Foi num pára-choque de caminhão que li ontem estas palavras líricas. Entusiasmado, respondi com meus botões: — Também eu! Também eu! E num arroubo de saudades, senti-me com cinco anos de idade, num jardim da Glória, entre outros meninos. Seria noite de janeiro e o céu resplandecia. Comecei então a dizer aos outros meninos os nomes das estrelas maiores: Aldebarã, Belatrix, Rigel, Archenar... Meu saber astronômico vinha das lições do poeta Emílio Kemp, que jantava em nossa casa todas as noites que se indispunha com a mulher. Dizia que vinha respirar um pouco, e às vezes ficava conversando conosco e falando de todas as coisas.
Estava eu no jardim, a transmitir meu saber, quando ouvi um riso de homem e me senti levantado pelos braços a não sei quantos metros de altura. Eram dois oficiais de Marinha, e o que me levantava, com voz zombeteira, perguntou-me: “Quantas estrelas tem o céu?”.
Escarlate, não soube responder. Até hoje me volta a cena, a voz, e a pergunta divertida. Por quê? Parece-me que estava a me gabar do que sabia e do que não sabia, mas o amor pelas estrelas era puro e verdadeiro. Aos dez anos sonhei possuir uma Astronomia Popular, de Flammarion, que vira em casa de um jornalista amigo de meus pais. Ninguém sabia meu segredo. Nesse tempo eram magérrimas as vacas: meu pai adoecera gravemente; uma noite minha mãe chegou muito tarde e, vendo-me na cama acordado, ajoelhou-se junto de mim e disse-me chorando: — Estamos agora sozinhos... eu com vocês... no mundo. E passamos a viver uma gloriosa pobreza que até hoje ilumina todas as lembranças de minha infância. Como realizar as núpcias astronômicas com que sonhava? Juntava jornais de toda a vizinhança e vendia-os na venda de “seu” Cardoso. Tostão por tostão, em três anos ou mais consegui a soma fabulosa de trinta mil réis que mamãe guardava. Não havia nessa época de nossa história a inflação que roeria meus tostões e destruiria meu sonho. Mas era tempo de exame quando consegui o total, e nesses dias, lá em casa, tudo ficava suspenso:
— Mamãe, onde está a tesoura de unhas?
— Depois do exame.
— Mamãe, onde está o “Tico-Tico”?
— Depois do exame.
A Astronomia Popular ficou também para depois do exame; mas então aconteceu um milagre, hoje incompreensível. Nesse meio tempo aprendera eu o francês, e a edição original de Flammarion custava a terça parte da tradução portuguesa. Por isso, depois do exame, quando cheguei em casa, num deslumbramento indescritível, vi diante de mim, em vez de um só, três grossos volumes: Astronomie Populaire, Étoiles du Ciel, Terres du Ciel. Creio que nunca senti na vida felicidade igual. Durante três ou quatro dias passei horas perdidas no fundo do quintal, sem consegui ler, sem ao menos folhear metodicamente um só dos três livros. Largava um e tomava outro.
Anos depois passei a desejar ardentemente uma luneta astronômica. Já ganhava uma libra por mês, ensinando matemática a alunos vadios. Mas não consegui mais encontrar em mim aquela força da infância. Perdi-me em outras direções, troquei as estrelas do céu pelas estrelas da terra. Foi muito mais tarde, já perto dos quarenta anos, que comprei a luneta astronômica. Estava de viagem pela Europa, quando em Berlim, numa tarde, dobrando uma esquina, vejo numa vitrina uma pequena luneta astronômica plantada em seu tripé a me fitar com seu grande olho aberto para o infinito.
Veio-me uma rajada de infância, e então eu me senti na obrigação de comprar aquela luneta e dá-la de presente ao bom menino que em vão sonhara com ela nos dias de sua infância. Achei que ele merecia; mas logo depois, ai de mim, em vão procurei onde estava o menino que queria sondar os abismos da noite.
O leitor, que receio estar enfadado, com estas reminiscências, aqui perguntará por que diacho não estudei eu a astronomia? Estudei. Estudei, sim senhor. Não sei se o papel dará para contar essa história. Prefiro, antes disso, contar a visita que fiz ao Observatório, com meus pais e o bom poeta Emílio Kemp. Voltemos aos dez anos de idade. Estamos num terraço onde, contra a noite escura e transluminosa, avultava o perfil regular e solene da cúpula.
Em certo momento minha família ficou a um canto, e na outra extremidade do terraço eu via dois astrônomos conversando. O mais velho gesticulava e falava com vivacidade. Imaginei que estivessem a comentar a beleza das nebulosas espirais ou estrelas duplas, e aproximei-me tremendo de emoção, com receio de não entender bem aquela língua dos anjos. E quando cheguei perto, sem ser percebido, ouvi o astrônomo dizer ao outro com voz ácida e cortante:
— Ele me pagará o que fez. Eu não esqueço. Hei de urinar em sua sepultura!
Recuei apavorado, e senti-me profundamente infeliz como se assistisse a uma inexplicável e súbita apostasia de todos os sacerdotes de uma religião fabulosa. É claro que sentia tudo isto com outras palavras. Creio que decepcionei meus pais e o bom poeta que procurava o brilho de meus olhos. Naquele momento, as estrelas do céu perderam o interesse para mim, porque eu estava não somente magoado, como também intrigado com a descoberta bizarra, fantástica que acabava de fazer.
Os astrônomos eram uns pobres homens feridos, que se indispunham uns com os outros, como o bom poeta se indispunha com a mulher. Lembro-me bem. Essa idéia de que os homens se indispunham uns com os outros esteve naquela noite, e nos dias seguintes, a me perseguir como obsessão. E foi por isso que a minha felicidade astronômica ficou toldada, e não pude apreciar devidamente os anéis de Saturno. Entre mim e o singular planeta se interpunha a figura machucada de um astrônomo que prometia urinar na sepultura de outro astrônomo.
Mas não foi este episódio que me afastou da astronomia. Foi antes a necessidade de não morrer de fome, como de outra vez, se Deus quiser, lhes contarei.
(04/05/1968, republicado em "A Tempo e Contratempo", Editora Permanência)