Eles conseguiram este resultado: para um fiel que durante anos vai à missa todos os dias, à missa dominical, à missa do preceito ou do amor reduzido à prova mínima, tornou-se no sentido gaiato o verdadeiro "sacrifício" da missa. Parece aliás que o objetivo visado, cujas instruções parecem hoje mais centralizadas do que o governo da Igreja, é o de tornar tudo gaiato em torno da figura de Nosso Senhor. Ainda não tiveram a idéia de transformar a imobilidade terrível e doce do Crucificado numa espécie de polichinelo careteante a gesticulante em torno de articulações mecânicas cravadas nas Cinco Chagas. Lá chegarão, e com nihil obstat: e com entusiasmo.
Hoje, IV Domingo da Páscoa e dia de Santa Catarina de Sena, que no seu tempo arrastava cardeais e papas a cumprirem seus deveres de estado, fui à missa onde um jovem padre moderadamente barbudo costuma brindar a "assembléia de fiéis" com um mutismo total na hora da homilia, que é obrigatória. Desobedece ele assim à mais desobedecida autoridade do mundo, mas ao menos não injuria a Trindade, não entristece nem entedia os fiéis. Mas o Evangelho de São João, cap. XIV, onde Jesus diz: "Eu sou o caminho, a verdade, a vida...", desencadeou em nosso homem não sei que mola retida. Pôs-se a falar torrencialmente. Perdão, começou por concentrar-se, por baixar a cabeça em atitude de quem vai pedir desculpas por uma milenar insolência e interrogou: "Será Jesus o único caminho para Deus?" E depois de uma pausa que esconderia um tumulto de idéias e uma explosão interna de descobertas, disse sentenciosamente: "Momentoso problema". E então começou a clamar torrencialmente que todos os caminhos levam a Deus, que o protestantismo leva a Deus, que o espiritismo leva a Deus, etc. etc. etc.
Peguei na minha bengala, não para tirar o energúmeno do subpúlpito de onde derramava a pútrida doutrina resultante de todos os ecumenismos e alargamentos, de todas as concessões e compreensões, mas para sentir na mão alguma coisa real, honesta, autêntica na sua singela e antiga essência de bordão — e levantei-me para afastar-me depressa daquela igreja que não era igreja, do padre que não era padre, e da missa que não era missa. E fui andando dentro do domingo azul à procura de uma igreja-igreja, de um padre-padre, de uma missa-missa. E pelo caminho ia trocando idéias com meu bordão, e tecendo considerações em torno desse dilúvio de besteiras que ameaça submergir a Igreja.
Todos nós sabemos há mil e tantos anos que todos podem chegar a Deus — ladrão, prostituta, coletor de impostos, etc. — porque para isso, segundo o inflexível Santo Tomás, basta um gemido: mas também sabemos que aqueles tais que chegam a Deus, malgrado o estado em que vivem e o caminho que trilham, não é pelo prostíbulo ou pela quadrilha que se salvam, é sempre pela plenitude de graças de Cristo. Por isso quis Deus enviar-nos seu próprio Filho e com o espantoso aparelho bem conhecido quis deixar-nos a indicação da cruz de todas as encruzilhadas.
Basta abrir os livros inspirados no Antigo ou no Novo Testamento para encontrarmos centenas de vezes, obsessivamente repetida a doutrina dos dois caminhos. Ao acaso lembremos Isaías, que antes de João Batista clamava: "Preparai o caminho do Senhor, endireitai as veredas..." (Is. XL, 3); ou Jeremias: "Pois os próprios profetas e até os sacerdotes são ímpios... seus caminhos se tornam escorregadios e se perdem nas trevas" (Jr. XXIII, 12). Ou o Eclesiástico: "O caminho dos pecadores está bem pavimentado, mas no seu último lanço leva à treva dos infernos". (Ecl. XXI, 11). Ou o Salmista: "Bem-aventurado o varão que não anda nos caminhos dos ímpios" (I,1), "Bem-aventurados os que caminham na lei do Senhor" (CXVIII, 1), "aparta-me do caminho da mentira e dá-me, Senhor, a graça da lei" (CXVIII, 29). E agora já no Novo Testamento: "Entrai pela porta estreita porque é larga a porta e espaçoso o caminho que leva à perdição; e muitos são os que por ele se precipitam" (Mt., VII, 14).
Mas é no próprio Evangelho do dia deste domingo que Jesus diz: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida", e logo acrescenta: "Ninguém chega ao Pai senão por mim" (Jo. XIV, 6). Ora, depois de ler estas palavras de adamantina nitidez, o padre da nova "Igreja" lá ficou desenvolvendo sua idéia: "Todos os caminhos levam a Deus".
Nós sabemos há mais de dois mil anos que há dois caminhos, o da luz e o das trevas: sabemos que logo no primeiro século do Cristianismo começou a ser ensinada, na Doutrina dos Doze Apóstolos, Didaqué, a Doutrina dos "dois caminhos". Se alguém se salva qualquer que seja a profundidade de seu abismo, mas não qualquer que seja a vereda que procure ou o gemido que balbucie, salva-se sempre pela misericórdia de Deus — mas o instrumento dessa misericórdia é sempre a mesma Ponte lançada sobre os abismos: o Cristo crucificado, nosso Salvador.
Dizer que todos os caminhos levam a Deus equivale a proclamar a inutilidade, a superfluidade, o luxo de tanto sangue vãmente derramado numa cruz de espantalho; equivale a zombar de Jesus, o louco que pretendeu ser o Caminho, a Verdade e a Vida.
Levou-me assim a bengala, por caminhos que buscam o Caminho, até outra Igreja onde um sonoro pregador falava de um afogado, de um helicóptero, e creio que também de astronautas, mas ao menos não cuspia: "Todos os caminhos levam a Deus".
Receio chegar brevemente ao dia em que tenha de andar pelos caminhos e praças da cidade a perguntar aos guardas: "Vistes por acaso alguma Igreja, algum padre? Ouvistes algum sussurro de missa? Sabeis porventura aonde encontrarei aquela que minh'alma ama?" Sim, receio ter de recorrer a algum Centurião, a um militar a um polícia, porque, se acaso cruzar comigo um levita dos tempos modernos, dir-me-á com um gesto largo: "Vá andando, todos os caminhos levam a Deus. Não precisamos mais de Igrejas, de cruzes, de sinais. O sacrifício de Cristo foi um lamentável equívoco". E se me queixar ao Bispo, o Bispo dirá que evoluímos, e também lamentará delicadamente o sofrimento inútil de Maria ao pé da Cruz.
(O Globo, 06/05/72)