progresso não é uma rampa. Quando muito será uma escada. Os arquitetos sabem que a harmonia e a facilidade ascensional duma escada dependem da relação entre a altura e a largura do piso. Assim é também o progresso técnico, carecendo cada obra, cada novo impulso, pelo menos, o espaço para um pé.
O inventor é um teimoso alpinista que acredita em platôs, e que também crê nos modestos patamares da imensa escadaria que muitas vezes ele tem a paciência e a obstinação de galgar de joelhos.
Contarei a pequena história de um curioso invento que apesar do malogro, ou talvez por causa dele, serve para ilustrar o que ficou dito e o que ainda conto dizer. Foi em Paris no ano de 1782, quando a Revolução rondava as portas da Tulherias, que o monge beneditino Dom Gouthey teve a idéia de falar a grandes distâncias por meio de canos de ferro. O rei Luís XVI, benévolo para coisas mecânicas, encorajou e subvencionou a primeira experiência num percurso de oitocentos metros. O resultado foi bom. Gritava o monge numa das extremidades do cano, ouvia o rei na outra. Quis então o inventor estender a experiência à distância de cento e cinqüenta léguas, mas o rei, com a inconstância dos poderosos, ou talvez porque não pudesse comprar tamanha quantidade de canos, abandonou o projeto e esqueceu-se do inventor. Dom Gauthey, muito mais inventor do que monge, não se considerou vencido. Abre uma subscrição pública, desenvolve durante seis meses uma enorme atividade, e, não logrando alcançar a centésima parte da necessária quantia, embarca para os Estados Unidos, onde desaparecem seus traços. Não se sabe se ele voltou à estabilidade prometida, segundo a Santa Regra monástica, ou se até a morte permaneceu na estabilidade técnica.
Seja como for, aí neste exemplo as duas faculdades complementares que deixamos atrás assinaladas: a coragem de enfrentar um absurdo, e a paciência de permanecer nele e de crer na duração de seu pesado telefone. Se tivesse recuado diante do ridículo de gritar entro de um cano, ele não seria um inventor, mesmo malogrado. Mas também não o seria se lhe acudisse à mente que alguns anos mais tarde seus encanamentos seriam completamente irrisórios porque um outro inventor conseguiria falar a enormes distâncias por um fio mil vezes mais fino.
Os biógrafos costumam apresentar o inventor bem sucedido como um homem voltado para o futuro, ou como um indivíduo atormentado com a idéia de ser um benfeitor da humanidade. Esta é uma das muitas idéias admitidas que não tem o menor fundamento. Nada é mais desanimador para o homem em geral, e para o inventor em particular, do que a idéia do futuro. Se Dom Gauthey, no sossego de seu claustro beneditino, tivesse meditado longamente sobre os séculos vindouros, o progresso, a humanidade, outras quejandas, estou certo que abandonaria seus canos e voltaria ao ofício divino; o que, neste caso, seria melhor para ele. Pensar nos séculos vindouros, para o inventor, equivale, guardadas as proporções, a pensar uma jovem mãe, em doce enlevo, nas barbas brancas, no fardão acadêmico, ou mesmo no esqueleto de seu bebe.
Às vezes acontece que o século vindouro estuga o passo e vem pisar os calcanhares do inventor. A história torna-se então sombria, como a daquele pobre vienense que há cerca de cinqüenta anos teve a idéia de montar num dos alegres cafés de Viena uma monumental orquestra mecânica. Vinte ou trinta instrumentos, de corda, sopro e percussão, seriam comandados por um disco perfurado, onde a música em conserva se libertaria do intolerável capricho dos virtuoses.
Ora, estava o infortunado mecânico a dar seus últimos retoques nos recalcitrantes arcos de violino, ou a graduar o inanimado sopro das clarinetas, quando apareceram os primeiros aparelhos de rádio. Foi preciso remover o monstro, desmontando as enormes alavancas, que tomavam o espaço de oito ou dez mesas de consumidores. O inventor assistia ao precipitado advento do século que numa só pisada esmigalhava sua obra e sua vida. Foi visto todas as tardes na calçada fronteira, sombrio, acabrunhado; e, quando o pequeno rádio tocou a primeira valsa — segundo contam — atirou-se no Danúbio.
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Vimos até aqui as duas faculdades complementares que constituem, a bem dizer, as disposições prévias para o invento. Apertando o cerco da questão, vamos agora tocar o ponto que me parece central.
A inteligência do homem (do homem comum, e não somente do poeta ou do inventor) é dotada da estranha faculdade de aproximar o que é separado e distante. Em virtude dessa faculdade, que consiste em procurar o semelhante do dessemelhante, existe em todos os idiomas humanos o fenômeno das palavras iguais com significações diferentes, de que Aristóteles se ocupou no primeiro capítulo de seus Predicamentos. Exemplo: asa de xícara, asa do pássaro, asa do avião.
Em virtude dessa mesma faculdade, que consiste também na procura de um termo comum de proporção, os poetas de todos os tempos usaram metáforas para dizer, por exemplo, que os olhos da bem amada são dois lagos. Com enunciado mais preciso, podemos dizer que essa faculdade provém do paralelismo entre as leis da inteligência e as leis do ser. Há em tudo que é uma solidariedade de existência, ou de possibilidade de existência, na qual a inteligência se banha sabendo que é seu esse mar por mais longínquos que sejam seus limites. O homem é naturalmente poeta, falando por metáforas; naturalmente metafísico, aderindo embora nem sempre com precisão consciente a um conceito universal análogo do ente; naturalmente teólogo, atribuindo nomes a Deus. Em todas essas situações ressalta, como fato principal, que a inteligência humana é particularmente ávida de analogias, o que lhe permite romper o terrível isolamento em que sucumbiria se estivesse presa, circunscrita, em cada instante, entre os objetos que defronta. Por essa faculdade do espírito humano cada coisa é dotada de superabundância e de misteriosas repercussões.
Ora, considerando agora os processos psicológicos que decorrem da natureza da inteligência humana, é claro que varia, entre enormes limites, a agilidade mental capaz de tirar partido da riqueza das coisas. No caso do inventor, eu diria que ele precisa ter, em medida invulgar, um tipo de inteligência que, embora por precisão ou agudezas, se caracteriza por um rico e flexível sistema de associações.
Há pessoas que falando em vacas, só tem presentes e prontas para entrar em jogo na mente, as idéias correlatas mais próximas: leite, manteiga, problemas de pecuária ou de dieta. Outras, porém, dispõem de milhares de coisas que viu, que ouviu, em que pensou, tudo pronto para cruzar rapidamente o céu do pensamento, produzindo na passagem colisões, explosões, cintilações de onde saem outros com órbitas. Prontamente soltará dentro do círculo luminoso a lembrança do deus Osíris, o Egito inteiro, um quadro e pedaços de um discurso demagogo ouvido na véspera.
O inventor, como o poeta, é o homem que procura o novo na colisão das coisas distantes. E não há perigo que se esgote um dia no mundo a invenção e a poesia porque haverá sempre novas intersecções que podem ser procuradas no firmamento da inteligência que espelha a inexauribilidade do ser.
Examine o leitor, detidamente, o seu receptor de rádio e admire a confluência de coisas que ele representa. A caixa veio da floresta; o ferro e o alumínio, o vidro e o cobre, das quatro partes do mundo; a resina, as fibras, a borracha, que tinham seu emprego em milhares de outros objetos, encontram-se finalmente dentro do receptor; a cera das abelhas que Virgílio cantou, e que há séculos e séculos ilumina os altares, serve agora para revestir as bobinas.
Abra agora um livro de versos, e pasme diante de uma outra confluência de coisas que o vento da poesia reuniu numa folha de papel. Aí estão novamente as árvores, as pedras e as abelhas numa prodigiosa convocação em cujo centro se vê um olho, um braço, um campanário de igreja, ou um riso de criança.
Ouçamos John Keats:
"Where's the Poet? show him, show him
Muses nine, that I may know him!
"Tis, the man who whit a man
Is equal, be he King.
Or poorest of the beggar-clan,
Or any other wondrous thing
A man may be "twixt ape and Plato;
Wren or Eagle, finds his way to
All its instincts; he hath heard
The Lion's roaring, and can tell
What his horny throat expresseth
And to him the Tiger's yell
Comes articulate and presseth
On his ear like mother-tongue."
Voltando a Dom Gauthey, que algumas páginas atrás deixei perdido em alguma cidade da Nova Inglaterra, consideremos atentamente a esdrúxula idéia que ele teve de gritar no ouvido de um rei a oitocentos metros de distância por meio de um grosso encanamento de ferro. Na cabeça de qualquer cidadão em 1872 o cano de ferro era adjacente à idéia de água, sede, banho ou repuxo. Um homem de idéias localizadas e circunscritas dificilmente aproximaria do cano a idéia de conversar. Para o monge, que era inventor, posto que malogrado, não foi difícil associar o peso do ferro à leveza da palavras; e daí o resto da história.
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Notemos agora uma outra faculdade complementar da que acabamos de tratar e que pode ser definida assim: uma especial capacidade de fixar o pensamento no mesmo objeto. A aparente contradição desaparece se considerarmos que a fixação da idéia central não impede o tumultuoso movimento das associações, mas subordina-o, nos seus mais caprichosos epiciclos, àquele centro. As duas faculdades juntas ganham porque a riqueza de uma se apóia na organização da outra. A abundância das associações sem a capacidade de fixar um centro daria o imaginoso erradio, anárquico, bom conversador, xistoso e trocadilhista. Ao contrário, a fixação sem a riqueza de associações dá o obstinado erudito ou o paciente colecionador. Somente do encontro harmonioso dessas duas virtudes pode resultar um poeta ou um inventor.
O enamorado é sempre poeta e um pouco inventor. Seu pensamento central, que às vezes se torna uma idéia fixa, é a bem amada, em torno de quem, prontos para a galanteria, os acrósticos e os ciúmes, gira tudo o que brilha, cheira ou move-se dentro do universo. Às vezes predomina no namoro a invenção a ponto de se tornar a dama concreta uma espécie de suporte material para uma criação. Esses casos geralmente acabam mal, porque o sonho se dissipa e a corpórea dama subsiste com suas reivindicações. Em matéria de invenção é muito mais recomendável dedicar-se a um sacarrolhas do que a uma mulher.
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Agora consideremos o momento em que as virtudes do inventor entram em movimento. Até aqui falamos das faculdades, resta agora dizer alguma coisa do exercício.
O ímpeto para o exercício não constitui a bem dizer uma virtude nova, mas a própria virtude das virtudes. Todas as faculdades, por sua natureza, são inclinadas dinamicamente para a ação. Em moral há hoje, por uma estranha degradação dos conceitos, a idéia de que as virtudes são coisas negativas. Quando se diz que um sujeito é prudente, por exemplo, somos inconscientemente levados a pensar no que ele não faz. Ora, a prudência, reta razão do agir, é muito mais ímpeto do que reserva. É essencialmente ímpeto; acidentalmente uma força que se guarda mordendo os freios.
Assim também as virtudes do poeta e do inventor. Desenvolvidas até a plenitude elas tendem irresistível à ação fazendo do seu possuidor um sujeito especialmente sensível às solicitações. Dir-se-ia que todas as coisas o desafiam, não existindo uma pedra, um fruto, uma ave, de onde não venha um "decifra-me ou devoro-te".
Muitos desses desafios são abandonados; muitos são apenas respondidos em breves escaramuças; mas de repente vem uma solicitação de um certo tipo, bem enquadrada num conjunto de expectativas semiconscientes, ou inconscientes, e então, a partir desse momento, o homem criador se empenha a fundo, resolvido a ir até o fim. É um mistério a natureza dessa escolha, ou melhor, desse encontro. Por que irá este até queimar a mobília para conseguir o esmalte da porcelana? Por que irá aquele outro se atirar do alto da Torre Eiffel com duas asas de lona?
Não creio que vence a idéia simplesmente por ter prolongado o inventor o seu convívio com ela; antes, creio que o prolongou porque a idéia já era vencedora.
Seja como for, nesse momento em que o desafio é violentamente aceito, começa o processo da invenção. Com o desenvolvimento cresce o interesse e refluem sobre as virtudes, fortificando-as, as experiências que vem do objeto. Crescem o inventor e a invenção. E pode-se descrever esse processo a custa de duas coisas complementares que são outras tantas virtudes características do inventor, que entram agora em função. Trata-se, nesse processo (ou melhor nessa tática de combater pela solução) de uma capacidade de ficção aliada a um forte senso de realidade. Para explicar melhor a natureza desse novo conjugado de virtudes — a ficção e o realismo — consideremos o indivíduo que se entretém em imaginar o que vai fazer se tirar a sorte grande na loteria. Se não comprou o bilhete, não se apoiando então a ficção num elemento real, depressa se perde o sonhador no arbitrário. Uma vez que tanto lhe faz pensar em um milhão como em dez milhões, acaba não podendo se fixar em cifra alguma, e o sonho se esvai por falta de chão. O bom ficcionista compra o bilhete para ter uma espécie de direito de pensar no prêmio.
Todo rapaz de vinte anos, medianamente imaginoso, passando à noite diante das janelas da bem amada, deseja um brusco incêndio com vítimas anônimas, que faça a dama em desalinho aparecer na janela e pedir-lhe socorro. Num caso destes o importante é que o moço esteja realmente diante da janela da namorada.
Em caso diverso, estando por exemplo diante do portão do Ministério da Fazenda, o sonho não teria nenhuma fecundidade, e logo se extinguiria depois de duas ou três tentativas canhestras. O homem de imaginação inventiva é o explorador dos possíveis. Em seu pensamento, as mil coisas que se agitam em torno da idéia central e que ele agora dirige, como um romancista, nunca chegam a perder a espessura ontológica. Ele sente a fecundidade das essências. Sente a pressão rica e viva das coisas, como se tivesse na mão um pássaro fremente. E um pássaro na mão vale mais do que dois voando. Passando diante da casa da namorada vem ao seu encontro um pacto de possíveis. Desdobram-se, enlaçam-se e solto no ar, mas enraizado no chão, cresce a árvore mágica que esse faquir rega com seus desejos.
Assim, tateando as essências, conduzindo-as e sentindo-lhes as resistências, vai o inventor experimentando aproximações até que descubra, num desses choques, uma fecundação. Aí se imobiliza, crispado, atento, como um felino e demora-se o quanto pode no deslumbramento da presa apetecida. Nesse momento acode-lhe ao espírito uma impressão extremamente ingênua: ele vê o objeto, numa antecipação, como se já estivesse pronto. Não no detalhe, problema por problema, mas inteiro embora indeciso como desenho de criança. Ele vê a forma da coisa que pela primeira vez na história do mundo se desenha em sua inteligência, oscilante, líquida, como se estivesse surgindo no fundo de um lago.
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Desse momento em diante, já com o sabor das primícias, ele volta atrás, aos detalhes, aos problemas, tendo porém o passo mais firme porque já viu pronto, num sonho, o objeto de seus sonhos. Se foi uma miragem apenas ele irá tragicamente até as últimas conseqüências porque entre essa miragem e o universo inteiro, com suas pedras, árvores e metais, ele crê e prefere a miragem. Vestirá suas asas de lona e se esborrachará diante dos parisienses atônitos porque num certo minuto se viu voando em imaginação, tão vivo e leve como se fosse um albatroz.
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Nem sempre é necessário, ou possível, tirar conclusões de um estudo. Nunca é obrigatório. Um fenômeno qualquer, sendo bem observado e cuidadosamente relatado, já constitui um estudo autônomo de que não se pode reclamar uma conclusão. Poderia deter-me neste ponto, inquietar apenas a respeito do valor e da veracidade das observações, sem que ninguém me pudesse exprobrar a ausência de conclusões.
Será possível, por exemplo, educar para inventor? Será possível desenvolver sistematicamente o dom da poesia e o da criação técnica? Aí estão outros tantos problemas.
Há entretanto uma pequena conclusão que eu tiro logicamente das observações feitas. Se o estudo está certo, certa será também esta conclusão: o inventor técnico precisa de um ambiente rico de poesia, de filosofia, de formas diversas, onde enriqueça sua capacidade psicológica de explorar analogias. Em outras palavras: numa sociedade tecnicalizada a técnica ficaria rapidamente estacionária, e logo depois regrediria. Há um mistério de vida vivida, em casa, nos jardins, nos teatros, em cada parafuso do Radar e em cada peça de um abridor de latas.
Os russos ainda dançam e cantam. O feitor deles imagina que esses atos são necessários ao descanso, como ao burro que trabalhou o dia inteiro é necessário espojar-se de costas, com as patas no ar. Não lhe passa pela idéia que o pouco que eles puderam fazer em técnica (como a guerra demonstrou) tem as minguadas fontes nessa dança e nesse canto racionado que o Estado lhes permite. Se descobrissem esse fenômeno deixariam de ser comunistas continuando a ser russos. Ou melhor, voltariam a ser russos, e na próxima vez não passarão pelo vexame de combater os invasores de seu solo com armas emprestadas, inventadas e fabricadas numa Ilha pequena, por um esquisito povo que, durante os mais cruéis bombardeios de suas cidades, prosseguia na tarefa de editar as mais perfeitas reproduções de Rafael.
(A Ordem, Fevereiro de 1947)