Artigo 5
Esperança: Promessas de Cristo aos apóstolos.
Como já se disse, o cap. 16 de São João contém a outra seção da segunda parte do discurso de despedida – trata-se do capítulo das promessas. Ali também se apresentam três idéias importantes: Jesus repete em termos mais explícitos a promessa de enviar o Divino Paráclito aos apóstolos, anuncia logo após seu retorno, e finalmente faz uma recapitulação de todo o discurso.
I. Ação do Espírito Santo em face do mundo e dos apóstolos (Jo 16, 1-15).
O Divino Mestre acabava de predizer aos discípulos as perseguições que sofreriam de parte do mundo, e de lhes falar também acerca do testemunho do Espírito Santo em seu favor. Agora ele vai versar sobre dois pensamentos: o primeiro é uma espécie de introdução, e o segundo são os detalhes da forma de ação do Espírito Santo em face do mundo, dos apóstolos e do próprio Cristo.
Introdução: perseguições que os apóstolos hão de sofrer em breve.
Essas coisas, o ódio e a perseguição do mundo, e o testemunho do Espírito Santo, vos disse para que não vos escandalizeis, para que não vos desconcerteis, nem vos deixeis dominar pela sensação de fracasso a fim de que, perdida a fé, não volteis atrás. Assinala o Mestre as duas principais formas de perseguição: a) a expulsão das sinagogas: Eles vos expulsarão das sinagogas: a expulsão era uma espécie de excomunhão, que para um judeu equivalia à proscrição e à morte civil; b) e a morte: e virá a hora em que todo aquele que vos tirar a vida julgará prestar culto a Deus: o pretexto religioso tornara a perseguição ainda mais ignominiosa: os apóstolos serão reputados homens tão ímpios e criminosos, que a morte deles será considerada um sacrifício agradável a Deus 1. Mas o motivo determinante das perseguições será outro bem diferente: o desconhecimento em relação ao Pai e ao Filho. Procederão assim porque não conheceram ao Pai, nem a mim: i. e., desconhecem os discípulos enviados, porque desconhecem o Mestre que os envia; e desconhecem o Mestre porque não o reconhecem como Filho de Deus; e desconhecer o Filho de Deus é desconhecer a Deus Pai, a Deus tal qual é 2. Disse-vos, porém, estas palavras para que, quando chegar a hora, vos lembreis de que vo-lo anunciei: i. e., para que a comprovação futura seja: a) motivo de credibilidade, que corrobore a fé dos apóstolos, quando virem a pontualidade com que se cumpriram; b) e também motivo de consolo e confiança, ao observarem a solicitude amorosa com que o Mestre os havia preparado para a hora da tentação. Eu não vo-las disse desde o princípio, porque estava convosco: embora Nosso Senhor tivesse anunciado aos discípulos que a missão deles estaria cheia de perigos, Ele não mencionara as perseguições mortais, inevitáveis e iminentes, nem insistira nisso porque a perseguição ainda era algo distante; já não agora, pois estava a ponto de deixá-los.
A obra do paráclito em face do mundo.
Nosso Senhor passa a detalhar aos discípulos a ação do Espírito Santo, de cuja vinda – segundo Santo Tomás – deviam se seguir três proveitos: o primeiro, a condenação do mundo; o segundo, a iluminação dos apóstolos; o terceiro, que vem depois, a glorificação de Cristo 3. Por isso, no que tange ao primeiro, Nosso Senhor vincula a vinda do Espírito Santo com sua partida, para logo declarar a tripla ação do Espírito Santo no mundo.
1º. A partida de Jesus está vinculada com o envio do Espírito Santo – A linha de raciocínio é gradual e progressiva: a) começa repetindo o tema fundamental do Sermão: Agora vou para aquele que me enviou; b) o efeito da partida é certa desilusão ou desencanto dos discípulos, o que lhes tira a vontade de novas perguntas: e ninguém de vós me pergunta: Para onde vais?: já não lhes acicata a curiosidade do princípio, quando Pedro e Tomé, imaginando-se talvez que partia para outras terras lhe perguntavam ingenuamente para onde ia; agora entendem que vai para a morte e tal pensamento lhes corta cerce os pensamentos messiânicos; simplesmente não perguntam por medo de saber mais; c) esta decepção anda acompanhada de profunda tristeza, nascida da falsa apreciação da realidade: Mas porque vos falei assim, a tristeza encheu vosso coração; d) a verdade, contrária a estas falsas apreciações, é que a partida do Mestre lhes interessa a eles, pois está vinculada à vinda do Espírito Santo: Entretanto, digo-vos a verdade: convém a vós que eu vá!: minha morte e minha partida não é, como vós imaginais, uma desgraça ou fracasso, nem para Mim nem para vós, mas ao contrário. Interessa-lhes a partida, entre outras razões, porque, se eu não for, o Paráclito não virá a vós; mas se eu for, vo-lo enviarei. Não declara Nosso Senhor porque tal vinda está vinculada à sua partida, mas tão-somente explica para que virá o Espírito Santo 4.
2º. Ação tripla do Espírito Santo no mundo – Para entender a explicação das palavras que seguem, há de se considerar o quadro majestoso que a eterna relação entabulada entre Cristo e o mundo nos apresenta. A humanidade inteira está dividida em duas classes irreconciliáveis, a de Cristo e a do mundo, que pleiteiam os direitos e reivindicações de Cristo. A fase humana é iminente: nela Cristo, sem advogado de defesa, será condenado pelo Sanedrim e pelos tribunais de Herodes e Pilatos, e depois crucificado: o mundo acreditará que triunfou e o processo parecerá transitado. Mas não tardará a segunda fase do processo: E Ele, o Espírito Santo, como Advogado de Cristo, quando vier, não apenas em Pentecostes, mas também nas demais manifestações sobre os cristãos, dará vitória, ante o tribunal da história, à causa de quem foi condenado pelo mundo; mudaram-se as sortes: o acusador passará à categoria de acusado e será condenado: convencerá o mundo, i e., apresentará provas convincentes, a respeito do pecado, o do mundo, da justiça, a de Cristo, e do juízo, a sentença condenatória de Satanás.
a) Convencerá o mundo a respeito do pecado, que consiste em não crer em mim: O Espírito Santo mostrará a culpabilidade do mundo - pois o mundo não acreditou em Cristo - e sobretudo a culpabilidade dos judeus, que repudiaram aquele que com obras prodigiosas lhes indicava ser o enviado de Deus. E o argumento do Espírito Santo para convencer o mundo – e especialmente os judeus - dessa realidade será o estabelecimento e a difusão universal da Igreja e a conversão dos gentios. Como os judeus ficaram confusos ao ver que Deus chamava os que antes nem sequer formavam um povo para participar de seus privilégios e dons!
b) Convencerá o mundo a respeito da justiça, porque eu me vou para junto do meu Pai e já não me vereis: Os judeus acusaram a Cristo de ser malfeitor, sedutor e blasfemo; e o motivo dessa acusação era o haver-se declarado igual a Deus. Contra tal acusação o Espírito Santo mostrará a justiça de Cristo, i. e., não apenas a inocência e a santidade dele, mas também o direito de declarar-se Enviado e Filho de Deus. A prova dessa justiça será a ressurreição de Cristo, após a qual, ao recobrar a plenitude de seus direitos e de sua glória divina, Cristo retornará ao Pai, e os olhos mortais não o verão até que volte ao mundo a segunda vez para julgar os vivos e os mortos. Os apóstolos 5 seriam os principais instrumentos e agentes do Espírito Santo nesta apologia de Cristo.
c) Convencerá o mundo a respeito do juízo, que consiste em que o espírito deste mundo já está julgado e condenado: Convencido o mundo de que é pecador e reconhecida a justiça de Cristo, termina o processo com a sentença fulminada e executada em Satanás; e isso é assim porque, por um lado, Satanás é o “príncipe deste mundo”, e por outro os mundanos, enquanto dura esta vida, sempre podem se acolher sob a misericórdia de Deus, mas aqueles que se obstinam em seguir a bandeira do caudilho maldito serão incluídos na mesma sentença de condenação.
A obra do Paráclito em face dos apóstolos.
Na seqüência Nosso Senhor explica a obra de iluminação que o Espírito Santo realizará com os discípulos: Muitas coisas tenho ainda a dizer-vos: pois embora Nosso Senhor tenha dado a conhecer aos discípulos “todas as coisas que ouvi do Pai”, eles não as haviam entendido adequadamente; ainda não estavam preparados para declarações ulteriores: mas não as podeis suportar agora: em razão dos vossos preconceitos messiânicos, da vossa incapacidade mental e moral. Quando vier o Paráclito, o Espírito da Verdade, ele vos ensinará toda a verdade: i. e., sua missão será não a de ensinar verdades novas, mas a de dar – por meio de iluminações interiores – a inteligência plena das palavras de Cristo 6. Segundo isto, “toda a verdade” é a verdade integral revelada por Deus e Cristo, a qual se comunica aos homens através dos apóstolos. A revelação cristã é essencialmente apostólica. Não se pode acreditar com fé teologal em nenhuma verdade que não esteja contida no ensinamento oral ou escrito dos apóstolos.
Nestas iluminações interiores o Espírito Santo não falará por si mesmo, i. e., de seu próprio alvitre: mas dirá o que ouvir. A palavra ouvir expressa aqui a processão do Espírito Santo, pois ouvir é receber a comunicação do pensamento ou do conhecimento de outro; e em Deus, simplicíssimo em sua natureza, o pensamento ou o conhecimento é seu mesmo ser e essência; segundo isto, o Espírito Santo ouve ao receber a comunicação do conhecimento ou do pensamento de Deus, o que significa a essência ou a natureza divina 7. E vos anunciará as coisas que virão, i. e., tudo que estiver relacionado com o futuro desenvolvimento da Igreja, e em particular com o que é de mais interesse conhecer de antemão, para fins do correto desempenho do ministério apostólico 8.
A obra do Paráclito em face de Cristo.
À ação do Espírito Santo em face dos apóstolos se junta a que se exerce em face de Cristo. Essas relações misteriosas do Espírito Santo em relação a Jesus Cristo ocupam o restante desta seção.
Ele me glorificará: este é ao cabo o fim de toda a ação do Espírito Santo em sua missão temporal: Ele dará testemunho de Cristo, convencendo o mundo no que respeita à justiça de Cristo, elevando-o até a glória do Pai; demais a mais, uma vez que procede de Cristo, apresentar-se-á como Espírito de Cristo: porque receberá do que é meu. Nas Pessoas Divinas receber, que é igual a ouvir, é o mesmo que proceder; assim o Espírito Santo, ao receber o espírito de Cristo, proclamará a divindade de Cristo, e ainda mais concretamente a glória de Jesus ser o princípio do Espírito Santo e de toda a maravilhosa efusão de dons e variedade de carismas. E vo-lo anunciará: assim como o Filho, enviado pelo Pai, glorificou aquele que o enviou, assim também o Espírito Santo, enviado pelo Filho, glorificará aquele que o enviou. Afirma-se neste passo: a) expressamente, que o Espírito Santo procede do Filho, com a expressão “receberá do que é meu”, i. e., do que é do Filho, de sua natureza divina: ser enviado por Mim, glorificar-me, relacionar sua ação Comigo, falar de Mim, são outros tantos testemunhos de que o Espírito Santo procede realmente de Mim; b) implicitamente, que procede também do Pai, pois se diz que procede do Filho na medida em que o que é do Pai também é do Filho, i. e., na medida em que é uma só natureza que está entre ambos: Tudo o que o Pai possui, seja por domínio ou senhorio, seja sobretudo por natureza e atributos, é meu: o Pai não sou Eu, mas o que é seu – a natureza divina e os atributos dela – é meu; e como só é possível haver uma natureza ou essência divina, segue-se daí que a essência do Pai é por identidade a essência do Filho. Por outro lado, como este meu do Pai e do Filho pertence igualmente ao Espírito Santo: Por isso, disse: Há de receber do que é meu, e vo-lo anunciará, afirma-se também a consubstancialidade do Espírito Santo com o Pai e o Filho.
II. A tristeza presente se transformará em alegria vivíssima e imorredoura (Jo 16, 16-33).
Na primeira parte deste discurso 9, o Salvador associara a vinda do Paráclito à promessa de seu futuro retorno. Neste lugar faz o mesmo, contudo com mais vagar. Assim, depois de consolar os discípulos com a promessa do envio do Espírito Santo, consola-os agora com seu retorno próximo e sua visitação. Nesta promessa cabe distinguir duas partes: o enigma, que os apóstolos não entenderam, e a solução dada pelo Mestre.
Os apóstolos logo se verão privados do Mestre, mas por pouco tempo.
Ainda um pouco de tempo, e já me não vereis: este primeiro um pouco é o curto espaço de tempo que vai do momento presente até a morte e sepultamento de Jesus; passado este um pouco, i. e., morto e sepultado Jesus, os discípulos já não o vêem. E depois mais um pouco de temo, e me tornareis a ver: este segundo um pouco é o espaço de tempo igualmente curto que vai do sepultamento de Jesus até a ressurreição; passado este um pouco, i. e., ressuscitado Jesus, ve-lo-ão outra vez o discípulos. Nisso alguns dos seus discípulos perguntavam uns aos outros: “Que é isso que ele nos diz: Ainda um pouco de tempo, e não me vereis; e depois mais um pouco de tempo, e me tornareis a ver?” Repetem mecanicamente o enigma, manifestando que não compreenderam as palavras do Mestre. Mas o que desconcertava os discípulos não era bem a obscuridade do enigma, mas sua incompatibilidade com o que Jesus dissera pouco antes, e por duas vezes: E que significa também: Eu vou para o Pai? Entendendo esta frase como a entrada na glória do Pai, os apóstolos não ligavam as pontas nem adivinhavam que relação teria o retorno ao Pai com os um pouco do enigma. Diziam então: “Que significa este ‘pouco de tempo’ de que fala? Não sabemos o que ele quer dizer. O enigma é ininteligível e incoerente se os dois um pouco forem explicados em função da subida aos céus, como imaginavam os discípulos; porém, em uma coisa acertavam: da inteligência dos dois um pouco depende a inteligência de toda a passagem 10.
Alegria sem fim dos apóstolos, após este breve momento de tristeza.
Jesus notou, em razão de sua ciência superior, mas também com sua perspicácia natural, logo que percebeu o murmúrio dos discípulos, que lho queriam perguntar sobre o sentido do enigma, e disse-lhes: “Perguntais uns aos outros acerca do que eu disse: Ainda um pouco de tempo e não me vereis; e depois mais um pouco de tempo, e me tornareis a ver”, o que indica que os discípulos não se limitaram a manifestar sua incompreensão, mas além disso se perguntavam entre si como se haveria de entender o enigma do Mestre. A solução que o Mestre vai dar se estriba num único pensamento: o enorme contraste entre a tristeza presente e a alegria futura, que Ele vai revestindo de diferentes matizes:
1º. Primeiro se dá mais ênfase à tristeza futura, mas já se anuncia a alegria futura: Em verdade, em verdade vos digo: haveis de lamentar e chorar, mas o mundo se há de alegrar. E haveis de estar tristes, mas a vossa tristeza se há de transformar em alegria. Encontram-se juntas duas antíteses, a primeira sendo a preparação da segunda: a) antítese entre a vossa tristeza e o regozijo do mundo: o Mestre, longe de dissimular a tristeza dos discípulos, encarece-a, e isso de duas maneiras: pelas lágrimas e lamentos que há de provocar e pelo contraste com a alegria do mundo; b) antítese entre vossa tristeza atual e vossa alegria futura e iminente.
2º Logo a tristeza e a alegria vão se equivaler, com a comparação da mulher que está de parto: Quando a mulher está para dar a luz, sofre porque veio sua hora. Mas, depois que deu à luz a criança, já não se lembra da aflição, por causa da alegria que sente de haver nascido um homem no mundo. Na Escritura é freqüente a significação das dores mais veementes e repentinas com as dores do parto mas, em vez dessa comparação vulgar, o Mestre, com naturalidade e originalidade, dá-lhe um giro inteiramente novo, apresentando estas grandes dores como precursoras duma alegria maior, próxima e duradoura. Destarte essa comparação nos dá a chave para entender corretamente o duplo um pouco, que tanto intrigava os discípulos, como se lhes dissesse: Um pouco e sobrevêm as dores do parto, figura da tristeza dos apóstolos em razão da morte próxima do Mestre; outro um pouco e segue-se a alegria de ver nascido um homem ao mundo, figura da vivíssima alegria dos discípulos em razão da imediata ressurreição de Cristo.
3º Finalmente, após recordada a tristeza, insiste-se principalmente na alegria: Assim também vós: sem dúvida, agora estais tristes, mas hei de ver-vos outra vez, e o vosso coração se alegrará. O Mestre aplica a comparação que tirou da mulher que está de parto à tristeza presente e à alegria futura dos discípulos. A fim de apreciar a exata correspondência entre a solução e o enigma proposto, tenha-se em conta que a antítese “tristeza – alegria” desta resposta corresponde à antítese do enigma “não me vereis – me vereis”; os apóstolos sentem tristeza ante a perspectiva de não mais verem ao Mestre, ao passo que sentirão vivíssima alegria quando o revirem. e ninguém vos tirará a vossa alegria: pois a alegria inicial da Páscoa, renovada durante quarenta dias, e aumentada e sublimada com a alegria da ascensão, perdurará ao se transformar logo em alegria espiritual, que já ninguém será capaz de arrebatar. Nosso Senhor aponta duas qualidades desta alegria:
a) Por um lado será uma claridade na inteligência: Naquele dia, i. e., antes do mais o dia da ressurreição, mas não sozinho ou isolado, mas na medida em que inicia uma nova época e uma nova economia, não me perguntareis mais coisa alguma: alusão às perguntas anteriores, de Pedro, Tomé, Felipe e Judas; com isso Nosso Senhor quer significar que depois da ressurreição, com as instruções dos quarenta dias, logo esclarecidas pelas iluminações do Espirito Santo, a revelação da verdade divina será tão completa e sua inteligência tão plena que já não haveria lugar para tais perguntas, nascidas da ignorância ou da desorientação.
b) Por outro lado será uma fruição de todo os bens: Em verdade, em verdade vos digo: o que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vo-lo dará, i. e., por respeito a mim, em atenção aos meus desejos e merecimentos. Aqui 11, apesar de a oração não ser o tema principal da afirmação, ela é enaltecida e recomendada como remédio infalível ou carta branca, a fim de obter do Pai tudo o que desejarem, i. e., para alcançar a satisfação mais completa das aspirações ilimitadas do coração. Até agora não pedistes nada em meu nome: pois antes de sua morte Jesus Cristo não era ainda o Mediador perfeito entre Deus e os homens, e entre os homens e Deus, por isso os apóstolos não haviam pensado em pedir em seu nome; mas uma vez chegado aquele dia, o que se seguirá à morte e ressurreição de Cristo, os discípulos – ao aceitarem o sutil convite do Mestre – interporão o nome de Jesus em suas orações ao Pai; iniciar-se-á doravante a nova economia da oração, apresentada a Deus Pai per Dominum nostrum Iesum Christum. Pedi e recebereis, para que a vossa alegria seja completa. Com essa frase resume Nosso Senhor toda esta seção e a emenda com a precedente e com todo o Sermão, pois que a alegria completa é a síntese desta seção e de todo o Sermão, que gira à roda de dois pólos: a tristeza presente e a esperança da alegria futura.
III. Conclusão e recapitulação de todo o discurso.
É lícito considerar este fragmento como a peroração do formoso e profundo Sermão da Ceia. Contém ele uma recapitulação rápida, em que Jesus manifesta claramente o pensamento capital do discurso, e um curto diálogo entre Jesus e seus apóstolos, que termina com a predição da defecção deles e da vitória final de Jesus.
Recapitulação de todo o Sermão.
Nesta seção se repetem os dois conceitos fundamentais da seção precedente:
1º. Maior clareza da revelação: Disse-vos estas coisas, i. e., o conteúdo da seção anterior, o enigma e a comparação da mulher que está de parto, mas também todo o Sermão e todo o ensinamento anterior do Mestre, em parábolas, obscura e enigmaticamente ou com menos claridade; mas vem a hora em que não vos falarei por meio de comparações e parábolas, mas vos falarei abertamente a respeito do Pai. Essas novas palavras que Cristo lhes falará, mas não em parábolas, são as instruções dos quarenta dias que se seguiram à ressurreição. Iniciar-se-á assim uma nova economia da revelação de Cristo: até agora falara em parábolas, i. e., veladamente, à medida que as suportasse a disposição dos discípulos, cujos olhos enfermos não poderiam agüentar uma claridade maior; mas a morte e a ressurreição de Cristo abriram os olhos dos apóstolos, e assim Ele já lhes falará às claras e sem véus 12. Dos vários pontos que as instruções dos quarenta dias abarcaram, aqui o Mestre só especifica um deles: a respeito do Pai; pois, se para o Espírito Santo o único objeto de seu Magistério é o Filho, já para o Filho é o Pai: sua paternidade divina em face do Filho e sua paternidade humana em face dos homens, seus desígnios de misericórdia, suas iniciativas na obra de reparo da humanidade. Isto é assim, pois que o Filho amoroso, sempre humilde de Coração, suspirava continuamente e se consumia pela glorificação do Pai.
2º. O despacho favorável das petições, com uma gradação digna de nota: a) as petições serão deferidas: Naquele dia, na nova era iniciada com a ressurreição de Jesus; pedireis em meu nome, exercendo a condição de discípulos meus, e já não digo que rogarei ao Pai por vós: i. e., independentemente da minha intercessão, que não faltará, faço-os saber que de per si o Pai está disposto e inclinado a acolher favoravelmente vossas petições; b) e qual a razão disso? Pois o mesmo Pai vos ama: já que o Pai contempla nos discípulos a representação, a imagem e a presença do Filho de sua dileção, ama-os de todo o coração; c) e ama-os o Pai porque vós me amastes e crestes que saí de Deus, i. e., porque me amastes, e a mim me amastes não como se Eu fosse um puro homem, mas como verdadeiro Filho de Deus. Esta última expressão dá lugar à seguinte declaração, uma síntese luminosa da vida divina e humana do Filho de Deus feito homem: Saí do Pai e vim ao mundo. Agora deixo o mundo e volto para junto do Pai. Essa frase antitética consta de dois extremos contrapostos: um descenso e uma ascensão. Sair do Pai equivale aqui à geração eterna do Filho segundo sua natureza divina; e vir ao mundo equivale à missão temporal para remir a todos os homens e se diz da mesma pessoa divina segundo sua natureza humana. Igualmente, deixar o mundo equivale à sua morte e ascensão, em razão das quais, sob diferentes aspectos, deixa de estar visivelmente no mundo; voltar para o Pai equivale à sua glorificação, que há de ser a recuperação do esplendor externo de sua glória divina e a extensão desta glória à natureza humana; ambas se dizem também da pessoa divina em relação à sua natureza humana.
Diálogo final: palavras de consolo
Divide-se esta seção em duas partes:
1º. Na primeira os discípulos expressam suas impressões e sua fé: Disseram-lhe seus discípulos: Eis que agora falas claramente e não dizes nenhuma parábola: a nitidez e a diafaneidade aparente da declaração anterior impressionou vivamente os discípulos e lhes deu a ilusão de que entenderam perfeitamente as palavras do Mestre; mas era só impressão, pois a linguagem sem parábolas não lhes estava prometida para agora, mas para aquele dia da ressurreição. A fé e impressão dos discípulos se baseia em três coisas: a) antes de tudo, na convicção da onisciência de Jesus: Agora sabemos que conheces todas as coisas, com uma ciência mais que humana, mais que profética – com a ciência de Deus; b) logo, no motivo em que fundam esta convicção: e que não necessitas de que alguém te pergunte, para sondar o coração humano; c) finalmente, no efeito ou na conseqüência desta convicção: Por isto, cremos que saíste de Deus: que sois o Messias anunciado, o Filho de Deus vivo que veio a este mundo.
2º. Na segunda o Mestre responde com uma branda censura e com palavras de paz e consolo: Jesus replicou-lhes: Credes agora! Depois de três anos a ouvir os meus ensinamentos e de contemplar os meus milagres? Credes deveras? Agora que ides me abandonar? Declaro-vos duas coisas: a) a primeira, vosso abandono covarde, que me deixará humanamente só: Eis que vem a hora, e ela já veio, em que sereis espalhados, cada um para seu lado, e me deixareis sozinho; b) a segunda, a serena e segura afirmação de que, sempre acompanhado pelo Pai, não ficará só e desamparado: Mas não estou só, porque o Pai está comigo. Porém, afastando esses pensamentos negros, Jesus se volta para outros pensamentos mais consoladores; b.1) pensamentos de paz: Referi-vos estas coisas para que tenhais a paz em mim. Tudo quanto Jesus disse neste discurso não pretendia perturbar ou envergonhar os apóstolos, mas antes conservá-los juntos a Ele pela fé e pelo amor que dão a paz ao espírito, pois lhes comunicam a impassibilidade dos que estão unidos a Deus; b.2) e pensamentos de consolo: No mundo haveis de ter aflições. Coragem! Aflição e bom ânimo são a síntese do Sermão: a aflição, a angústia ou a tristeza é o motivo prévio; o bom ânimo ante a perspectiva da alegria vindoura é o objetivo a que tendem todas as suas exortações e consolações. A base ou razão do bom ânimo se expressa no inciso final: Eu venci o mundo! Quem não admira a energia e a beleza incomparável desta expressão de triunfo com que encerra o discurso! E fazia tal afirmação, aparentemente estranha, no instante mesmo em que ia começar a série de humilhações e derrotas exteriores! Mas estava tão certo da vitória final, que já a enxergava como fato consumado: vencera de antemão o mundo e o inferno.