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A grande lição do Calvário

Fortis est ut mors dilectio: o que mais impressiona no amor de Jesus, quer por seu Pai, quer por nossas almas, é a união maravilhosa e muito íntima da mais profunda ternura e da força a mais heróica no sofrimento e na morte: Fortiter et suaviter.
 
Estas duas qualidades do amor estão, muitas vezes, separadas em nós e no entanto só podem viver intimamente unidas. A ternura sem a força torna-se langorosa e piegas, a força sem nenhuma suavidade, transforma-se em rudeza e amargura1.
 
Ninguém pode exprimir o que foi a ternura de amor filial de Jesus por seu Pai; se ele amava ternamente a Virgem Maria, quanto mais ainda seu Pai, a quem rendia perpétua ação de graças e adoração! Esta ternura sobrenatural se derramava e se derrama continuamente sobre as almas, não apenas as de um certo país ou tempo ou sobre um grupo restrito de alguns amigos, mas sobre todas as almas de todas as gerações para lhes dar a vida eterna.
 
Este amor de Cristo tão terno é também mais forte que a morte, mais forte que o pecado e que o espírito do mal. Foi ele que levou Nosso Senhor a se oferecer como vítima para pagar em nosso lugar, para nos salvar, dando a Deus uma reparação infinita que lhe agrada mais do que todo o desgosto causado pelos pecados: Cor Jesu, fornax ardens caritatis -- eis todas as ternuras e todas as energias do amor admiravelmente fundidas. O Coração de Jesus é assim o mais puro espelho da Misericórdia e da Justiça, as duas grandes virtudes do amor incriado de Deus.
 
Os membros do corpo místico de Cristo devem cada vez mais participar de sua vida para se tornarem semelhantes a Ele. A santa humanidade do Salvador nos comunica progressivamente as graças que mereceu por nós na Cruz, influxo da cabeça do corpo místico sobre seus membros. Por este influxo Nosso Senhor quer nos assimilar, cada vez mais, pelo batismo, absolvição, comunhão freqüente, cruzes ou purificações necessárias a nosso avanço, até a extrema-unção e a nossa entrada no céu. Na vida de muitos santos vê-se essa assimilação progressiva no modo pelo qual neles são reproduzidos os mistérios da infância de Jesus, sua vida oculta, depois sua vida apostólica e por fim sua vida dolorosa2.
 
Ora, uma das grandes marcas do espírito de Jesus em uma alma, é a reprodução nesta alma dos dois efeitos que derivam em Nosso Senhor da plenitude da graça.
 
Primeiro, a paz, a tranqüilidade da ordenação cada vez melhor de todos os sentimentos, de todos os quereres subordinados ao amor de Deus e das almas em Deus, amor que cresce continuamente pela influência atual de Cristo.
 
Em seguida, a aceitação da cruz, para seguir o Mestre, como ele disse; aceitação com paciência, do contrário a pena aumenta sem fruto; reconhecimento, pois está aí uma graça escondida, vê-se melhor quando o fardo é levado sobrenaturalmente; com amor, pois a cruz é Jesus crucificado, que vem a nós para reproduzir em nós seus próprios traços. Este amor dá o abandono e a paz. Aí se encontra a verdadeira soberania, a contemplação divina3.
 
O austero Luiz de Chardon diz com profundidade a este respeito, comentando São Paulo: "Depois de termos admirado a violenta e insaciável inclinação do espírito de Jesus para a Cruz compreenderemos melhor como Ele a distribui pelas almas que lhe pertencem pelos vínculos da graça... Entendemos igualmente porque quanto maior é a elevação da alma em união com o espírito de Jesus tanto maior será sua obrigação quanto ao sofrimento... Também seria uma desordem da graça e das máximas do santo amor, se membros alimentados por confeitos estivessem ligados a uma cabeça transpassada de espinhos...
 
"Os membros são santificados pela mesma graça, que está em Jesus como em sua fonte universal. Ora, esta graça de Cabeça é comunicada a Jesus para a finalidade de sua missão, para que ele pague pelos pecados dos membros à justiça rigorosa de Deus. Por conseguinte, ele contrai a obrigação amorosa de sofrer provocando em seu espírito uma inclinação violenta que o transporta continuamente para a Cruz. É indispensável que esta graça incline do mesmo modo, com o mesmo rigor as almas predestinadas, a fim de que o corpo místico não pareça um todo monstruoso na ordem da graça, onde o espírito de Jesus seria contrário a si mesmo, sendo um nos membros e outro na Cabeça...
 
"Assim, porque a graça decorre da alma de Jesus como de sua fonte original onde ela produz um impulso dirigido para o fim pelo qual Jesus se fez homem, é uma necessidade que a graça cause esta mesma disposição naqueles que recebem a dignidade de nela participarem"4.
 
Este é um efeito da graça cristã como tal. A graça, por sua essência, é uma participação da natureza divina, mas, pelo fato de que nos é transmitida pelo Cristo, tem uma modalidade especial que nos configura a Ele como demonstra Santo Tomás quando pergunta se a graça sacramental, em particular a graça batismal, como tal, acrescenta alguma coisa à graça das virtudes e dos dons como a que possuía Adão antes do pecado (III, q. 62, a. 2).
 
Luiz de Chardon acrescenta e une assim a doutrina de um Tauler ou de um São João da Cruz à de Santo Tomás: "E porque esta espécie de graça não pode ficar ociosa em uma alma... é ávida para crescer e como só pode ter um crescimento considerável com a ajuda das cruzes... na nudez da graça, da qual suspendeu os efeitos sensíveis, Deus não abandona a alma à sua própria fraqueza. Nisto há o propósito de fazer a alma se conhecer e se desprender de si mesma... aderindo somente a Deus... A união será mais estreita e mais íntima quanto maior a separação de tudo mais.
 
"Daí que o mesmo amor é ao mesmo tempo princípio de vida e princípio de morte...; unindo e separando... afastando e causando adesões... A santidade de Deus comunicada a suas criaturas produz uma privação geral de tudo o que é incompatível com sua pureza imaculada5.
 
"Gloriosa morte... Rica de uma fecundidade divina... Morte entretanto mais cruel do que aquela que é o dever comum da natureza... pois só deixa tristes desolações nas almas! No entanto as almas bem instruídas sobre as propriedades do Amor sagrado e do fim que a santidade de Deus pretende com todas estas provações, não quereriam trocar nem por um instante seu rigoroso martírio pelas delícias embriagadoras do Paraíso, nem a cruel espera de sua morte pela feliz vida da glória"6.
 
É fácil ver a aplicação deste princípio na vida de Maria7. Como diz o historiador que repara o esquecimento em que caiu a obra de Chardon: "Talvez, a atividade separante, simplificante, despojadora da graça nunca tenha sido analizada com maior penetração"8.
 
Relendo atentamente o belo capítulo da Imitação de Cristo (1. II, cap. XI): "Do pequeno número dos que amam a Cruz de Jesus", vê-se que a marca do espírito de Cristo é a paz e o abandono no sofrimento, no acabrunhamento da Paixão, que se reproduz em diversos graus nas almas para as purificar e para fazê-las trabalhar na salvação do próximo em Nosso Senhor, com Ele e por Ele, com os meios dos quais Ele mesmo se serviu. Jesus está assim, num certo sentido, em agonia até o fim do mundo, no seu corpo místico até que este corpo místico seja plenamente purificado e glorificado, até que se realize perfeitamente a palavra do Mestre: "Venci o mundo", pela vitória definitiva sobre o pecado, sobre o demônio e sobre a morte.
 
Deste ponto de vista sobrenatural da fé, quando se contempla, digamos, com o olhar de Deus o que nos diz a santa liturgia, vê-se o quanto ela ultrapassa infinitamente os mais sublimes elans da poesia humana.
 
"Salve Crux sancta, salve mundi gloria,
Vera spes nostra, vera ferens gaudia,
Signum salutis, salus in periculis,
Vitale lignum vitam ferens omnium.
 
"Crux fidelis, inter omnes arbor una nobilis: nula silva talem profert fronde, flore, germine: dulce lignum, dulces clavos, dulce pondus sustinuit.
 
O magnum pietatis opus! Mors mortua tunc est, in ligno quanto mortua Vita fuit.
 
Nos autem gloriari oportet in Cruce Domini nostri Jesu Christi. Crux benedicta, nitet Dominus qua carne pependit, atque cuore suo vulnera nostra lavit".
 
* * *
 
Quando vossa alma dobrar-se sob o peso, apoiai-vos sobre vosso crucifixo.
 
* * *
 
Concluamos com São Luiz Maria Grignion de Montfort (L' Amour de la Divine Sagesse, 2a. P., cap. V):
 
"A Sabedoria Eterna fez da Cruz seu tesouro e em sua Encarnação esposou-a com amor inefável; durante toda sua vida, que não foi mais do que uma cruz contínua, carregou-a, pediu-a com indizível alegria... Pregada finalmente e como que colada à cruz, com alegria morreu abraçada à sua querida Cruz como num leito de honra e triunfo... E não pensem que depois de sua morte, para melhor triunfar, a Sabedoria Encarnada tenha se arrancado, tenha rejeitado a Cruz... Não querendo que honra de adoração, mesmo relativa, seja prestada a criaturas, por mais altas que sejam, como sua santíssima Mãe, reservou esta honra para sua querida Cruz e somente a ela é devida. A Sabedoria Encarnada, no grande dia do Juízo Final, acabará como o culto das relíquias dos santos, mesmo as dos mais respeitáveis; mas quanto às relíquias da Cruz, enviará os primeiros serafins e querubins pelo mundo para ajuntar os pedaços da verdadeira cruz que, por sua amorosa onipotência, serão tão bem reunidos que não farão mais que uma só e a mesma Cruz em que morreu, transportada assim pelos anjos... Precedida pela Cruz, colocada sobre uma nuvem de brilho inigualável, a Sabedoria eterna julgará o mundo com a Cruz e pela Cruz. Qual será então a alegria dos amigos da Cruz... Esperando esse dia... a divina Sabedoria quer que a Cruz seja o sinal, o caráter, a arma de todos os seus eleitos... Tendo encerrado tantos tesouros, tantas graças de vida na Cruz só dá a conhecer esses tesouros aos mais escolhidos... Como é preciso ser humilde, pequeno, mortificado, interior e menosprezado pelo mundo para conhecer o mistério da cruz! A quem carrega e suporta essa cruz, a Sabedoria Eterna dará um peso eterno de glória no céu".
 
(De "L' Amour de Dieu et la Croix de Jesus", Ed. du Cerf. 1o. vol., cap. VI, pág. 255. Tradução de Anna Luiza Fleichman)
  1. 1. Ver sobre isto L. Chardon, La Croix de Jesus, 3o. entretenimento, cap. VIII, onde o autor mostra como Deus quer a ternura de suas criaturas para uni-las a sua força, e como Ele transforma esta ternura em força divina. "Ele quer que o amor intensivo caminhe na alma perfeita de par com o amor apreciativo e que a ternura dos sentimentos esteja de acordo com a preferência do julgamento".
  2. 2. Ver encíclica de Pio XI, junho de 1928, Miserentissimus Redemptor, sobre a reparação devida a Deus por todos os homens.
  3. 3. La Croix de Jesus, 1a. edição, pg. 119-121. Nova edição (Lethielleux) T. I, pg. 14, 29, 43, 136; T. II, pg. 376, 450.
  4. 4. Cf. São Luix Grignion de Montfort, L' Amour de la Divine Sagesse II P., cap. VI: "Meios de se obter a sabedoria divina: 1.) desejo ardente; 2.) prece contínua; 3.) mortificação universal; 4.) terna e verdadeira devoção à Santíssima Virgem."
  5. 5. La Croix de Jesus, ibid., pg. 125-128.
  6. 6. Ibid., pg. 146-147.
  7. 7. L. Chardon, ibid., no primeiro de seus três "entretenimentos", mostra o que foi o "amor separante", princípio de Cruz, na alma de Maria e dos apóstolos: são dez capítulos de grande profundidade sobre o martírio interior da Santa Virgem. No terceiro de seus "entretenimentos" ele descreve admiravelmente, à luz do mesmo princípio, os grandes ápices da vida interior de Abraão, de Elias, de Jacob, de Benjamin, da Esposa dos Cânticos, de Marta e de Madalena. Páginas admiráveis onde a teologia mística doutrinal aparece como o coroamento normal da teologia toda, tal como a conceberam Santo Agostinho, Santo Tomás e todos os grandes mestres. O capítulo sobre Elías (3o. entretenimento, cap. 25) é digno de nota: "Moisés dizia: "Apagai-me do livro da vida"; São Paulo pedia para ser anátema por causa de seus irmãos! Mas estes desejos não tinham outro efeito senão testemunhar o grande amor destas almas por seus irmãos... Não é este o caso de Elias. Há cerca de três mil anos que Elias está privado da visão de Deus, e estará privado até o fim do mundo, para satisfazer desejos que participam da imensidade divina... Elias está reservado... para lutar contra o Anticristo".
  8. 8. Bremond, Histoire Litt. du Sentiment Religieux en France, t. VIII, pg. 43. Não sei se Chardon leu São João da Cruz, em todo caso ele está imbuído de Tauler de quem expõe a doutrina.
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