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Artigo 5: Esperança - Promessas de Cristo aos apóstolos

Artigo 5

Esperança: Promessas de Cristo aos apóstolos.

Como já se disse, o cap. 16 de São João contém a outra seção da segunda parte do discurso de despedida – trata-se do capítulo das promessas. Ali também se apresentam três idéias importantes: Jesus repete em termos mais explícitos a promessa de enviar o Divino Paráclito aos apóstolos, anuncia logo após seu retorno, e finalmente faz uma recapitulação de todo o discurso.

 

I. Ação do Espírito Santo em face do mundo e dos apóstolos (Jo 16, 1-15).

O Divino Mestre acabava de predizer aos discípulos as perseguições que sofreriam de parte do mundo, e de lhes falar também acerca do testemunho do Espírito Santo em seu favor. Agora ele vai versar sobre dois pensamentos: o primeiro é uma espécie de introdução, e o segundo são os detalhes da forma de ação do Espírito Santo em face do mundo, dos apóstolos e do próprio Cristo.

 

Introdução: perseguições que os apóstolos hão de sofrer em breve.

Essas coisas, o ódio e a perseguição do mundo, e o testemunho do Espírito Santo, vos disse para que não vos escandalizeis, para que não vos desconcerteis, nem vos deixeis dominar pela sensação de fracasso a fim de que, perdida a fé, não volteis atrás. Assinala o Mestre as duas principais formas de perseguição: a) a expulsão das sinagogas: Eles vos expulsarão das sinagogas: a expulsão era uma espécie de excomunhão, que para um judeu equivalia à proscrição e à morte civil; b) e a morte: e virá a hora em que todo aquele que vos tirar a vida julgará prestar culto a Deus: o pretexto religioso tornara a perseguição ainda mais ignominiosa: os apóstolos serão reputados homens tão ímpios e criminosos, que a morte deles será considerada um sacrifício agradável a Deus 1. Mas o motivo determinante das perseguições será outro bem diferente: o desconhecimento em relação ao Pai e ao Filho. Procederão assim porque não conheceram ao Pai, nem a mim: i. e., desconhecem os discípulos enviados, porque desconhecem o Mestre que os envia; e desconhecem o Mestre porque não o reconhecem como Filho de Deus; e desconhecer o Filho de Deus é desconhecer a Deus Pai, a Deus tal qual é 2. Disse-vos, porém, estas palavras para que, quando chegar a hora, vos lembreis de que vo-lo anunciei: i. e., para que a comprovação futura seja: a) motivo de credibilidade, que corrobore a fé dos apóstolos, quando virem a pontualidade com que se cumpriram; b) e também motivo de consolo e confiança, ao observarem a solicitude amorosa com que o Mestre os havia preparado para a hora da tentação. Eu não vo-las disse desde o princípio, porque estava convosco: embora Nosso Senhor tivesse anunciado aos discípulos que a missão deles estaria cheia de perigos, Ele não mencionara as perseguições mortais, inevitáveis e iminentes, nem insistira nisso porque a perseguição ainda era algo distante; já não agora, pois estava a ponto de deixá-los.

 

A obra do paráclito em face do mundo.

Nosso Senhor passa a detalhar aos discípulos a ação do Espírito Santo, de cuja vinda – segundo Santo Tomás – deviam se seguir três proveitos: o primeiro, a condenação do mundo; o segundo, a iluminação dos apóstolos; o terceiro, que vem depois, a glorificação de Cristo 3. Por isso, no que tange ao primeiro, Nosso Senhor vincula a vinda do Espírito Santo com sua partida, para logo declarar a tripla ação do Espírito Santo no mundo.

 

1º. A partida de Jesus está vinculada com o envio do Espírito Santo – A linha de raciocínio é gradual e progressiva: a) começa repetindo o tema fundamental do Sermão: Agora vou para aquele que me enviou; b) o efeito da partida é certa desilusão ou desencanto dos discípulos, o que lhes tira a vontade de novas perguntas: e ninguém de vós me pergunta: Para onde vais?: já não lhes acicata a curiosidade do princípio, quando Pedro e Tomé, imaginando-se talvez que partia para outras terras lhe perguntavam ingenuamente para onde ia; agora entendem que vai para a morte e tal pensamento lhes corta cerce os pensamentos messiânicos; simplesmente não perguntam por medo de saber mais; c) esta decepção anda acompanhada de profunda tristeza, nascida da falsa apreciação da realidade: Mas porque vos falei assim, a tristeza encheu vosso coração; d) a verdade, contrária a estas falsas apreciações, é que a partida do Mestre lhes interessa a eles, pois está vinculada à vinda do Espírito Santo: Entretanto, digo-vos a verdade: convém a vós que eu vá!: minha morte e minha partida não é, como vós imaginais, uma desgraça ou fracasso, nem para Mim nem para vós, mas ao contrário. Interessa-lhes a partida, entre outras razões, porque, se eu não for, o Paráclito não virá a vós; mas se eu for, vo-lo enviarei. Não declara Nosso Senhor porque tal vinda está vinculada à sua partida, mas tão-somente explica para que virá o Espírito Santo 4.

2º. Ação tripla do Espírito Santo no mundo – Para entender a explicação das palavras que seguem, há de se considerar o quadro majestoso que a eterna relação entabulada entre Cristo e o mundo nos apresenta. A humanidade inteira está dividida em duas classes irreconciliáveis, a de Cristo e a do mundo, que pleiteiam os direitos e reivindicações de Cristo. A fase humana é iminente: nela Cristo, sem advogado de defesa, será condenado pelo Sanedrim e pelos tribunais de Herodes e Pilatos, e depois crucificado: o mundo acreditará que triunfou e o processo parecerá transitado. Mas não tardará a segunda fase do processo: E Ele, o Espírito Santo, como Advogado de Cristo, quando vier, não apenas em Pentecostes, mas também nas demais manifestações sobre os cristãos, dará vitória, ante o tribunal da história, à causa de quem foi condenado pelo mundo; mudaram-se as sortes: o acusador passará à categoria de acusado e será condenado: convencerá o mundo, i e., apresentará provas convincentes, a respeito do pecado, o do mundo, da justiça, a de Cristo, e do juízo, a sentença condenatória de Satanás.

a) Convencerá o mundo a respeito do pecado, que consiste em não crer em mim: O Espírito Santo mostrará a culpabilidade do mundo - pois o mundo não acreditou em Cristo - e sobretudo a culpabilidade dos judeus, que repudiaram aquele que com obras prodigiosas lhes indicava ser o enviado de Deus. E o argumento do Espírito Santo para convencer o mundo – e especialmente os judeus - dessa realidade será o estabelecimento e a difusão universal da Igreja e a conversão dos gentios. Como os judeus ficaram confusos ao ver que Deus chamava os que antes nem sequer formavam um povo para participar de seus privilégios e dons!

b) Convencerá o mundo a respeito da justiça, porque eu me vou para junto do meu Pai e já não me vereis: Os judeus acusaram a Cristo de ser malfeitor, sedutor e blasfemo; e o motivo dessa acusação era o haver-se declarado igual a Deus. Contra tal acusação o Espírito Santo mostrará a justiça de Cristo, i. e., não apenas a inocência e a santidade dele, mas também o direito de declarar-se Enviado e Filho de Deus. A prova dessa justiça será a ressurreição de Cristo, após a qual, ao recobrar a plenitude de seus direitos e de sua glória divina, Cristo retornará ao Pai, e os olhos mortais não o verão até que volte ao mundo a segunda vez para julgar os vivos e os mortos. Os apóstolos 5 seriam os principais instrumentos e agentes do Espírito Santo nesta apologia de Cristo.

c) Convencerá o mundo a respeito do juízo, que consiste em que o espírito deste mundo já está julgado e condenado: Convencido o mundo de que é pecador e reconhecida a justiça de Cristo, termina o processo com a sentença fulminada e executada em Satanás; e isso é assim porque, por um lado, Satanás é o “príncipe deste mundo”, e por outro os mundanos, enquanto dura esta vida, sempre podem se acolher sob a misericórdia de Deus, mas aqueles que se obstinam em seguir a bandeira do caudilho maldito serão incluídos na mesma sentença de condenação.

 

A obra do Paráclito em face dos apóstolos.

Na seqüência Nosso Senhor explica a obra de iluminação que o Espírito Santo realizará com os discípulos: Muitas coisas tenho ainda a dizer-vos: pois embora Nosso Senhor tenha dado a conhecer aos discípulos “todas as coisas que ouvi do Pai”, eles não as haviam entendido adequadamente; ainda não estavam preparados para declarações ulteriores: mas não as podeis suportar agora: em razão dos vossos preconceitos messiânicos, da vossa incapacidade mental e moral. Quando vier o Paráclito, o Espírito da Verdade, ele vos ensinará toda a verdade: i. e., sua missão será não a de ensinar verdades novas, mas a de dar – por meio de iluminações interiores – a inteligência plena das palavras de Cristo 6. Segundo isto, “toda a verdade” é a verdade integral revelada por Deus e Cristo, a qual se comunica aos homens através dos apóstolos. A revelação cristã é essencialmente apostólica. Não se pode acreditar com fé teologal em nenhuma verdade que não esteja contida no ensinamento oral ou escrito dos apóstolos.

Nestas iluminações interiores o Espírito Santo não falará por si mesmo, i. e., de seu próprio alvitre: mas dirá o que ouvir. A palavra ouvir expressa aqui a processão do Espírito Santo, pois ouvir é receber a comunicação do pensamento ou do conhecimento de outro; e em Deus, simplicíssimo em sua natureza, o pensamento ou o conhecimento é seu mesmo ser e essência; segundo isto, o Espírito Santo ouve ao receber a comunicação do conhecimento ou do pensamento de Deus, o que significa a essência ou a natureza divina 7. E vos anunciará as coisas que virão, i. e., tudo que estiver relacionado com o futuro desenvolvimento da Igreja, e em particular com o que é de mais interesse conhecer de antemão, para fins do correto desempenho do ministério apostólico 8.

 

A obra do Paráclito em face de Cristo.

À ação do Espírito Santo em face dos apóstolos se junta a que se exerce em face de Cristo. Essas relações misteriosas do Espírito Santo em relação a Jesus Cristo ocupam o restante desta seção.

Ele me glorificará: este é ao cabo o fim de toda a ação do Espírito Santo em sua missão temporal: Ele dará testemunho de Cristo, convencendo o mundo no que respeita à justiça de Cristo, elevando-o até a glória do Pai; demais a mais, uma vez que procede de Cristo, apresentar-se-á como Espírito de Cristo: porque receberá do que é meu. Nas Pessoas Divinas receber, que é igual a ouvir, é o mesmo que proceder; assim o Espírito Santo, ao receber o espírito de Cristo, proclamará a divindade de Cristo, e ainda mais concretamente a glória de Jesus ser o princípio do Espírito Santo e de toda a maravilhosa efusão de dons e variedade de carismas. E vo-lo anunciará: assim como o Filho, enviado pelo Pai, glorificou aquele que o enviou, assim também o Espírito Santo, enviado pelo Filho, glorificará aquele que o enviou. Afirma-se neste passo: a) expressamente, que o Espírito Santo procede do Filho, com a expressão “receberá do que é meu”, i. e., do que é do Filho, de sua natureza divina: ser enviado por Mim, glorificar-me, relacionar sua ação Comigo, falar de Mim, são outros tantos testemunhos de que o Espírito Santo procede realmente de Mim; b) implicitamente, que procede também do Pai, pois se diz que procede do Filho na medida em que o que é do Pai também é do Filho, i. e., na medida em que é uma só natureza que está entre ambos: Tudo o que o Pai possui, seja por domínio ou senhorio, seja sobretudo por natureza e atributos, é meu: o Pai não sou Eu, mas o que é seu – a natureza divina e os atributos dela – é meu; e como só é possível haver uma natureza ou essência divina, segue-se daí que a essência do Pai é por identidade a essência do Filho. Por outro lado, como este meu do Pai e do Filho pertence igualmente ao Espírito Santo: Por isso, disse: Há de receber do que é meu, e vo-lo anunciará, afirma-se também a consubstancialidade do Espírito Santo com o Pai e o Filho.

 

II. A tristeza presente se transformará em alegria vivíssima e imorredoura (Jo 16, 16-33).

Na primeira parte deste discurso 9, o Salvador associara a vinda do Paráclito à promessa de seu futuro retorno. Neste lugar faz o mesmo, contudo com mais vagar. Assim, depois de consolar os discípulos com a promessa do envio do Espírito Santo, consola-os agora com seu retorno próximo e sua visitação. Nesta promessa cabe distinguir duas partes: o enigma, que os apóstolos não entenderam, e a solução dada pelo Mestre.

 

Os apóstolos logo se verão privados do Mestre, mas por pouco tempo.

Ainda um pouco de tempo, e já me não vereis: este primeiro um pouco é o curto espaço de tempo que vai do momento presente até a morte e sepultamento de Jesus; passado este um pouco, i. e., morto e sepultado Jesus, os discípulos já não o vêem. E depois mais um pouco de temo, e me tornareis a ver: este segundo um pouco é o espaço de tempo igualmente curto que vai do sepultamento de Jesus até a ressurreição; passado este um pouco, i. e., ressuscitado Jesus, ve-lo-ão outra vez o discípulos. Nisso alguns dos seus discípulos perguntavam uns aos outros: “Que é isso que ele nos diz: Ainda um pouco de tempo, e não me vereis; e depois mais um pouco de tempo, e me tornareis a ver?” Repetem mecanicamente o enigma, manifestando que não compreenderam as palavras do Mestre. Mas o que desconcertava os discípulos não era bem a obscuridade do enigma, mas sua incompatibilidade com o que Jesus dissera pouco antes, e por duas vezes: E que significa também: Eu vou para o Pai? Entendendo esta frase como a entrada na glória do Pai, os apóstolos não ligavam as pontas nem adivinhavam que relação teria o retorno ao Pai com os um pouco do enigma. Diziam então: “Que significa este ‘pouco de tempo’ de que fala? Não sabemos o que ele quer dizer. O enigma é ininteligível e incoerente se os dois um pouco forem explicados em função da subida aos céus, como imaginavam os discípulos; porém, em uma coisa acertavam: da inteligência dos dois um pouco depende a inteligência de toda a passagem 10.

 

Alegria sem fim dos apóstolos, após este breve momento de tristeza.

Jesus notou, em razão de sua ciência superior, mas também com sua perspicácia natural, logo que percebeu o murmúrio dos discípulos, que lho queriam perguntar sobre o sentido do enigma, e disse-lhes: “Perguntais uns aos outros acerca do que eu disse: Ainda um pouco de tempo e não me vereis; e depois mais um pouco de tempo, e me tornareis a ver”, o que indica que os discípulos não se limitaram a manifestar sua incompreensão, mas além disso se perguntavam entre si como se haveria de entender o enigma do Mestre. A solução que o Mestre vai dar se estriba num único pensamento: o enorme contraste entre a tristeza presente e a alegria futura, que Ele vai revestindo de diferentes matizes:

 

1º. Primeiro se dá mais ênfase à tristeza futura, mas já se anuncia a alegria futura: Em verdade, em verdade vos digo: haveis de lamentar e chorar, mas o mundo se há de alegrar. E haveis de estar tristes, mas a vossa tristeza se há de transformar em alegria. Encontram-se juntas duas antíteses, a primeira sendo a preparação da segunda: a) antítese entre a vossa tristeza e o regozijo do mundo: o Mestre, longe de dissimular a tristeza dos discípulos, encarece-a, e isso de duas maneiras: pelas lágrimas e lamentos que há de provocar e pelo contraste com a alegria do mundo; b) antítese entre vossa tristeza atual e vossa alegria futura e iminente.

 

2º Logo a tristeza e a alegria vão se equivaler, com a comparação da mulher que está de parto: Quando a mulher está para dar a luz, sofre porque veio sua hora. Mas, depois que deu à luz a criança, já não se lembra da aflição, por causa da alegria que sente de haver nascido um homem no mundo. Na Escritura é freqüente a significação das dores mais veementes e repentinas com as dores do parto mas, em vez dessa comparação vulgar, o Mestre, com naturalidade e originalidade, dá-lhe um giro inteiramente novo, apresentando estas grandes dores como precursoras duma alegria maior, próxima e duradoura. Destarte essa comparação nos dá a chave para entender corretamente o duplo um pouco, que tanto intrigava os discípulos, como se lhes dissesse: Um pouco e sobrevêm as dores do parto, figura da tristeza dos apóstolos em razão da morte próxima do Mestre; outro um pouco e segue-se a alegria de ver nascido um homem ao mundo, figura da vivíssima alegria dos discípulos em razão da imediata ressurreição de Cristo.

 

3º Finalmente, após recordada a tristeza, insiste-se principalmente na alegria: Assim também vós: sem dúvida, agora estais tristes, mas hei de ver-vos outra vez, e o vosso coração se alegrará. O Mestre aplica a comparação que tirou da mulher que está de parto à tristeza presente e à alegria futura dos discípulos. A fim de apreciar a exata correspondência entre a solução e o enigma proposto, tenha-se em conta que a antítese “tristeza – alegria” desta resposta corresponde à antítese do enigma “não me vereis – me vereis”; os apóstolos sentem tristeza ante a perspectiva de não mais verem ao Mestre, ao passo que sentirão vivíssima alegria quando o revirem. e ninguém vos tirará a vossa alegria: pois a alegria inicial da Páscoa, renovada durante quarenta dias, e aumentada e sublimada com a alegria da ascensão, perdurará ao se transformar logo em alegria espiritual, que já ninguém será capaz de arrebatar. Nosso Senhor aponta duas qualidades desta alegria:

a) Por um lado será uma claridade na inteligência: Naquele dia, i. e., antes do mais o dia da ressurreição, mas não sozinho ou isolado, mas na medida em que inicia uma nova época e uma nova economia, não me perguntareis mais coisa alguma: alusão às perguntas anteriores, de Pedro, Tomé, Felipe e Judas; com isso Nosso Senhor quer significar que depois da ressurreição, com as instruções dos quarenta dias, logo esclarecidas pelas iluminações do Espirito Santo, a revelação da verdade divina será tão completa e sua inteligência tão plena que já não haveria lugar para tais perguntas, nascidas da ignorância ou da desorientação.

b) Por outro lado será uma fruição de todo os bens: Em verdade, em verdade vos digo: o que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vo-lo dará, i. e., por respeito a mim, em atenção aos meus desejos e merecimentos. Aqui 11, apesar de a oração não ser o tema principal da afirmação, ela é enaltecida e recomendada como remédio infalível ou carta branca, a fim de obter do Pai tudo o que desejarem, i. e., para alcançar a satisfação mais completa das aspirações ilimitadas do coração. Até agora não pedistes nada em meu nome: pois antes de sua morte Jesus Cristo não era ainda o Mediador perfeito entre Deus e os homens, e entre os homens e Deus, por isso os apóstolos não haviam pensado em pedir em seu nome; mas uma vez chegado aquele dia, o que se seguirá à morte e ressurreição de Cristo, os discípulos – ao aceitarem o sutil convite do Mestre – interporão o nome de Jesus em suas orações ao Pai; iniciar-se-á doravante a nova economia da oração, apresentada a Deus Pai per Dominum nostrum Iesum Christum. Pedi e recebereis, para que a vossa alegria seja completa. Com essa frase resume Nosso Senhor toda esta seção e a emenda com a precedente e com todo o Sermão, pois que a alegria completa é a síntese desta seção e de todo o Sermão, que gira à roda de dois pólos: a tristeza presente e a esperança da alegria futura.

 

III. Conclusão e recapitulação de todo o discurso.

É lícito considerar este fragmento como a peroração do formoso e profundo Sermão da Ceia. Contém ele uma recapitulação rápida, em que Jesus manifesta claramente o pensamento capital do discurso, e um curto diálogo entre Jesus e seus apóstolos, que termina com a predição da defecção deles e da vitória final de Jesus.

 

Recapitulação de todo o Sermão.

Nesta seção se repetem os dois conceitos fundamentais da seção precedente:

1º. Maior clareza da revelação: Disse-vos estas coisas, i. e., o conteúdo da seção anterior, o enigma e a comparação da mulher que está de parto, mas também todo o Sermão e todo o ensinamento anterior do Mestre, em parábolas, obscura e enigmaticamente ou com menos claridade; mas vem a hora em que não vos falarei por meio de comparações e parábolas, mas vos falarei abertamente a respeito do Pai. Essas novas palavras que Cristo lhes falará, mas não em parábolas, são as instruções dos quarenta dias que se seguiram à ressurreição. Iniciar-se-á assim uma nova economia da revelação de Cristo: até agora falara em parábolas, i. e., veladamente, à medida que as suportasse a disposição dos discípulos, cujos olhos enfermos não poderiam agüentar uma claridade maior; mas a morte e a ressurreição de Cristo abriram os olhos dos apóstolos, e assim Ele já lhes falará às claras e sem véus 12. Dos vários pontos que as instruções dos quarenta dias abarcaram, aqui o Mestre só especifica um deles: a respeito do Pai; pois, se para o Espírito Santo o único objeto de seu Magistério é o Filho, já para o Filho é o Pai: sua paternidade divina em face do Filho e  sua paternidade humana em face dos homens, seus desígnios de misericórdia, suas iniciativas na obra de reparo da humanidade. Isto é assim, pois que o Filho amoroso, sempre humilde de Coração, suspirava continuamente e se consumia pela glorificação do Pai.

2º. O despacho favorável das petições, com uma gradação digna de nota: a) as petições serão deferidas: Naquele dia, na nova era iniciada com a ressurreição de Jesus; pedireis em meu nome, exercendo a condição de discípulos meus, e já não digo que rogarei ao Pai por vós: i. e., independentemente da minha intercessão, que não faltará, faço-os saber que de per si o Pai está disposto e inclinado a acolher favoravelmente vossas petições; b) e qual a razão disso? Pois o mesmo Pai vos ama: já que o Pai contempla nos discípulos a representação, a imagem e a presença do Filho de sua dileção, ama-os de todo o coração; c) e ama-os o Pai porque vós me amastes e crestes que saí de Deus, i. e., porque me amastes, e a mim me amastes não como se Eu fosse um puro homem, mas como verdadeiro Filho de Deus. Esta última expressão dá lugar à seguinte declaração, uma síntese luminosa da vida divina e humana do Filho de Deus feito homem: Saí do Pai e vim ao mundo. Agora deixo o mundo e volto para junto do Pai. Essa frase antitética consta de dois extremos contrapostos: um descenso e uma ascensão. Sair do Pai equivale aqui à geração eterna do Filho segundo sua natureza divina; e vir ao mundo equivale à missão temporal para remir a todos os homens e se diz da mesma pessoa divina segundo sua natureza humana. Igualmente, deixar o mundo equivale à sua morte e ascensão, em razão das quais, sob diferentes aspectos, deixa de estar visivelmente no mundo; voltar para o Pai equivale à sua glorificação, que há de ser a recuperação do esplendor externo de sua glória divina e a extensão desta glória à natureza humana; ambas se dizem também da pessoa divina em relação à sua natureza humana.

 

Diálogo final: palavras de consolo

Divide-se esta seção em duas partes:

1º. Na primeira os discípulos expressam suas impressões e sua fé: Disseram-lhe seus discípulos: Eis que agora falas claramente e não dizes nenhuma parábola: a nitidez e a diafaneidade aparente da declaração anterior impressionou vivamente os discípulos e lhes deu a ilusão de que entenderam perfeitamente as palavras do Mestre; mas era só impressão, pois a linguagem sem parábolas não lhes estava prometida para agora, mas para aquele dia da ressurreição. A fé e impressão dos discípulos se baseia em três coisas: a) antes de tudo, na convicção da onisciência de Jesus: Agora sabemos que conheces todas as coisas, com uma ciência mais que humana, mais que profética – com a ciência de Deus; b) logo, no motivo em que fundam esta convicção: e que não necessitas de que alguém te pergunte, para sondar o coração humano; c) finalmente, no efeito ou na conseqüência desta convicção: Por isto, cremos que saíste de Deus: que sois o Messias anunciado, o Filho de Deus vivo que veio a este mundo.

2º. Na segunda o Mestre responde com uma branda censura e com palavras de paz e consolo: Jesus replicou-lhes: Credes agora! Depois de três anos a ouvir os meus ensinamentos e de contemplar os meus milagres? Credes deveras? Agora que ides me abandonar? Declaro-vos duas coisas: a) a primeira, vosso abandono covarde, que me deixará humanamente só: Eis que vem a hora, e ela já veio, em que sereis espalhados, cada um para seu lado, e me deixareis sozinho; b) a segunda, a serena e segura afirmação de que, sempre acompanhado pelo Pai, não ficará só e desamparado: Mas não estou só, porque o Pai está comigo. Porém, afastando esses pensamentos negros, Jesus se volta para outros pensamentos mais consoladores; b.1) pensamentos de paz: Referi-vos estas coisas para que tenhais a paz em mim. Tudo quanto Jesus disse neste discurso não pretendia perturbar ou envergonhar os apóstolos, mas antes conservá-los juntos a Ele pela fé e pelo amor que dão a paz ao espírito, pois lhes comunicam a impassibilidade dos que estão unidos a Deus; b.2) e pensamentos de consolo: No mundo haveis de ter aflições. Coragem! Aflição e bom ânimo são a síntese do Sermão: a aflição, a angústia ou a tristeza é o motivo prévio; o bom ânimo ante a perspectiva da alegria vindoura é o objetivo a que tendem todas as suas exortações e consolações. A base ou razão do bom ânimo se expressa no inciso final: Eu venci o mundo! Quem não admira a energia e a beleza incomparável desta expressão de triunfo com que encerra o discurso! E fazia tal afirmação, aparentemente estranha, no instante mesmo em que ia começar a série de humilhações e derrotas exteriores! Mas estava tão certo da vitória final, que já a enxergava como fato consumado: vencera de antemão o mundo e o inferno.

  1. 1. Assim Saulo perseguia os cristãos, como ele mesmo confessa (At. 23, 12; Gal. 1, 13-14). Desta forma se cumprirá ao pé da letra aquilo que um pouco antes Jesus dissera aos escribas e fariseus: “Eu vos envio profetas, sábios, doutores. Matareis e crucificareis uns e açoitareis outros nas vossas sinagogas. Eu os perseguirei de cidade em cidade”. (Mt 23, 34).
  2. 2. Filho e Pai são dois termos correlativos, que se exigem mutuamente; por isso, desconhecer que há um Filho em Deus é desconhecer que Deus é Pai; e desconhecer tais coisas na divindade, quando Deus se dignou a revelá-las, e desconhecer a Deus totalmente.
  3. 3. In Ioh., c. 16, lect. 3.
  4. 4. Não obstante, podemos nos perguntar o porquê disso e eleger entre as razões conhecidas as que explicam melhor a conexão de que se trata aqui. Como já se viu, a partida de Cristo compreende dois pontos de vista distintos: a morte e a ascensão corporal e  suas conseguintes ausências. Pois bem, destes dois pontos de vista era conveniente a partida de Cristo para que viesse o Paráclito. – 1º. Ausência de Cristo pela morte. Não poderia Deus nos enviar o Espírito Santo antes da morte de Cristo, sem que ela a mediasse? Não, por quatro razões: 1) da parte de Deus: sem estar reconciliado com os homens antes da consumação da redenção, Deus não estaria disposto a enviar o Espírito Santo, cuja missão há de ser o efeito principal da redenção; 2) da parte de Cristo homem: o dom do Espírito Santo faz parte de sua própria glorificação, que Ele devia merecer por sua morte cruenta na cruz; demais, Cristo devia gozar das primícias da ressurreição dentre os mortos, a qual devia realizar-se segundo o Espírito de santidade; 3) da parte da humanidade: antes da redenção, a humanidade é o “homem velho”, incapaz de receber o Espírito Santo, só podendo receber a habitação do Paráclito depois da destruição do pecado do mundo; 4) da parte dos discípulos: por causa de seus preconceitos terrenos em relação ao Reino de Deus e da obra messiânica ainda são incapazes de receber plenamente o Espírito Santo; só a morte do Mestre dissipará os preconceitos e espiritualizará a concepção messiânica. – 2º. Ausência de Cristo pela ascensão. Não poderia Jesus Cristo ressuscitado, ainda sem subir ou antes de subir aos céus, enviar ou infundir o Espírito Santo nos apóstolos? Poderia, mas não parecia conveniente, por altíssimas razões: 1) da parte de Deus: a missão do Espírito Santo o Pai e o Filho deviam realizá-la em conjunto, e para que esta missão conjunta fosse mais manifesta, era conveniente que o Filho subisse ao Pai; demais, deste modo, ressalta-se a origem e o caráter celestial do Espírito Santo: dos céus havia de descer o dom celeste; 2) da parte de Cristo: pois a glória divina de tal missão parecia exigir que quem havia de enviá-lo antes fosse alçado para partilhar da glória de Deus Pai, i. e., que Cristo recuperasse previamente toda a glória de seus divinos direitos, dos quais transitoriamente se despojara na encarnação e na paixão; ademais Cristo, a fim de ser o santificador das almas por meio de seu Espírito, devia aparecer ostensivamente – com a ascensão aos céus – como o “homem celeste”; 3) da parte da humanidade: o Espírito Santo devia dar-se aos que creram em Cristo mediante a fé; pois bem, se Cristo ressuscitado o desse ainda aqui na terra, visível aos olhos dos homens, a evidência palpável substituiria a fé ou anularia o mérito (Santo Agostinho, PL 38, 386); 4) da parte dos discípulos: porque o Espírito Santo, com ser amor incondicional, é contrário ao amor carnal; ora, os discípulos estavam apegados com certo amor carnal à humanidade de Cristo, e portanto não se elevavam com amor espiritual à divindade dele, e assim ainda não eram capazes do Espírito Santo (Santo Tomás de Aquino, In Ioh., cap. 16, lect. 2).
  5. 5. Veja-se o primeiro discurso de São Pedro no dia de Pentecostes, em que proclama ante Jerusalém a justiça do Crucificado (At. 2, 36); o discurso que segue à cura do coxo de nascimento (At. 3, 13-15), e a confissão do protomártir Santo Estevão (At. 7, 55-56).
  6. 6. Ao Paráclito corresponderá em especial: a) a iluminação das verdades já reveladas, para a maior e mais profunda inteligência delas; b) as sugestões oportunas ou a recordação das verdades previamente conhecidas; c) a dedução de conseqüências implícita ou virtualmente contidas nos princípios revelados; d) a descoberta de novas modalidades ou aspectos das verdades reveladas, talvez ainda não percebidos ou só confusamente conhecidos; e) quiçá a revelação dalguma verdade complementar ou elemento secundário, antes ignorado, dalguma verdade já conhecida; f) o direcionamento da aplicação das verdades a fatos históricos ou a revelação dalgum fato que realce ou concretize alguma das verdades reveladas; g) a inspiração de novas formulações adaptadas às novas circunstâncias históricas.
  7. 7. Emprega Jesus este verbo a fim de expressar sua divina processão a partir do Pai: “O que ouvi dele eu digo ao mundo” (Jo 8, 29), “Eu vos falei a verdade que ouvi de Deus” (Jo 8, 40).
  8. 8. O Apocalipse inteiro e muitas outras passagens de escritos apostólicos (2 Tim. 3, 2; 2 Pe. 2, 1; Jud. 17-18) demonstram o cumprimento desta promessa.
  9. 9. Jo 14, 18-20.
  10. 10. Parecia a Santo Agostinho e Santo Tomás que o final do primeiro um pouco coincidia com a ascensão, e o do segundo com a parusia ou o segundo advento do Senhor. Essa interpretação escatológica se deve a uma interpolação da Vulgata: Porque vou para junto do Pai. Essa interpretação tem sérias objeções contra si: a) antes de tudo, o primeiro um pouco (de mais de quarenta dias) e sobretudo o segundo (que já dura vinte séculos) ficam excessivamente longos, em detrimento da propriedade das palavras; b) logo, os dois um pouco seriam demasiado diferentes entre si, para que ambos se possam expressar com o mesmo termo; c) demais, a finalidade do enigma era consolar os apóstolos lhes mostrando a rapidez com que passariam da mais profunda tristeza à mais viva alegria, como se vê na comparação da mulher que está de parto; pois bem, essa consolação demoraria muito se tivessem de esperar até o fim dos séculos; d) finalmente, nesta interpretação se supõe que depois do primeiro um pouco, ou seja, a partir da ascensão, começaria para os apóstolos o tempo ou a idade da tristeza, suposição que não corresponde à realidade da alegria que os apóstolos e os discípulos já possuíam, inclusive em meio às tribulações, sem que jamais ela os abandonasse (Lc 24, 52; At. 5, 41; Rm. 14, 17; 2 Cor. 7, 4; Fil. 4, 4). – Por seu turno, a interpretação literal que damos não tem nenhum desses inconvenientes, mas antes as seguintes vantagens em seu favor: a) nela adquire importância singular a iminente ausência corporal de Jesus em razão de sua morte, que é o fundo ou tema básico de todo o Sermão; b) demais, a tristeza que o Mestre trata de mitigar com palavras e promessas é a tristeza que os discípulos realmente sentem, motivada pelo pressentimento de sua morte próxima; c) enfim, assim como a promessa de que eles o verão, e Ele a eles, dirige-se ao grupo dos discípulos enquanto corporação, por assim dizer, assim também o cumprimento da promessa há de ser igualmente corporativo. – Mas nada impede que a interpretação escatológica complete o sentido da interpretação literal, numa visão compreensiva que seja ao mesmo tempo corporal e espiritual, pois semelhante concepção é característica ao quarto Evangelho, no qual, associado o realismo ao idealismo, a verdade possui um núcleo ou foco concreto e definido, mas aureolado duma luminosidade mais difusa. Aqui o núcleo ou foco é a visão corporal de Cristo ressuscitado; a aureola que o cerca é a visão espiritual (com os olhos da alma) que a acompanha, e que logo, ao cessar a visão corporal, perdura, aviva-se e clarifica-se, até florescer na visão eternamente bem-aventurada de Cristo Deus.
  11. 11. A exemplo de Jo 14, 14 e 15, 16.
  12. 12. Este anúncio ou promessa do Mestre é de importância capital para a interpretação do Evangelho. Os evangelistas, ao reproduzir com assombrosa fidelidade as palavras do Mestre, transmitiram-nos o ensinamento anterior à morte Dele, que Ele qualificou de ensinamento por parábolas. O Mestre deu aos apóstolos, depois de sua ressurreição, o esclarecimento das parábolas, que se conservou nos escritos apostólicos e na tradição oral apostólica. Daí a grande regra hermenêutica da interpretação católica: os Evangelhos devem ser entendidos à luz da tradição oral e escrita dos apóstolos.