Para compreender como deve ser o funcionamento do organismo espiritual, é importante saber distinguir, sob as virtudes teologais, as virtudes morais adquiridas, já descritas pelos moralistas da antigüidade pagã e que podem existir sem o estado de graça, das virtudes morais infusas, ignoradas dos moralistas pagãos e descritas no Evangelho. As primeiras, como seu nome indica, adquirem-se pela repetição dos atos sob a direção da razão natural mais ou menos desenvolvida. As segundas são ditas infusas, porque somente Deus pode produzi-las em nós; não são o resultado da repetição de nossos atos: recebemo-las no batismo, como partes do organismo espiritual e, se tivermos a infelicidade de perdê-las, a absolvição no-las restitui. As virtudes morais adquiridas, conhecidas dos pagãos, possuem um objeto acessível à razão natural; as virtudes morais infusas possuem um objeto essencialmente sobrenatural, proporcionado ao nosso fim sobrenatural, que seria inacessível sem a fé infusa na vida eterna, na gravidade do pecado, no valor redentor da Paixão do Salvador, no penhor da graça e dos sacramentos1.
Com relação à vida interior, falaremos primeiramente das virtudes morais adquiridas, depois das virtudes morais infusas e, enfim, das relações de umas com outras.
As virtudes morais adquiridas
Elevemo-nos progressivamente dos graus inferiores da moralidade natural àqueles da moralidade sobrenatural. Notemos de início, com Santo Tomás, que no homem em estado de pecado mortal costumamos encontrar falsas virtudes, como a temperança no avaro; ele a pratica não por amor do bem honesto e razoável, não para viver segundo a reta razão, mas por amor deste bem útil que é o dinheiro. Do mesmo modo, se paga suas dívidas, é antes para evitar os aborrecimentos dum processo do que por amor à justiça.
Acima dessas falsas virtudes, não é impossível encontrar, mesmo no homem em estado de pecado mortal, verdadeiras virtudes morais adquiridas. Muitos praticam a sobriedade para viver razoavelmente e, pelo mesmo motivo, pagam suas dívidas e fornecem alguns bons princípios aos seus filhos.
Mas, enquanto o homem permanece em estado de pecado mortal, as verdadeiras virtudes encontram-se em estado de disposição pouco estável (in statu dispositionis facile mobilis), não estão ainda em estado de sólida virtude (difficile mobilis). Por que? Porque enquanto o homem estiver em estado de pecado mortal, sua vontade está habitualmente desviada de Deus; em vez de amá-lO acima de tudo, o pecador se ama a si mais que a Deus, donde a grande fraqueza para realizar o bem moral, mesmo o de ordem natural.
Ademais, as verdadeiras virtudes adquiridas que o homem em estado de pecado mortal possuir, carecem de solidez, pois não são conexas, não estão apoiadas o suficiente nas virtudes morais vizinhas, que muitas vezes faltam. Por exemplo, um certo soldado, naturalmente inclinado a atos de bravura e que costuma demonstrar coragem, também tende a enervar-se. Ora, acontece que, em certos dias, por intemperança, falta-lhe a virtude adquirida da força, descuidando de seus deveres essenciais de soldado2.
Esse homem, levado por temperamento a ser corajoso, não tem a virtude da força em estado de virtude. A intemperança faz com que falte à prudência mesmo no domínio próprio da virtude da força. A prudência, que deve guiar todas as virtudes morais, supõe, com efeito, que nossa vontade e sensibilidade estejam habitualmente retificadas quanto ao fim dessas virtudes. Aquele que conduz vários cavalos atrelados a uma charrete necessita que cada um deles já esteja manso e adestrado. Ora, a prudência é um como condutor de todas virtudes morais, «auriga virtutum», devendo tê-las, por assim dizer, todas à mão. Uma não vai sem a outra: elas são conexas na prudência que as dirige.
Por conseguinte, para que as verdadeiras virtudes adquiridas não estejam tão-somente em estado de disposição pouco estável, mas em estado de virtude já sólida (in status virtutis), faz-se mister que estejam conexas e, por isso, que o homem não mais esteja em estado de pecado mortal, mas que sua vontade esteja retificada quanto ao fim último. Convém que ame a Deus mais que a si ― se não um amor sentido, pelo menos um amor de estima, real e eficaz. E isso não é possível sem o estado de graça e a caridade3.
Mas, após a justificação ou conversão, essas verdadeiras virtudes adquiridas podem chegar a ser virtudes estáveis (in statu virtutis); podem tornar-se conexas, apoiar-se uma nas outras. Enfim, sob o influxo da caridade infusa, elas tornam-se o princípio de atos meritórios para a vida eterna. Alguns teólogos, como Duns Scot, por causa disso, chegaram a pensar que não é necessário que haja em nós virtudes morais infusas.
As virtudes morais infusas
As virtudes morais adquiridas, das quais falamos, bastam, sob a influência da caridade, para constituir o organismo espiritual das virtudes nos cristãos? É necessário que recebamos virtudes morais infusas?
O catecismo do Concílio de Trento, conformemente à Tradição e à decisão do papa Clemente V no Concílio de Viena4, a propósito do batismo e seus efeitos, responde: “A graça (santificante), que o batismo comunica, é acompanhada do glorioso cortejo de todas as virtudes que, por um dom especial de Deus, penetram na alma ao mesmo tempo que esta”. É um admirável efeito da Paixão do Salvador, que se nos aplica pelo sacramento da regeneração.
Nisso se manifesta grandíssima conveniência, destacada bem a propósito por Santo Tomás5. É mister, salienta ele, que os meios sejam proporcionados ao fim. Ora, pelas virtudes teologais infusas somos elevados e retificados quanto ao fim último sobrenatural. Convém, pois, grandemente que sejamos elevados e retificados pelas virtudes morais infusas quanto aos meios sobrenaturais capazes de nos conduzir ao fim sobrenatural.
Às nossas necessidades, Deus não proveria menos na ordem da graça do que naquela da natureza. Se nessa última Ele nos deu a capacidade de vir a praticar as virtudes morais adquiridas, convém grandemente que, na ordem da graça, dê-nos as virtudes morais infusas.
As virtudes morais adquiridas não bastam ao cristão para que ele queira como convém os meios sobrenaturais ordenados à vida eterna. Há, de fato, diz Santo Tomás6, uma diferença essencial entre a temperança adquirida, já descrita pelos moralistas pagãos, e a temperança cristã, da qual fala o Evangelho. Aqui existe uma diferença análoga àquela duma oitava, entre duas notas musicais de mesmo nome, separadas por um intervalo completo.
Como destaca Santo Tomás7, a temperança adquirida possui uma regra e um objeto formal diferentes daqueles da temperança infusa. Ela guarda o justo meio no alimento para que se viva razoavelmente, para que se não lese a saúde nem o exercício de nossa razão. A temperança infusa, pelo contrário, guarda o justo meio superior no uso dos alimentos, para que se viva cristãmente, como filho de Deus, caminhando em direção à vida sobrenatural da eternidade. A segunda também implica uma mortificação mais severa que a primeira, pois exige, como diz São Paulo, que o homem aborreça seu corpo e o reduza à servidão8, para tornar-se não apenas cidadão virtuoso na vida social daqui debaixo, mas “concidadão dos santos, e membro da família de Deus”9.
Diferença semelhante existe entre a virtude adquirida da religião, pela qual se deve prestar a Deus, autor da natureza, o culto que Lhe é devido, e a virtude infusa da religião, pela qual se oferece a Deus, autor da graça, o sacrifício essencialmente sobrenatural da missa, que perpetua em substância o da Cruz.
Entre ambas as virtudes de mesmo nome, há mesmo diferença maior que uma oitava: há diferença de ordem, tanto assim que a virtude adquirida da religião ou a da temperança poderia sempre crescer pela repetição dos atos, sem nunca alcançar a dignidade do menor dos graus da virtude infusa de idêntico nome. Trata-se de outra tonalidade: o espírito que anima a letra não é mais o mesmo. De um lado, só o espírito da reta razão; de outro, o espírito da fé, que vem de Deus.
São dois objetos formais e dois motivos de ação bem diferentes. A prudência adquirida ignora os motivos sobrenaturais da ação; a prudência infusa os conhece: procedendo não tão-somente pela razão, mas pela razão esclarecida pela fé infusa, conhece a elevação infinita de nosso fim último sobrenatural, Deus visto face à face; conhece, por conseguinte, a gravidade do pecado mortal, o valor da graça santificante e das graças atuais ― que devemos implorar diariamente para perseverar ― o valor dos sacramentos que recebemos. Tudo isso a prudência adquirida ignora, pois é de uma ordem essencialmente sobrenatural.
Que diferença entre a modéstia filosófica descrita por Aristóteles e a humildade cristã, que pressupõe o conhecimento dos dois dogmas da criação ex nihilo e da necessidade da graça atual para o menor passo no caminho da salvação!
Que distância entre a virgindade da vestal encarregada de conservar o fogo sagrado e a da virgem cristã, que consagra corpo e coração para Deus, a fim de seguir mais perfeitamente Nosso Senhor Jesus Cristo!
Essas virtudes morais infusas são a prudência cristã, a justiça, a força, a temperança e aquelas que as acompanham, tais como a docilidade e a humildade. Elas são conexas com a caridade, no sentido de que a caridade ― que nos retifica quanto ao fim último sobrenatural ― não pode existir sem elas, sem esta múltipla retificação quanto aos meios sobrenaturais de salvação. Ademais, aquele que por um pecado mortal perde as virtudes infusas, perde a retificação infusa quanto aos meios proporcionados a esse fim. Contudo, não se segue que perca a fé e a esperança, nem as virtudes adquiridas, mas estas não lhe são mais estáveis e conexas. De fato, quem está em estado de pecado mortal não ama mais a Deus, tendendo, por egoísmo, a faltar até com seus deveres na ordem natural.
Relações entre as virtudes morais infusas com as virtudes morais adquiridas
Conforme ao que precede, explicaremos as relações dessas virtudes e sua subordinação.
Antes de mais nada, a facilidade dos atos virtuosos não é garantida do mesmo modo pelas virtudes morais infusas e pelas virtudes morais adquiridas. As infusas fornecem uma facilidade intrínseca, sem que se exclua os obstáculos extrínsecos, os quais são afastados pela repetição dos atos que engendram as virtudes adquiridas.
Inteiramo-nos disso facilmente quando, pela absolvição, as virtudes morais infusas, unidas à graça santificante e à caridade, são recebidas por um penitente que, apesar de ter atrição de suas faltas, não possui as virtudes morais adquiridas. É o que acontece, por exemplo, no caso dos que têm o hábito de irritar-se e que vêm confessar-se, com atrição suficiente, para a Páscoa. Pela absolvição recebe, junto com a caridade, as virtudes morais infusas, dentre as quais a temperança. Contudo, não possui a temperança adquirida. A virtude infusa que ele recebe dá-lhe uma como facilidade intrínseca para exercer os atos obrigatórios de sobriedade; mas essa virtude infusa não exclui os obstáculos extrínsecos, que seriam eliminados pela repetição dos atos que engendram a temperança adquirida10. Assim, o penitente deve vigiar-se cuidadosamente para evitar as ocasiões que o fariam recair em seu pecado habitual.
Daí temos que a virtude adquirida da temperança facilita muito o exercício da virtude infusa de mesmo nome. Como isso se dá? Elas operam simultaneamente, de tal modo que a virtude adquirida está subordinada à virtude infusa, como uma disposição favorável. Da mesma forma, num outro domínio, para o artista que toca harpa ou piano, a agilidade dos dedos, adquirida pela repetição dos atos, favorece o exercício da arte musical que está, não só nos dedos, mas na inteligência do artista. Se lhe sobrevier uma paralisia, ele perde toda agilidade dos dedos, não podendo mais exercer sua arte, devido a um obstáculo extrínseco. Todavia, sua arte permanece em sua inteligência prática, tal como a vemos num músico de gênio vítima de paralisia. Normalmente, ele a possui como duas funções subordinadas que se exercem conjuntamente. O mesmo vale para a virtude adquirida e para a virtude infusa do mesmo nome11.
Porém, entre os cristãos mais espirituais, o motivo explícito de ação que mais se manifesta é o sobrenatural; nos demais, o motivo é racional, ficando o sobrenatural um pouco latente (remissus). Da mesma forma, num pianista notamos mais a técnica, mas pouquíssima inspiração; num outro, o inverso se dá. ― Os motivos de razão inferior, que dizem respeito ao nosso bem estar, são mais ou menos explícitos, conforme sejamos mais ou menos desapegados dessas preocupações; ou se, por sentirmo-nos saudáveis, não temos porque ter tais preocupações.
Essas virtudes morais consistem num justo meio entre dois extremos, um por excesso, outro por falta. Deste modo, a virtude da força leva-nos a guardar o justo meio entre o medo, que nos faz fugir do perigo sem motivo razoável, e a temeridade, que nos leva a correr perigo sem razão suficiente. Mal escutam falar deste justo meio, os epicurianos e os tíbios crêem-se possuidores dele, mas não por amor à virtude, mas por comodidade, para fugir dos inconvenientes dos vícios contrários. Confundem o justo meio e a mediocridade, que se encontra não precisamente entre dois males contrários, mas no meio do caminho entre o bem e o mal. A mediocridade ou a tibieza foge do bem superior como a um extremo a se evitar; esconde sua preguiça sob o princípio: “o melhor é às vezes inimigo do bem”, e termina por dizer: “o melhor é freqüentemente, se não sempre, o inimigo do bem”. Assim, termina por confundir o bem com a mediocridade.
O justo meio verdadeiro da verdadeira virtude não é tão-somente o meio entre dois vícios contrários, mas também um pico. Ele se eleva como um ponto culminante entre esses desvios opostos entre si; assim, a força está acima do medo e da temeridade; a verdadeira prudência acima da imprudência e da astúcia; a magnanimidade acima da pusilanimidade e da presunção vã e ambiciosa; a liberalidade acima da avareza ou mesquinharia e da prodigalidade; a verdadeira religião acima da impiedade e da superstição.
Esse justo meio, que ao mesmo tempo é um pico, tende ademais a elevar-se, sem se desviar à direita nem à esquerda, à medida que a virtude cresce. Nesse sentido, o crescimento da virtude infusa é superior ao da virtude adquirida correspondente, pois aquela está subordinada a uma regra superior e visa a um objeto mais elevado.
Notemos enfim que os autores espirituais insistem particularmente, como o Evangelho, em certas virtudes morais que têm ligação mais especial para com Deus, uma afinidade com as virtudes teologais. Ei-las: a religião ou a piedade sólida; a penitência, que presta a Deus o culto e a reparação que Lhe são devidas; a mansidão, unida à paciência; a castidade perfeita, a virgindade e a humildade, virtude fundamental que afasta o orgulho, princípio de todo pecado. A humildade, que nos rebaixa diante Deus para elevar-nos acima da pusilanimidade e do orgulho, e dispor-nos à contemplação das coisas divinas, em união com Deus. Humilibus Deus dat gratiam. É aos humildes que Deus dá Sua graça, tornado-os humildes para cumulá-los. Jesus amava dizer: «Recebei minha doutrina, pois sou manso e humildade de coração». Somente Ele, tão assentado em Sua verdade, podia falar em humildade sem perdê-la.
Essas são as virtudes morais (infusas e adquiridas) que, com as virtudes teologais às quais se subordinam, constituem nosso organismo espiritual. É um conjunto de funções de grande harmonia, ainda que o pecado venial venha meter-lhe, com maior ou menor freqüência, falsas notas. Todas as partes de tal organismo espiritual crescem juntas, diz Santo Tomás, como os cinco dedos da mão. É o que prova que não podemos ter uma grande caridade sem possuirmos uma profunda humildade, assim como o galho mais alto duma árvore se eleva ao céu à medida que sua raiz aprofunda-se cada vez mais no solo. Na vida interior, é preciso garantir que nada venha perturbar a harmonia desse organismo espiritual, como ocorre, infelizmente, com aqueles que, mesmo vivendo em estado de graça, parecem mais ocupados das ciências humanas ou das relações exteriores que do crescimento na fé, na confiança e no amor de Deus.
Mas, para se fazer uma justa idéia do organismo espiritual, não basta conhecer essas virtudes, mas ver como elas se dão sob a influência da graça atual, não ignorando as diversas formas sob as quais se apresenta o socorro divino. É o que examinaremos em breve.
Rome, Angelico.
(La vie spirituelle, 1/12/34, no. 183. Traduzido a partir de www.salve-regina.com)