3. 11 - As precisões da tese Murray
Tanto rancor para com Dom Marcel Lefebvre, há dez anos dos fatos, e todo um conjunto de acusações sem nenhum fundamento a respeito da Fraternidade: "Ela continuou, entrementes, o seu caminho, comportando-se como uma pequena Igreja paralela, com os seus bispos - houve outra sagração depois da de 1988 - seus sacerdotes, seu tribunal eclesiástico para anular os casamentos"1.
A Fraternidade não é, canonicamente, uma "Igreja paralela", não se considera como tal, não se comporta como tal (...). A sagração de um bispo a 28/07/1991 em Campos, no Brasil, S, Ex.a D. Licínio Rangel, se tornara necessária devido à vasta comunidade brasileira, fiel à Tradição, que ficou sem pastor após a morte de S. Ex.a, D. Antônio de Castro Mayer. Tal sagração foi efetuada segundo a mesma lógica que as de Ecône, utilizando o direito do estado de necessidade, e conferindo, portanto, somente o poder de ordem 2. Estas acusações não
nos devem espantar. Seria ilusório pensar outra coisa no clima atual de decadência da Igreja e das sociedades outrora católicas. Entretanto ocorreu uma exceção com a tese Murray, aprovada pela Pontifícia Universidade Gregoriana que demonstrou com rigor a injustiça das interpretações deformadas e aberrantes mencionadas acima, procuraremos analisar o ponto essencial delas, tal como foi publicado no resumo de The Latin Mass.
"A sagração de um bispo ― aí lemos ― sem mandato, não pode ser compreendida como um ato intrinsecamente mau, nem mesmo como um ato que implique um prejuízo para as almas, a menos que aí haja circunstâncias particulares que façam aparecer, de modo mais explícito, a natureza do ato. Em nosso caso, ter violado diretamente a vontade expressa do Santo Padre, que não queria a realização das sagrações de Ecône, o que confere a este ato um caráter objetivo particular, abstenção feita aqui dos motivos alegados pelo arcebispo Lefebvre. Esses motivos condicionariam também a natureza do ato em questão, como veremos. O caráter objetivo deste ato é o de uma desobediência de natureza cismática, conforme o julgamento da Autoridade suprema da Igreja. Um ato verdadeiramente cismático tem sempre o caráter de um ato nocivo às almas. Portanto, o arcebispo Lefebvre não se pode limitar a afirmar, "prima facie", que o n° 4 do cânon 1323 [que isenta de pena em caso de necessidade] o libera de toda sanção. É preciso, inicialmente, responder a esta pergunta: Ele pode legitimamente afirmar que existia efetivamente um estado de necessidade?"
Portanto: não estamos diante de um "ato intrinsecamente mau", nem mesmo "prejudicial às almas", a menos que se demonstre que este ato, enquanto praticado contra a vontade expressa do Papa, apresenta um "caráter objetivo particular", a saber, uma "natureza cismática". Mas o Pe. Murray lembra que, para uma avaliação jurídica correta do ato, a "natureza do ato em questão" não resulta somente do julgamento que dele faz a Santa Sé, mas também da avaliação que lhe faz o autor. E este invocou sempre a existência de um grave estado de necessidade para justificar aquele ato. O ponto de vista expresso pelo Pe. Murray parece inteiramente correto à luz do direito, porque, como veremos, para o Código em vigor, a importância jurídica do ato em questão depende da avaliação que dele faz o sujeito, muito mais do que a avaliação da autoridade afetada por sua desobediência. Isto significa ser incorreto partir do julgamento da Santa Sé como regra interpretativa predominante no que concerne à significação jurídica exata do ato, como foi determinado pelo Código do Direito Canônico. Segundo este, ao contrário, deve se considerar como predominante o ponto de vista do sujeito que declara agir em estado de necessidade.
Mas quando se tem um estado de necessidade? Quando, relembra o Pe. Murray, há um "conflito entre um direito subjetivo e uma norma de direito canônico". Mas, este "conflito" não deve ser visto somente no caso de necessidade "ordinária" ou "comum", isto é, quando há perigo de "perder um bem não indispensável a existência". É também estado de necessidade aquele no qual se está constrangido "a agir contra o que está ordenado, para evitar o perigo de um mal que se seguiria da obediência a esta ordem"3.
Portanto: estado de necessidade não somente quando, obedecendo à norma, se corre o risco de perder um bem, mas também de cair em um mal. Em todo o caso, diz-se que o estado de necessidade implica sempre a desobediência a uma norma e, portanto, à vontade do legislador, que pode ser a que já está encarnada na norma do Código ou manifestada sob a forma de um preceito individual com respeito àquele que se sente obrigado a transgredi-lo.
Com estas precisões, convém examinar o critério adotado para estabelecer a existência efetiva do estado de necessidade. Na base do protocolo do acordo de 5 de maio de 1988, continua o Pe. Murray, parecia que a Fraternidade devia obter um bispo sem problemas particulares. "Entretanto ... se pode discutir sempre o apelo ao estado de necessidade, isto depende da necessidade especifica invocada e se ela pode ser descrita como tal para o bem da igreja ou de uma pessoa particular ou de um grupo de sacerdotes e de fiéis leigos que seguem espiritualmente o arcebispo Lefebvre"4. A "tese" Murray não considera a concessão de um bispo feita à Fraternidade como um argumento suficiente para demonstrar a inexistência do estado de necessidade invocada por D. Lefebvre.
O que se deve fazer, ao contrário, do ponto de vista jurídico, é analisar atentamente a relação existente entre a necessidade invocada por D. Lefebvre e o cânon 1323, § 7, que diz, como se viu, não estar submetido a nenhuma pena quem violou a lei ou o mandamento, considerando como presentes, sem culpa de sua parte, algumas das circunstâncias previstas nos pontos 4o e 5o do mesmo cânon, ou ainda nos casos de força maior (entre os quais a necessidade) e a legítima defesa (cf. 3. 5 desse estudo). Como sabemos, o § 7 desse cânon, considera, na prática, a possibilidade de um erro da parte de quem invoca a necessidade, mas se trata de um erro sem falta, de um erro não culpável!
Também nesse caso, o sujeito não deve ser considerado como culpado e há isenção da pena. Mas, por que o Pe. Murray julga necessário examinar a posição de D. Lefebvre à luz do cânon 1323, § 7? Porque a existência do estado de necessidade é contestada pela Santa Sé, a qual fala decididamente de necessidade criada artificialmente e de ato cismático. É preciso, então, ver se este estado foi invocado após um julgamento refletido do Arcebispo francês (cânon 1323, 7o.), ou segundo um julgamento negligente (cânon 1324, 8o), i. é, baseando-se numa análise totalmente conforme às normas expressas e aos princípios do direito.
O encadeamento lógico seguido pelo Pe. Murray parece-nos, portanto, o seguinte: 1) D. Lefebvre apelou para o cânon 1323, 4o, que concede a isenção [da pena] a quem agiu obrigado por um grande medo, mesmo se este é somente relativo, ou então por necessidade, etc, dado que o ato não seja intrinsecamente mau (como mentir, perjurar, etc.) ou prejudicial para as almas (vergat in animarum damnum); 2) a Autoridade Suprema, pelo contrário, conferiu a esse ato um "caráter objetivo particular", o de "uma desobediência de natureza cismática"; 3) um ato cismático é sempre "prejudicial às almas"; 4) se o ato é "prejudicial para as almas", então não se aplica o n° 4 do cânon 1323 [invocado por D. Lefebvre] porque, nesse caso, não se está totalmente isento da pena, mesmo se tiver direito às circunstâncias atenuantes 5.
A apreciação do comportamento do Arcebispo deve, portanto, ser dupla, uma vez que se trata de ver se, em substância, o seu comportamento entra no caso de natureza do cânon 1323, n° 7, segundo o qual ― nós nos repetimos ― se admite como causa isentante de pena um erro inculpável ("sine culpa putavit") na avaliação das circunstâncias, ou no caso do n° 8 do cânon 1324 que, por erro culpável ("pererrorem, exsua tamen culpa") na avaliação das circunstâncias do estado de necessidade invocado, conceda as simples circunstâncias atenuantes (suficientes, contudo, para excluir, corno sabemos, a excomunhão latae sententiae).
Visto isso, é preciso lembrar, logo de inicio, o conceito de "culpável", ou seja, de que modo ela (a culpabilidade) deve ser entendida. Como sabemos, não se trata de falta moral, nem mesmo de dolo, mas de atitude imprudente oriunda de uma falta de diligência. Segundo a doutrina citada em nota pelo Pe. Murray, é suficiente que esta falta não seja "grave"6.
Dito isto, "deve-se atribuir ― pergunta o Pe. Murray ― ao Arcebispo Lefebvre uma atitude gravemente culpável (uma negligência grave) para ter pensado que aí havia um estado de necessidade tal que o autorizasse sagrar bispos? Se a não premeditação é 'omissão da diligência devida' [cânon 1321 § 2 - da diligência devida em relação às circunstâncias, ndr], seria difícil sustentar que o Arcebispo tenha agido sem um certo grau de diligência para chegar à decisão de efetuar as sagrações, decisão baseada no que ele afirmava ser, a seu critério, necessário para o bem da igreja. A Santa Sé declarou que a decisão do arcebispo foi incorreta. Mas isto signifique talvez — pergunta-se — que se lhe deva imputar um comportamento gravemente culpável (culpável porque ele teria formulado o seu julgamento de modo negligente) por ter continuado a manter sua própria apreciação dos fatos? Parece que não"7.
E por que "pareceria que não"? Porque, segundo o que já foi salientado pelo Pe. Murray, o direito em vigor impõe aqui considerar também (e sobretudo) do ponto de vista do sujeito agente: "O que conta não é tanto a maneira segundo a qual a Santa Sé via a situação, mas antes a avaliação subjetiva da pessoa que violou a norma. Se ele deu provas da diligência devida, a ponto de chegar a pensar efetivamente que houve um estado de necessidade que implique o bem da igreja, [D. Lefebvre] pareceria isento de sanções pelas sagrações episcopais, com base no n° 7 do cânon 1323"8.
De fato, pergunta o Pe. Murray, "quem é capaz de julgar se o Arcebispo Lefebvre exerceu ou não a diligência devida para considerar a situação e formar a sua convicção? Já que um julgamento desse gênero concerne ao foro interno, isto é, aos seus pensamentos, então devemos deixá-lo diante de sua consciência, tal qual ela se manifestou nas suas declarações". Portanto, em conclusão, "a apresentação de provas críveis de ter ele dado provas da diligência devida... excluiria do mesmo modo a presunção de culpabilidade"9.
A "tese Murray" afirma, portanto, que, no caso das sagrações de Écône se pode aplicar o cânon 1323, 7°, que exclui toda a sanção a quem creu somente dever agir em estado de necessidade, desde que não tenha havido uma falta grave de diligência de sua parte. Mas, as declarações de D. Lefebvre certamente, não deixam entrever uma falha deste gênero. E não apenas as suas declarações ― acrescentamos ― mas também o seu comportamento, dado que ele consultou várias vezes, diversas pessoas sobre o problema em questão. A "prova crível" da diligência devida, mencionada pela tese Murray parece ter sido dada de todas as maneiras por D. Lefebvre. De resto, o Pe. Murray não diz que não houve esta prova.
No ponto em que nos encontramos, com uma consideração de caráter geral, poder-se-ia perguntar: se o sujeito deu provas da diligência, onde está o erro na apreciação ? Esta diligência não o exclui ? Realmente, o cânon 1323, 7°, não menciona explicitamente o erro, que, contudo, está contido, como possibilidade na fórmula: "sine culpa putavit". "Putavit": creu, julgou. É um julgamento totalmente subjetivo, que pode ou não corresponder aos fatos. Nós cremos que o legislador tenha querido distinguir entre um estado de necessidade objetivamente determinado e um estado de necessidade subjetivamente entendido, defendendo de todas as maneiras a pura convicção de sua existência (cf parte 3. 6, deste estudo).
Um estado de necessidade absolutamente certo é aquele que hoje se reconhece ter havido na época da crise ariana, quando a heresia tinha corrompido a fé de uma parte importante da hierarquia. Este é um fato historicamente certo. Tal como era certo o estado de necessidade da Igreja no tempo de sua perseguição pública, por exemplo, na Inglaterra protestante ou na França revolucionária. Fato igualmente muito certo é o caso da jurisdição supletiva para a salvação de um moribundo. Um estado de necessidade marcado pela crise da fé, e pois da Igreja, será entretanto negado por aqueles cuja fé não é mais boa, por estarem seduzidos pela heresia.
E assim, hoje, todos admitem a crise da fé e a da Igreja, mas quase ninguém ousa tirar dela as conseqüências necessárias diante do prolongamento e agravamento desta crise: ou seja, que as almas se acham em estado de necessidade. Isto significa que aquele que, como D. Lefebvre e D. Mayer, proclamaram o estado de necessidade das almas, fazem parte de uma minoria insignificante e cujo julgamento aparece como sendo unicamente deles, mesmo se está objetivamente fundado na situação efetiva de fato.
Mas esse julgamento, mesmo se considerado errôneo pela maioria (inclusive pela autoridade formalmente legítima) é protegido de todos os modos pelo Código em vigor, contanto que se trate de um julgamento ponderado, sem que seja, enquanto tal, necessariamente exato, porque a aplicação demonstra a boa fé do sujeito, e não a verdade de sua convicção. Naturalmente, o julgamento ponderado pode ser verdadeiro, mesmo se puder apresentar a aparência de erro, ou for o julgamento de uma só pessoa ou de uma minoria contra uma grande maioria. O julgamento ponderado recebe do atual Código a proteção mais completa; o julgamento negligente, ou seja, invalidado por um erro devido à falta do sujeito, recebe uma proteção menor, graças à concessão das circunstâncias atenuantes (que todavia impedem a excomunhão "latae sententiae").
Esta última vantagem é a visada no cânon 1324, § 1, 8°, citado já muitas vezes, na qual a "tese Murray" se apóia naturalmente. Após ter concluído que não se podia infligir nenhuma sanção a D. Lefebvre e aos quatros bispos por ele sagrados, por causa do cânon 1323, 7o, nosso autor prossegue: "Este cânon [o 1324, § 1, 8o] oferece ao Arcebispo Lefebvre e aos bispos por ele sagrados, talvez o mais válido argumento para sustentar não terem eles sido excomungados... Igualmente, no n° 7 do cânon 1323, há referências às pessoas que violam a norma. O valor legal conferido pelo Código de Direito Canônico a avaliação subjetiva da existência do estado de necessidade torna impossível ― conforme toda probabilidade — a declaração de uma pena "latae sententiae", no caso em que o sujeito transgressor da norma ou do mandamento — tenha isso acontecido ou não por sua falta, mas sem dolo de sua parte — estivesse convencido de que o estado de necessidade exigia ou simplesmente permitia esta violação"'[117], nisto, portanto, consiste a conclusão de caráter geral, perfeitamente fundada no direito positivo em vigor na Igreja. É preciso, naturalmente, que o sujeito tenha agido assim sem malícia ou qualquer espécie de dolo. O julgamento negligente de que se trata no cânon 1324, § 1, 8° é justamente devido e, na prática, sempre, à negligência e não a um dolo.
A Santa Sé, porém, acusou o Arcebispo de má fé e portanto, de uma atitude dolosa. Vejamos, por partes, o que responde o Pe. Murray sobre esse ponto; Se a norma A permite violar a norma B em certas circunstâncias, afirmando a impunidade, a violação da norma B, nestas circunstâncias, deve ser considerada efetivamente como uma violação? Pareceria que não, desde que um ato não pode ser autorizado, e portanto não punível, e ao mesmo tempo proibido. E se não há proibição não pode haver violação. Então a norma B cai e a norma A prevalece, e o ato regulado pela norma B não está sujeita à proibição. Portanto, a sua execução não implica nenhuma violação de liberada e exclui o dolo"10.
O primeiro argumento do Pe. Murray a favor da impossibilidade de acusar D. Lefebvre de dolo, se baseia no fato de que as circunstâncias isentantes (e atenuantes) fazem desaparecer o próprio conceito de violação deliberada da lei com a conseqüente impossibilidade de imputar um dolo, qualquer que seja, ao sujeito agente. De resto ― acrescentamos ― lembre-se de que o violador da lei por causa do estado de necessidade, está convencido de fazê-lo para salvaguardar um bem superior: o objetivo de sua ação não é de violar a lei (o que ele faz contra a sua vontade), mas de proteger este bem, e tal objetivo mostra a ausência do que comumente se entende por dolo.
Um verdadeiro erro de direito
O segundo argumento do Pe. Murray é o seguinte: "Ademais, se o julgamento sobre a possibilidade de aplicar a norma A não é reservado pela lei ao superior eclesiástico, mas, ao contrário, deixado à apreciação individual da pessoa que viola a norma B, então o apelo desta última à norma A [que a isenta de pena - ndr] é legítima, e não pode ser simplesmente negada pelo superior. O Código deu à pessoa em questão a capacidade, se não o direito explícito, de julgar as circunstâncias e, em conseqüência disso, ele atenua em favor do sujeito a sanção prevista para a violação da norma B ou o dispensa completamente desta. E isto, logo depois da qualificação jurídica conferida pela lei ao seu apelo pessoal devido a uma circunstância de força maior, como, por exemplo, a necessidade. Se esta hipótese é exata, então o Arcebispo Lefebvre não pode ser acusado de ter agido com uma intenção fraudulenta.
"Pode-se afirmar, de modo inteiramente plausível, que o seu objetivo não era transgredir a lei, mas antes de agir ― mantendo-se no quadro do direito ― de um modo que, no seu parecer, teria assegurado o bem da Igreja, graças a uma transgressão inevitável do Código, cânon 1382 [que já citamos e que prevê a excomunhão "latae sententiae" para a sagração sem mandato - ndr], dadas as circunstâncias extraordinárias que ele afirmava existir na vida da Igreja. Esta intenção, de realizar o bem da Igreja, desobedecendo ao Sumo Pontífice nesta circunstância particular, mas sem recusar a autoridade do Papa e a submissão devida a este [enquanto Papa - ndr] excluiria, de sua parte, toda a intenção específica de perpetrar um ato cismático.
"Se o arcebispo Lefebvre creu, mesmo por imprudência, dever agir em conseqüência do estado de necessidade da igreja, ele não está — de qualquer modo que seja — sujeito a uma excomunhão 'latae sententiae' do cânon 1324 , § 3 [já citado, que exclui as penas "latae sententiae" se ocorrem as circunstâncias isentantes e atenuantes - ndr]. E o Código de Direito Canônico não presume o dolo, mas a imputabilidade (cânon 1321, § 3). Mas, essa presunção cai "se surge outra" (nisi aliud apareat). Uma ocorrência deste gênero, que implica no mínimo uma falta possível de imputabilidade, pode razoavelmente ser sustentada nesta questão"11.
Este ponto da "tese Murray" me parece muito importante. Ele põe em relevo como o Código de Direito Canônico (no cânon 1321), ao infligir uma sanção, presume "a imputabilidade grave por dolo ou falta". A violação externa da lei ou do mandamento deve ser referida a um sujeito responsável. Uma vez praticada a violação da lei "presume-se a imputabilidade, se não se manifesta outra coisa"12. E no caso que nos interessa, essa "outra coisa" apareceu, fazendo desaparecer a imputabilidade, com uma probabilidade razoável, segundo o Pe. Murray. Mas, por que essa observação é tão importante? Porque nos lembra que, para o CDC, o que deve ser presumido, no caso de uma violação da lei, é a imputabilidade, não o dolo: e este deve ser demonstrado. Ao contrário, na condenação infligida a D. Lefebvre, a autoridade suprema procedeu de modo exatamente oposto: ela presumiu o dolo, sem antes se assegurar da existência efetiva da imputabilidade. Mas esta última estava excluída ou eliminada com base nos cânones 1323, 7° e 1324, § 1, 8° e, portanto, não se podia presumir o dolo!
Portanto, a Santa Sé caiu num verdadeiro erro de direito, a ponto de permitir considerar inválida a declaração de excomunhão contra D. Lefebvre. De fato, o Pe. Murray prossegue assim: "A autoridade competente deveria ter mantido a necessidade de estabelecer primeiramente a imputabilidade do Arcebispo Lefebvre, e, em seguida, a sua intenção dolosa ao efetuar as sagrações episcopais: é o que deveria ter feito, antes de declarar a pena latae sententiae'. E desde o momento em que estes dois fatos [a imputabilidade e o dolo - ndr] não foram estabelecidos com a clareza requerida pelo direito, há então motivo bem fundado e razoável para contestar a validade da declaração de excomunhão latae sententiae' contra o Arcebispo Lefebvre e os outros bispos implicados... A sentença administrativa da Santa Sé parece não ter levado em conta, como deveria, a lei penal revisada pelo novo C.D.C.; especialmente no que concerne às circunstâncias isentantes e atenuantes em relação às penas 'latae sententiae'. Presumiu-se o dolo da parte de D. Lefebvre e dos bispos sagrados por ele. Suas convicções pessoais sobre o estado de necessidade proclamado por eles foram simplesmente rejeitadas por um comunicado anônimo, quando o CDC afirma que praticar um ato com esta convicção, mesmo quando ela é errônea, impede de incorrer em uma 'pena latae sententiae'"13.
Portanto, conforme o Pe. Murray, houve aqui também uma violação possível do cânon 220 do CDC, que protege o "bom nome", a "boa reputação" de uma pessoa por ter sido rotulada como "cismática", quando, pelo contrário, há motivo fundado de considerar que essa pessoa não incorreu na sanção. Tal atribuição arbitrária "importaria portanto uma violação do direito fundamentai desta pessoa à reputação, direito protegido pelo Código"14.
Uma "concessão" inexistente e sem influência
Tal é, portanto, nos seus pontos essenciais, a "tese Murray": tese absolutamente correta sob o ponto de vista do direito e que tem o mérito de pôr pingos em numerosos "is", patenteando a ilegalidade do procedimento seguido. A retratação parcial que o autor dela fez a seguir, nos parece francamente incompreensível".. Deve-se notar que essa tese vale pelo que ela é, como foi aprovada pela Universidade Gregoriana [do Papa], e não pelas atenuações que o autor lhe fez posteriormente sob pressão dos progressistas. (No entanto, essas atenuações não afetam o valor de sua lógica interna e coerência com o Código de Direito Canônico - ndr).
Importa sublinhar, contudo, um último ponto, em relação à nomeação de um bispo, aparentemente concedido pela Santa Sé à Fraternidade, concessão que, na "tese Murray", é redimensionada a seu justo valor, porque, na realidade, sem influência quanto à existência e à perpetuação do estado de necessidade: importa-nos sublinhar (o que muito poucos observadores acentuaram ) que se tratava realmente de uma condição sujeita a penosas condições. O que escreveu, de fato, o cardeal Ratzinger na sua carta de 30/5/1988, na qual ele a anunciou? Que o Papa se declarava "disposto" a nomear um bispo para a Fraternidade, mas com condições bem precisas: 1) Ele pedia uma ampliação do grupo dos candidatos propostos, a fim de não ser condicionado na sua liberdade de escolha 15. Nisso havia uma exigência totalmente nova que se fazia valer; e que, levando, de fato, a um prolongamento de tempo, dava a impressão de tirar com uma mão o que se concedia com a outra (a carta de 15 de agosto); 2) Ele exigia uma carta pedindo perdão e manifestando submissão 16, exigência que já havia sido feita previamente, mas que agora se aumentava com um novo conteúdo: D. Lefebvre deveria agora tomar publicamente o compromisso de não fazer a anunciada sagração dos três bispos e de se entregar a todas as decisões do Santo Padre a este respeito, Esta última exigência parecia indicar uma falta de confiança para com o Arcebispo.
Os que afirmam ter a Santa Sé concedido sic e simpliciter a data de 15 de agosto para a ordenação do bispo tradicionalista estão equivocados. O Papa absolutamente nada havia concedido; ele se dizia disposto a conceder, mas apenas com certas condições ― uma autêntica corda no pescoço de D. Lefebvre ― condições que continham mesmo conseqüências humilhantes para ele sem documentação nova e sem carta, não haveria sagração no dia 15 de agosto. Condições desse gênero deixavam claramente entender o que Roma entendia por "reconciliação": uma recuperação pode ser progressiva, mas que, ao mesmo tempo, se assemelhava, de modo impressionante, a uma r e n d i ç ã o sem condições. Uma "concessão" desse gênero não era feita para convencer D. Lefebvre do fim do estado de necessidade na Igreja e para a Fraternidade. De modo inteiramente coerente, e com uma avaliação, a nosso ver, exata das circunstâncias, sob todos os aspectos, ele afirmou, na famosa carta de 02/06/1988 ao Papa, que o "momento de uma colaboração franca e eficaz" com Roma, "ainda não tinha chegado". Ele devia, portanto, prosseguir o seu caminho: a perpetuação do estado de necessidade das almas lhe impunha isto 17.