11.0 A proclamação de um “direito à liberdade religiosa” fundado na “própria dignidade da pessoa humana tal como a faz conhecer a palavra de Deus e a própria razão “; direito que, enquanto “direito da pessoa”, deve ser reconhecido pela organização jurídica positiva como um “direito civil” (Dignitatis Humanae 2).
Esta proclamação é apresentada como estando de acordo com o magistério pré-conciliar, quando ao contrario, os textos de Pio XII e Leão XIII citados em nota em DH 2 mostram que o direito da pessoa para professar livremente sua fé, invocado por eles, concerne unicamente à profissão da verdadeira religião, portanto à fé católica e se refere à liberdade de consciência das almas cristãs, e não a uma “liberdade religiosa” simpliciter, sem maior precisão, se aplicando a todas as religiões.
11.1 O principio de que a verdade em “matéria religiosa” deve ser procurada “por uma livre procura, com a ajuda do magistério, isto é do ensino, da troca e do dialogo pelo qual uns expõem aos outros a verdade que eles encontraram ou pensam ter encontrado” considerando a “lei divina eterna, objetiva e universal [falta o adjetivo “revelada” – ndr] pela qual Deus, em seu designo de sabedoria e amor, regula, dirige e governa o mundo inteiro e dispõe as vias da comunidade humana” ( DH 3).
Este princípio faz consistir a verdade “em matéria religiosa” em qualquer coisa que é “descoberta”, achada pela consciência individual na procura com “os outros”, na “troca e no dialogo” recíprocos, onde os outros (alii) não são simplesmente os outros católicos, mas os outros em geral, todos os outros homens, a qualquer credo que pertençam, procura que, significativamente, tem por objeto a lei divina eterna, objetiva, etc...colocada por Deus nos corações, a lex aeterna da moral natural, à maneira dos deistas (implicando todos, com efeito, ela não pode ter por objeto a Verdade Revelada, negada in toto pelos não cristãos e em parte pelos heréticos).
Esta apresentação doutrinal contradiz abertamente o ensino tradicional, segundo o qual, para o católico, a verdade “em matéria religiosa” (e na moral) é uma verdade revelada por Deus e conservada no deposito da fé guardado pelo Magistério, verdade que requer, exige pois o assentimento de nossa inteligência e de nossa vontade, assentimento possível com a ajuda determinante da Graça: tal verdade exige ser reconhecida e apropriada pelo crente, não ser “encontrada”por ele por suas próprias forças (não se fala da ajuda do Espírito Santo no texto conciliar), nem em uma procura comum com os heréticos, os não cristãos, os infiéis!
Ao critério objetivo e propriamente católico da verdade “em matéria religiosa”, que é tal porque revelada por Deus, substitui-se assim o critério subjetivo (de origem protestante e típico do pensamento moderno) de uma verdade que é tal porque “encontrada” pela consciência individual na sua “procura” em comum com os “outros” porque é o resultado da “procura” do sujeito, individual e coletiva. Assim abriu-se a porta para uma erupção no Catolicismo de uma “religiosidade” individual anômala, uma “religiosidade” da “procura”, do “coração”, do “sentimento da humanidade”, da “consciência”, do “dialogo”, xaroposa, falsa e dulçurosa, à maneira de Jean-Jacques Rousseau.
11.2 Uma noção da “consciência moral” pintada de pelagianismo, considerada como fundamento da idéia da “verdade como procura”, por sua vez fundamento da “liberdade religiosa” defendida pelo Concilio (cf. § 11.1).
Em Gaudium et Spes 16, pode-se ler, com efeito: “Por fidelidade à consciência, os cristãos, unidos aos outros homens, devem procurar juntos a verdade e a solução justa de tantos problemas morais que perturbam tanto a vida particular como a vida social. Mais a consciência reta predomina, mais as pessoas e os grupos se afastam de uma decisão cega e tendem a se conformar com as normas objetivas da moralidade”.
De que verdade trata-se aqui? Parece ser aquela que concerne à religião e aos costumes. E esta verdade não deveria resultar do ensino infalível da Igreja, da Tradição? Mas à possessão certa da verdade da fé e dos costumes, estabelecida pelo Magistério no curso dos séculos, o Concilio substitui a “procura” da verdade como critério geral, da verdade em geral; alguma coisa indeterminada, mas conforme, nós o sabemos, ao espírito do Século, que ama a “procura”, a experiência, a novidade, o movimento perpetuo. Mas isto não é tudo. Esta procura, sempre de acordo com o espírito do Século, deve ter lugar em união “com os outros homens” e, pois, também e sobretudo com os não católicos e os não cristãos, com aqueles que negam todas ou quase todas as verdades ensinadas pela Igreja. Como uma procura desse gênero pode chegar a resultados positivos para a fé e para os crentes, se ela deva ser aplicada também “aos problemas morais”? Estes problemas morais, os “cristãos”, os católicos deverão de agora em diante resolver ecumenicamente, no dialogo com os outros e não aplicando as regras transmitidas por sua fé e sua moral. Com efeito, o entendimento “com os outros homens” está confiado à certeza da existência de “normas objetivas da moralidade”, que podem ser achadas em comum por todos os homens de boa vontade que se fiam em sua consciência moral.
O absurdo desta tese é evidente. Não se pode compreender como, por exemplo, uma norma moral, comum para uma vida familiar sã poderia ser encontrada por católicos, para quem a indissolubilidade do matrimonio é um dogma de fé, e pelos protestantes e os ortodoxos que, ao contrario, a negam (sem falar naqueles que admitem a poligamia, a concubinagem, o repudio, o casamento provisório). Mas o que é importante, é, sobretudo o principio afirmado: as “normas objetivas” da moralidade não dependem mais da Revelação, mas da “consciência moral”, que as encontra na procura comum com os “outros homens”!
O artigo 16 em questão faz naturalmente referencia à “lei escrita por Deus no coração” do homem, in corde suo: essa lei seria aquela que se verifica nas “normas objetivas” da moralidade. No entanto não é a Verdade Revelada, mas a consciência (dialogante) que faz emergir a lei das profundezas do “coração”; a consciência é, pois a autoridade que determina no fim as normas da moralidade a aplicar: vê-se aparecer novamente a sombra de Rousseau, da “profissão de fé do Vigário da Sabóia” deista e pelagiano.
O texto conciliar esclarece que, quando a “reta” consciência predomina, os homens se afastam da “decisão cega” das paixões, das tentações, etc...mas para isso não é preciso a ajuda da Graça? A verdade católica foi sempre esta, fundada na Tradição e nas Escrituras: sem a Graça, sem a ajuda do Espírito Santo, não se chega a observar nem a moral natural nem a moral revelada que a aperfeiçoa. Mas a esta Graça, o texto do Concilio não faz nenhuma alusão. A “conformidade” com as normas “objetivas” da lei moral, posta por Deus nos nossos corações, depende atualmente, para os católicos também, exclusivamente da “retidão” da consciência, e, pois, do individuo, mergulhado na “procura da verdade” com todos os outros. Assim se afirma de fato, à maneira dos deistas, que a “consciência moral” une os homens para alem e acima das religiões positivas. E a consciência, na verdade, não representa no mais alto grau aquilo que é humano, esses “valores humanos” tão caros à ala progressista do Vaticano II? Ala que chega a afirmar que nós não possuímos ainda a “verdade”, mesmo aquela que é preciso aplicar nas questões morais praticas (não se tira isto de um Magistério infalível de dezenove séculos), mas que ela deve resultar do esforço comum e comunitário da “consciência” de cada um.
Eis, pois o espírito do Vaticano II sobre a natureza efetiva do qual tanto se dissertou.
11.3 A afirmação do principio, coerente com as noções não católicas de consciência e de verdade que acabamos de expor, segundo a qual é preciso conceder “o livre exercício da religião na sociedade” a todos os homens, compreendidos como indivíduos, sem o que isto seria “injuriar a pessoa humana”, desde que “a ordem publica justa [terminologia vaga] seja salvaguardada” (DH 3); e que é preciso conceder aos “grupos religiosos” o culto publico do “numen supremum” (expressão que lembra o Ser Supremo dos deistas e dos revolucionários, de Robespierre), sempre com o único limite genérico das “justas exigências de ordem publica” (DH 4). Esses “grupos” têm o direito de não serem entravados pelo poder civil em sua autonomia organizacional e jurídica, na sua liberdade de movimento (DH 4) e enfim – a coisa mais importante – não devem ser “impedidos de manifestar livremente a eficácia singular de sua doutrina para organizar a sociedade e vivificar toda a atividade humana” (DH 4).Segundo a noção afirmada aqui, evidentemente o Catolicismo está também incluído nos “grupos religiosos”, em um plano de perfeita igualdade com os outros, donde resulta que a “virtude singular” da Religião revelada não é, de acordo com o Concilio, própria para faze-la ocupar uma posição de supremacia absoluta em relação às outras religiões, que não são reveladas! Isto resulta em afirmar que todas as outras religiões têm o mesmo direito que o catolicismo de manifestar publicamente seu culto, o que contradiz abertamente a proposição 78 do Silabus, que condena este direito.
Trata-se de um grave desvio doutrinal, que dá aos erros os mesmos direitos que os da única Verdade Revelada, fazendo desaparecer, para os crentes, a diferença entre Verdade e erro, entre a Luz e as trevas. O ensino constante da Igreja foi sempre no sentido de uma tolerância de fato das falsas religiões – em posição de necessária inferioridade jurídica em relação à única Religião Revelada – por razões de oportunidade, concernentes a paz social, a ordem publica e sob a reserva de que seus cultos não comportem aspectos imorais. E, com efeito, o Papa, em seus Estados e em toda a cristandade, sempre tolerou o culto judeu, protegendo-o contra possíveis excessos de zelo ou tentativas de perseguição: mas tratava-se de tolerar um erro, não de lhe reconhecer a mesma liberdade de manifestação que a da verdade revelada.
11.4 Da injusta inclusão paritaria da Igreja nos “grupos religiosos”, quer dizer, da equalização do catolicismo com as falsas “religiões”, o Concilio tira a conclusão lógica de que a liberdade religiosa, que pertence de direito á Igreja Católica, não passa de um caso particular de liberdade religiosa, que se deve conceder a todos os “grupos religiosos” sem distinção. Esta conclusão resulta da frase: “a Igreja reivindica a liberdade enquanto associação de homens tendo o direito de viver, na sociedade civil, segundo os preceitos da fé cristã” (DH 13), frase que parece extraída de uma carta de Pio XI (Firmissimam constantiam de 28/3/1937, AAS 29/ 1937, p. 196), mas onde o Papa se limita a expor um argumento ad hominem em relação a esses Estados que negam, mesmo à Igreja, o simples direito de existência, direito que o Papa quer, ao contrario, que lhe seja justamente reconhecido, como a toda outra associação legitima.
Vaticano II, ao contrario, transforma este pedido de uma liberdade mínima e preliminar, em um princípio fundamental de direito publico da Igreja, como se pedisse para a Igreja apenas uma liberdade de direito comum, “como se ela fosse simplesmente uma associação comparável a outras associações existentes no Estado” (Immortale Dei 1/11/1885 Leão XIII Acta vol. V p.118).
Trata-se de grave erro doutrinal, sempre condenado pelos Papas, já que desconhece a natureza superior da Igreja, que é uma societas perfecta, e sua necessária primazia sobre todas as outras societates, ex sese imperfectae, que concorrem de modo subordinado para prover a “comunidade política” com o bem comum temporal. Trata-se de mais uma incrível regressão no o plano histórico: em pleno século XX, a Hierarquia pede que a Igreja, mesmo nos paises onde é reconhecida como única religião do Estado, seja reduzida à simples condição de religio licita e aceita a este titulo: um culto permitido ao lado de todos os outros, como no tempo do edito de Constantino que pôs fim às perseguições (AD 313).
11.5 A falsa afirmação de que “a liberdade da Igreja”, entendida assim como vimos, é um “princípio fundamental nas relações da Igreja com os poderes civis e toda a ordem civil” (DH13).
A afirmação é errada, porque o princípio fundamental do Direito publico da Igreja é, desde sempre, o princípio segundo o qual o Estado tem o dever de reconhecer a realeza do Cristo (Leão XIII Immortale Dei; São Pio X Carta sobre o Sillon 29/8/1910). Trata-se de o “oportet Illum regnare” (1 Cor. 15,25), nas relações entre o Estado e a Igreja e no seio da própria sociedade, princípio que a Hierarquia deixou cair no esquecimento a partir de Vaticano II. Isto significa reduzir ilegitimamente a ajuda que o Estado deve levar para a Igreja apenas ao reconhecimento de sua liberdade, de sua independência, apenas ao aspecto negativo do não impedimento, enquanto que, ao contrario, a Igreja tem igualmente direito a uma ajuda positiva, que consiste em sustenta-la de todos os modos possíveis.