Skip to content

Artigo 4: Caridade - Exortações de Cristo aos apóstolos

Artigo 4: Caridade - Exortações de Cristo aos apóstolos

Chegamos à segunda parte do discurso de despedida, pronunciada a caminho do Getsêmani, em que encontramos a mesma nobreza de pensamentos e sentimentos, o mesmo tom cheio de ternura e a mesma sóbria emoção. Divide-se em duas seções: Na primeira, correspondente ao cap. 15 de São João, expõe Nosso Senhor quais serão as relações futuras dos apóstolos com Ele, entre si e com o mundo. Resume-se a contento esta seção em três palavras: União, Comunhão, Separação.

 

I. Alegoria da videira ou união de Cristo com os apóstolos

A idéia da união entre Jesus e os apóstolos já ficou dita mais acima; ali a tarefa principal pertencia a Jesus, enquanto agora a parte mais ativa se adjudica aos discípulos. Esta união, fecundíssima em frutos de benção, será mais necessária que nunca depois da partida do Mestre. Nosso Senhor a expressa com a admirável alegoria da videira e dos sarmentos, na qual não se sabe o que há de mais admirável: se o vigor ou a beleza delicada1.

Há duas partes nesta alegoria: primeiro se afirma a união que os sarmentos tem de manter com a videira, e logo se indica o meio de estabelecimento desta união, que é nada mais que a caridade.

 

A videira e os sarmentos

Literariamente duas frases se sobressaem e dominam: uma afirmação – “Eu sou a videira” – e um mandato – “Permanecei em Mim”; as demais são tão-só declarações e aplicações destas duas frases fundamentais. O desenvolvimento alternado da afirmação e do mandato está consignado em quatro períodos ou estrofes bastante regulares: a primeira fala do procedimento do vinhateiro; a segunda, do procedimento dos sarmentos, que é permanecer unidos à videira; a terceira, dos vários destinos dos sarmentos bons e maus; a quarta, do fruto que o sarmento fecundo produz.

1º. A videira e o vinhateiro – Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o vinhateiro. a) Ao lado do motivo fundamental, “Eu sou a videira”, aparece o elemento complementar, “meu Pai é o vinhateiro”. Resume-se aqui o mistério de nossa incorporação a Cristo: Jesus é a videira plantada pelo Pai. A figura da videira é muito useira nos profetas da Antiga Lei para designar Israel2. Neste passo Nosso Senhor declara aos apóstolos que em realidade é Ele a videira verdadeira e Israel só o era na condição de primeiros sarmentos desta videira3; e que o Pai é o vinhateiro, pois Ele concebeu o desígnio de constituir a Cristo Cabeça de todos os homens e de lhes comunicar a vida pela união com Jesus; b) Segue a ação do vinhateiro, a dupla poda, que elimina os sarmentos estéreis e purifica os frutuosos. Todo fruto que não der fruto em Mim, ele o cortará. Antes de tudo refere-se ao incrédulo povo judeu, que, apesar de ter sido chamado para Cristo, não frutificou Nele, mas também a todos os que no transcurso dos tempos, apesar de enxertados em Cristo, não produzem fruto nenhum. E podará todo o que der fruto, para que produza mais fruto. A poda esmerada não se limita ao corte dos sarmentos estéreis, mas abrange a purificação dos frutuosos, extirpando deles os brotos inúteis e redundantes que esterilizam grande parte da vinha. Os sarmentos frutuosos são, em contraste com os sarmentos cortados, todos os que acreditarão na prédica apostólica e, antes do mais, os apóstolos, como conclui Nosso Senhor: Vós já estais puros, i. e., podados (conforme o jogo de palavras do texto grego), pela palavra que vos tenho anunciado. Com a saída de Judas cortara-se da videira o único sarmento estéril do colégio apostólico; os que ali ficaram eram já sarmentos frutíferos, graças à educação santificante que com docilidade e fé receberam do Messias.

2º. A videira e os sarmentos – Cumpre aos sarmentos permanecer na videira: Permanecei em Mim e Eu permanecerei em vós. a) Permanecei em Mim: já estais em Mim, incorporados a Mim; em virtude desta união formais comigo um só ser, um só corpo e uma só vida, quais os sarmentos enxertados na cepa, que destarte formam com ela uma só videira. Se já estais em Mim, permanecei em Mim. A vossa união comigo fora antes obra exclusiva de minha graça, porém doravante a manutenção da união comigo não haverá de ser obra de minha graça somente, mas também de vosso livre assentimento e cooperação; b) E Eu permanecerei em vós: se vós livremente mantendes e estimulais vossa união comigo, Eu hei de manter, estreitar e intensificar minha união convosco; c) Contudo, tal reciprocidade não é de perfeita igualdade para ambas as partes, a exemplo da que ocorre entre a cepa e os sarmentos na videira: a Cristo corresponde a iniciativa, a nobreza e a vida toda desta imanência; a nós corresponde tão-só admitir, não repudiar nem enfraquecer esta união; d) E não contente de nos exortar a que permaneçamos Nele, quer o Mestre nos convencer da utilidade e ainda da necessidade de tal permanência. O sarmento não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira. Assim também vós: não podeis tampouco dar fruto, se não permanecerdes em Mim. Ou permanência frutuosa, ou separação estéril; mas esta esterilidade acarreta conseqüências funestíssimas, as quais o Mestre vai declarar na estrofe seguinte.

3º. Fins distintos para sarmentos bons e maus – A imagem inicial, Eu sou a videira, se completa com o elemento correlativo: Vós sois os sarmentos. Aqui se esclarece também, até atingir toda sua importância, o pensamento contido nesta imagem, qual seja, a necessidade premente de nossa livre permanência em Cristo. O Mestre formula tal necessidade com uma tremenda disjuntiva: ou permanência e fruto, ou separação e fogo. a) Sobre a permanência frutuosa diz: Quem permanecer em Mim e Eu nele, esse dá muito fruto. Está vinculada a esta imanência recíproca a frutificação; sem essa imanência é impossível frutificar. Neste sentido acrescenta o Mestre: Porque sem Mim nada podeis fazer na ordem sobrenatural: nada em vossa santificação pessoal, nada em vossa ação apostólica, que tenha algum valor para a vida eterna; b) Sobre o outro extremo da disjuntiva, a separação catastrófica, acrescenta o Mestre: Se alguém não permanecer em Mim será lançado fora, como o sarmento. Ele secará e hão de ajuntá-lo e lançá-lo ao fogo, e será queimado. Refere-se o Mestre aos que estão Nele, mas se negam a permanecer, Judas e os judeus infiéis antes de todos. Os verbos integrantes da frase evocam o fogo do inferno que espera os réprobos, bem como o fogo destruidor de Jerusalém, castigo da perfídia judaica.

4º. Frutos dos sarmentos unidos a Cristo – Se permanecerdes em Mim, e minhas palavras permanecerdes em vós: i. e., para permanecer em Cristo é necessário que seus ensinamentos permaneçam em nós, e em nós sejam a luz da inteligência, a regra da vontade e a norma divina de atividade. Para a permanência dos discípulos em Cristo se promete uma frutificação ilimitada, que por sua vez é glorificação do Pai e caráter distintivo dos discípulos de Cristo. a) Acerca do primeiro ponto disse Nosso Senhor: Pedireis tudo o que quiserdes, e vos será feito, o que eqüivale a dizer: “Se permanecerdes em Mim, bastar-lhes-á pedir de boca”. O tema dominante desta frase não é a oração, que aparece meio fora de contexto, mas de forma mais ampla a conquista feliz de todas as nossas aspirações; porém, como o meio normal e providencial para conseguir de Deus os bens desejados é a oração, daí sua menção acidental; b) Acerca do segundo acrescenta: Nisso é glorificado meu Pai, para que deis muito fruto e vos torneis meus discípulos. Realça-se o proveito da abundância de frutos com duas vantagens excelentes: a primeira visa a honra e o serviço ao Pai, que nisso é glorificado; a segunda visa ao Mestre, para quem é gloriosíssimo que a permanência em si seja fecunda em tais frutos, e aos discípulos, que com isso não só acreditam ao Mestre, senão que se tornam de uma vez para sempre discípulos Dele, sendo como tais reconhecidos.

A imagem da videira e dos sarmentos aqui alcança o pleno desenvolvimento, porém o conteúdo doutrinal se desenvolve na seqüência: à permanência dos sarmentos na videira está vinculado o duplo amor do Mestre aos discípulos e dos discípulos entre si.

 

União de caridade com o Mestre

Como o Pai me ama, assim também eu vos amo. Começa o Mestre com uma declaração agradável de duas formas: porque Ele nos ama, e porque compara tal amor com o amor do Pai ao Filho. Enorme há de ser esse amor, para que de algum modo se possa compará-lo com o amor eterno e infinito com que o Pai Celestial ama ao Filho dileto! Perseverai no meu amor. Transformou-se o pensamento fundamental da seção precedente; antes foi dito: Permanecei em Mim; agora se diz: Perseverai no meu amor. Como antes, quer o Mestre significar: Mantende-vos a vós neste amor que vos tenho, tornai-vos cada vez mais dignos de ser amados por Mim. Que deverão fazer os discípulos para não saírem deste amor? Esclarece o Mestre: Se guardardes os meus mandamentos, sereis constantes no meu amor. A guarda de meus mandamentos, assim como é sinal e efeito de que me amais, será também um meio para que Eu não vos deixe de amar. Neste lugar Jesus apela para uma comparação já feita: Como também Eu guardei os mandamentos de meu Pai e persisto no seu amor. O Filho, com humilde fruição, se compraz em repetir que guarda os mandamentos do Pai. E que amor o Pai lhe tem! O Pai ama ao Filho, e entregou todas as coisas em suas mãos4; o Pai ama ao Filho, e mostra-lhe tudo o que faz5. Assim Eu vos amarei: se guardardes meus mandamentos, manter-vos-ei sob a influência do meu amor.

Disse-vos essas coisas para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja completa. A alegria de Jesus é permanecer no amor do Pai, sentir-se inefavelmente por Ele amado; e Jesus quer compartilhar essa alegria com os discípulos, que para tanto devem permanecer em seu amor e sentir-se amados por Jesus. E vossa alegria será completa. O que chamara de minha alegria agora é, por via de comunhão ou transferência, vossa alegria. Desejo que vossa alegria seja completa, tal qual a minha, para que mitigue a tristeza e perturbação que sentis devido à minha ausência, a exemplo da alegria que me faz superar as angústias que oprimem meu coração.

 

II. Jesus exorta os apóstolos a viverem em caridade perfeita e recíproca (Jo 15, 12-17)

Após tratar do amor do Mestre aos discípulos, Nosso Senhor passa a ditar o mandamento do amor dos discípulos entre si, que é conseqüência da mútua inserção na videira. É interessante o desenvolvimento lógico desses versículos: a) No versículo 12 se formula o mandamento: “que vós ameis, como vos amei”, que consta de dois elementos: preceptivo e comparativo; b) Os versículos intermediários, 13-16, desenvolvem o elemento comparativo, da seguinte maneira: os versículos 13-14 procedem por associação concatenada de idéias ou termos afins (“amai”, “amor”, “amigos”), já os versículos 15-16 por dupla antítese (“não servos, mas amigos”; “não de vós para Mim, mas de Mim para vós”); c) O versículo 17, voltando ao ponto de partida, reitera o preceito.

1º. Formulação do mandamento – Este é o meu mandamento. O Mestre chama de mandamento seu ao que antes chamara de mandamento novo. Chama-lhe seu com razão porque: a) foi Ele quem criou e trouxe ao mundo este mandamento novo; b) Ele o constituiu como distintivo ou divisa dos discípulos genuínos; c) Ele se oferece a nós como modelo supremo deste mandamento de amor. Diz Ele mandamento no singular, e não mandamentos, como se não houvesse outros, porque para Ele este único mandamento sustenta e recapitula os demais. Amai-vos uns aos outros, como Eu vos amei. Reitera-se o mandamento antes formulado; tanto aqui quanto ali a partícula como não é meramente lógica (i. e., uma relação entre dois fatos: “Eu vos amei, amai-vos também a vós”), mas expressa e repisa o modo, a qualidade e a medida do amor (“Vosso amor tem de ser como o meu”).

2º. Comparação entre o amor de Jesus e o amor a que somos obrigados – Destacam-se três propriedades no amor com que o Senhor nos ama, e que Ele deseja seja imitado em nosso amor: a) a generosidade, que chega a dar a vida pelo amado; b) a intimidade, que trata os amigos como pessoas para quem não existem segredos; c) a prioridade ou iniciativa em escolhê-los na qualidade de amigos.

a) Generosidade do amor de Jesus – Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos. O sinal do amor são as obras e sobretudo os sacrifícios; e entre os sacrifícios nenhum se compara ao da própria vida, portanto sinal de amor supremo. Este amor que Nosso Senhor, por delicadeza e modéstia, expressa de modo geral, refere-se ao seu próprio amor. A justaposição das duas expressões, “Como vos amei” e “maior amor do que aquele...”, facilmente deu a entender aos discípulos que este amor era senão o amor que Jesus iria mostrar ao mundo morrendo por eles e por todos6. Vós sois meus amigos: como se dissesse: os amigos que amo e por quem estou disposto a dar a vida – sois vós, e assim continuareis a sê-lo, se fazeis o que Eu vos mando. Que é que lhes ordena? Acabou de dizer: “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, como Eu vos amei”. Como vos amei? Com o maior dos amores, ao dar a vida por vós, meus amigos. Eis o mandamento; portanto deveis amar-vos uns aos outros até estarem dispostos a dar a vida uns pelos outros 7.

b) Intimidade do amor de Jesus – Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz seu senhor, i. e., ignora seus pensamentos e planos, que os amos não costumam comunicar aos escravos. A vida secreta de Jesus, a Trindade, a universalidade do plano divino, as coisas eternas – não se manifestaram ao escravo, ao judeu, mas antes aos filhos: Mas chamei-vos amigos, pois vos dei a conhecer tudo quanto ouvi de meu Pai. Afirma Nosso Senhor, ao comparar a missão dos apóstolos com a dos profetas, que já não tratará os apóstolos como outrora tratara os profetas: estes eram servos, e por isso a eles se comunicou a palavra de Deus de forma limitada e fragmentária, enquanto aos apóstolos, amigos que eram, confiou-se a palavra definitiva e inteira de Deus, tudo quanto o Filho ouvira do Pai, a fim de ser revelado ao mundo em seu nome.

c) Prioridade do amor de Jesus – Não fostes vós que me escolhestes, mas eu vos escolhi. Pela nossa amizade, Eu dei o primeiro passo8. Demais, esta amizade é um amor de predileção, já que vos escolhi poucos entre muitos, e vos chamei para serdes meus amigos diletos. E vos constitui para que vades e produzais fruto, e o vosso fruto permaneça: a) Constitui-vos, i. e., destinei-vos para apóstolos ou enviados e vos confiei uma missão: “Ide, pois, e ensinai a todas as nações”9; b) Produzais frutos: trata-se sobretudo do fruto apostólico, ou seja, da renovação espiritual ou santificação do mundo por meio da pregação do Evangelho, confiada aos apóstolos; c) E o vosso fruto permaneça: que dure o fruto, qual seja, a fundação da Igreja e a salvação eterna das almas. A fim de que tudo quanto pedires ao Pai em meu nome, ele vos conceda. Refere-se Jesus às petições apostólicas, i. e., relacionadas com os frutos do apostolado – o feliz resultados dos esforços apostólicos – que os apóstolos hão de encomendar a Deus em oração. Este resultado feliz é em realidade o fruto permanente mencionado na frase anterior. Ambas as frases portanto estão coordenadas e dependem por sua vez da frase principal: “Constitui-vos para que vades”. Disse o Mestre: “Constitui-vos para que vades e produzais fruto permanente, ou seja, para que realizeis com plenitude vossos ideais e planos apostólicos com o favor de Deus, implorado pela oração”10

3º. Reiteração do preceito da caridade – O que vos mando é que vos ameis uns aos outros. No princípio a fórmula do mandamento era composta, sendo expressão do elemento preceptivo (“amai-vos”) e do elemento moral (“como Eu vos amei”); aqui é simples (“que vos ameis”), já que, depois da larga ampliação do elemento moral em toda esta seção, bastava agora reiterar tão-só o preceito.

 

III. Ódio que manifestará o mundo incrédulo aos enviados de Cristo (Jo 15, 18-27)

Depois das relações dos discípulos com Deus e entre si, chega o momento de tratar das relações do discípulo com o mundo. O tema desta seção é duplo: o ódio do mundo contra os discípulos e o grande pecado dos judeus. A conexão lógica desta seção com a anterior é possível de se conceber: a) ou por contraste: porquanto o amor dos discípulos entre si se contraponha ao ódio que lhes devotará o mundo; b) ou por afinidade: porque os discípulos, intimamente associados ao Mestre, compartilharão de sua sorte e como Ele padecerão o ódio do mundo.

 

Os discípulos serão detestados pelo mundo, como detestaram o Mestre

Ao anunciar aos discípulos o ódio do mundo, propõe-lhes o Mestre quatro motivos de consolo ou alento:

1º. Antes deles Jesus foi odiado – Se o mundo vos odeia. Nesta fórmula hipotética Nosso Senhor expressa um fato real: o ódio do mundo aos discípulos. Já dissera o Mestre aos seus amigos: “Por minha causa, sereis objeto de ódio de todas as nações”11; um pouco depois dirá o Senhor: “O mundo vos odeia”12. A atitude do mundo contra os discípulos de Cristo se perpetuará por toda a história da Igreja, continuando até os dias de hoje. Sabei que odiou a Mim antes que a vós. Ser odiado pelo mundo é portanto assemelhar-se a Jesus Cristo, alvo do seu mais encarniçado ódio.

2º. Este ódio é sinal de que eles não são deste mundo – Se fosseis do mundo, o mundo vos amaria como sendo seus. Como, porém, não sois do mundo, mas do mundo vos escolhi, por isso o mundo vos odeia. a) Por mundo se entende todos os homens que diante de Cristo assumirão a atitude de seus então inimigos – os judeus. O chefe deste mundo é Satanás, a quem Jesus três vezes chamou de “príncipe deste mundo”13; ele é o inspirador dos critérios, gostos e aspirações do século14; b) por isso, ser do mundo significa receber sua influência e aspirações, e de certo modo proceder, originar-se ou nascer dele. Entre o mundo satânico e os discípulos de Cristo o antagonismo devia ser – e é – irredutível. Se o mundo é do partido de Satanás, do antideus, são os discípulos do partido de Cristo, a encarnação viva de Deus 15. Tal oposição não é estática e sim dinâmica: os discípulos de Cristo não se adaptam às máximas e tendências do mundo, mas antes tem por missão e obra, seguindo o caminho do Mestre, destruir as obras do diabo16. Esta conduta explica o ódio irreconciliável do mundo contra os discípulos de Cristo e a Igreja de Cristo; c) A frase incidental do mundo vos escolhi recorda aos discípulos duas verdades importantes: por um lado a ventura de não pertencer ao mundo devem-na à imerecida predileção do Mestre; por outro lado esta recordação é uma advertência tácita de que, saídos ou procedentes do mundo, facilmente podem recair nos vícios de sua origem mundana (patente era o caso de Judas).

3º. Não podem pretender que o mundo os trate melhor que ao Senhor – Lembrai-vos da palavra que vos disse: O servo não é maior do que seu senhor. Tal consideração, se não é propriamente motivo de consolo ante as perseguições do mundo, ao menos é uma razão poderosa para que os servos não pretendam um comércio mais benévolo que o outorgado pelo Senhor, e para que não se maravilhem de que o mundo os trate tão mal quanto a Ele.

4º. Aos discípulos é glorioso compartilhar a sorte do Mestre – Se me perseguiram, também vos hão de perseguir. Ao lhes anunciar as perseguições futuras, ao mesmo tempo consola-os ao insinuar que o único motivo das hostilidades do mundo será – como já se expressara outras vezes, e ainda agora dirá – “por causa do meu nome”, i. e., porque são discípulos, enviados e representantes de Cristo: motivo de perseguição, fatal para o mundo e glorioso para os discípulos solidários com a sorte do Mestre17. Se guardaram a minha palavra, hão de guardar também a vossa. Esta sentença entendida à letra parece uma limitação ou correção da precedente, pois se diria: “Se muitos vos perseguirão, não faltará quem acolha vossa palavra, como alguns acolheram as minhas”. Mas levando em conta o contexto, em que se fala tão-somente dos judeus inimigos de Jesus, parece mais provável que a sentença fosse entendida em sentido negativo ou ironicamente afirmativo, como se dissesse Jesus: “Já sabeis como guardaram a minha palavra; pois é assim mesmo que guardarão a vossa”, i. e., assim como não guardaram uma, tampouco guardarão a outra.

 

Grande pecado dos Judeus

O ódio do mundo aos apóstolos é a continuação do grande pecado dos judeus incrédulos, encarnação do mundo, contra Cristo. Este é o pensamento desenvolvido na segunda parte desta seção, em que Nosso Senhor lança por duas vezes contra os judeus a acusação de pecado por um versículo que prepara a primeira acusação, por outro que serve de transição entre a primeira (mais geral) e a segunda (mais específica) e ainda por mais um que conclui o argumento.

1º. Preparação do argumento principal – Mas vos farão tudo isso, i. e., hão de vos odiar e perseguir, negando-se a receber vossa palavra, por causa do meu nome, porque vos apresentais como discípulos de um Mestre a quem aborrecem, pois Ele se apresentou a si como enviado de Deus em condições mui diferentes daquelas que aguardavam no Messias imaginado; e por isso, em suma, se me desconhecem a Mim, é porque não conhecem aquele que me enviou. À medida que o conhecimento de Cristo é conhecimento do Pai, o desconhecimento de Cristo é desconhecimento do Pai. Como vão conhecer a Deus e seus altíssimos desígnios os que fantasiam um messianismo carnal e terreno tão oposto aos planos divinos? Se desconhecem tais planos, como hão de reconhecer na qualidade de Messias e enviado de Deus a quem, segundo estes mesmos planos, se apresenta pobre e humilde, mensageiro de um reino de Deus espiritual e celestial?

2º. Argumento principal, numa formulação mais indeterminada – Se Eu não viesse como enviado de Deus e Messias, e não lhes tivesse falado, i. e., se não lhes declarasse o objeto de minha vinda e divina missão, depois de apresentar-lhes as credenciais que a acreditam, não teriam pecado. Evidente não se tratar de qualquer pecado, pois cheia de pecados está a história de Israel; contudo, tais pecados eram nalguma medida escusáveis, mas agora não há desculpa para o seu pecado: o pecado inescusável é, radicalmente, a incredulidade obstinada; formalmente, o ódio irreconciliável; efetivamente, a perseguição de morte. Antes da vinda do Mestre, o pecado capital dos judeus era a hipocrisia, a concepção formalista e exibicionista da religiosidade e santidade. Contra esse pecado ensinou Jesus uma religião em espírito e verdade e uma justiça mais íntegra e interior que a ensinada por escribas e fariseus; mas ante a mensagem do enviado de Deus os judeus, em vez de se renderem com humildade e se reformarem, rebelaram-se com orgulho; em vez de responder com fé e gratidão, responderam com ingratidão e ódio mortal. Eis o que foi o pecado dos judeus, que determinaria sua lamentável reprovação.

3º. Transição à nova formulação do argumento – Aquele que me odeia, odeia também a meu Pai. Esta sentença: a) reforça o primeiro argumento, porque o pecado de ódio contra o enviado de Deus se considera pecado de ódio contra o mesmo Deus; b) e prepara o segundo, porque nele se inferirá em conjunto o ódio contra o filho e contra o Pai.

4º. Argumento principal, numa formulação mais precisa – No argumento precedente se relacionava o pecado dos judeus com a vinda de Jesus, mas não se indicava a razão imediata por que a dita incredulidade era pecado. Supunham-se ali, e aqui se declaram, as obras e os milagres de Jesus. Estas obras maravilhosas, verdadeiro selo divino que acreditava sua missão, mereciam e exigiam a fé na palavra de quem os obrava. Sem embargo os judeus, depois de vê-los, não acreditaram – eis o pecado inescusável. Por isso disse Jesus: Se Eu não tivesse feito entre eles obras, como nenhum outro fez, não teriam pecado. Realmente nem os Patriarcas, nem Moisés, nem os Profetas realizaram nada que se comparasse às obras de Jesus, como reconheceram até os judeus em momentos de sinceridade18. Mas agora as viram: e apesar disso os judeus não acreditaram: uma tremenda culpa a incredulidade em Cristo, que entranha o ódio ao Pai: e odiaram a Mim e a meu Pai.

5º. Conclusão do argumento principal – Mas foi para que se cumpra a palavra escrita em sua Lei, não porque Deus por antecipação predeterminasse a vontade dos judeus para que odiassem o Messias, mas porque a infalível previsão da divina sabedoria, logicamente posterior ao ódio previsto, não poderia deixar de se cumprir: Odiaram-me sem motivo19.

 

O ódio do mundo não impedirá que brilhe a verdade sobre Jesus Cristo

Ao ódio do mundo e à incredulidade dos judeus Jesus contrapõe o testemunho do Espírito Santo, ao qual se associará o testemunho dos discípulos.

1º. Testemunho do Espírito Santo – Quando vier o Paráclito, que vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da Verdade. Cristo antes dissera que quem enviaria o Paráclito ou Consolador seria o Pai; agora diz que Ele mesmo o enviará. Ambas as expressões, longe de se contradizerem, se completam: se o envia o Pai, envia-o em nome do Filho; se o envia o Filho, envia-o de junto do Pai. Ensina São Tomás que neste envio ou missão temporal importam duas coisas: a) a procedência da origem de quem o envia; b) e uma nova maneira de ser ou obrar em outro. Segundo isto, o Espírito Santo, enviado juntamente pelo Pai e pelo Filho, procede conjuntamente de entre ambos, como de um só princípio. Que procede do Pai: se no verbo vir ou enviar se designa a missão temporal, no verbo proceder se designa a processão eterna. Ele dará testemunho de Mim. Ao discutir com os judeus Jesus apresentou quatro testemunhas a seu favor: o Batista, os próprios milagres, o Pai Celestial e as Escrituras; os judeus rechaçaram as quatro. Jesus reserva para o futuro outro testemunho, mais ostensivo, irrecusável e decisivo: o do Espírito Santo, assinaladamente na solene vinda de Pentecostes. Todos os homens se renderam de boa vontade a esta testemunha e acreditaram em Cristo; a força de tal testemunho criará a Igreja.

Aqui chegando podemos recolher as principais verdades sobre o Espírito Santo que estão contidas nesta passagem e nas duas anteriores 20: a) antes de tudo, afirma-se a personalidade do Espírito Santo: o nome de Paráclito é nome de pessoa; também se lhe atribuem ações pessoais, como ensinar e dar testemunho; b) é uma pessoa distinta da do Pai e do Filho: comparado ao Filho, é outro paráclito; enviado pelo Pai em nome do Filho, e pelo Filho em nome do Pai, não pode ser nenhum dos dois; c) é uma pessoa divina: pois divina é a ciência atribuída a ele; além disso, habita no homem segundo a ordem de habitação do Pai e do Filho e, ademais, o fato de ser outro paráclito pressupõe que seja igual a Deus Filho, a quem sucede; enfim, seu testemunho é supremo e definitivo – tudo isso evidencia uma divindade própria e verdadeira; d) esta pessoa procede do Pai e do Filho: é enviado pelo Pai e pelo Filho; pois bem, a missão [ou envio] pressupõe procedência.

2º. Testemunho dos discípulos – Também vós dareis testemunho: Associa-se ao testemunho do Espírito Santo o dos apóstolos. É impressionante na narração dos Atos dos Apóstolos a freqüência com que se recorda o testemunho dos apóstolos e a importância que se dá a ele. São eles, antes do mais, o testemunho de Cristo, de seus milagres e ensinamentos, e, sobretudo, de sua ressurreição. Mas este caráter testemunhal exigia que os apóstolos tivessem se relacionado com o Mestre por muito tempo e o conhecessem na intimidade. É o que indica Jesus em seguida: sois capazes de serdes minhas testemunhas, porque estais comigo desde o princípio21.

  1. 1. Que deu azo a esta alegoria? É possível que, ao sair do Cenáculo (“Levantai-vos, vamo-nos daqui”), Nosso Senhor entrasse com os apóstolos no Templo, sobre cuja fachada havia uma enorme videira de ouro, figura de Israel. Ao vê-la o Mestre disse aos seus que Ele era a verdadeira videira, e já não Israel segundo a carne; e que eles, e já não os judeus infiéis, são seus sarmentos. Talvez ali, no Templo, concluísse o discurso e fizesse a oração sacerdotal, pois que de acordo com São João, “Depois dessas palavras, Jesus saiu com os seus discípulos para além da torrente de Cedron”. Esta não é a saída do Cenáculo, mas a do Templo, situado junto à torrente de Cedron.
  2. 2. Sl 79, 9-11. Is 5, 1-7; Jer 2, 21; Ez 15, 2-6; 17, 6; 19, 10-14.
  3. 3. O Mestre concebe a videira tal como a concebe o comum do povo, i. e., ela é não apenas a planta inteira carregada de sarmentos no verão, mas também são as cepas podadas durante o inverno. Daí sejam os sarmentos, na alegoria de Nosso Senhor, algo sem o qual a videira medra, mas que, se se junta a ela, torna-se parte integrante da videira. Assim a videira em sentido singular é o Cristo pessoal, e a videira em sentido coletivo é o Cristo místico. Pois bem: Israel era a videira neste segundo sentido, à medida que deveria ser o primeiro povo a se enxertar e permanecer no Messias prometido, i. e., quais os sarmentos, recebia de Cristo a qualidade de ser a videira do Senhor.
  4. 4. Jo 3, 5.
  5. 5. Jo 5, 20.
  6. 6. Embora não ponderasse a supremacia de semelhante amor, já antes Jesus o afirmara naquelas declarações belíssimas: “O bom pastor dá a vida pelas ovelhas... Eu sou o bom pastor... Dou a minha vida pelas minhas ovelhas.” (Jo 10, 11-15). Repetirá São Paulo: “...que me amou e se entregou por mim.” (Gal 2, 20).
  7. 7. Assim o entendeu o discípulo amado, quem mais tarde escreveu: “Nisto temos conhecido o amor: Jesus deu sua vida por nós. Também nós outros devemos dar a nossa vida pelos nossos irmãos” (1Jo 3, 16).
  8. 8. Mais tarde o discípulo amado repetirá esta palavra: “Nós amamos, mas porque Deus nos amou primeiro”.
  9. 9. Mt 28, 19.
  10. 10. É o pensamento já expressado em Jo 15, 7-8. Em ambos os casos a oração não é o tema principal, mas antes uma condição expressada de forma incidental. Contudo esta menção incidental, longe de retirar a importância da oração, exalta-a, porquanto a apresente como o meio providencial para alcançar os dons e o favor de Deus, sem o qual nada de bom pode o homem ter ou fazer.
  11. 11. Mt 24, 9; Mc 13, 13; Lc 21, 17.
  12. 12. Jn 17, 14.
  13. 13. Jn 12, 31; 14, 30; 16, 11.
  14. 14. Apelidava São Paulo o conjunto desta influência satânica de “espírito deste mundo” (1Cor 2, 12), e São João o fixa nos três grandes perigos do mundo: “Tudo o que há no mundo – a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida – não procede do Pai, mas do mundo” (1Jo 2, 16).
  15. 15. Afirmava São Paulo: “Que união pode haver entre a justiça e a iniqüidade? Ou que comunidade entre a luz e as trevas? Que compatibilidade pode haver entre Cristo e Belial? Ou que acordo entre o fiel e o infiel?” (2 Cor 6, 14-16).
  16. 16. 1Jo 3, 8.
  17. 17. No Sermão da Montanha dissera Jesus: “Bem-aventurados sereis quando vos caluniarem, quando vos perseguirem e disserem falsamente todo o mal contra vós por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus” (Mt 5, 11-12). Escreve São Pedro: “Se fordes ultrajados pelo nome de Cristo, bem-aventurado sois” (1 Pd 4, 14).
  18. 18. Assombrados com os milagres que viam exclamavam: “Jamais se viu algo semelhante em Israel” (Mt 9, 33); “Este é verdadeiramente o profeta que há de vir ao mundo” (Jo 6, 14); “Quando vier o Cristo, fará mais milagres do que este faz?” (Jo 7, 31). Desconcertados diziam até os sanedritas: “Que faremos? Este homem multiplica os milagres” (Jo 11, 47; cf. Mc 7, 37; Jo 3, 2; 9, 16; 9, 32-33). Por isso Jesus apoiando-se nos milagres argüia os judeus: “Porque, assim como o Pai tem a vida em si mesmo, assim deu ao Filho ter vida em si mesmo” (Jo 5, 26); “Se eu não faço as obras de meu Pai, não me  creais. Mas se as faço, e se não quiserdes crer em mim, crede nas minhas obras” (Jo 10, 37-38).
  19. 19. Sl 34, 19; 68, 5.
  20. 20. Jo 14, 16-17; 14, 26-27.
  21. 21. Em consonância com o pensamento do Mestre não será inútil reler: a) as palavras de São Pedro no momento de eleger o substituto de Judas (At 1, 21-22); b) a alegação de São Pedro a Cornélio (At 10, 39-42); c)  a réplica de São Pedro aos sanedritas (At 4, 20); d) a segurança de São João ao escrever como testemunha ocular do que conta (1 Jo 1, 1-3). Sobre estes testemunhos conscientes e verídicos repousa segura a fé cristã.
AdaptiveThemes