“Pode alguém ignorar a doença profunda e grave que nestes tempos, muito mais do que no passado, devasta a sociedade humana e que dia a dia agravada, a corrói até a medula e a arrasta à ruína? Essa doença é o descaso de Deus e a apostasia; e nada, sem dúvida alguma, leva mais depressa à ruína, segundo esta palavra do Profeta: “Eis que perecerão os que se afastam de Vós”. São Pio X, “E Supremi Apostolatus”, 1905.
CAPÍTULO I DE "O SÉCULO DO NADA"
UM VELHO LEIGO INTERROGA...
(Sim, um velho leigo, olhando em volta de si, sai pelo espaço e pelo tempo a fazer interrogações).
Num dos seus últimos livros, Jacques Maritain vestiu-se de camponês, e passou a interrogar-se, como diz na epígrafe que adotou: “Un vieux laic s’interroge à propos du temps présent”. Proporções guardadas, minha situação pela idade, pela condição de leigo, e pela perplexidade, é semelhante a do grande filósofo. Assinalo, porém, duas diferenças. A primeira refere-se à caracterização com que compareço diante do respeitável público: em vez da blusa e do tamanco de campônio, visto-me de engenheiro, o que vale dizer que me visto do que nunca me despi inteiramente. Talvez tenha esboçado o “strip tease” profissional, mas sempre conservei, a tempo e contratempo, minha qualidade de engenheiro que agora invoco para oferecer ao leitor as garantias de objetividade e de indefectível docilidade ao real, que os intelectuais de nosso tempo dificilmente podem oferecer. De início eu poderia dizer que a docilidade ao real deve ser apanágio dos sábios, dos teólogos ou filósofos; mas acontece que vários abalos de terra, incêndios e inundações de nosso “brave new world” trouxeram grande desprestígio para os altos níveis da grande sabedoria, de onde desalojaram a supracitada docilidade, deixando em seu lugar um estranho e desdenhoso desembaraço em relação ao também supracitado “real”. Daí o garbo com que aqui compareço com meu título de engenheiro, e mais especialmente de engenheiro que sempre soube usar suas mãos com as diversas ferramentas dos vários ofícios. Sei serrar, limar tornear e aplainar. Até hoje ainda sou eu que mudo os fusíveis e efetuo em casa os pequenos consertos que não exijam de mais de minhas velhas coronárias.
Esse modesto diploma que aqui apresento vale para provar que longamente cursei a escola da pequena sabedoria na qual aprendemos que não só com a cabeça pensa o homem, mas com os pés para tê-los no chão e com as mãos para sentir a primeira verdade das coisas. Nesta escola aprendi que o pilriteiro só dá pilritos, e insiste em só dar pilritos ainda que o chamemos de “Crataegus oxyacantha”; como também aprendemos que a água molha, o sol alumia, o fogo queima, e daí, por duas ou três ilações, facilmente descobrimos que o marxismo, além de ser uma estupidez que só produz marxistas, é a maior impostura da história do sistema planetário. E, além disso, a pequena sabedoria presta-se a ser estribo para outra maior, e nos ensina que Deus é Deus, e de Deus não zomba, ou então, caprichando diríamos: “Deus non irridetur”.
Tempos atrás, escrevia eu um artigo sobre vários pronunciamentos do robusto Cardeal Suenens, e afligia-me com os disparates do purpurado quando ouvi da sala contígua os rumores que fazia um eletricista na perseguição de um insidioso curto-circuito em nossa instalação. Honrado eletricista! Pensei eu com meus botões, você sabe que tem de obedecer à natureza das coisas, sabe que deve tratar o cobre de uma maneira, o chumbo de outra, e o plástico isolante de uma terceira maneira. Cada coisa é o que é, e o bom eletricista sabe, por outras palavras mais singelas que deve ser dócil ao real, que deve ser atento, e sobretudo sabe que os equívocos têm conseqüências. Se trocar os fios, se ligar errado, ele logo verá o clarão e ouvirá o estrondo do curto-circuito, e logo terá de mudar os fusíveis. O Cardeal Suenens, pelo que se depreendia facilmente de sua entrevista, não parece saber que os erros têm conseqüências, e que há clarões e estrondos muito mais graves do que o do curto-circuito caseiro.
Devo agora assinalar a segunda diferença prometida nas primeiras linhas deste tópico. É a seguinte: o camponês do Garona é um velho leigo que se interroga sobre os tempos que correm. Minhas interrogações não são reflexivas. Pode ser que nas últimas páginas desta obra eu também entretenha com meus botões o diálogo de perplexidade; mas antes disso, o meu propósito é sair por aí formulando interrogações, perguntando, aos vivos e aos mortos, o que é que houve? Como? Por quê? Quem? Onde?
E para isto, para tirar ainda a tempo o enorme atraso em que estive a vida toda sobre o que estava acontecendo nos vários compartimentos da história recente, para recompor toda uma coleção de histórias mal contadas, de que este século é particularmente fértil, eu precisava entrevistar centenas de autores e ler centenas de livros fora da fremente e estonteante atualidade. Precisava, por exemplo, saber que cartas Charles Maurras escreveu a Pio XI e que paternais cartas Pio XI escreveu a Charles Maurras. E muitas outras coisas. Ora, para esse trabalho tive a sorte de entrar em regime de meia-aposentadoria (digo meia-aposentadoria porque ainda estou na ativa para boa parte dos deveres de estado) com um capital de disposição e de saúde que me permite manter há quase dez anos a média de oito e dez horas por dia de estudo e de redação. Creio que nunca estudei tanto em minha vida. Se com tudo isto a obra não sair a contento de quem a encomendou, não posso queixar-me de nada e de ninguém, a não ser de meus pobres limites. E aí vai o estudo que ofereço ao leitor: nem sempre será ameno e fácil, às vezes parecerá fastidioso, sobretudo nos tópicos em que procurei mais exata concatenação de idéias. Feitas todas as contas, apego-me ao provérbio dos pilriteiros: fiz o que pude.
Entrevistando o Velho Camponês do Garona
Tendo professado, ao longo dos quarenta anos de luta e pregação, uma fidelidade de discípulo à obra de Jacques Maritain, a quem tanto devo, e a quem me sinto ligado por laços muito afetuosos e muito desligados dos jogos de interesses deste mundo, tenho, de começar as retratações prometidas no subtítulo desta obra pelos pontos em que hoje me desligo, não no pensamento tomista do autor de “Dégres du Savoir” e de “Trois Réformateurs”, mas das posições tomadas em várias circunstâncias; não tanto de sua filosofia política, mas do uso prático que dela fez, ou de sua “política filosófica”, como diz Henry Bars.
Depois de ler o que li, e de reler “Le Paysan de la Garonne”, um de meus sonhos, desvairadamente sonhado, foi o de procurar Maritain na sua última estação para entreter com ele mil e duzentas conversas sobre todas essas coisas. E não escondo o lado mais fantástico do sonho: o de conseguir na milésima duocentésima conversa, à feição de circunstâncias especialmente favoráveis, do mestre tão admirado e tão amado, algumas importantíssimas retratações. Considerando que a vida neste vale de lágrimas mais separa do que une, ou bem compreendendo que meu sonho nem no Céu se realizará, porque, se a misericórdia de Deus lá nos unir, estaremos ocupadíssimos em admirar e louvar Deus três vezes santo e totalmente livres dos cuidados e retratações, reafirmações e interrogações; e sobretudo considerando a brevidade desta vida, concluo que devo eu fazer em meu próprio nome as retratações que julgo exigidas pela verdade. Mas bem sei que tudo o que eu disser é intransferível como retratação; e não me custa muito imaginar o brio gaulês com que Maritain repeliria tal impertinência.
Preocupa-me, ademais, o fato de estarmos ambos, como também Alceu Amoroso Lima, com o tempo muito medido. Para que eu pudesse desafogadamente escrever o que planejei, no tom habitual de minha argumentação, seria preciso que todos sobrevivêssemos ainda alguns anos. Indo eu primeiro, desaparece o problema; morrendo Maritain amanhã ou depois, ser-me-á difícil, por algum tempo, prosseguir esta obra. Mas deixemos esses cuidados na mão de Deus, e cuidemos nós da tarefa de hoje.
Voltemos, pois, a “Le Paysan de la Garonne”, que é um livro quase heterogêneo com a restante grande obra escrita do filósofo, e que de certo modo revela e realça as posições tomadas em face da crise da “Action Française”, da guerra civil espanhola e da infiltração marxista na esquerda católica francesa a partir da década de 30.
Começo por lembrar, como já o fez Alfredo Lage em excelente artigo que todos nós nos alegramos, e até publicamos nosso júbilo quando apareceu, com grande sucesso, o livro que gregos e troianos esperavam. Pareceu-nos na primeira leitura uma obra vigorosamente “anti-progressista” ou anti-ISTO. E todos os dispositivos de “infalibilidade” de que dispomos logo confirmaram nossa primeira impressão. Tristäo de Athayde, por exemplo, logo escreveu um artigo no qual, armado de um curioso diploma de “Amador de idéias gerais”, passava a criticar em Maritain o “tomista de estrita observância”, como se Maritain só tivesse rejeitado o teilhardismo por motivos disciplinares. Naquele tempo, 1965, Teilhard de Chardin passava pelo zênite de nossa cultura tropical. As livrarias estavam abarrotadas do “point-omega”, “noosfera”, “amorização”, e outras tantas invenções. Creio que todo o debate em torno dessa obra e desse sucesso poderia reduzir-se a este sucinto diálogo:
— Teilhard de Chardin? Que tal?
— Vende-se muito.
E a mágoa de Tristäo de Athayde se explica no próprio artigo: em 1962 escrevera ao filósofo, então em Toulouse, enviando-lhe um artigo seu em que punha Teilhard de Chardin como continuador e alargador de Tomás de Aquino. Recebeu do mestre uma carta com um P.S. no qual Maritain rejeitava categoricamente a validez de tal aproximação e explicava a Amoroso Lima que Teilhard de Chardin não era um autor sério. Sua obra não passava de “fábula e moeda falsa”. Dois anos antes, e sem necessidade de incomodar o mestre, eu já escrevera vários artigos dizendo por extenso a mesma coisa e até usando a imagem paulina “cócegas nos ouvidos” que Maritain três anos depois usou em “Paysan de la Garonne”.
Parecia, pois, que o livro vinha ao encontro de nossos desejos e aborrecia os progressistas. Entusiasmado, escrevi um longo artigo em “O Estado de São Paulo” aplaudindo incondicionalmente o velho camponês.
Maritain Analisa a Crise Católica
Como convém a um filósofo, Maritain antes de procurar entender a Coisa na linha da causa eficiente, ou das correntes históricas, procura aprender o que a coisa é, como é, na linha da causalidade formal.
De início, e depois de uma ação de graças por todas as “novas” riquezas trazidas pelo Concílio, Maritain assinala a extensão da “febre neomodernista”, muito contagiosa, pelo menos nos meios “intelectuais”, perto da qual o modernismo do tempo de Pio X foi apenas uma “simples gripe alérgica” (pgs.16 e seg.). Logo depois (pg.25) fala nos pruridos auriculares a que se refere São Paulo (II Tim. IV, 3) e que nós tantas vezes invocamos em nossos artigos sobre Teilhard de Chardin. Abre então um belo capítulo sobre a idolatria da atualidade ou “cronolatria epistemológica”. Estamos tocando a medula do “progressismo”.
No capítulo III, “O Mundo e seus Aspectos Contrastantes”, tenta alguns “approaches” do grande problema Igreja-Mundo, e depois de vários parágrafos sobre a ambivalência do mundo e sobre vários equívocos a que mais tarde voltaremos, chega no parágrafo 5 à grotesca e idolátrica subserviência dos novos católicos diante do mundo que o filósofo descreve como um “agenouillement devant le monde”. Sim, a “brave new Church” nos aparece de joelhos diante do mundo. E Maritain observa: “Que vemos nós por toda parte? Em amplos setores do clero e do laicato — mas é o clero que puxa o cordão — se acaso alguém pronuncia o termo “mundo”, logo se acende um fulgor de êxtase nos olhos do auditório”. E com boa cólera o velho camponês exclama: “Em resumo, só existe a terra. Completa temporalização do cristianismo” (pg.88). Estamos diante do constitutivo formal da grande heresia do século, como dirá Madiran. Convém lembrar que toda a essência do cristianismo, que toda a honra do Cristo Senhor, se possa usar tal expressão, reside na transcendência de sua obra, ou da “nova criação” sobre a “velha criação”, ou na especificidade dimensão nova de sua missão neste mundo; e que é sempre nas passagens em que seus discípulos “secularizam”, ou puxam para baixo a força de seu ensino, que Nosso Senhor mais duramente lhes fala. A mais instrutiva passagem é aquela em que Pedro, o papa Pedro I, pronuncia a primeira definição da Igreja: “Tu és Cristo, o Filho de Deus vivo” (Mat.XVI, 16) e ouve um elogio que mais parece uma advertência: “Bem-aventurado és, Simão filho de Jonas, porque não foi o sangue nem a carne que te revelaram isto, mas meu Pai que está no Céu”. Mas dez passos adiante, quando Jesus anuncia a paixão, Pedro entrou a secularizar, a querer providenciar e ouve, certamente surpreso, esta violenta reprimenda: “Para trás Satã, tu me és escândalo, porque (agora) tu não tens o sentir das coisas de Deus, mas o das coisas dos homens” (Mat. XVI, 24).
Poderíamos multiplicar as passagens que nos levam a esta conclusão: nada é mais anticristão do que essa tentativa abominável de rebater sobre as horizontais do mundo as forças e os ensinamentos apontados para o Céu. Nada é mais anticristão do que a filantropia e do que todas as formas de solidariedade humana que desprezam o sentido exato da fraternidade no sangue de Cristo, e no amor do Pai que está no Céu. Ora, é esse horror que está bem condensado na exclamação: “Completa temporalização do cristianismo!” Ninguém poderá ver nestas páginas de Maritain a menor concessão à “heresia do século” ou ao “neomodernismo”, e dificilmente poderá alguém se gabar de ser mais vigorosamente “anti-progressista” do que Maritain.
Em 1965, data da publicação de “Le Paysan...”, a “secularização” ou a “prosternação diante do mundo” não produzira ainda a safra de asneiras e torpezas que hoje conhecemos. Imagino o sofrimento do velho filósofo em Toulouse e tremo de pensar na comunidade que o cerca.
Sim, a “heresia do século” cresceu, alargou-se e aprofundou-se, e o problema da relação Igreja-Mundo tem sido apresentado sob os mais exóticos aspectos. Num certo momento divulgou-se uma descoberta sensacional: os adeptos da nova seita protestante descobriram que a Igreja está no mundo para servir! Houve uma explosão atômica de besteira em torno dessa idéia que tem exatamente, do Lava-pés até hoje, cerca de 2000 anos. Podemos, com certo método, dividir o dilúvio de tolices em gêneros, espécies, raças e tipos. Dois grandes gêneros logo me parecem evidentes: 1º o dos “indóceis” que descobriram maravilhados que então, sendo servidora, a Igreja não poderá ensinar, já que ensinar e servir, para esses parvos, são coisas incompatíveis; 2º o dos “anárquicos” que deslumbrados descobriram que a Igreja não pode governar, já que, para esses, servir e governar são coisas incompatíveis.
Li nestes dias um livro de Louis Boyer em que o autor, sem nenhuma ação de graças, diz que Vaticano II “foi seguido de uma demissão geral da Igreja ensinante”, e aborda o fenômeno da subserviência da Igreja em relação ao mundo:
“Mas o pior está na idéia que se difundiu sobre o serviço que a Igreja deve ao mundo. Traduzida em linguagem clara, essa idéia diz que a Igreja já não deve converter o mundo, e sim converter-se nele. Ela nada mais deve ensinar; deve contentar-se em escutar o mundo...”
Escutá-lo e segui-lo para pegar o curso da história. Louis Boyer continua:
“Dias atrás me dizia um de nossos novos teólogos que a simples idéia de salvar o mundo é um insulto para o mundo, como obra de Deus: o homem de hoje, não pode aceita-la!”
Creio que Maritain se tivesse escrito o seu “Le Paysan” três anos mais tarde, em vez de prosternação ou genuflexão diante do mundo, poderia dizer agachamento. Louis Boyer insiste:
“Servir o mundo não é mais do que agradá-lo, adulá-lo como ontem adulávamos o vigário em sua paróquia, o bispo em sua diocese, e como hiperadulávamos o Papa na cátedra de São Pedro”.
Não acompanho todas as idéias do Pe.Louis Boyer sobre a decomposição do catolicismo, nem apenas sobre o que ele chama de catolicismo. O velho companheiro de Pius Parch e de Odo Casel, do velho movimento litúrgico do eixo Roma-Berlim, que provocou a “Mediator Dei” de Pio XII, parece-me amargurado demais para nos trazer algum conforto, ou alguma diretiva na tempestade que ele descreve e comenta com talento. Além disso, como quase todos os franceses, Louis Boyer entra no jogo do progressismo versus integrismo sem parecer dar-se conta da falta de homogeneidade do esquema que de um lado tem uma heresia, todo um processo de apostasia em massa, e de outro lado, na pior das hipóteses, teremos pessoas que defendem mal valores bons, sem por isso formar um sistema, um “ismo”, simétrico do monstro que ameaça toda a civilização.
Mas voltemos a Maritain, que para nós é muito mais significativo do que Boyer, e continuemos a saborear a análise feita no mesmo “Le Pay-san...” no capítulo V, sobre a “Liberação da Inteligência”, onde o filósofo parece dirigir-se ao fantasma do Pe.Lebret:
“Minha terceira observação diz respeito à eficácia e à verdade. No capítulo III deste livro falei longamente do mundo e dos sentidos contrastantes do termo. Conhecendo bem o valor, a dignidade e a beleza do mundo que Deus fez, a Igreja quer seu bem temporal e seu bem espiritual. Ela o envolve no divino “ágape” que recebeu do alto, e de todo o coração se esforça por ajuda-lo e progredir na direção de seus fins naturais, e na linha de seu progresso terrestre, na medida em que o mundo tende para melhores e mais elevados estados da humanidade, e põe a serviço dos homens os tesouros de luz e compaixão, cujo depósito lhe foi confiado. A Igreja não está a serviço do mundo. Defende-se de se conformar com as cobiças, os preconceitos e as idéias fugazes do mundo. Nesse sentido tinha toda razão o velho Chesterton quando dizia: ‘A Igreja Católica é a única coisa que poupa ao homem a degradante servidão de ser um filho de seu tempo’. E São Paulo: ‘Nolite conformari huic saeculo’ (Rom.XII, 2). O século de que falava São Paulo, e como se viu no andamento de seus negócios tem sua norma suprema na eficácia, ou no sucesso. A norma suprema da Igreja é a verdade.
(...)
Falam-nos de eficácia?! O resultado será finalmente a defecção de uma grande multidão. No dia em que a eficácia prevalecesse sobre a verdade, as portas do inferno teriam prevalecido sobre a Igreja” .
E mais adiante, depois da clássica e sempre vigorosa crítica do idealismo filosófico, que foi o objeto constante de sua grande luta, e que agora chama de ideosofia, para bem distinguir os sistematizadores de idéias dos verdadeiros amigos da verdade, chagamos ao tópico intitulado. “A necessidade de fábulas e moeda falsa” que é uma marca de depressão cultural de nosso tempo, e que já anuncia “Teilhard de Chardin e o teilhardismo”.
Logo de início confessa seu espanto diante “do completo isolamento” em que Teilhard de Chardin conduziu sua pesquisa. Mais tarde, num número de Itinéraires dedicado inteiramente a Le Paysan de la Garonne, o Pe. Berto, o insubstituível colaborador de Itinéraires, falecido há dois ou três meses em plena batalha, desenvolve essa idéia do “isolamento” de Teilhard num artigo em que justamente faz o paralelo entre o filósofo tomista e o famoso jesuíta paleontólogo. Vale a pena transcrever algumas páginas desse artigo:
“Não podemos deixar de assinalar aqui o violento e enigmático contraste que se observa entre esses dois homens quase da mesma idade. Ei-lo: O primeiro é um convertido, casado antes da conversão, leigo por condição e por gosto livre, completamente livre de ler ou não ler a encíclica Aeterni Patris, livre de filosofar ou não filosofar, e de filosofar com Santo Tomás ou, como Georges Dumesnil e Peguy, de filosofar longe de Santo Tomás. Na hora em que Jacques, Raissa e Vera recebem o batismo (1906). O Pe.Teilhard, que só teve o trabalho de nascer para logo renascer da água e do Espírito Santo, já é um jovem escolástico da Companhia de Jesus. Submeteu-se, não apenas à mais enérgica disciplina da vontade jamais vista, mas também a um regime de estudo muito intenso, muito sério, muito austero, rigorosamente ortodoxo, e muito tomista. (...) Naquele dia de São Barnabé de 1906, Pierre Teilhard de Chardin não podia não ter lido a “Aeterni Patris” que Jacques Maritain não podia ter lido. Maritain, naquele dia desconhece “le premier mot” da história da Teologia na Companhia de Jesus; Pierre Teilhard aprende-a, respira-a, vive imerso nela. Nomes ignorados no mundo em que se movia Maritain, são familiares para Pierre Teilhard de Chardin.
Não falando dos antigos, que no entanto ele freqüenta, Teilhard vive a par de tudo o que ilustrou a Companhia ao longo do século que há seis anos terminara. Taparelli nasceu em 1793, Perrone em 1794, Liberatore em 1810, Kleutgen em 1811, Franzelin em 1816, Tilman Pesch em 1836, Billot em 1946, Christian Pesch em 1853, d’Alés em 1861. Que linhagem! Pertencendo ao último terço do século, como o próprio Teilhard, a geração dos Grandmaison, dos Grény, dos de la Taille, dos Lebreton se engajou, unanimemente com a Companhia (...), no combate contra o modernismo, e conduziu-o com clarividência e espírito de justiça. Que ambiente! Se o anjo da guarda de Pierre Teilhard de Chardin se abriu com o anjo da guarda de Jacques Maritain, com sinais de inquietação sobre o futuro teológico de seu protegido, é bem provável que o outro o tenha mandado passear: ‘Meu caro colega, que mais quereria você? Entregaram-lhe um rapaz que tem tudo a seu favor, batizado logo depois de nascer, e ainda por cima religioso, e jesuíta de quebra. E você não está satisfeito? Que direi eu então a quem as Três Divinas Pessoas acabam de entregar um jovem casado que veio sei lá de onde e chega ao seu batismo nu como um verme, com o perdão da palavra, e mal raspado por fora e por dentro de idéias, cada qual menos Angélica do que as outras, e todos muito mal arrumadas para se casarem com as idéias do Doutor Angélico. Se ele não tivesse o padrinho que tem, eu teria pedido outro cliente. Guardo-o por causa do padrinho, mas de nós dois, não me venha dizer que é você o mais mal servido’.
Vejam agora o enigma; apesar da enorme desproporção de chances na partida, foi Jacques Maritain que se tornou, não apenas tomista, mas um dos príncipes da filosofia tomista contemporânea, e foi Pierre Teilhard que se tornou, se já não o era em 1906, não um antitomista, mas um a-tomista; ou melhor, o enigma não está no tomismo de Maritain, está antes no a-tomismo de Pierre Teilhard.
(...)
Falta-nos tempo de consultar “Les Grandes Amitiés”, e não temos à mão as Atas da Semana Tomista de 1923. Mas nossa memória deve ser exata porque estávamos atentos e com cuidado de não perder uma só sílaba do orador separado de nós por muitas filas de poltronas e cadeiras, cujas duas primeiras, pelo menos, eram ocupadas por cardeais, e outras pelos mais altos dignitários da Cúria, pelos reitores e professores das universidades e seminários pontifícios e por todas as espécies de personagens que só deixavam, no fundo da Aula Magna, um espaço apertado onde a arraia-miúda se apinhava como podia.
Jacques Maritain já passara dos quarenta, mas parecia muito mais moço. Falava sem pressa e sem lentidão, com uma voz abafada mas distinta e cativante, e passava, de vez em quando, pelos cabelos alourados e já grisalhos a mão que era pálida e transparente como o rosto. Foi assim como o vi que maravilhosamente o fixou seu amigo pintor Otto van Rees, e que M.Gonzague Truc teve a idéia, digna de toda a gratidão, de reproduzir no seu livro “La Pensée”, muito antes de ser reproduzido em “Les Grandes Amitiés”.
Nós o ouvimos com o coração batendo e o fôlego suspenso. Na peroração de sua conferência, não! Não estamos inventando! Foi assim mesmo: Jacques Maritain rendeu homenagem à Igreja por sua adesão ao tomismo. ‘Não era — disse ele em substância, pois infelizmente não gravamos palavra por palavra — não era de um doutor qualquer que tínhamos necessidade no desamparo em que estávamos, era daquele mesmo que a Igreja nos propõe, era de Santo Tomás de Aquino’.
Não sabemos se o leitor avaliará bem a força com que tais palavras, ditas em tais circunstâncias, por um homem tão excepcional, atingiram e impressionaram um seminarista de 22 anos, deixando-o numa espécie de êxtase. Ó beata Roma, que com profusão dispensas essas jóias incomparáveis, como é verdade que só tu ultrapassas todas as belezas do mundo! Essa conferência foi certamente um grande exemplo de tomismo praticado, mas o que mais nos transmitiu foi admiração por um homem que, tendo a estatura e o estofo de um chefe de Escola, tivera a magnânima humildade de sentar-se aos pés do Doutor Comum”.
E o Pe. V.–A. Berto continua:
“Por contraste, em que estranha luz aparece o enigma do que somos forçados a chamar a impiedade, objetivamente horrível, de Pe.Teilhard!
Não entramos em sua consciência, dizemos objetivamente. Muitos filhos, desde que o mundo é mundo, já se ergueram contra sua mãe para odiá-la. Viu-se acaso algum desses para quem a mãe tenha sido por ele mesmo tão reduzida ao nada? De tantas recomendações da Igreja, de tantos elogios por Ela atribuídos a Santo Tomás de Aquino, de tantas incitações e recomendações para que não nos afastemos dele, nada, nada, nada, nem vestígios, nem sombra de uma sombra de vestígio se encontra nos escritos de Teilhard de Chardin. Tudo isto, para ele, jamais existiu, ou só existiu para recair instantaneamente nas profundezas do nadir. E o mesmo se observa em relação à Companhia: nem um sinal de filiação, nem um gesto, uma palavra, um traço em que se reconheça o jesuíta, nem um aceno de gratidão por seus mestres ou indício de troca de idéias com seus irmãos, ou de espírito de colaboração ou de camaradagem. Nada. Com ele só sabemos o que ele pensa, ele só. Não tem referências, dependências ou conexões. Como Melquisedeque, ele nos surge “sine patre, sine matre, sine genealogia”.
Já transformaram essa impiedade em seu louvor. Já se disse, creio que foi o Pe.Danielou, que ele olhava o mundo com um olhar novo de “pré-socrático”. Não somente negamos a possibilidade de ser um pré-socrático no século XX, não somente negamos a vantagem de sê-lo, mas também, ainda que vantagem houvesse, negamos o direito à legitimidade de tal atitude num cristão, num padre, num religioso, num jesuíta. O Pe.Teilhard trabalhou na mais alta preterição das intenções da Igreja, e basta esta (horrível) impiedade para desacreditá-lo sem apelação.
É tão isolado que seus admiradores só têm um único objeto de admiração: em torno dele, ninguém. Nem se diga que está num deserto. Não, ele flutua no vácuo. Para admirá-lo é preciso rejeitar até o 4º mandamento” .
Grave bem o leitor estas linhas que condensam a reprovação da obra de Teilhard de Chardin como nenhum de seus críticos logrou fazer, com tanto vigor:
“TEILHARD DE CHARDIN TRABALHOU NA MAIS TOTAL PRETERIÇÃO DAS INTENÇÕES DA IGREJA; BASTA ESTA HORRÍVEL IMPIEDADE PARA DESACREDITÁ-LO SEM APELAÇÃO”.
A Gratidão e a Mágoa do Pe. V.A. Berto
O artigo do Pe. V.A. Berto, publicado em Itinéraires, começa por uma declaração de gratidão e de mágoa que o autor condensa nesta epígrafe:
“Il m’a fait trop de bien pour en dire du mal;
Il m’a fait trop de mal pour en dire du bien”.
Da gratidão já demos na longa transcrição anterior uma prova comovente e ao mesmo tempo instrutiva no que se refere ao teilhardismo. E a mágoa? No artigo em questão a mágoa principal do Pe. V.A. Berto refere-se ao “integrismo”, e ao jogo da falsa simetria “progressismo”–“integrismo” em que Maritain se deixou envolver, como há pouco observamos que Louis Boyer também se enredou. Esse binômio deriva diretamente do jogo esquerda-direita, jogo falseado como veremos no capítulo seguinte, jogo quase especificamente francês. Por quê? Talvez por causa do “esprit de géometrie” que será sempre o defeito da qualidade do povo mais inteligente do mundo. O próprio Pascal não escapou inteiramente a esse obsessivo cartesianismo que arma esquemas vetoriais nas mais lúcidas mentes inscritas no glorioso hexágono.
Mais adiante voltaremos ao assunto e transcreveremos o que diz Pe. V.–A. Berto das considerações tecidas por Maritain, em “Le Paysan de la Garonne”, sobre o “integrismo”. Desde já recomendamos a leitura de Alfredo Lage, que foi o primeiro, em nosso meio, a sentir a impropriedade do conceito esquematizado por Maritain, e a exprimir a mágoa que também nós sentimos a par da imensa gratidão.
Creio que valha a pena antecipar algumas reflexões nossas sobre esse falso esquema que pretende contrapor duas coisas de espécies diferentes, como se se tratasse de dois sistemas de qualidade efetivamente simétricas. Mas a verdade é que de um lado temos um “neomodernismo” muito maior do que o que Pio X combateu, e portanto uma monstruosa “heresia” que Jean Madiran já chamou de “heresia do século XX”; e a do outro lado? Do outro lado temos pessoas que podem ser acusadas de defender mal a ortodoxia, de testemunhar mal, por todos os vários motivos que compõem o espectro das várias radiações da miséria humana, idéias e valores bons, mas isto, meu Deus!, é a própria condição do cristianismo de todos os tempos, e somos todos integristas, com exceção dos santos, que possuem e praticam as virtudes em grau heróico.
Tentemos especificar alguma coisa dentro da genérica mediocridade do povo de Deus. Só vejo um possibilidade de especificar o integrismo que permita a oposição vetorial e o esquema “progressista”—“integrista”; é aquele que concede aos “progressista” a iniciativa do jogo e da designação. “Integristas” serão, nessa linha, os que efetivamente, e mais ou menos vigorosamente, combatem o “progressismo”. No próximo capítulo veremos que este é o jogo “esquerda”—“direita” em que se deixaram enredar tantos “intelectuais” católicos.
Mas agora voltemos ao Camponês da Garona.
Como o Camponês vê o Teilhardismo
A apreciação de Maritain sobre o teilhardismo não é menos severa do que a do Pe. V.–A. Berto. E bastava este tópico do livro, na página 173 e seguintes, para marcar sua posição contra a onda de estupidez que desfigura a Igreja. Apesar disso, não posso esconder uma pequena decepção. Maritain pareceu-me desesperado, alheio aos melhores trabalhos escritos sobre a moeda falsa do teilhardismo, que não chegando a ter nível de heresia mais nos parece uma grotesca ficção. Escorou-se num artigo de Etienne Gilson, muito sensato mas superficial e desdenhoso. No Anexo II, pg.383, em que volta a apertar um pouco mais os parafusos, escora-se em Claude Tresmontant, que não está ainda suficientemente purgado das tolices que escreveu com certo entusiasmo em 1956, num livro cujo título já é uma apologia, ou pelo menos uma concessão. No primeiro capítulo desse livro de juventude, Tresmontant começa com esta frase: “O ponto de vista em que se coloca Teilhard de Chardin é o ponto de vista científico, fenomenológico”. Ora, essa é uma frase que bem merece a qualificação de “faux départ” porque, se é verdade que Teilhard de Chardin se coloca no ponto de vista científico (de que ciência?), já é preciso distingui-lo do ponto de vista filosoficamente fenomenológico, e já o desautoriza de falar em Point-Omega, e em qualquer outra coisa que não sejam ossos, fósseis, camadas geológicas, instrumentos de sílex, carbono-14, etc. etc. O jovem Claude Tresmontant, em 1956, parece ignorar que a obra “científica” de Teilhard de Chardin é de 5ª classe. Na melhor das hipóteses é insignificante. E o velho filósofo tomista parece ignorar que seu ponto de apoio na crítica ao teilhardismo é um recém-convertido ao bom senso.
Escrevi, nesse tempo, a Jacques Maritain, chamando sua atenção para os livros do Pe.Philippe de la Trinité, e lembrando que anos atrás ele, Maritain, Monsenhor Ch. Journet e o Pe. Philippe de la Trinité tinham trabalhado juntos, creio que em “Etudes Carmelitaines”, sobre “O Pecado do Anjo”, que lhes valeu na época a alfinetada de um bravo progressista: “Ils ont du temps à perdre”.
Lembro-me agora de que também sugeri a mesma idéia atribuída ao Pe.Danielou (hoje cardeal) pelo Pe. Berto, mas em ângulo diferente. O Padre Teilhard — dizia eu — é um curioso pré-socrático que teria feito, entre os jônios e os eleatas, ao contrário do que fez Aristóteles, a síntese dos erros: será mais evolucionista do que Heráclito, e mais unitarista e panteísta do que Parmênide. Não recebi resposta dessa carta que provavelmente se perdeu, e não se perdeu jóia nenhuma.
O principal, entretanto, estava feito em “Le Paysan de la Garonne”: um pensador com o imenso valor de Maritain, conhecido no plano dos pronunciamentos políticos e nos meios intelectuais como homem inclinado a assumir coisas novas, aplicara o ferro em brasa em cima do teilhardismo.
E agora? Examinando o conjunto de apreciações que cercam o monstro poliédrico, saboreando cada um desses parágrafos que esperávamos do velho mestre, neomodernismo, cronolatria, logofobia, prosternação diante do mundo, completa temporalização do cristianismo e finalmente teilhardismo, que mais esperávamos?
É curioso. Há no livro em questão uma enorme omissão, uma lacuna colossal, um lapso gigantesco que no entanto nos passou despercebido na primeira leitura. Entre as diversas faces que configuram o “monstro” ou os diversos ingredientes que compõem a “salada” houve um prodigioso esquecimento que só foi percebido numa segunda leitura.
Mais adiante voltaremos a fazer alguns reparos relativos à causa eficiente, às correntes históricas com que o autor explica a formação de tão grave e volumoso fenômeno. Desde já quero transmitir ao leitor o constrangimento com que me atrevo a criticar tão grande filósofo, e o sofrimento com que escrevo estas páginas — e ai de mim se as não escrevesse. Ligado demais a Maritain, só posso efetivar minhas retratações e reafirmações em termos que inevitavelmente incluem críticas e desligamentos. Transcrevi a bela página do Pe. Berto para fundir com ele a minha gratidão. Digo até veneração . E tranqüilizo o leitor, ao menos em certa perspectiva. As críticas e as correlatas retratações não atingem a grande obra filosófica, nem de longe significam um arrefecimento de nossa confiança em Santo Tomás. A obra filosófica de Maritain permanece para mim inalterável, com reservas na filosofia política contida em “Humanismo Integral” e “Democracia e Cristianismo”. Afasto-me aqui do artigo de Alfredo Lage, admirador como eu da grande obra de Maritain, que se associa a Gaston Fessard para perguntar se em 1936 seria possível fazer melhor do que fez Maritain em “Humanismo Integral”, e que depois acrescenta: “Depois da publicação de Le paysan de la Garonne a nossa posição é diferente”, como se fosse agora, nessa obra, que surgiram as “posições” de Maritain hoje inaceitáveis para nós. Ao contrário, foi em torno de 1936 que Maritain tomou várias “posições” que hoje nos obrigam a retratações porque nós é que não podíamos, em torno de 1936, fazer coisa melhor do que acompanhar Maritain. “Le Paysan” é um livro revelador dos erros da década dos 30, e é precisamente o documento que nos prova que, em 1936, Maritain podia ter feito o que não fez, e podia não ter feito o que fez.
E por aí já se vê que “Le Paysan” não é o objeto principal de nossas investigações, é antes um livro revelador de todo o drama cultural de que nos ocuparemos nas demais páginas deste livro. Valho-me desde já de uma divisão proposta por Henry Bars, um dos mais fiéis seguidores de Maritain, mesmo, ou sobretudo em sua filosofia política. Diz Henry Bars que é preciso distinguir em Maritain, além da obra especulativa,
1º—Uma filosofia política;
2º—Uma filosofia da história e da cultura;
3º—Tomadas de posições temporais, que são atos de filósofo, mas não de puro filósofo, atos de filósofo que se inspiram numa filosofia (e talvez a inspirem sob certos aspectos), que não são completamente separáveis mas não entram a título de ingrediente nessa filosofia, mas procedem diretamente da prudência política (ou de imprudência, diriam os adversários).
É principalmente do terceiro ponto, e das “imprudências” que me ocuparei a partir de algumas revelações de “Le Paysan”, e da leitura de muitos livros e revistas da época, não como “adversário” mas como discípulo que naquele tempo se comprometeu nas mesmas posições e que se sente na obrigação de se retratar.
Perguntará o leitor com que títulos me apresento para tão ousado empreendimento. Respondo com a simplicidade de engenheiro: um dos principais títulos que hoje tenho é simplesmente o planisfério das conseqüências. De duas maneiras podemos nós aquilatar as posições tomadas na vida, ou em termos de “princípios” nem sempre facilmente conversíveis em prudência pratico-prática, como diz Maritain; ou em termos de análise das conseqüências desenroladas no chão das existências. Hoje, diante do supramencionado planisfério de erros e disparates, podemos traçar linhas, remontar às causas, e facilmente descobrir que tais e tais posições foram erros de trilhos que nos levaram aos abismos por onde hoje rolam alegremente cardeais, bispos, religiosos e religiosas...
E Maritain? Não verá ele a mesma coisa que nós vemos? E, assim, não manterá ele sempre a mesma superioridade que nos desnivelava?
Todas essas perguntas que agora atribuo ao leitor, já muitas vezes as formulei comigo mesmo e com os amigos de sofrimento. E chegamos a uma curiosa e aflitiva conclusão que será desenvolvida em vários tópicos deste livro. E desde já precisamos voltar a “Le Paysan de la Garonne” para resolver um “suspense” que deixamos atrás.
Camponês ou “Intelectual”?
Voltemos a “Le Paysan...”. Trata-se de uma obra escrita com certo relax, em tom coloquial, onde sentimos que o filósofo, habitualmente tão duro para as arestas de cristalização da verdade, acha-se a conversar entre amigos, e onde quase adivinhamos que não está suficientemente só, resguardado, como conviria para a inquiriçäo profunda que se propôs com sua própria alma. O tom coloquial, a começar pelo provérbio chinês que não é provérbio nem chinês: “Ne prenez jamais la bêtise trop au sérieux”, não me parece adequado para a consideração da tempestade ou barafunda de erros e malícias em que se aventura. Parece-me que nunca, em toda a história, foi preciso levar a sério, como hoje, a divertida matéria que deixa totalmente de ser divertida quando ganha dimensões de calamidade planetária. Vivemos dentro de um dilúvio de estupidez. E na Arca, onde nos refugiamos, parece que ainda é mais torrencial a chuva do que lá fora...
Mas esse caráter de obra mais espontânea, e menos censurada no nível do “consciente”, nos permitirá talvez algumas descobertas úteis, entre elas a dos mecanismos de censura no nível do “inconsciente” que nos expliquem a razão de tão colossal omissão.
Qual? Qual é afinal a lacuna, a ausência, a omissão de que já falamos duas ou três vezes. É a seguinte: num livro de 400 páginas em que um grande filósofo francês, em 1965, se interroga, e por via indireta nos explica a crise da Igreja em nossos dias, sem disfarçar sua gigantesca proporção, não há um capítulo, um parágrafo, uma frase, uma só palavra para o fenômeno que largamente contribui para a onda de estupidez que aflige a Igreja, e que além disso cobre, molesta ou injuria a metade do globo terrestre. Esse fenômeno chama-se: comunismo.
Qualquer beata do Apostolado da Oração no Brasil sabe que o comunismo é um dos venenos que transtornou tantos padres; sabe que é o ópio do clero. Ora, o grande filósofo não toca nesse assunto. Em duas leituras atentas, e numa terceira dinâmica, não encontrei uma só vez o vocábulo “communisme”. Estarei enganado? Peço ao leitor que me ajude, e que de lente em punho, procure o monstro ciclópico acaso reduzido à condição de infusório.
O termo “marxismo”, e a filosofia designada por esse termo, merece destaque em duas páginas, mais para enaltecê-la do que para criticá-la. Num mundo em que a inteligência se degradou pela ruptura trazida pelo idealismo (racionalista ou empirista) subsistem apenas dois realismos: “O realismo marxista e o realismo cristão. (...) Eis aí um ponto de encontro entre o cristianismo e o marxismo que M.Garaudy teria a boa inspiração de assinalar se sua atenção não estivesse desviada pelos autores com que se informou para no oferecer esta piedosa humanização de uma velha fé desmitizada, convertida finalmente às esperanças da terra...”
E ao pé da página uma referência ao livro de Garaudy: “Se bem que li M.Garaudy, só vi o nome de Santo Tomás aparecer uma vez...”
E o comunismo? A realidade histórica, única pela qual o marxismo seria um “realismo”, a encarnação de erros e perversidades que mereceram advertências e condenações de tantos papas, não figura entre os ingredientes da grande salada, nem entrou na fila das interrogações que o velho leigo a si mesmo dirige. Como se explicará tal ausência?
Acresce que a atenção dada ao teilhardismo conduzia facilmente ao comunismo. Em outro lugar, depois de enumerar os vários componentes do chamado “progressismo” católico, que não é progressista, e já deixou de ser católico, dizia eu o seguinte: “Esses diversos fatores formam um sistema. Assim é que no famoso ‘diálogo’ os teilhardistas e marxistas andaram sempre entrelaçados, como tão bem demonstra o Pe. Philippe de la Trinité. No 10º aniversário da morte de Teilhard de Chardin, em 1965, o jornal Le Monde como era de esperar, promoveu uma edição especial para homenagear o famoso jesuíta que viveu alheio à Companhia e à Igreja, como evidenciou o Pe.V.—A. Berto. Entre os colaboradores de Le Monde estava Roger Garaudy, líder do P.C. francês com um artigo intitulado ‘Pionnier du Dialogue’, onde entre outras amabilidades, dizia que “Teilhard tinha a incontestável glória de ter tornado possível o diálogo entre comunistas e católicos’”.
Mais adiante entretanto, Roger Garaudy confessa que, como marxista, e apesar da simpatia que tinha pelo falecido, não podia aceitar a fórmula com que Teilhard de Chardin tão generosamente se oferecia aos comunistas: “A síntese do Deus cristão para-o-alto, e o Deus marxista para-a-frente, eis o único Deus que doravante poderemos adorar em espírito de verdade”. Por onde se vê que coube ao comunista o testemunho de um apego doutrinário. Garaudy, diante das ofertas de Teilhard de Chardin, sentiu-se no dever de pronunciar o “nom possumus”.
Se Maritain tivesse lido o Pe. Philippe de la Trinité sobre Teilhard de Chardin, em vez de se ter apoiado em Claude Tresmontant, inevitavelmente teria de dizer alguma coisa sobre a infiltração comunista no clero e sobretudo na esquerda católica francesa. Admitamos que Maritain evitasse o Pe. Philippe de la Trinité, a quem se atribui a redação do famoso “Monitum” do Santo Ofício de que tão se riu o mundo católico. Qualquer outra leitura, da década dos 60, dos 50, dos 40 ou dos 30 irresistivelmente atrairia sua atenção para as “liaisons dangereuses” entre católicos e comunistas.
Qualquer brasileiro sabe que o convento dominicano em São Paulo foi transformado em quartel de guerrilheiros do líder comunista Marighela, sabe que o Pe. Francisco Lage Pessoa desde o princípio da década 60 ensinava marxismo em Ferros e foi preso como conspirador comunista, sabe que os padres assuncionistas de Belo Horizonte ensinavam marxismo na Faculdade de Filosofia, sabe que o Pe. Wauthier de Osasco teve parte no incitamento à greve dos operários e principalmente sabe que tudo isto começou aqui com a transfusão do sangue francês trazido pelo Pe. Lebret em 1947. Os mais atentos e lidos sabem que o Pe. Desroches, companheiro do Pe. Lebret e co-fundador de Economia e Humanismo, deixou a Igreja e tornou-se comunista puro, limpidamente ateu, dois ou três anos depois da fascinante experiência que teve um filho bastardo no movimento dos padres-operários, que também se comunizaram... Que mais?
Tenho diante dos olhos, ao acaso da desarrumação de minha mesa, um livro mais recente de G.Cottier O.P. “Chrétiens et Marxistes”, Mane, Paris 1967. Nesse livro corro os olhos, com tristeza enjoada, pelo prefácio de M.D.Chenou O.P., que irresistivelmente me lembra “Mr.Trouhadec saisi par la Debauche” de Jules Romain.
Nesse prefácio, o velho dominicano ou ex-dominicano, ou ex-tudo, ou antidiluviano, cita Ricoeur, que hoje é obrigatório, e exuma Camus com sentenças que agora sugerem a figura do Conselheiro Acácio: “O contrário do diálogo é tanto a mentira quanto o silêncio. Só há diálogo possível entre pessoas que são o que são e que não mentem”. Exemplo: entre os que traem a Igreja e os que obedecem cegamente às diretrizes do Partido que é o maior gasômetro de mentira do mundo.
O Pére Chenu termina seu prefácio com um suspiro: “Difficile dialogue! à la mesure de la dureté des objets en cause. C’est le cas ici. Mais, comme dit le Pe.Cottier, ce cher dialogue (sic) est-il sans doute une école de liberté”. “Ce cher dialogue!?” Agora o que vejo em imaginação é um velho dominicano com o “cher dialogue” no colo, como um gato de estimação.
Perdoe-me o leitor esse curto delírio. Volto ao tema: é racionalmente inexplicável a ausência do “comunismo” nas interrogações do camponês. E onde se vê que é difícil falar da “crise” e principalmente de Teilhard de Chardin, sem dizer alguma coisa do “diálogo” que o Pe.Chenu afaga, é no livro de Etienne Gilson, “Les Tribulations de Sophie”, VRIN, Paris 1967, escrito num tom parecido com o “Le Paysan”, mas com uma diferença: Quase metade do livro de Gilson se aplica ao vergonhoso conúbio que tanto entusiasma o Pe.Chenu. Na página 135 encontramos esta melancólica conclusão: “Poderemos dialogar proveitosamente com um ateu? Duvido, se ele é comunista; receio as conseqüências se esse diálogo se estabelece entre um marxista bem informado de sua doutrina, como o Sr.Garaudy, e o teólogo tão mal informado da sua, como o Pe.Teilhard de Chardin. Num caso assim, o comunista devora o teólogo com a maior facilidade, e nutre-se dele com proveito. E só nos resta o ridículo da aventura”.
Voltamos à obsessiva pergunta: como se explica a omissão de Maritain em “Le Paysan...? Muita gente hoje, levada pela evidência de certos fatos e pela simplificação brutal das idéias, julgará que a explicação reside na inclinação esquerdizante ou comunizante do grande tomista. Ora, não se vê na obra do filósofo, digo na obra de especulação filosófica, seja no plano metafísico, seja no plano da filosofia da cultura ou da história, nada que de longe se pareça com um Mounier, que desabusadamente dizia querer trabalhar com os comunistas para as coisas de César, e com sua fé católica para as coisas de Deus. Tal afirmação, ou tal outra do léxico “progressista”, é inconcebível num livro de Maritain. Sobre o comunismo ele sempre foi muito nítido e duro, quando escreveu como filósofo.
Tomemos dois depoimentos do filósofo colhidos em pontos extremos de sua obra e de sua vida: o primeiro em “Antimoderne” (Paris, 1922) e o segundo em “On the Philosophy os History”, (Scribner’s Sons, N.Y. 1957). E insisto em assinalar a separação dos dois depoimentos, separação em vários sentidos: “Antimoderne” é escrito no período de 15 anos em que Maritain esteve na Action Française, no fim do pontificado de Pio X e no princípio de Pio XI. O segundo livro mencionado, escrito em inglês, nos Estados Unidos, doze anos depois da tormenta européia e da catástrofe francesa, está por assim dizer, além e por cima de todo um período de inquietações e de grandes paixões: depois da crise da Action Française, 1926, e de um período de transição, Maritain passa a freqüentar os meios ditos de esquerda. Em 1932 colabora com Mounier na fundação da revista Esprit, e depois com os dominicanos de Sept, e depois com a extrema-esquerda de Vendredi e de Temps Présent que sucedia a Sept, fechada por decisão de Roma. Resistindo e contrariando os conselhos de Garrigou-Lagrange, que durante tantos anos tivera por mestre nos “Cercles de Meudon”, Maritain se inclina para a filosofia política e escreve “Humanismo Integral” em 1936, livro marcado pelo “otimismo” da época que exercia a ultracorreção sobre a quadra anterior de depressão e desespero. Para os franceses, mais sujeitos às oscilações e contrastes políticos do que ninguém, porque a França corre ao longo da história entre espasmos revolucionários (ou euforias democráticas) e arroubos monárquicos (ou nostalgias autocráticas), o novo livro de Maritain representava, na obra do filósofo, uma guinada para a esquerda. Não nos deteremos demais neste ponto porque logo depois entram em cena acontecimentos mais significativos e marcantes para a vida e para a “política filosófica” de Maritain, como diz Henry Bars.
Em 1936 desencadeiam-se na Europa duas revoluções de incalculáveis conseqüências: uma visível, ruidosa e sangrenta; outra invisível e com mais derramamento de tinta do que de sangue. Refiro-me à revolução ou contra—revolução espanhola que terminou com a derrota dos comunistas; e à revolução ou infra-revolução francesa, ocorrida no plano das idéias e em forte antítese à revolução da Espanha, que terminou com a fragorosa derrota da França, e depois com a monstruosa vitória do comunismo, principalmente nos meios católicos. Ora, em todo esse drama Maritain tomou posições, assinou manifestos, escreveu prefácios, incentivou revistas, tudo isto inequivocamente com as esquerdas, contra os brancos da Espanha, e dia a dia mais engajado com as esquerdas francesas, contrariando nisto uma feição de sua personalidade, resistindo aos conselhos de Garrifou-Lagrange e desconhecendo com estranho desembaraço os pronunciamentos normativos e preceptivos do Papa Pio XI sobre a Guerra Civil Espanhola. Nos capítulos subseqüentes deste livro volverei a esta tragédia da França, mais grave do que a episódica derrota infligida pelos nazistas. No momento quero consignar estes fatos que nos preparam para admitir, com o próprio Henry Bars, fidelíssimo amigo, a idéia de certa duplicação na vida, senão também na personalidade de Maritain.
Passado aquele período tumultuoso, instalado na América, de certo modo desligado da seqüela da “Épuration” e da efervescência crescente das esquerdas católicas da França, bem cercado por dois admiráveis representantes do mundo feminino, Maritain se reencontra, se recompõe, e arriscar-me-ia até a dizer que se restabelece de uma segunda ruptura mais grave e decisiva do que a primeira.
E então consegue escrever em “On the Philosophy of History”, sobre o comunismo, páginas que se cosem facilmente ao que escrevia em 1922, e que serão vistas pelos “progressistas” franceses como uma espécie de traição, ou de regressão. E é significativo o fato de escrever em inglês esse livro, e seu grande livro “Creative Intuition in Art and Poetry”. E ainda mais significativo é seu afastamento dos amigos com que em 1932 (grave bem esta data, leitor) fundava a revista “Esprit”. Quando em 1950 morreu Emmanuel Mounier, que ganhara na França um enorme prestígio, todos os jornais de Paris noticiaram o falecimento com destaque. Não se vê, entretanto, nos diários de Raissa, ou no “Carnet de Notes” do próprio Maritain um só comentário. O intenso sofrimento da guerra trouxera um dilaceramento, ou um despertar na vida de Maritain. Mas a marca interior da tempestade de paixões certamente ficou a comandar os conhecidos aparelhos de censura psicológica.
Agora, em 1965, reintegrado na França, mas exausto e mutilado, embora ainda senhor de uma maravilhosa lucidez, Maritain é solicitado a escrever, e a escrever justamente sobre as conseqüências de tudo o que se preparou em França desde o início do século.
E aqui vai a explicação daquelas omissões. Não digo que está “na cara”, como se diz na gíria; mas digo, em boa língua, que está na capa: “Le Paysan...”. Não, não é um camponês que se esquece de nos dizer o mal enorme que o comunismo fez à sua pequena propriedade, nem é o camponês quem nos serve aquela hiperbólica definição de “Integrismo” que irrita o bom Pe.V.—A. Berto.
Não é também o grande filósofo tomista que sabe, melhor do que o camponês, que o comunismo é intrinsecamente perverso. Vale a pena aqui transcrever os dois textos, o de 1922 e o de 1957. Ei-los:
“O que a história, ‘julgamento do mundo’, mais severamente denunciará no comunismo não será certamente sua falta de ideal, é ao contrário, precisamente seu ideal, isto é, o princípio espiritual que o comanda. A lembrança dos crimes cometidos pode-se apagar, e passar depressa, não me custando muito imaginar os netos de Turelure sob os aspectos de pacatíssimos cidadãos. Um regime fundamentado sobre a violação do direito natural, depois de algumas experiências devoradoras de carne humana, pode atenuar-se e, na continuação dos dias, pela necessidade de viver, pode renegar na prática os dogmas que invoca em teoria. Mas o princípio espiritual que desempenha a função de ‘forma’ animadora, este só se atenua ou se perde quando desaparece.
Deste ponto de vista parece claro que as forças de destruição que ameaçam a atual ordem social, simbolizadas nos termos ‘bolchevismo’ e ‘ditadura do proletariado’, são uma forma nova e mais virulenta (a única, a bem dizer, que ainda é virulenta) do velho fermento da Revolução Anticristã. Dizem-nos que os comunistas russos, continuando embora a proclamar que ‘a religião é o ópio do povo’, já não perseguem crenças religiosas. Acredito que no momento estejam ocupados em tarefas mais urgentes. Mas o esforço deles é anticristão, essencialmente, no seu próprio princípio. Com uma decoração ideológica capaz de comover ao mesmo tempo os sete pecados mortais e as transviadas generosidades, é sempre um esforço inteligente, o mais ativo que até hoje já se viu no mundo, para ‘estabelecer praticamente’ a humanidade no ateísmo, instaurando realmente a ‘cidade sem Deus’, sim, uma cidade, uma civilização que enquanto tal ignore de modo absoluto qualquer outro fim que não seja uma perfeição humana exclusivamente terrestre e faça do Homem e da Ciência humana, segundo a grande idéia hegelianizante de Karl Marx, o Senhor todo-poderoso da Humanidade” .
A este magnífico texto, onde se ouvem as ressonâncias majestosas de uma consciência católica sensível às trágicas afrontas de uma civilização apóstata, acrescentaria duas observações. A primeira refere-se à consideração dos meios e dos fins do comunismo: em nossos dias muita gente está inclinada a pensar que o que nos separa do comunismo são os meios violentos e amorais, e que o que nos aproxima é o fim comum. Ora é justamente no fim proposto, no ideal visado, como tão bem explica Maritain, que reside a virulenta oposição ao cristianismo e à lei natural. Ouso dizer que o comunismo seria ainda pior, mais desumano e mais satânico, se sua expansão se efetuasse “sans larmes”, por processos suaves e insensíveis. A segunda nota refere-se à “perfeição humana exclusivamente terrestre” que depressa se transformará numa explosão de sub-humanismo que tornará a pobre vida terrestre mais imperfeita do que nunca. Já temos sinais à vista.
Agora uma observação sobre o autor da página transcrita. Em 1922 Jacques Maritain já tinha mais de 40 anos, e já era conhecido e admirado em todo o mundo católico. A “Aula Magna”, a que assistiu o Pe. V.—A.Berto, foi dessa época e bem mostra o enorme prestígio do filósofo em Roma. Já publicara os seguintes livros:
La Philosophie Bergsonienne, M.Riviére, 1913.
Art et Scolastique, ed. Les Lettres, 1919.
Elements de Philosophie I: Introduction Générale à la Philosophie,Téqui, 1921.
Théonas, Nouv. Lib. Natio., 1921.
Antimoderne, 1922.
Sem contar os numerosos artigos publicados em revistas diversas. Dois anos depois publicará:
Reflexions sur l’Intelligence et sur sa Vie Propre, N.L.N., 1924.
Trois Réformateurs, Roseau d’or, 1925.
E agora, depois de trinta e dois anos de crises, revoluções, revisões manifestos, guerra, mudança para os Estados Unidos, temos em 1957 este outro texto que se articula perfeitamente no de 1922, mas não se solda bem com a “sinistrite” delirante dos intelectuais franceses, a partir de 1932. Escrevendo em inglês, vivendo num meio completamente diverso daquele em que escreveu “Antimoderne” e “Trois Reformateurs”, Maritain de certo modo se alija da carga de esquerdismo, que a devastação de todo um mundo ajudou a levar, e se reencontra.
“Charles Péguy, que fora um revolucionário proudhoniano, dizia que a revolução social haveria de ser moral, ou não haveria de ser. Agora houve a revolução; e não foi moral” .
E pouco adiante:
“O que os cristãos têm agora a fazer não é sonhar com uma revolução social cristã, é antes trabalhar para que os ideais cristãos prevaleçam nos graduais ajustamentos, através dos quais o mundo não-comunista (cuja estrutura social e estilo de vida, ao menos nos Estados Unidos, já ultrapassaram o capitalismo e o socialismo) realizará as mudanças exigidas pela justiça social ‘que a revolução comunista, por sua ideologia bloqueou, chegando até a proibir sua simples menção’” .
É difícil ser mais anticomunista. Maritain vê na revolução comunista não apenas o seu próprio fracasso, mas a abismal e apavorante desmoralização de um ideal autêntico e perene. E com estas seis ou sete linhas demonstra a impossibilidade, a ilegitimidade, e intrínseca imoralidade de uma colaboração com os comunistas. Em outras palavras, nesse momento, Maritain esquece-se do Pe.Chenu e “son cher dialogue”, esquece-se de Mounier, de “Vendredi”, de “Sept”, e esquecendo-se de que se esquecera de Pio XI durante toda a guerra civil espanhola, volta à “Divini Redemptoris” que esqueceu de mencionar na alocução que fez pelo rádio na noite da morte de Pio XI.
Voltemos a “Le Paysan...”. Maritain está em Paris e considera em torno de si o espetáculo da “completa temporalização do cristianismo”. Há na composição desse livro todo um drama. Quem o escreve é o filósofo tomista Jacques Maritain, o autor de “Trois Reformateurs” e “Dégrés du Savoir”, é o homem de Deus, o afilhado em quem Bloy, em 1913, adivinhou um braço poderoso e uma grande voz de lamentador.
O filósofo procura arrimar-se no ombro do camponês que nunca pôde ser, e cuja presença mal pôde entrever entre as várias instâncias psíquicas de sua grande e riquíssima personalidade. Teoricamente, e graças às memoráveis lições de Garrigou-Lagrange (que mais próximo esteve sempre do rústico camponês), Maritain sabe que sua “grande sagesse” emenda na “petite sagesse” do senso comum; mas no período tormentoso de sua vida (naquele em que se separa de Garrigou-Lagrange para freqüentar Mounier) esse convívio consigo mesmo esteve prejudicado pela intromissão de um terceiro personagem. Quem? Qual?
O mesmo que agora em “Le Paysan”, faz o filósofo e o camponês se desavirem, e fá-los ambos esquecerem o simples termo “comunismo” que atrás dele traz uma torrente de dolorosíssimas recordações. Esse personagem é o “intelectual” no sentido exato que lhe dá Jules Monnerot quando conta “a história sucinta dos intelectuais” e diz: “Outro traço próprio dos intelectuais é o de nunca tirarem lição dos acontecimentos, porque eles os censuram” .
Gostaria muito de transcrever todo o excelente e saboroso capítulo do autor de “Sociologie du Communisme”, mas detenho-me e deixo ao leitor a recomendação, porque se me estendo a transcrever os livros que já estão escritos certamente malograrei no intento de escrever o meu próprio, com que já tenho uma espécie de compromisso.