Garrigou-Lagrange, OP
Introdução
A perfeição cristã, segundo o testemunho do Evangelho e das Epístolas, consiste especialmente na caridade que nos une a Deus1. Essa virtude corresponde ao maior dos Mandamentos, que é o do amor de Deus. Também foi dito: “quem permanece na caridade, permanece em Deus, e Deus nele”2. E ainda: “sobretudo, porém, tende caridade, que é o vínculo da perfeição”3.
Os teólogos perguntaram-se sobre se, para alcançar a perfeição propriamente dita, não a dos iniciantes, ou a das almas em progresso, mas a que caracteriza a via unitiva, seria preciso grande caridade, ou se poderia obtê-la sem grau elevado dessa virtude.
Alguns autores4 sustentaram que não seria preciso alto grau de caridade para a perfeição propriamente dita, visto que, segundo Santo Tomás “a caridade, mesmo em grau inferior, é capaz de vencer todas as tentações”5. (Continue a ler)
Ao contrário, a maioria dos teólogos responde que a perfeição propriamente dita obtém-se após longa prática das virtudes adquiridas e infusas, prática pela qual crescem em intensidade6. Todo homem que chega à perfeição foi, antes, um iniciante e, depois, uma alma em progresso. Nisso, a caridade não apenas se mostrou capaz de vencer muitas tentações, mas de fato as venceu e, por isso, cresceu de modo notável. Não se concebe, portanto, a perfeição cristã propriamente dita, a perfeição da via unitiva, sem grande caridade7.
Se lêssemos o contrário nas obras de um São João da Cruz, por exemplo, pensaríamos tratar-se de delírio ou de erro de impressão. Parece inteiramente certo que, assim como para a idade adulta é preciso força física superior à da infância (muito embora, acidentalmente, certos adolescentes particularmente vigorosos sejam mais fortes que alguns adultos), assim também, para os perfeitos é preciso maior caridade que para os iniciantes (ainda que, acidentalmente, alguns santos, já no início, tenham caridade maior que alguns perfeitos já avançados em idade).
O ensino comum dos teólogos sobre esse ponto parece fundado claramente na pregação mesma do Senhor, sobretudo na que fala das bem-aventuranças, em São Mateus (capítulo V). Essa página do Evangelho exprime admiravelmente toda a elevação da perfeição cristã, a que nos chama Jesus. O Sermão da Montanha é o resumo da doutrina cristã, solene promulgação da Nova Lei, dada para aperfeiçoar a Lei Mosaica e expurgá-la das interpretações abusivas. As oito bem-aventuranças anunciadas no início são o resumo desse sermão. Condensam de modo admirável tudo o que constitui o ideal da vida cristã e mostram toda sua elevação.
A primeira palavra de Jesus no Sermão é para prometer a felicidade e indicar-nos os meios de alcançá-la. Por que começar falando da felicidade? Porque todos os homens desejam-na naturalmente: é o que perseguem sem cessar, em tudo que querem; no entanto, procuram-na amiúde onde ela não está, e só encontram miséria. Escutemos o Senhor, que nos diz onde está a verdadeira e duradoura felicidade, onde está o fim de nossas vidas, e que nos dá os meios de alcançá-la.
O fim indica-se em cada uma das oito bem-aventuranças; ele é, sob nomes diversos, a bem-aventurança eterna, cujas primícias podem os justos desde agora saborear; é o reino dos céus, a terra prometida, a perfeita consolação, a realização de todos nossos desejos legítimos e santos, a suprema misericórdia, a visão de Deus, nosso Pai.
Os meios vão de encontro a tudo que nos dizem as máximas da sabedoria do mundo, as quais propõem um fim completamente diferente.
A ordem dessas oito bem-aventuranças foi admiravelmente explicada por Santo Agostinho e Santo Tomás. É uma ordem ascendente, ao contrário da ordem do Pai Nosso, que descende da consideração da glória de Deus à das nossas necessidades pessoais e do pão nosso de cada dia. – As três primeiras bem-aventuranças tratam da felicidade que se encontra na fuga e na libertação do pecado, na pobreza aceita por amor de Deus, na docilidade e nas lágrimas de contrição. – As duas bem-aventuranças seguintes são as da vida ativa do cristão: respondem à sede de justiça e à misericórdia exercida para com o próximo. – Em seguida vêm as da contemplação dos mistérios de Deus: a pureza de coração que dispõe à visão de Deus, e a paz que deriva da verdadeira sabedoria. – Enfim, a última e a mais perfeita das bem-aventuranças é a que reúne as precedentes no meio mesmo da perseguição padecida pela justiça; são as provações finais, condição da santidade8.
Sigamos esta ordem ascendente para formarmos justa idéia da perfeição cristã, evitando diminuí-la. Veremos que ultrapassa os limites da ascese ou do exercício das virtudes segundo nossa própria industria ou atividade, e que comporta o exercício eminente dos dons do Espírito Santo, cujo modo sobrehumano, quando se torna frequente e manifesto, caracteriza a vida mística ou de docilidade ao Espírito Santo.
Santo Tomás, seguindo Santo Agostinho, ensina que as bem-aventuranças são atos procedentes dos dons do Espírito Santo ou de virtudes aperfeiçoadas pelos dons9.
As bem-aventuranças da libertação do pecado
Elas correspondem à vida purgativa, que é própria dos iniciantes, e da qual não se devem desviar as almas em progresso e os perfeitos.
Enquanto o mundo diz: a felicidade está na abundância dos bens exteriores, na riqueza, nas honras, Nosso Senhor diz, sem hesitar, com a firme calma da verdade absoluta: bem-aventurados os pobres de espírito, pois que deles é o reino dos céus.
Cada bem-aventurança possui seus graus: felizes os que se encontram na pobreza sem queixumes, sem impaciência, sem inveja, mesmo se o pão lhes vem a faltar, e que, ao trabalhar, põem sua confiança em Deus. Bem-aventurados os que, mais afortunados, não têm contudo o espírito das riquezas, o fasto, o orgulho; mas estão desapegados dos bens da terra. Ainda mais felizes são os que tudo deixam para seguir a Jesus, que se fazem pobres voluntariamente e vivem segundo o espírito desta vocação; receberão o cêntuplo na terra, e possuirão a vida eterna.
Esses pobres são os que, sob a inspiração do Dom de Temor [ou tudo minúsculo], seguem a via inicialmente estreita, que se tornará a majestosa via do céu, onde se dilatará cada vez mais a alma – enquanto a via larga do mundo conduz à geena e à perdição. Diz Nosso Senhor noutro lugar: “Ai de vós que estais saciados! porque vireis a ter fome”10. Por outro lado, bem-aventurada seja a pobreza, que, como demonstra a vida de São Francisco de Assis, abre o reino de Deus, infinitamente superior a todas as riquezas, às miseráveis riquezas em que o mundo procura sua felicidade.
Bem-aventurados os pobres ou humildes de coração, que não reservam para si nem os bens do corpo, nem os do espírito, nem reputação, nem honra, e que somente buscam o reino de Deus.
Enquanto o desejo de riquezas divide os homens, engendra querelas, litígios, violências e até guerra entre nações, diz Jesus: “bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra”. Bem-aventurados os que não se irritam contra seus irmão, que não procuram vingar-se dos seus inimigos, dominar os demais. “se alguém te ferir na tua face direita, apresenta-lhe também a outra” (Mt 5, 39).
Bem-aventurados os mansos, que não julgam temerariamente, que não veem no próximo rival a superar, mas irmão a ajudar, filho do mesmo Pai celeste. É o Dom de Piedade que nos inspira essa mansidão, com filial afeição para com Deus, nosso Pai comum.
Os mansos não se agarram com tenacidade ao seu próprio julgamento; falam com simplicidade “sim sim, não não”, sem precisar jurar sobre o céu por coisa alguma (Mt 5, 27).
Para ser assim, sobrenaturalmente manso, mesmo para com quem nos desagrada, é preciso possuir grande união com Aquele que disse: “aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração”, com Aquele que não quebrou a cana quase rota, nem apagou o pavio fumegante. A cana quase rota, é por vezes, diz Bossuet, o próximo encolerizado, quebrado por sua própria cólera; é preciso não o terminar de quebrar, vingando-se. Jesus foi comparado ao Cordeiro que se deixa conduzir ao matadouro sem se queixar.
A mansidão de que se trata aqui não é aquela que não faz mal a ninguém porque tem medo de tudo, mas é virtude que pressupõe grande amor de Deus e do próximo; é a flor da caridade, como diz São Francisco de Sales. Ela dobra o valor do serviço prestado, e chega a tudo dizer, a dar conselhos, reprimendas, pois que aqueles que os recebem notam que se inspiram de grande amor. Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra, a verdadeira terra prometida, e já possuem santamente os corações que se confiam a eles.
Enquanto o mundo diz: a felicidade está nos prazeres, diz ainda Jesus: “Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados”. Do mesmo modo, foi dito ao rico mau: “recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro, ao contrário recebeu males; por isso ele é agora consolado, e tu és atormentado” (Lc 16, 25).
Bem-aventurados os que, como o mendigo Lázaro, sofrem com paciência, sem consolação dos homens; as suas lágrimas veem-nas Deus. Mais felizes ainda são os que choram os seus pecados; os que, por inspiração do Dom de Ciência, conhecem experimentalmente que o pecado é o maior dos males, e que, por suas lágrimas, obtêm o perdão. Enfim, mais felizes ainda, diz Santa Catarina de Sena 11, são os que choram de amor à vista da infinita misericórdia, da bondade do Salvador, da ternura do bom Pastor, que se sacrifica por suas ovelhas. Estes recebem, desde aqui embaixo, consolação infinitamente superior à que o mundo pode dar.
Tais são bem-aventuranças que se encontram na fuga e na libertação do pecado.
As bem-aventuranças da vida ativa do cristão
Há outras santas alegrias que o justo experimenta, quando, desembaraçado do mal, se volta de todo coração para o bem.
O homem de ação que se deixa levar pelo orgulho diz: bem-aventurado o que vive e age como quer, que não se submete a ninguém, e se impõe aos demais.
Jesus diz: “bem-aventurado os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”. A justiça, no sentido principal da palavra, consiste, primeiro, em dar a Deus o que se lhe deve, e, em seguida, em dar à criatura o que se lhe deve, por amor de Deus. Como recompensa disso, o Senhor, Ele mesmo, dá-se a nós. Essa é a ordem perfeita, na perfeita obediência, inspirada pelo amor que dilata o coração.
Bem-aventurados os que desejam essa justiça, a ponto de ter fome e sede dela. Serão saciados em certo sentido nesta vida, tornando-se mais justos e santos.
Bem-aventurada esta sede: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba. O que crê em mim, como diz a Escritura, do seu seio correrão rios de água viva.” 12. Mas, para guardar esta sede, quando o entusiasmo sensível diminui, para guardar esta fome de justiça, no meio de contradições, dificuldades, desilusões, é preciso receber docilmente as inspirações do Dom da Força, que nos impede enfraquecer ou deixar abater, e que aumenta nossa coragem no meio das dificuldades.
“O Senhor, diz Santo Tomás, quer ver-nos famintos desta justiça a ponto de não podermos jamais satisfazer-nos nesta vida, assim como o avaro jamais está farto de ouro...”. Essas almas famintas “satisfar-se-ão apenas na visão eterna, e, diz ele ainda, sobre a terra, com os bens espirituais”. Ele acrescenta: “quando os homens estão em estado de pecado, não sentem absolutamente essa fome espiritual; quando estão puros de todo pecado, então eles a sentem” 13.
Esta fome e sede de justiça não se devem acompanhar, na vida do cristão, de zelo amargo contra os culpados. Jesus também diz: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.” Na nossa vida, como em Deus, justiça e misericórdia devem unir-se. Para sermos perfeitos, devemos partir como o bom Samaritano em socorro do afligido, do doente. O Senhor dará o cêntuplo a quem der um copo d’água por amor dele, a quem chamar a sua mesa os pobres, os estropiados, os cegos, como na parábola dos convidados. O cristão deve regozijar-se mais ao dar do que ao receber. Deve perdoar, isto é, dar ainda mais àqueles que o ofenderam. Deve esquecer-se das injúrias e, antes de fazer oferendas perante o altar, reconciliar-se com seu irmão. O Dom de Conselho inclina-nos à misericórdia, faz-nos atentos aos sofrimentos dos demais, faz-nos encontrar o remédio verdadeiro, a palavra que consola e que ergue.
Se nossas ações fossem inspiradas frequentemente por estas duas virtudes, justiça e misericórdia, e pelos dons que lhe correspondem, nossa alma encontraria desde aqui embaixo uma santa alegria, e verdadeiramente se disporia a entrar na intimidade de Deus.
As bem-aventuranças da contemplação e da união a Deus.
Os filósofos pensaram que a felicidade consistiria no conhecimento da verdade, sobretudo da verdade suprema. É o que ensinam Platão e Aristóteles. Porém, pouco preocuparam-se com a pureza do coração, e suas vidas, em mais de um ponto, contradisseram as suas doutrinas. Jesus disse-nos: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”. Ele não disse: bem-aventurados os que receberam poderoso intelecto, os que têm o ócio e os meios de cultivá-lo, não, mas: bem-aventurados os puros de coração, ainda que [intelectualmente] menos dotados que muitos outros. Se tiverem o coração puro, verão a Deus. Um coração verdadeiramente puro é como a água límpida de um lago, em que o azul do céu se reflete, ou como um espelho espiritual onde se reproduz a imagem de Deus.
Mas, para que o coração seja verdadeiramente puro, impõe-se generosa mortificação. “Se o teu olho direito é para ti causa de queda, arranca-o e lança-o para longe de ti (...). E se tua mão direita é para ti causa de queda, corta-a e lança-a para longe de ti.” (Mt 5, 29-30). É preciso zelar em especial pela pureza de intenção. Não dar esmolas por ostentação, não rezar para atrair a estima dos demais; buscar apenas a aprovação do “Pai que está no recôndito”. Então se realizará a palavra do Mestre: “Se o teu olho for são, todo o teu corpo terá luz” (Mt 6, 22)
Desde aqui embaixo, o católico verá Deus de algum modo no próximo, mesmo nas almas que inicialmente lhe pareciam contrárias; verá em certo sentido nas Sagradas Escrituras, na vida da Igreja, nas circunstâncias de sua própria vida e mesmo nas provações, em que encontrará lições da Providência, como aplicação prática do Evangelho. Ora, é essa, sob inspiração do Dom de Inteligência, a verdadeira contemplação que nos dispõe àquela, pela qual veremos propriamente Deus, face a face, em sua bondade e beleza infinitas; então todos nossos desejos serão atendidos, e estaremos como embriagados por uma torrente de delícias espirituais.
Desde aqui embaixo a contemplação de Deus deve ser fecunda; ela dá paz, e paz radiante, como diz a sétima bem-aventurança: “Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus”. Esta bem-aventurança, dizem Santo Agostinho e Santo Tomás, corresponde ao Dom de Sabedoria, que nos faz provar os mistérios da salvação, e ver de algum modo todas as coisas em Deus. As inspirações do Espírito Santo, às quais este dom nos faz dóceis, manifestam-nos, pouco a pouco, a ordem admirável do plano providencial, mesmo lá, e por vezes sobretudo lá, onde fomos inicialmente desconcertados, nas coisas desagradáveis e imprevistas, permitidas por Deus em ordem a um bem superior. Ora, não seria possível entrever dessa maneira os desígnios da Providência, que dirige nossa vida, sem experimentar a paz, que é a tranquilidade da ordem.
A fim de não se deixar perturbar pelos acontecimentos desagradáveis e inesperados, a fim de tudo receber da mão de Deus, como meio ou ocasião de caminhar ao seu encontro, é preciso grande docilidade para com o Espírito Santo, que quer dar-nos progressivamente a contemplação das coisas divinas, condição de união com Deus. Foi para isso que recebemos no batismo o Dom de Sabedoria, que cresce em nós na Crisma e pela comunhão frequente. As inspirações do Dom de Sabedoria dão paz radiante, não apenas para nós, mas para o próximo; ela faz-nos pessoas pacíficas; ajudam-nos a pacificar as almas atribuladas, a amar nossos inimigos, a encontrar palavras de reconciliação que fazem cessar as querelas. Essa paz, que o mundo não pode dar, é a marca dos verdadeiros filhos de Deus, que, por assim dizer, jamais afastam o pensamento de seu Pai celeste. Santo Tomás diz ainda dessas bem-aventuranças: sunt quaedam inchoatio imperfecta futurae beatitudinis (“elas são como o prelúdio da bem-aventurança futura”)14.
Enfim, na oitava bem-aventurança, a mais perfeita de todas, Nosso Senhor mostra que tudo que acaba de dizer confirma-se fortemente pela provação suportada com amor: “bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é o reino dos céus”. Trata-se sobretudo das últimas provações, condição da santidade.
Essa palavra surpreendente jamais fora escutada. Não apenas promete a felicidade futura, mas diz que devemos julgar-nos felizes ainda que entre aflições e perseguições padecidas pela justiça. Bem-aventurança absolutamente sobrenatural, que na prática não se compreende senão pelas almas esclarecidas na fé.
Há muitos graus nesta bem-aventurança, desde o bom católico que sofre por ter feito o bem, ou por ter dado bom exemplo, até o mártir que morre pela fé. Essa bem-aventurança aplica-se àqueles que, convertidos a vida melhor, não encontram senão obstáculos a seu redor; aplica-se ainda ao apóstolo cuja ação é impedida por aqueles mesmos que quer salvar, quando não se lhe perdoa o ter proclamado muito claramente a verdade do Evangelho. Países inteiros suportam por vezes essa perseguição, como a Vendéia, sob a Revolução francesa; ou, em outras épocas, a Armênia, a Polônia, o México.
Essa é a mais perfeita das bem-aventuranças. É a dos que mais se veem marcados em seu coração por Jesus crucificado. Permanecer humilde, manso, misericordioso em meio à perseguição, mesmo para com os próprios perseguidores, e, nestes tormentos, não apenas conservar a paz, mas comunicá-la aos demais, é realmente a plena perfeição de vida cristã. Ela realiza-se sobretudo nas últimas provações em que sucumbem as almas perfeitas que Deus purifica fazendo-as trabalhar pela salvação do próximo. Nem todos os santos foram mártires, mas, em diversas medidas, sofreram perseguição pela justiça, e conheceram algo deste martírio de coração que fez de Maria a Mãe das dores.
Jesus insiste sobre a recompensa prometida aos que assim padecerem pela justiça: “Bem-aventurados sois quando vos insultarem e vos perseguirem, e disserem falsamente todo o mal contra vós por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque é grande a vossa recompensa nos céus”.
Destas palavras nasceu na alma dos apóstolos o desejo do martírio, que inspirou as sublimes palavras de um Santo André, de um Santo Inácio de Antioquia. São elas que renascem em São Francisco de Assis, em São Domingos, em São Bento-José Labre. Por isso foram “o sal da terra”, “a luz do mundo” e suas casas, construídas não sobre a areia, mas sobre a rocha, padeceram todos os flagelos, mas não caíram.
Estas bem-aventuranças, que são, como diz Santo Tomás 15, atos superiores dos dons ou das virtudes aperfeiçoadas pelos dons, ultrapassam a simples ascese, e são de ordem mística. Pelo que se pode dizer que a plena perfeição da vida cristã é normalmente de ordem mística; é o prelúdio da vida do céu, em que o cristão será “perfeito como o Pai celestial é perfeito”, vendo-O como Ele se vê e amando-O como Ele se ama.
Escreve Santa Teresa: “É preciso, dizem alguns livros, ter indiferença ao mal que de nós se diz, até mesmo alegrar-se mais do que se falassem bem de nós, devemos fazer pouco caso da honra, ser muito desapegados dos nossos próximos... e muitas coisas da mesma natureza. Em minha opinião, tudo isso é puro dom de Deus, estes bens são sobrenaturais” 16. Noutras palavras, ultrapassam a simples ascese ou o exercício das virtudes segundo nossa própria industria ou atividade: são frutos de grande docilidade às inspirações do Espírito Santo. Diz ela ainda: “Se amarmos as honrarias e os bens temporais, debalde praticaremos anos a fio a oração, ou, para dizer melhor, a meditação, pois jamais avançaremos muito; a perfeita oração, ao contrário, livra destas falhas” 17.
Isso significa que, sem a perfeita oração, jamais alcançaremos a plena perfeição da vida cristã.
É isso o que diz também o autor da Imitação (livro III, cap. XXV, sobre a verdadeira paz):
“Se alcançares o perfeito desprezo de ti mesmo, gozarás de paz tão profunda quanto é possível nesta vida de exílio”.
É por isso que, na mesma obra (livro III, cap. XXXI), o discípulo pede a graça superior da contemplação:
“Senhor, careço de graça maior, se devo chegar a isto de nenhuma criatura me servir de obstáculo... aspirava a esta liberdade, aquele que disse: Oh! se eu tivesse asas como a pomba, levantaria voo e encontraria descanso! (Sl 54, 7). Quem não está inteiramente livre de toda criatura, não poderá aplicar-se com liberdade às coisas divinas. Por isso é que encontramos tão poucos contemplativos, pois poucos são os que sabem se subtrair às criaturas morredouras. Para tanto, é preciso grande graça, que erga a alma e a roube para além de si mesma. Enquanto o homem não está assim, elevado em espírito, livre das criaturas e todo unido a Deus, tudo o que sabe, tudo o que é, não tem grande valor.”
Este capítulo da Imitação é com propriedade de ordem mística, e mostra que é somente lá que se encontra a verdadeira perfeição do amor de Deus.
Santa Catarina de Sena fala do mesmo modo no seu Diálogo (capítulos 44 a 49). E é este, como vimos, o ensinamento de Nosso Senhor quando nos prega as bem-aventuranças, tais como as compreendeu Santo Agostinho 18 e Santo Tomás, como atos elevados dos dons do Espírito Santo ou das virtudes aperfeiçoadas pelos dons. É este verdadeiramente o pleno desenvolvimento normal do organismo espiritual ou da “graça das virtudes e dos dons”.
(La Vie Spirituelle no. 196, janeiro de 1936. - Tradução: Permanência)