Artigo 6
Oração sacerdotal de Nosso Senhor Jesus Cristo.
O Sacerdote Eterno está prestes a consumar o maior sacrifício de todos os séculos, o único sacrifício da nova e eterna Aliança. Este sacrifício estava preludiado na consagração do pão e do vinho no Cenáculo e logo se reproduzirá sacrificialmente na Missa cristã; mas o sacrifício eucarístico, anterior ou posterior, outro não é senão o único sacrifício da cruz, misticamente preludiado ou renovado. O que deseja conseguir com este sacrifício, pede-o Jesus previamente nesta oração sacerdotal, fiel expressão de seus ideais, aspirações e anelos. Em primeiro lugar roga por Si, logo após roga pelos apóstolos ali presentes, e enfim roga pela futura Igreja universal; este tríplice rogo revela o ideal de sua própria glorificação, o ideal do apostolado e o ideal da Igreja cristã. Suas palavras são ao mesmo tempo oração e ensinamento.
I. Jesus roga ao Pai por Si mesmo (Jo 17, 1-5).
Jesus afirmou essas coisas: terminado o arrazoado do Mestre, vai seguir-se a oração do Pontífice; ao grito de triunfo com que Jesus encerrava o discurso, segue a ardente oração pontifical de Jesus, que é a mais extensa dentre as que nos legou o Divino Mestre: e levantando os olhos ao céu, sinal de elevação espiritual, de comunhão com Deus, disse:
Cristo conjura ao Pai a que O glorifique agora que cumpriu sua missão.
Esta passagem consta de dois períodos inversamente paralelos, separados por uma declaração. Em cada um dos períodos extremos se expressam duas coisas: a) uma petição, a glorificação futura do Filho; b) e uma motivação, que é o cumprimento da missão confiada ao Enviado. No primeiro período a motivação comparativa segue-se à petição; no segundo, precede-a. Poderíamos sintetizar toda esta passagem do seguinte modo:
Glorifica teu Filho – para que teu Filho glorifique a ti:
Como glorificaste a teu Enviado – para que a todos dê vida eterna:
vida eterna, que é conhecimento de Deus e de seu Enviado.
Agora, Pai, glorifica-me – com a glória que tive antes.
1º. Primeiro pedido de glorificação – Pai: fala o Filho, e fala filialmente ao Pai celestial. É chegada a hora, a hora da sua morte, seguida da pronta ressurreição. Glorifica teu Filho. Esta é a idéia fundamental da oração que faz por Si. Essa glorificação de Cristo, que se há de realizar na ressurreição e na ascensão, tem dois aspectos: a) é como uma reabilitação ou recuperação de sua glória divina; b) é também uma exteriorização ou prolongamento desta glória eterna à sua sagrada humanidade. Para que teu Filho glorifique a Ti. A glorificação de Deus é a finalidade do envio do Filho, e tem um sentido muito amplo, já que pode designar o conhecimento de Deus, ou a difusão deste conhecimento entre os homens, e a vida eterna, que é aquilo em que consiste tal conhecimento; mas de qualquer modo que se entenda isso, para a glorificação do Pai era indispensável a glorificação de Cristo, já que Jesus Cristo deu como credencial da sua missão divina a ressurreição, e só através dela há de poder igualmente promover a partir do céu a glória do Pai, glória que há de se dar pela proteção dos continuadores de sua obra.
2º. Motivação do primeiro pedido – Pelo poder que lhe conferiste sobre toda a carne, i. e., o tríplice poder que Jesus Cristo – como Enviado e glorificador do Pai – recebe a fim de cumprir sua missão: o poder de império, porque é o Rei dos Reis; o poder de magistério, porque é o Profeta por antonomásia; e o poder de sacerdócio, porque é o Sumo Sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque. Para que ele dê a vida eterna a todos aqueles que lhe entregaste. O Pai dá a Jesus Cristo duas coisas: a soberania e os súditos, a realeza e o reino; e a finalidade proposta nesta dupla doação é a de que Jesus Cristo dê a todos a vida eterna. Dito doutro modo, o objeto ou a finalidade de seu império, de seu magistério e de seu sacerdócio é a vida eterna dos vassalos, dos discípulos e do povo. – A conexão deste versículo com o anterior é de comparação matizada e de causalidade. Disse Jesus: Porque me glorificaste, dando-me o poder sobre todos os homens, para que Eu lhes dê a vida eterna, agora, conforme a missão que me encomendaste e pela fidelidade com que Eu a desempenhei, glorifica-me Tu, Pai, para que minha glorificação redunde em glória tua; i. e., para que minha ressurreição, ao comprovar a verdade da minha missão divina, seja motivo de credibilidade, e os homens, ao acreditarem em Mim e conhecendo-te a Ti, glorifiquem-te e alcancem a vida eterna.
3º. Parêntesis – Eis a vida eterna, começada nesta vida pela fé, consumada na glória pela visão final: que te conheçam a ti, um só Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, i. e., a Jesus Messias, que enviaste. Jesus é o nome de sua pessoa; Cristo ou Messias é o título do ofício ou missão. Note-se aqui como Jesus se põe no mesmo nível do Pai, no que respeita à vida eterna, porque é Deus como Ele; assim, a vida eterna não exige apenas o conhecimento de Deus, mas também o de Jesus Cristo na qualidade de Enviado de Deus, para que é necessário: a) antes de tudo, reconhecer sua missão divina, seus poderes e suas credenciais, e reconhecer que foi Deus quem o enviou; b) logo, conhecer e seguir o caminho da verdade e da vida que Ele ensinou; c) finalmente, conhecer sua obra de salvação: a redenção e a Igreja, seus delegados e suas instituições.
4º. Motivação do segundo pedido – Eu te glorifiquei na terra. Terminei a obra que me deste para fazer. O Filho glorificou ao Pai ao cumprir fielmente a sua missão e dando-lhe a conhecer aos homens. Eu cumpri a obra do magistério, fundei as bases da obra da redenção humana, segundo a ordem que recebi do meu Pai. Assim, a única aspiração de toda a sua vida foi a realização da obra de Deus.
5º. Segundo pedido de glorificação – Agora, pois, Pai, glorifica-me junto de Ti: Jesus fala como Filho de Deus em sua natureza humana, e pede para ser elevado e compartilhar a glória de Deus Pai. Concedendo-me a glória que tive junto de Ti, antes que o mundo fosse criado. Afirmação de clareza meridiana da preexistência divina de Cristo. Como Filho de Deus, que existe eternamente na forma de Deus e tem o estrito direito de ser tão adorado quanto a Deus Pai, ao fazer-se homem poderia apresentar-se aos homens tal qual era e ser tratado segundo a estatura da sua divina pessoa; não obstante, em virtude da sua bondade inefável e humildade, quis despojar-se da auréola de divindade a que tinha direito e assumir a forma de escravo, aparecendo aos olhos do mundo como se fora um homem ordinário. Agora ele pede, pois, que o Pai lhe restitua a glória exterior de que se despojou voluntariamente e a comunique à sua humanidade.
II. Cristo reza pelos apóstolos.
Depois de rogar pela própria glorificação, e antes de orar pela futura Igreja, roga Jesus pelos discípulos ali presentes, mediadores e traço de união entre Cristo e sua Igreja. Agora eles são para Jesus a representação viva da Igreja, como mais tarde serão para a Igreja a representação viva de Jesus. Por eles o Mestre se consumira por três anos e, neste momento, ao tê-los de deixar visivelmente, encomenda-os encarecidamente ao amor e ao cuidado do Pai celestial. Esta oração contém uma introdução, na qual o Senhor – ao rogar pelos seus – arrazoa os motivos pelos quais o Pai a ouça, e uma série de petições que faz em nome dos apóstolos.
Introdução: razões por que esta oração merece ser ouvida.
1º. Jesus recomenda os discípulos – a) Primeira razão: Jesus ensinou aos apóstolos a conhecer ao Pai e, deste modo, a glorificá-lo. Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me deste. Dirigia-se a revelação de Jesus Cristo a todos os homens, mas de imediato apenas aos discípulos ali presentes; estes, por sua vez, receberiam a missão de transmiti-la a todos os demais; b) Segunda razão: quem é apóstolo, é apóstolo do Pai e de Jesus, e este é um título suficiente para que os ouçam. Eram teus e deste-mos; c) Terceira razão: os apóstolos receberam docilmente os ensinamentos de Jesus: e guardaram a tua palavra, i. e., receberam-na como palavra tua, e como tal creram nela e guardaram-na em seus corações, considerando-a a expressão da verdade, a luz e a norma de vida.
Na continuação o Mestre desenvolve esta última razão: Agora eles reconheceram que todas as coisas que me deste procedem de Ti. Aqui assinala o Mestre quatro coisas: a) as prerrogativas de Cristo materialmente consideradas: Todas as coisas que me deste, i. e., minha dupla qualidade de Cristo, como Filho de Deus e Enviado de Deus, com todos os atributos e poderes inerentes a esta dupla qualidade; b) a origem divina das prerrogativas: Procedem de Ti, embora de modo distinto: a qualidade de Filho de Deus provém do Pai por geração natural, enquanto o envio em missão lhe provém por livre determinação ou disposição de Deus; c) o conhecimento que os discípulos tem disso tudo: Eles reconheceram; d) a novidade deste reconhecimento: Agora.
Jesus logo esclarece a razão deste reconhecimento dos apóstolos, assinalando as três primeiras características da revelação divina: a) sua origem primeira é o Pai celestial: As palalavras que tu me confiaste; b) seu transmissor, aquele que a trouxe dos céus à terra, é Jesus Cristo: Eu lhes transmiti; c) seus destinatários imediatos são os apóstolos: e eles as receberam. Deus dispôs esta ordem ou gradação para que fosse ela observada em toda a economia da redenção humana, cuja iniciativa corresponde – por apropriação – ao Pai, e cuja execução corresponde a Jesus Cristo – o Mediador da Graça –, e cujos depositários e dispensadores são os apóstolos. E reconheceram verdadeiramente que saí de Ti, e creram que Tu me enviaste: é o fruto da docilidade com que aceitaram a procedência divina de Cristo e a missão que recebera do Pai. Os dois verbos – reconheceram e creram – apontam os dois aspectos ou modalidades do ato de fé, que é por sua vez um conhecimento e uma adesão da mente; por seu lado, os complementos expressam duas fases da origem divina de Jesus Cristo: a origem natural da procedência divina ou geração: que saí de Ti, e a origem moral ou jurídica da missão divina: que Tu me enviaste.
2º. Roga por eles, e não pelo mundo – Jesus declara aqui dois pontos: por quem roga e por que motivos. a) Por quem roga: Por eles é que eu rogo, i. e., pelos discípulos ali presentes, contradistintos daqueles que logo acreditarão na sua palavra; e Nosso Senhor realça essa afirmação ao dizer: Não rogo pelo mundo, que assim como é incapaz de receber o Espírito Santo, assim é incapaz de aproveitar minha oração, mas por aqueles que me destes. b) Por que motivos roga por eles: Antes de tudo, porque o Pai os escolhera, e porque assim pertenciam ao Pai Cristo roga por eles: porque são teus; logo, porque são do Pai, por conseguinte são também de Cristo, porquanto exista uma paridade perfeita de domínio e de reciprocidade de posse entre o Filho e o Pai: Tudo o que é meu é teu, e tudo o que é teu é meu; finalmente, porque Cristo foi glorificado neles: Neles sou glorificado, segundo o sentido duplo de glória: em sentido de louvor, i. e., porque deles recebi a glória que eles me tributaram com sua fé, reconhecendo minha missão e filiação divinas; e em sentido de esplendor, porque apareci a seus olhos revestido da minha glória divina, que os envolveu e neles se reflete.
O que pede Jesus para o Colégio Apostólico
Em sua oração para os discípulos ali presentes Jesus dá uma idéia magnífica do que seja o apostolado. Esta passagem apresenta dois pontos de vista: o que são os apóstolos e o que devem ser, e o que o Divino Mestre já fez por eles e o que deles deseja. a) O que são: decorre do efeito da ação tripla do Mestre sobre eles: ensinamento (Jesus lhes comunicou a palavra de Deus, que eles receberam com docilidade), oração (Jesus rogou e roga ainda repetidas vezes por eles), consagração (Ele se imola e consagra por eles); b) O que devem ser: o Mestre deseja dos discípulos três coisas e pede por eles ao Pai: unidade (deseja que sejam nela conservados), proteção (pede que sejam preservados do espírito maligno e de toda influência mundana), consagração (ansia para que sejam consagrados na verdade).
1º. Pede ao Pai que os guarde, a fim de que sejam um – Já não estou no mundo: sua partida do mundo é tão iminente, que Jesus fala dela como de algo já acontecido; o efeito da partida será a solidão e o desamparo em que ficarão os discípulos: mas eles ainda estão no mundo; eu, porém, vou para junto de Ti. Essa solidão é o que motiva os cuidados do Mestre e o demove a rogar por eles, pedindo ao Pai que doravante lhes vele e ampare. Pai, diz, aumentando com esse título a premência da súplica, Santo, em contraposição à profanidade e à corrupção do mundo, guarda-os em teu nome, i. e., por quem és, pelo nome de Pai que tanto prezas, que me encarregaste de fazer conhecer. A finalidade desta, que o Filho pede ao Pai em favor dos discípulos, é altíssima: a fim de que sejam um como Nós. Esta finalidade compreende duas coisas: a) a unidade dos discípulos: ao Mestre não basta a união de discípulos, ele quer a unidade: unidade de pensamentos e afetos, de critérios e interesses; b) e a semelhança desta unidade com a que existe entre as pessoas divinas: a unidade dos discípulos há de ser tal que emule no que for possível a unidade essencial que ata com laços indissolúveis e funde num só amor e numa só vida ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.
Insiste Jesus na necessidade de que o Pai o ouça em favor dos seus, pois que Ele já não o poderá fazer pessoalmente: Enquanto eu estava com eles, durante os três anos em que convivi com eles, eu os guardava em teu nome, por respeito a TI e em atenção ao que Tu me havias encomendado; conservei os que me deste, como que tomando teu lugar, sensibilizando tua providência paternal, velando por eles e preservando-os do perigo; e nenhum deles se perdeu, i. e., minha vigilância não ficou malograda nem frustrada, exceto o filho da perdição, aquele que em razão da sua perversidade e obstinação estava condenado irremissivelmente a perecer, para que se cumprisse a Escritura, devido à divina previsão do pecado de Judas. Mas, agora, vou para junto de ti, como se dissesse: agora que deixo o mundo e minha vigilância solícita lhes vai faltar, toma-os Tu a teu cargo, e como que tomando meu lugar guarda-os de todo o mal, livra-os dos assaltos violentos do mundo e preserva-os de seu influxo pernicioso e do malígno espírito tenebroso que o domina. Dirijo-te esta oração enquanto estou no mundo, na presença deles e ouvindo-os, para que, seguros de que Tu os guardarás com a mesma solicitude com que Eu o fiz até agora, tenham a plenitude da minha alegria.
2º. Pede ao Pai que os preserve do inimigo maligno – O pensamento principal destes versículos é o preservá-los do mal, que vem a ser uma determinação mais particular e concreta de guardava-os em teu nome. O encadeamento das ideias que motivam tal preservação é: preservá-los do mal, porque o mundo os aborreceu; e os aborreceu porque eles não são do mundo; e não são do mundo, porque Dei-lhes a tua palavra, as quais eles aceitaram; e o mundo aborrece minha palavra, porque Eu não sou do mundo. Dei-lhes a tua palavra, mas o mundo os aborrece. Ao expressar que a comunicação da palavra de Deus aos discípulos era motivo de aborrecimento do mundo, supõe o Mestre duas coisas, que já havia declarado antes: a) a primeira, que os discípulos haviam acolhido a palavra do Mestre como palavra de Deus; b) a segunda, que sua palavra contraria os critérios e os gostos do mundo. Porque eles não são do mundo: nascidos no mundo e nele educados segundo seus ditames, a misericórdia os arrancou de lá, subtraiu-os de seu ambiente e de sua influência maléficos e os submeteu à influência benéfica do Mestre; assim, já não são do mundo, como também Eu não sou do mundo: pois Jesus Cristo é o primeiro exemplar do espírito antimundano, o “homem celestial”, que do céu trouxe uma nova sabedoria, que não é deste mundo e que é um regalo do seu Espírito, que não é um espírito do mundo. Não peço que os tire do mundo: embora moralmente fora do mundo, os discípulos não devem sair dele materialmente, mas antes serem enviados a ele a fim de sejam a luz do mundo, a exemplo do Mestre; mas sim que os preserves do mal, i. e., do espírito maligno, do diabo, que é o príncipe deste mundo. Podem-se entender duas coisas desta preparação: a) a primeira, que os apóstolos sejam preservados do espírito mundano da soberba, cobiça e sensualidade; b) a segunda, que os ampare e proteja para que não sucumbam antes do tempo às emboscadas e violências dos mundanos que, açulados por Satanás, hão de se obstinar em interpor obstáculos à ação apostólica e ainda em atentar contra a vida deles.
3º Pede ao Pai que os consagre na verdade – Nestas linhas ressaltam cinco idéias: a consagração dos discípulos, a verdade, a palavra de Deus, a missão apostólica e a consagração de Cristo. A consagração dos discípulos, que abre e fecha esta passagem, é a idéia dominante que a caracteriza e unifica. As outras quatro idéias, agrupando-se em torno da consagração, a motivam, matizam ou completam sob diferentes aspectos. A verdade é como o ambiente ou esfera em que se desenvolve a consagração; a concretização ou a realização objetiva desta verdade é a palavra de Deus; a missão apostólica é a motivação histórica da consagração: para que desempenhem dignamente tal missão deverão os discípulos ser consagrados na verdade; por fim, a consagração de Cristo é a condição prévia, a origem e o ideal da consagração dos discípulos.
Eles não são do mundo, como Eu também não sou do mundo. Estou separado do mundo, por causa da minha origem celeste; já vós, devido a um privilégio misericordiosamente outorgado. Consagra-os pela verdade. A consagração é – pressuposta a pureza ou a purificação prévia, que é a base dela – a dedicação, a destinação ou a entrega duma pessoa ou coisa ao serviço exclusivo de Deus, e ao mesmo tempo o caráter sagrado com que fica investida esta coisa ou pessoa consagrada. A verdade é aqui a realidade do mundo divino, a ordem sobrenatural objetiva, a economia da graça, que consiste na elevação do homem à participação da vida divina; assim entendida, a verdade não se contrapõe apenas à ficção e à mentira, mas também às sombras e figuras. A palavra de Deus é o Evangelho, a revelação divina. Por estas palavras, pois, Nosso Senhor: a) pede ao Pai, uma vez que os apóstolos já estão separados do mundo, que os consagre totalmente ao serviço deste ofício celeste e ao mesmo tempo os dote das virtudes e disposições necessárias para o perfeito cumprimento deste dever; b) pede também que esta santificação se realize não num mundo de figuras e sombras – a exemplo do Antigo Testamento – mas na esfera das realidades divinas (sentido local: dentro da verdade), sob a ação dos princípios santificadores que pertencem a esta nova economia (sentido instrumental: por meio da verdade); c) indica a que verdade devem os apóstolos se consagrar e por que serão santificados: a palavra de Deus, que é a que Nosso Senhor trouxe do Pai e comunicou aos discípulos (sentido conseqüente da finalidade: para a pregação da verdade), e que exige que Deus consagre os apóstolos, de modo semelhante à santificação do Filho pelas mãos do Pai, quando o Pai enviou o Filho ao mundo. É o tópico que o Mestre desenvolve na continuação.
Como Tu me enviaste ao mundo, Eu também os enviei ao mundo. A missão ou o envio apostólico tem por objeto transmitir e fazer chegar a todo o mundo a palavra de Deus e a mensagem de Jesus Cristo. Nesta passagem se ensina duas coisas: a) a primeira, que a consagração dos apóstolos na verdade tem por objeto sua missão apostólica: dentro do mundo das realidades divinas, trata-se duma destinação e disposição prévia para o desempenho desta altíssima missão, que está ordenada ao anúncio e à divulgação da verdade divina, que é a palavra de Deus; b) a segunda, que a missão dos apóstolos se equipara analogicamente à missão de Cristo: embora não haja entre elas identidade ou igualdade, ambas tem por objeto anunciar e testemunhar a palavra de Deus, razão por que dizia Jesus Cristo: “Para isto vim ao mundo, para dar testemunho da verdade” 1.
Consagro-me por eles para que também eles sejam consagrados pela verdade. A consagração de Cristo é a unção de seu sangue; já santificado pela união hipostática e pela plenitude do Espírito Santo, Cristo se consagra a Si mesmo pela oblação e imolação do sacrifício da cruz, que o constitui em princípio de santificação e autor ou causa de salvação eterna. Todavia, esta consagração não foi um ato isolado, mas a atitude constante de toda a vida de Jesus: a total e absoluta entrega ao serviço do Pai celestial e o cumprimento fidelíssimo da divina vontade da Primeira Pessoa da Santíssima Trindade, que finalmente culminou na imolação cruenta no Calvário, em obediência ao mandamento recebido do Pai – o de dar a vida pelos homens. Entendido isto, aprendemos ainda mais duas coisas: a) a primeira, que o sacrifício supremo de Jesus, na medida em que Ele se consagra a Si mesmo, realizou-se em benefício dos discípulos, para que também eles sejam consagrados na verdade, i. e., para que sejam purificados e destinados à sua altíssima missão; b) a segunda, que o envio dos apóstolos é análogo ao de Cristo, i. e., reveste-se por sua vez dum caráter sacerdotal e sacrificial, e que a obra do apostolado é uma imolação constante, que prolonga e perpetua o sacrifício de Cristo, recebendo dessa imolação o aspecto sacrificial e a eficácia santificante, quer para os apóstolos que o exercem, quer para aqueles em quem se exerça a imolação.
III. Cristo reza pro todos os cristãos do futuro.
Jesus, nesta terceira parte da oração sacerdotal, após rogar ao Pai por Si mesmo – pedra inamovível da Igreja – e pelos apóstolos – fundamentos e colunas da Igreja – roga pela sociedade santa que dali a pouco vai nascer do seu flanco pegado à cruz. Pede para ela o dom da unidade e a felicidade bem-aventurada, e enfim acrescenta a conclusão e a recapitulação da oração.
Pede a unidade para a Igreja.
Os versículos seguintes formam dois ciclos paralelos bastante semelhantes, cuja correspondência pode expressar-se graficamente da seguinte forma:
Rogo pelos que creem em Mim
que todos sejam um
como Tu em Mim e Eu em Ti
para que o mundo creia...
Dei-lhes a glória que me destes
para que sejam um
Eu neles e Tu em Mim
para que o mundo conheça...
Em ambos os ciclos se destacam quatro elementos principais: a) um ato de Cristo: a oração ou a comunicação da sua glória; b) um objeto imediato: a unidade; c) a base desta unidade: a imanência recíproca em Cristo; d) uma finalidade remota: a fé e o conhecimento da missão divina de Cristo.
1º. Primeiro ciclo: a oração de Cristo por todos os crentes – Não rogo somente por eles, mas também por aqueles que por sua palavra hão de crer em Mim. Ultrapassando o estreito círculo dos discípulos ali presentes, Jesus estende seu olhar e sua oração aos que mais à frente acreditariam Nele mediante a pregação apostólica, que há de ser o meio ordinário para transmitir a doutrina da fé, que vem pelo ouvido. O que Ele pede aos futuros crentes é o dom inestimável da unidade: Para que todos sejam um: todos expressa universalidade absoluta, sem distinção de raças, línguas, povos e nações; um expressa a plenitude de unidade que deve existir entre eles 2. O grau de intimidade desta união está expressa mediante a comparação com a união mais alta, íntima e perfeita que se possa imaginar: a que existe entre Ele e o Pai: Assim como Tu, Pai, está em Mim e Eu em Ti, para que também eles estejam em Nós. Perante a unidade divina, a unidade dos fiéis precisa manter uma relação dupla: a) relação de imitação: O Pai e o Filho são tão unos, que tem a única e mesma natureza; pois bem, a unidade dos fiéis deve emular a unidade divina; b) e relação de participação: por meio da fé e da graça se estende aos fiéis de certo modo a natureza divina, entrando assim em primeiro lugar em comunhão com o Pai e seu Filho Jesus Cristo e, através dessa união, em nós, entabulando uma união recíproca entre uns e outros. Na mente de Nosso Senhor, esta unidade maravilhosa – que é a nota característica da religião de Jesus Cristo – será um motivo irrecusável de credibilidade, pois que é tão superior às forças humanas que somente um milagre da divina onipotência o lograria: e o mundo creia. Os que contemplam assombrados essa unidade hão de acreditar que tu me enviaste: a missão divina ou a legação de Jesus Cristo.
2º. Segundo ciclo: a comunicação da glória de Jesus Cristo – À oração de Cristo se associa agora a ação. Disse Jesus: Dei-lhes a glória que me destes. A glória que o Filho recebe do Pai é a de estar Ele com o Pai e o Pai com Ele; e Ele comunica – proporcionalmente – aos homens esta glória, e permanece com eles e eles Nele. Trata-se, pois, da filiação divina, e em especial da graça santificante que, sendo um consórcio ou uma participação da natureza divina, é realmente a glória que Jesus Cristo recebe do Pai e transmite aos homens, e que pressupõe uma imanência recíproca de Deus no homem e do homem em Deus. O objeto desta comunicação serve para que sejam um, como Nós somos um, encarecendo pela segunda vez a unidade dos fiéis enquanto reprodução e extensão da unidade substancial que existe entre as pessoas divinas; assim, a finalidade da comunicação gloriosa coincide com a finalidade da oração antes expressada. O fundamento desta unidade é a imanência em Deus: Eu neles e Tu em Mim, i. e., Eu neles e eles em Mim, Eu em Ti e Tu em Mim, de modo que Cristo é o elemento comum desta dupla imanência, cada uma das quais começa e termina com Cristo. O fruto desta imanência em Deus é a perfeição na unidade: para que sejam perfeitos na unidade, da qual brotarão dois bens: o reconhecimento do mundo acerca da missão divina de Jesus, que produziu tal maravilha: e o mundo reconheça que me enviaste; e a ponderação sobre o amor de Deus pelos homens, que fora tão grande que conseguiu unir Deus e os homens, de forma análoga à união entre o Pai e o Filho: e os amaste, como amaste a Mim.
Pede a glória e a felicidade eternas para todos os fieis cristãos.
Ao passo que Jesus pedia nos versículos precedentes a unidade dos discípulos, baseada na imitação e na participação da unidade divina, neste versículo pede a comunhão de glória entre os homens e Jesus Cristo, glória que – associando-se à de Jesus Cristo – há de ser a contemplação bem-aventurada da glória que Deus Pai deu ao Filho feito homem.
Começa a nova petição com a doce invocação de Pai, que é palavra de Filho e expressão de intimidade e confiança, manifestando fielmente uma vontade firme: quero; manifesta ainda por quem roga e porquê: a) por quem: que aqueles que me deste, i. e., todos os que o Pai lhe deu, que são os discípulos todos, presentes e vindouros; e roga precisamente por eles pois que o Pai lhes deu a Ele e os pôs em suas mãos; b) que pede: estejam comigo, como se o Mestre não fosse plenamente feliz sem a doce companhia de seus queridos discípulos; onde eu estou: i. e., donde vou partir dentro em pouco, para ir ao Céu, que é a casa do Meu Pai, onde há muitas moradas – que vou preparar, assim que Eu for embora – destinadas para os discípulos; para que vejam a minha glória que me concedeste: o Mestre desvela aos olhos dos discípulos, com uma perspectiva luminosa, a bem-aventurança celestial, que há de ser a contemplação da glória de sua divindade, comunicada à sua humanidade, de modo que: a) por um lado, será a glória mesma de Deus, a glória da natureza divina, que o Filho de Deus recebe do Pai pela geração eterna; b) mas, por outro lado, há de ser também a glória de Deus na medida em que se estenda ela do Filho ao homem: a visão intuitiva de Deus e de sua essência divina se concentrará na visão do Deus-Homem. Porque me amaste antes da criação do mundo. No influxo deste amor, o que o Pai entrega ao Filho – segundo a opinião assente dos teólogos – é a comunicação da glória divina à sua natureza humana, é a predestinação eterna – que nasceu do amor – de Jesus Cristo homem à união hipostática.
Conclusão e recapitulação da oração de Jesus.
Jesus estava recordando a glória divina que lhe dera o Pai e o amor inefável com que lhe amara eternamente. Emocionadíssimo com tais pensamentos e ardendo em anelos de que um tal Pai seja conhecido de todos, baixa os olhos à terra e vê que no mundo o Pai não é conhecido, como seria de justiça. A visão deste desconhecimento funesto lhe arranca a Ele um gemido de dor: Pai justo, o mundo não te conheceu! Jesus apela à justiça do Pai, a qual a justo título tem direito de exigir, e conjura que o Pai julgue os seus e o mundo; aqui mundo se refere ao mundo judeu e sobretudo aos chefes, que se deveras tinham algum conhecimento de Deus, tal como Ele se manifestou no Antigo Testamento – já haviam demonstrado o desconhecimento do Pai que se manifestava no Filho Jesus Cristo.
A dor deste ultraje provoca o desejo de repará-lo: ao desconhecimento do mundo opõe o conhecimento filial: mas Eu te conheci; e a este conhecimento o Mestre associa, também como reparação pela incredulidade judaica, aquilo que os discípulos vislumbraram do Pai: e estes sabem que Tu me enviaste: conhecendo-me a Mim como enviado teu, eles te reconheceram a Ti como aquele que me enviou. Manifestei-lhes o teu nome: já havia três anos que Jesus dedicara-se a manifestar aos discípulos quem era Deus, i. e., o Pai misericordioso que enviara o Filho ao mundo para que todo aquele que Nele crer não pereça mas tenha a vida eterna; e ainda hei de lho manifestar novamente, nas manifestações ou ensinamentos dos quarenta dias que vão se seguir à minha ressurreição, e nas iluminações do Espírito Santo no dia de Pentecostes, para que o amor com que me amastes esteja neles. Aqui ensina Jesus três coisas sobre o amor do Pai pelos discípulos: a) antes de tudo, que é o efeito do conhecimento prévio que tem eles Dele enquanto Pai; b) logo, sua natureza, como extensão ou prolongamento do amor com que o Pai ama ao Filho unigênito: já que o Pai não pode amar nada fora do Filho, Ele nos contempla como coisas e membros de Jesus Cristo, e assim nos ama a nós como ama a seu Filho dileto; c) finalmente, a permanência deste amor nos discípulos. E Eu neles. Depois desta petição suprema, “Jesus Cristo já não tem mais nada a nos dar. Por isso, depois de com infinita ternura pronunciar esta notável e venturosa palavra – E Eu neles – encerra a oração. Só lhe resta agora partir e consumá-la com seu sacrifício”.