O último artigo entregue por Gustavo Corção ao GLOBO foi publicado com o noticiário sobre sua morte. O texto a seguir, embora estivesse concluído, só foi encaminhado à redação após a morte do escritor, por seus colaboradores.
Desde os primeiros anos de sua peregrinação na terra, "entre as aflições dos homens e as consolações de Deus", a Igreja sempre marcou uma especial devoção pelo Sangue de nossa salvação. Já o Apóstolo em Hebreus IX, 22 diz: "É com sangue que quase todas as coisas se purificam e sem efusão de sangue não há salvação".
Mas foi no tormentoso século XIV que Catarina de Sena, nas cartas e nas lições ditadas aos seus discípulos, pôs uma singular ênfase na riqueza de significações do Sangue, sim, uma ênfase marcante no Sangue! Transcrevemos a seguir algumas amostras de sua pregação colhidas ao acaso no livro Sainte Catherine de Sienne vous parle do Pe. S. Bezin O.P., ed. L´Abeille, Lyon, 1941: "Corramos, então, corramos todos cristãos fiéis, atraídos pelo odor do Sangue" (pág. 251). "Inebriemo-nos do Sangue de Jesus crucificado já que o temos ao nosso alcance. Não nos deixemos morrer de sede. Não nos contentemos com pouco, mas tomemos muito para nos embriagarmos e nos afastarmos de nós mesmos". "Nós não fomos resgatados por preço de ouro, nem somente por amor mas pelo Sangue". "Não há outra maneira de saciar o homem: somente neste Sangue poderá alguém se desalterar". "Este Sangue é nosso, foi derramado para nós, ninguém nô-lo pode tirar a não ser nós mesmos" (pág. 252).
Folheando o epistolário de Santa Catarina de Sena em seis volumes (Le Lettere di S. Catarina de Siena, Casa Editrice Marzocco, Firenze 1947) não resistimos ao desejo de transcrever mais este grito da Dolce Mama: "Caminho sobre o sangue dos mártires, o sangue dos mártires ferve e convida os vivos a serem fortes".
Tenho a firme convicção de que Santa Catarina de Sena falava com esta obsessiva insistência por uma razão muito simples e muito extraordinária: a vigésima terceira filha do tintureiro Benincasas via o Sangue do nosso Salvador em todos os sinais sagrados da Igreja. Quando por exemplo ela procurava seu confessor Frei Raimundo de Capua costumava dizer: "Vou-me ao Sangue".
De bom grado ficaria aqui a contar histórias da dolce mama Catarina; mas o encontro marcado deste artigo me obriga a seguir o roteiro que deixa quinhentos anos para trás a santa padroeira da Itália.
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Foi efetivamente no século XIX, no longo e glorioso pontificado de Pio IX, que o preciosíssimo Sangue de Jesus teve no calendário da Igreja o lugar que merecia. Pio IX, caro leitor, foi o grande Papa que sempre combateu os graves erros de seu tempo sem nenhuma transigência e acomodação à mentalidade contemporânea. E não somente denunciou os erros de uma "civilização" apóstata, como também nos ensinou o modo de combatê-los.
Em 9 de novembro de 1846 Pio IX lançou com a encíclica Qui Pluribus, seu primeiro brado de alerta; mais tarde, em 8 de dezembro de 1864, publicou a encíclica Quanta Cura, à qual anexou o famoso Syllabus que catalogava as proposições errôneas que a Igreja condenava, e que ainda hoje, onde ela estiver, una e santa, continua a condenar. Todas essas publicações foram firmadas na santa intolerância, sem a qual não há nem pode haver catolicismo fiel a Deus e marcado pelo Sangue de nosso Salvador.
Essa pregação desencadeou a fúria dos anarquistas italianos (carbonários) que, comandados por Garibaldi e Mazzini, conseguiram expulsar de Roma o Papa para júbilo de todos os revolucionários da época, e de todos os liberais que, desde então, fizeram tudo para lançar à execração pública até hoje as encíclicas de Pio IX, principalmente o Syllabus.
Os soldados franceses e pontifícios conseguem dominar a fúria dos carbonários, e com o apoio deles o Papa volta a Roma.
Em ação de graças por essa vitória contra os inimigos da Igreja, Pio IX teve a idéia de marcar no calendário católico uma data litúrgica que ficou até anteontem fixada no dia 1o. de julho, sendo o mês inteiro consagrado ao Preciosíssimo Sangue. Até anteontem a festa do Preciosísismo Sangue era considerada "duples de primeira classe".
Será preciso dizer aos nossos leitores que no atual calendário da liturgia alterada, reformada ou deformada "para se acomodar à mentalidade contemporânea" da Igreja pós-conciliar, foi suprimida a festa do Preciosíssimo Sangue? E por quê? Primeiro, por alguma razão que comandou todo o conjunto frenético das reformas. Creio eu entretanto que a "Igreja Conciliar" e "Pós-conciliar" sente uma aversão sistemática pelo caráter de luta, de vitória e de sangue que destoa, para eles, de todas as aberturas e de todos os ecumenismos. Ocorre-me a idéia de associar a supressão do culto do Preciosíssimo Sangue, ao silêncio sepulcral da Hierarquia na data do quarto centenário da miraculosa vitória de Lepanto. Que eu saiba, em 7 de outubro de 1971 só manifestou júbilo nessa data, aqui no Brasil, a excelente publicação o Catolicismo. Para caracterizar ainda melhor esse silêncio, tivemos uma notícia singular: por ordem superior a Santa Sé, com certo alarde, devolveu os troféus, digo melhor, as relíquias daquela vitória, aos turcos. "Que turcos?" perguntou-me aflito e divertido Ariano Suassuna a quem contava eu a história de tão cômica e trágica devolução.
Decididamente a "nova Igreja" que pretende eclipsar a Igreja Católica, não gosta de soldados, não gosta de lutas e não gosta de sangue e também não gosta de odiar o mal como Santa Catarina recomendava: "Deveis odiar o mal com os dentes". Daí o frenesi de concessões e de ecumenismos agora adotados pelas hierarquias em contradição formal com a Doutrina imutável da Igreja.
Ao menos resta-nos um proveito nesta supressão da data litúrgica escolhida para a comemoração do Preciosíssimo Sangue. Que proveito? O de tornar cada dia mais evidente que a chamada "Igreja pós-conciliar" opõe-se sistematicamente à Tradição Católica, colocando os fiéis numa alternativa estapafúrdia: recusar as "novidades" que vêm de Roma ou acatar todos os atos, ditos e feitos do Papa reinante e para isto renegar o Depósito sagrado e os ensinamentos que a Igreja por seus 254 papas nos legou como tão bem disseram os Cardeais Ottaviani e Bacci no Breve Exame Crítico do Novo Ordo dirigido ao Papa Paulo VI no dia de Corpus Domini, em 1969. Eles disseram que as reformas litúrgicas pós-conciliares "... põem cada católico na trágica necessidade de escolher". Eu já escolhi.
O Globo, 13/7/78