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Anarquismo e progressismo

Gustavo Corção

A crise de nosso tempo poderia ter este título que encerra uma grotesca contradição, e que tem seu tipo representativo mais cômico nos descendentes de Bakunin que começaram na Espanha a infiltração e a perseguição religiosa antes dos comunistas marxistas. Romanticamente se apresentavam como militantes de um mundo novo munidos de uma pistola na mão direita e da enciclopédia na esquerda. O programa era sucinto: beber o sangue dos últimos padres na cabeça craniana do último dos reis.

Lembrando a alta que os títulos dos revolucionários tiveram na convulsão de 1789, que nos foi inculcada como feito de glória universal, seria melhor, naquele retrato do herói anarquista, trocar a pistola pela guilhotina, mas a imagem que já me parecia insustentável com a enciclopédia na mão esquerda, fica decididamente inimaginável se na direita quisermos colocar a aparatosa guilhotina.

Mas, sob o ponto de vista do valor simbólico, insisto na guilhotina, e quem quiser se apegar à figura romântica desenhe na imaginação um Robot gigantesco portando na mão direita uma guilhotina, e na esquerda a Britânica ou a Barsa. E insisto na guilhotina porque o supremo ideal do anarquista é a decapitação, e não a morte qualquer produzida por uma bala nas partes baixas, ou nas obras mortas do corpo humano. Não foi por mero acaso que nos primórdios da Revolução Francesa o doutor Guillotin inventou a guilhotina, e até submeteu-a à apreciação do rei Luis XVI que tinha pendores para a mecânica e para a serralheria.

Não sei se é apócrifa a anedota; mas a Guilhotina tornou-se uma sólida realidade. E tornou-se o símbolo da democracia liberal que contesta o princípio da autoridade em nome de “virtudes cristãs enlouquecidas”. Autoridade está para a cabeça como a idéia para a imagem ou para o símbolo. Chefe quer dizer “pessoa investida de autoridade”, e quer dizer cabeça. Em francês a primeira e direta significação do termo é a de cabeça: “Le chef de saint Jean-Baptiste...”, e a significação derivada é a de autoridade moral.

E enquanto permanecemos na consideração de termos e de imagens aproveitamos para assinalar o curioso aspecto do ideal democrático baseado no igualitarismo. Não podendo evitar um mínimo de organização social ou de hierarquia, tal regime, para não ser autocrático, tem de ser dirigido por decapitados ou por acéfalos. A segunda solução, ao longo da história, pareceu mais prática e já houve um espirituoso, não me lembra quem, que chegou à fórmula do regime anarco-democrático: um povo de decapitados dirigido por uma dúzia de acéfalos. (continue a ler)

Até aqui o jogo de imagens e de palavras, mas não apenas um passatempo e muito menos um divertimento. Esse jogo resulta da emergência de símbolos que os homens, sempre que os agitam, queiram ou não queiram, produzem. Símbolos que revelam e escondem. E agora procuremos sondar essa estranha, diria até essa inacreditável corrente histórica que é o anarquismo. O pretexto, comum a todas as correntes socialistas, é a má distribuição de bem-estar e de felicidade que vai pelo mundo. Os homens sofrem, há felizes e infelizes, sadios e doentes, ricos e pobres. Até aqui o pretexto do anarquismo coincidiria com os que animaram o estilete de Sófocles ou de Eurípides. Mas o anarco-socialismo, ou a anarco-democracia define com contorno geométrico toda a tragédia da condição humana: o homem sofre porque há abuso de poder e exploração econômica.

Uma coisa, porém, é o pretexto, e outra é a causa profunda. O anarquismo vale-se dessas aflições superficiais, explora-as a serviço da intensa e profunda paixão de rebeldia absoluta contra a idéia de hierarquia, contra a idéia de autoridade -– contra o Senhorio de Deus. Metafisicamente o anarquista é um materialista, não no sentido habitual do monismo que nega a existência de seres espirituais, mas num sentido que eu diria oposto a “gestaltismo”, ou num sentido que mais se traduz num comportamento e num desejo do que numa cosmovisão. O anarquista tem aversão às formas e quereria a revolução, o champardement geral, o aplainamento de todas as excrescências, a pulverização de tudo, do mais diferenciado para o menos diferenciado, como quem sonhasse com uma apoteótica e demente oposição ao Gênesis, graças à qual devolvesse ao nada este mundo mal feito, e irreparável com retoques gradativos, remendos, pespontos e cerzideiras. O anarquista é materialista, não por descrer de Deus e do espírito, mas por cumprir a lei da matéria, por estar a ela entregue, por ela arrastado graças a uma ruptura interna com que se engana a si mesmo, e a si mesmo proclama que cortou alienações, e que agora é livre para construir da estaca zero um novo mundo, um novo humanismo, um novo...

E é aqui que se articula o anarquismo com o progressismo, a pistola com a enciclopédia. Mas essa ambição de enfrentar a obra de Deus não pode ser feita por um só poeta, ainda que ele tenha o gênio de Nietzsche. Tal empreendimento precisa de  uma concentração de toda a esparsa essência humana.

Em Adão essa essência já esteve uma vez concentrada; e por essa singularidade que se explica, ou se encontram linhas inteligíveis, pistas acessíveis à razão natural, para uma quase visão do mistério do pecado original e de sua transmissão a todos os homens.

Há na teologia mariana um princípio que nos orienta nas especulações e nas conexões entre os artigos de fé: é o princípio da singularidade, pelo qual dentro da pluralidade de seres especificados pela mesma essência, e individuados em matéria pluralizada, Deus quis criar alguns homens em situação de especial e única singularidade que, em vez de romper sua união com a multidão que povoa a espécie, ao contrário une-os a todos de um modo que só nele se realiza. Assim Adão é o primeiro-homem, vértice absoluto singular e único do ângulo que abrange toda a humanidade. Maria também é a primeira e única concebida sem pecado.

Voltemos ao ponto: em Adão realizou-se uma concentração única e singular que só por isso teve a inimaginável capacidade de ser depositário e legatário de tão espantoso patrimônio. Mas para tamanho pecado precisou do fraco apoio da mulher, e do forte estímulo do demônio.

E os anarco-socialistas? Já respondo esperando que o leitor entenda, antes de mais nada, que sua posição, deles, antes de ser política, sociológica ou econômica, é religiosa, é teológica. O anarco-socialista sonha com a revolução mundial, que congregue toda a humanidade numa condensação capaz de um ódio contra Deus que inutilize toda a obra de Cristo que a Igreja ousar contar com o atrevimento de gloriar-se na cruz e de dizer felix culpa.

Mas para essa congregação e essa condensação explosiva, os militantes precisam invocar todas as categorias do afeto humano, precisam falar muito em amor, precisam contorcer os braços dizendo que chora pelos pobres, e para tudo isto precisam de uma organização, de uma anti-Igreja. E à frente de todo esse movimento o anarquismo precisa de bandeiras e hinos concitando ao progresso. A multidão de imbecis, de apóstatas, de novidadeiros, de esclerosados, e de invertidos ou subvertidos não se detém para considerar o sentido das frases e muito menos para ponderações metafísicas.

Os que se detiverem e consultarem as noções simples do senso comum verão logo que há uma contradição entre os dois ideais propostos, porque progressismo, seja qual for a sua linha, sua definição, ou o número de aspas que coloquemos para advertir os transeuntes, não pode nunca fugir a uma noção a menos que renunciemos universalmente a acreditar no sentido das palavras. Progresso será sempre, nesta ou naquela linha, uma procura do melhor, uma busca de formas mais perfeitas; seu tropismo, mesmo nas aberrações e nos desvios, será o do espírito, e portanto contrário ao tropismo da revolução e da anarquia

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O conúbio observado na crise da Igreja, entre a tendência anarquizante e a dita “progressista” é apenas uma colossal impostura com que se atordoam os espíritos fracos. Na verdade, o que chamam de avanço e progresso é um desmoronamento de tudo, um movimento regressivo, ou uma evolução sim, mas evolução que segue a lei da matéria e da morte, e não a lei da vida e do espírito.

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Trazendo para o plano da cultura as considerações atrás tecidas, eu diria que a crise da Igreja não é, nem pode ser, endógena. Não vem de dentro da Igreja, porque o “dentro”, eclesial, ou o eclesial propriamente dito é santo, sem mancha e sem ruga. Vem do que há de exterior, mundano ou carnal nos membros da Igreja, e vem do que há de exteriorizante, de mundanizante e de materializante no envoltório cultural em que a Igreja está imersa para o serviço dos homens que Cristo na cruz veio salvar. É na civilização apóstata, hedonista e soberba de nossos dias que se entrecruzam todas as contradições, e a “crise” da Igreja consiste na volúpia, no entusiasmo, no sinistro prazer com que os maus eclesiásticos, ou os eclesiásticos imbecis de todos os níveis, querem trazer para os seminários, para as casas religiosas e para o culto, todas as misérias da civilização.

Admiremos, se quiserem, todas as conquistas técnicas do mundo moderno, que são conquistas do espírito. Sim, são o “exercício do domínio das coisas exteriores e interiores” que é uma glória do homem, glória que no Paraíso recebeu com os dons preternaturais infusos. Começa a loucura da civilização no ponto em que os homens não sabem, não desconfiam, ou esqueceram que: QUANTO MAIOR FOR ESSE PROGRESSO SOB O SIGNO DA QUANTIDADE, E DIRETAMENTE APLICADO À MATÉRIA, MAIOR É O IMPERATIVO DE AFIRMAÇÃO, DOS VALORES E DO PRIMADO ESPIRITUAL.

E essa afirmação se faz principalmente no reconhecimento humilde e adorante do Senhorio de Deus, e na busca de um progresso na direção da perfeição suprema que é Deus.

Insisto: quanto mais vezes atingirmos a Lua, e quanto mais poderosos e variados forem nossos engenhos, mais essa pesada matéria-segunda de uma espessa, brutal e engenhosa civilização precisará da Igreja-Igreja presença visível de um mundo que não é deste mundo, segregação ostensiva que se nega ao nivelamento, que se recusa à secularização para não trair sua tarefa e para servir aos homens, e oferecer aos pobres atarantados um abrigo de paz e uma sombra de luz.

É errônea, e tangencia a imbecilidade a idéia de ser como o mundo, de não querer parecer outra coisa, quando justamente Cristo sofreu para deixar essa glória de paradoxo e de expectação na esperança teologal e quando salta os olhos, para os que têm olhos, que outra coisa não quer esse atormentado mundo senão uma Igreja contrastante, reduto primeiro e último do primado espiritual.

Mais uma vez: a Igreja não tem de atender “às exigências do mundo moderno” porque o século não tem cabedal nem direito de exigir coisa alguma do que lhe é infinitamente superior, mas a Igreja deve, como sempre fez, atender às súplicas mal expressas pela cacofonia universal. Se Ela, para isso, devesse se transformar em botequim, em boate, em supermercado, então poderíamos torcer os braços de desespero e gritar ao crucificado: fomos enganados, Senhor! As portas do Inferno prevaleceram!

Mas se o mundo desacertar em guerras, conflitos e ganâncias, e multiplicar o número de infelizes, não podemos nos queixar da Igreja, da Tradição, dos Apóstolos, de Cristo: porque essas coisas nunca foram prometidas como gratificação de bom comportamento religioso, nem jamais constituíram função primeira, principal e até secundária da Igreja. A Igreja é uma presença de criação sobrenatural engastada na criação natural; ou não é nada.

Insisto: mais do que nunca, e justamente por causa dos astronautas que transtornam as poucas idéias de tantos eclesiásticos, precisamos de oração, de contemplação, de mosteiros silenciosos entregues às primícias da eternidade. Precisamos desses catalizadores espirituais, e é nesta linha que devemos progredir e, tanto quanto Deus quiser é nesta linha, com o muro de nossos trabalhos, de nossas aflições, de nossas pedras de tropeço -– tudo cimentado com o Sangue -– que devemos resistir à onda crescente de afronta ao Senhor.

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Aplicadas as mesmas idéias aos regimes políticos, não nos apeguemos aos nomes e às bandeirolas. Não nos embaracemos nas ambiguidades pérfidas, mas procuremos tenazmente defender os bens de uma estrutura política vivificada pela filia, orientada pela eunomia, e finalizada na eleuteria.

Esse regime, para ser um regime, um REGIME, tem de se firmar no princípio da autoridade; tem de promover a participação do maior número na promoção do bem-comum, e tem de cuidar com especial zelo do melhor aproveitamento das verdadeiras elites, para que a quantidade não afogue a qualidade, e para que as populações crescentes tenham pequenos salvadores nos múltiplos episódios da vida: bons médicos, médicos excelentes, médicos de 1º time, sem as quais a Medicina inteira mergulha num processo regressivo; bons engenheiros, bons militares, bons cronistas, bons tudo, porque é somente com esse conjunto de primores que a humanidade se manterá erecta. O regime que despreza as elites, que despreza o chefe, e sonha com um igualitarismo popular já provou o que vale, já faliu, já estourou; e de seu ventre viu-se sair o mais monstruoso dos regimes, que hoje quer inundar o mundo.

Sempre, em todos os tempos, prevalecerá o estilo evangélico que Churchill tão bem aplicou à batalha aérea de Londres que a RAF venceu: “nunca tantos deveram tanto a tão poucos”.

Mas a quem imaginar que mudei de 180º minha filosofia democrática, direi energicamente que mudei em alguns pontos, que abri os olhos para descobrir os falsos ideais do mundo da Lua. Mas não esqueço a regra de ouro que Santo Tomás ensina: que tudo –- elite, hierarquias, povo -– seja para servir. Que tudo coopere para o bem-comum, e que a preocupação amorosa e ardorosa dos mais altamente colocados seja a dos mais desprovidos. E não recue nenhum dirigente, nenhum titular, diante do termo “paternalismo” lançado pelos anarquistas como sinal de torpeza e abominação. Não há sociedade sem muitas correntes de paternalismos. O professor é pai, o governador é pai, o superior é pai, o abade é pai, o padre é pai,  e o pai é pai —  e todas essas paternidades procuram imitar a do Pai nosso que está nos céus...

A proscrição da idéia e da palavra “paternalismo”, ou o sentido necessariamente pejorativo dado a esse “ismo”, traduz o estado de anarquia de uma civilização que ousa ainda falar em fraternidade. Dentro desse monstro seremos quatro bilhões de bastardos, filhos de pais desconhecidos.

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