Maria recebeu, segundo a Tradição, não somente o título de nova Eva, senão o de Mãe da Divina Graça, Mãe Amável, Mãe Admirável, como a chamam as ladainhas, e ainda Mãe de Misericórdia. Os Padres chamam-na muitas vezes de Mãe de todos os cristãos e mesmo de todos os homens. Em que sentido deve-se entender essa maternidade? Quando Maria tornou-se a nossa Mãe? Como sua maternidade se estende a todos os fiéis, mesmo que não estejam em estado de graça, e como a todos os homens, mesmo aqueles que não possuem a fé? Essas são as questões que convém examinar aqui.
Em que sentido Maria é nossa Mãe?
Ela não é, evidentemente, nossa mãe do ponto de vista natural, pois não nos deu a vida corporal. Sob esse aspecto, Eva é que merece ser chamada de mãe de todos os homens, pois todos descendemos dela mediante gerações sucessivas.
No entanto, Maria é nossa mãe espiritual e adotiva, no sentido em que, por sua união ao Cristo Redentor, comunicou-nos a vida sobrenatural da graça. A partir desse ponto de vista, ela é muito mais que nossa irmã, e pode ser chamada, por analogia com a vida natural, nossa Mãe, pois nos gerou para a vida da graça.
Se São Paulo pode dizer aos Coríntios, falando de sua paternidade espiritual: “Eu os gerei em Jesus Cristo por meio do Evangelho”1, e a Filêmon: “Rogo-te por meu filho, Onésimo, que eu gerei nas prisões (convertendo-o a Cristo)”2, com muito mais razão podemos falar da maternidade espiritual de Maria, maternidade que transmite uma vida que deve durar não sessenta ou oitenta anos, mas para sempre, eternamente.
Essa é uma maternidade adotiva, como a paternidade espiritual de Deus com respeito aos justos, mas essa adoção é muito mais íntima e fecunda que a adoção humana, pela qual um rico sem descendência declara considerar um pobre órfão como seu filho e herdeiro. Essa declaração é sempre de ordem jurídica e, ainda que seja o sinal da afeição daquele que adota, não produz o menor efeito na alma da criança adotada. Ao contrário, a paternidade adotiva de Deus com relação ao justo produz na alma do adotado a graça santificante, a participação da natureza divina ou da vida íntima de Deus e germe da vida eterna, germe pela qual o justo é agradável aos olhos de Deus como um filho chamado a vê-lo imediatamente e a amá-lo por toda a eternidade. Nesse sentido, diz-se no Prólogo de São João3 que aqueles que crêem no Filho de Deus feito homem são “nascidos não da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus”. Isso nos mostra a fecundidade da paternidade espiritual; dessa fecundidade participa a maternidade espiritual e adotiva de Maria, porque, em união com o Cristo Redentor, ela nos tem comunicado verdadeira e realmente a vida da graça, germe da vida eterna. Ela pode, portanto, e deve ser chamada de Mater gratiae, Mater Misericordiae. É isso que querem dizer os Padres ao chamá-la de nova Eva, dizendo que tem voluntariamente cooperado para a nossa salvação, como Eva o fez para a nossa ruína.
Esse ensinamento é parte da pregação universal a partir do século II e se encontra em São Justino, Santo Irineu, Tertuliano, São Cirilo de Jerusalém, Santo Epifânio, São João Crisóstomo, São Proclo, São Jerônimo, Santo Ambrósio e Santo Agostinho, onde eles falam da nova Eva nas passagens citadas no artigo precedente. Essa doutrina foi particularmente desenvolvida no século IV por Santo Efrém, que chama Maria de “a Mãe da vida e da salvação, a Mãe dos viventes e de todos os homens”, porque nos deu o Salvador e uniu-se a Ele no Calvário 4. Falam no mesmo sentido São Germano de Constantinopla 5, São Pedro Crisólogo 6, Eadmero 7, São Bernardo 8, Ricardo de São Lorenzo 9 e Santo Alberto Magno, que chamam Maria de: Mater misericordiae, Mater regenerationis, totius humani generis mater spiritualis 10, e igualmente São Boaventura 11.
A liturgia diz todos os dias: “Salve, Regina, Mater misericordiae...; Monstra te esse Matrem...; Salve, Mater misericordiae, Mater Dei et Mater veniae, Mater spei et Mater gratiae”.
Quando Maria tornou-se nossa Mãe?
Segundo os testemunhos que acabamos de citar, Maria tornou-se nossa Mãe ao consentir livremente em ser a Mãe do Salvador, o autor da graça, que nos regenerou espiritualmente. Nesse instante, ela concebeu-nos espiritualmente, de tal maneira que teria sido nossa mãe adotiva por esse fato, ainda que tivesse morrido antes de seu Filho.
Quando depois Jesus consumou a sua obra redentora pelo sacrifício da Cruz, Maria, ao unir-se a esse sacrifício pelo imenso ato de fé, confiança e amor a Deus e às almas, tornou-se, de um modo mais perfeito, nossa Mãe, por uma cooperação mais direta, mais íntima e mais profunda em nossa salvação.
Ademais, nesse momento foi proclamada nossa Mãe por Nosso Senhor, quando Ele lhe disse, ao falar de São João, que personificava a todos os que deveriam ser resgatados pelo seu sangue: “Mulher, eis aqui seu filho”, e a João: “Eis aqui a Sua Mãe” 12. É assim que a Tradição tem entendido essas palavras, porque nesse momento e diante de tantas testemunhas o Salvador de todos os homens não concedia somente uma graça particular a São João, mas considerava nele todos aqueles que deveriam ser regenerados pelo sacrifício da Cruz 13.
Essas palavras de Jesus em seus derradeiros instantes, como as palavras sacramentais, produziram o que significavam: na alma de Maria um grande aumento de caridade ou de amor maternal por nós; na alma de João um afeto filial profundo e cheio de respeito pela Mãe de Deus. Essa é a origem da grande devoção a Maria.
Finalmente, a Santíssima Virgem continua exercendo sua função de Mãe com relação a nós, velando sobre nós para que cresçamos na caridade e perseveremos nela, intercedendo por nós e distribuindo-nos todas as graças que recebemos.
Qual é a extensão de sua maternidade?
Maria é, em primeiro lugar, a Mãe dos fiéis, de todos os que crêem em Seu Filho e recebem por Ele a vida da graça. Mas é também a Mãe de todos os homens, uma vez que nos deu o Salvador de todos e uniu-se à oblação de seu Filho, que derramou seu sangue por todos. Isso é o que afirmam os Papas Leão XIII, Bento XV e Pio XI 14.
Ademais, não é somente Mãe dos homens em geral, como se pode dizer de Eva do ponto de vista natural, mas é Mãe de cada um em particular, porque intercede em favor de cada um e obtém as graças que cada um de nós recebe no transcurso das gerações humanas. Jesus diz de si mesmo que é o Bom Pastor “que chama as suas ovelhas, cada uma pelo seu nome, nominatim” 15; algo semelhante acontece com Maria, a Mãe espiritual de cada homem em particular.
No entanto, Maria não é da mesma maneira Mãe dos fiéis e dos infiéis, dos justos e dos pecadores. Deve-se fazer aqui a distinção admitida a respeito de Jesus Cristo em comparação aos diversos membros de Seu Corpo Místico 16. Em relação aos infiéis, ela é sua Mãe enquanto está destinada a gerá-los para a vida da graça, e enquanto lhes obtém graças atuais que os dispõem à fé e à justificação. Em relação aos fiéis que estão em estado de pecado mortal, ela é sua Mãe enquanto vela atualmente por eles obtendo-lhes graças necessárias para fazer atos de fé, de esperança e dispô-los à conversão; no que diz respeito aos que morrem na impenitência final, Maria não é mais sua Mãe, mas o foi. Em relação aos justos, é perfeitamente sua Mãe, uma vez que eles têm recebido, por sua cooperação voluntária e meritória, a graça santificante e a caridade; vela por eles com terna solicitude para que permaneçam em estado de graça e que cresçam na caridade. É finalmente a Mãe por excelência dos bem-aventurados que não podem perder a vida da graça.
Vê-se agora todo o sentido das palavras que a Igreja canta todas as noites na oração de Completas: “Salve, Rainha, Mãe de misericórdia; vida, doçura e esperança nossa, salve. A vós bradamos os degredados filhos de Eva. A vós suspiramos gemendo e chorando neste vale de lágrimas...”.
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São Luís Grignion de Montfort expôs admiravelmente as conseqüências dessa doutrina em seu belíssimo livro Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem 17: Deus quer se servir de Maria na santificação das almas. Isso se resume assim em O segredo de Maria 18: “Ela deu a vida ao Autor de toda graça, e por isso é chamada de Mãe da graça. Deus Pai, de quem procedem, como de sua fonte essencial, todo dom perfeito e toda graça, deu-lhe seu Filho, deu-lhe todas as graças; de modo que, como diz São Bernardo, a vontade de Deus lhe é dada n'Ele e com Ele.
“Deus a escolheu para tesoureira, ecônoma e dispensadora de todas as suas graças, de maneira que todas as suas graças e todos os seus dons passam por suas mãos... Uma vez que Maria formou Jesus Cristo, a Cabeça dos predestinados, a Ela também compete formar os membros dessa Cabeça, que são os verdadeiros cristãos... Maria recebeu de Deus um domínio particular sobre as almas para alimentá-las e fazê-las crescer em Deus. Santo Agostinho chega mesmo a dizer que, neste mundo, os predestinados estão todos guardados no seio de Maria, e que não nascem senão quando essa boa Mãe os gera para a vida eterna... Foi a ela que o Espírito Santo disse: In electis meis mitte radices (Ecl 24,13): Lançai raízes em meus eleitos... as raízes de uma profunda humildade, de uma ardente caridade e de todas as virtudes.
“Maria é chamada por Santo Agostinho, e é, com efeito, o molde vivo de Deus, forma Dei, o que quer dizer que foi nela somente que Deus feito homem foi formado... e é assim nela somente que o homem pode ser formado em Deus... Todo aquele que é lançado nesse molde e se deixa modelar, recebe todos os traços de Jesus Cristo, verdadeiro Deus, de uma maneira proporcionada à fraqueza humana, sem muitas penalidades e trabalhos; de uma maneira segura, sem temor de ilusões, pois o demônio nunca teve e jamais terá acesso a Maria, santa e imaculada, sem sombra da menor mancha de pecado.
“Quanta diferença existe entre uma alma formada em Jesus Cristo pelas vias ordinárias dos que, como escultores, confiam na própria habilidade e apóiam-se em sua indústria, e outra alma bem manejável, bem desligada, bem fundida, e que, sem nenhum apoio em si mesma, lança-se em Maria e nela se deixa conduzir pela operação do Espírito Santo! Quantas faltas e defeitos, quantas trevas e ilusões, quanto de natural e de humano há na primeira alma, enquanto que a segunda é pura, divina e semelhante a Jesus Cristo!...
“Feliz, mil vezes feliz, é a alma, aqui na Terra, a quem o Espírito Santo revela o segredo de Maria, para conhecê-la, e à qual abre esse jardim fechado, para aí penetrar; essa fonte selada, para dela extrair e saborear a grandes sorvos as águas vivas da graça! Essa alma achará somente a Deus, sem criatura alguma, nessa amável criatura; Deus, que é ao mesmo tempo infinitamente santo e infinitamente condescendente e proporcionado à sua fraqueza... É Deus somente que vive nela [em Maria] e, longe de deter uma alma para si, lança-a, pelo contrário, em Deus e a une a Ele”.
Assim, a doutrina cristã sobre Maria torna-se, com o Santo de Montfort, o objeto de uma fé penetrante e deleitável, de uma contemplação que leva por si mesma a uma verdadeira e vigorosa caridade.
Maria, causa exemplar dos eleitos
Cristo é o nosso modelo e sua predestinação à filiação divina natural é a causa exemplar de nossa predestinação à filiação adotiva, pois “Deus nos predestinou para sermos feitos em conformidade à imagem de seu Filho, para que Ele seja o primogênito entre muitos irmãos” 19. Assim também Maria, nossa Mãe, associada a seu Filho, é a causa exemplar da vida dos eleitos, e é nesse sentido que Santo Agostinho e depois dele São Luís de Montfort dizem que ela é o molde ou o modelo à imagem do qual Deus forma os eleitos. É necessário estar marcado com seu sinal e reproduzir seus traços para ter lugar entre os prediletos do Senhor; e por isso os teólogos ensinam comumente que uma verdadeira devoção a Maria é um dos sinais de predestinação. O bem-aventurado Hugo de São Caro chega a dizer que Maria é como o livro da vida 20, ou um reflexo desse livro eterno, porque Deus escreveu nela o nome dos eleitos, como quis formar nela e por ela a Cristo, seu primeiro eleito.
São Luís Grignion de Montfort 21 escreveu que Deus Filho diz à sua Mãe: “‘In Israel hereditare ― Possui tua herança em Israel’ (Eclo 24, 13), como se dissesse: Deus, meu Pai, deu-me por herança todas as nações da Terra, todos os homens bons e maus, predestinados e réprobos. Eu os conduzirei, uns pela vara de ouro, outros pela vara de ferro; serei o pai e advogado de uns, o justo vingador para outros, e o juiz de todos; mas vós, minha querida Mãe, só tereis por herança e possessão os predestinados, figurados por Israel. Como sua boa mãe vós lhes dareis a vida, os nutrireis, educareis; e, como sua soberana, os conduzireis, governareis e defendereis”.
É nesse mesmo sentido que se deve entender o que diz o próprio autor, um pouco adiante 22, ao mostrar que Maria, assim como Jesus, escolhe sempre em conformidade ao beneplácito divino que inspira sempre a sua eleição: “O Altíssimo a fez tesoureira de todos os seus bens, dispensadora de suas graças, para enobrecer, elevar e enriquecer a quem ela quiser, para fazer entrar quem ela quiser no caminho estreito do Céu, para deixar passar, apesar de tudo, quem ela quiser pela porta estreita da vida eterna. E para dar o trono, o cetro, e a coroa de rei a quem ela quiser... A Maria somente Deus confiou as chaves dos celeiros (Ct 1, 3) do divino amor, e o poder de entrar nas vias mais sublimes e mais secretas da perfeição, e de nesses caminhos fazer entrar os outros”.
Vemos nisso toda a extensão da maternidade espiritual, pela qual Maria modela os eleitos e os conduz ao término do seu destino.