Estamos cansados de clamar contra a enxurrada de impurezas que se instalou intra muros Ecclesiae pelas portas que a própria hierarquia católica abriu, “num gesto largo e moscovita” como diria Fernando Pessoa, com especial propriedade. Queixamo-nos da infiltração marxista, e dela podemos dizer o que disse Santo Agostinho dos que duvidavam da imprescindível função da Igreja na salvação das almas: “Quis negat?” E ninguém, que eu saiba, ousou erguer a voz contra a severa interrogação do Bispo de Hipona. Ou, se alguém falou, seu insignificante balido não atravessou quinze séculos. Queixamo-nos da invasão do secularismo, da penetração do protestantismo, que foi convidado a colaborar na mutilação da Santa Liturgia. Com cócegas nos ouvidos e inebriados de aberturas, os homens da Igreja escancaravam as portas e tudo teve licença e convite para entrar. Tudo.
Na verdade, porém, o que mais lamentamos não é o monte de coisas que penetraram nos recintos da Igreja: é antes o que saiu, o que se perdeu. Em lugar das infiltrações choremos o esvaziamento que se observa nas palavras e atos dos homens de Igreja de nosso tempo. Mostrem-me um só documento, um congresso, um sínodo, uma assembléia em que os bispos ensinem que tudo devemos largar, ou que tudo devemos ter em conta de coisa menor e secundária, que todos os valores do mundo devemos pôr em seu verdadeiro lugar de pó que o vento traz e o vento leva — para seguir o ÚNICO NECESSÁRIO, que é Jesus por nós crucificado. Na verdade, para seguir esse verdadeiro TUDO, precisamos desprender-nos do volumoso NADA que cremos ser o tudo da vida, quando consideramos a vida e o mundo SEGUNDO A CARNE e não SEGUNDO O ESPÍRITO.
Onde está o homem de Igreja que pensa e irradia a doutrina que o Apóstolo nos deixou, e que os primeiros cristãos transmitiam na Didaché quando falavam no caminho da morte, que é preciso evitar, e no caminho da vida, que era o da salvação e de volta à casa do Pai. Onde está o Bispo que arde de desejo de santidade, e que chora “a única tristeza deste mundo: a de não ser santo”?
Chegaram à audácia inacreditável de espalhar a idéia contrária: hoje o homem não deve cuidar da santificação de si mesmo, devendo cuidar da “libertação” dos outros. Essa monstruosa doutrina que se impinge como amor do próximo é na verdade uma falsificação do amor que pretende colocar o amor do próximo acima do amor de Deus.
Onde está o ensinamento que nos adverte contra essa subversão da caridade que, no ensinamento paulino, se denominava “homem exterior” ou se classificava como “viver segundo a carne”?
Ao contrário desse ensino das coisas do espírito, ao contrário da vida interior e da procura primeira do Reino de Deus, os homens que se agitam nos recintos da Igreja, de Manaus a Helsinki, passaram a querer salvar o mundo segundo a carne. A paz que procuram não é aquele fruto da caridade trazido pelo Sangue de Jesus, é a paz exterior, a paz da ONU, desejada com os mesmos critérios e até com o mesmo preço de capitulações vergonhosas com que a procuram os pacifistas do mundo.
Meu Deus! Será preciso repetir? Repitamos. A Igreja está neste mundo para guardar e distribuir o Preciosíssimo Sangue; está para preparar uma constelação de almas escolhidas que brilhem pelo exemplo da piedade, que ardam pelo calor da santidade. Assim, estrela de Belém seguindo agora não o curso que trouxe os magos ao berço do Menino-Deus, mas seguindo o itinerário que leva àquele outro formidável berço de Jesus erguido no Calvário ao longo dos séculos e séculos, já que Ele nos prometeu: estarei convosco todos os dias até a consumação dos séculos.
Se os homens da Igreja aprenderem a verdadeira lição da Mãe e Mestra, e se “dados em espetáculo ao mundo” aparecerem como exemplos de vida espiritual, o mundo será melhorado por sua presença catalisadora e exemplar.
Se, porém, os homens de Igreja quiserem melhorar o mundo com critérios humanos, isto é, se quiserem viver “secundum seipsos” e não “segundo o espírito”; se quiserem trabalhar no mundo antes de terem trabalhado na própria alma, com as ferramentas de Jesus, então, meu Deus! em vez de exemplo de santidade, em vez de estímulo para o bem maior, darão um espetáculo de circo, como se viu em Manaus e em Helsinki.
O espetáculo oferecido ao mundo pela gente de Igreja é apavorante, e, muito mais grave do que uma preferência às coisas temporais e exteriores, os padres e bispos secularizantes foram compelidos a rejeitar a vida interior, a vida espiritual, o Sangue de nossa redenção. A Igreja de Cristo foi rejeitada em benefício de Outra. E é esse adultério espiritual que nos autoriza a repetir aquela sinistra simetria: “Os apóstolos deixaram tudo para seguir Jesus”; os modernos homens dessa Outra Igreja “aceitam tudo para não seguir Jesus”.
Aos ingênuos que não levam a conversão de critérios até a decisiva rejeição da Igreja, mas pensam que é largueza mental esse ecumenismo e essa secularização que culminou em Helsinki, lembrarei duas frases, uma de Soljenitzin e outra de Étienne Gilson. O primeiro, a propósito do Congresso em Helsinki, presidido pelo Cardeal Cassaroli e abençoado pelo Papa, diz que “a 3ª Guerra já houve, e já foi perdida”. A segunda, de Gilson, a propósito do “Diálogo Impossível” entre católicos e comunistas, traz este melancólico arremate: “seremos engolidos por eles” e “só nos restará o ridículo da aventura”. (13/9/75.)
(PERMANÊNCIA, 1980, novembro/dezembro, números 144/145.)