A Fernando Carneiro
O primeiro sentimento que me veio, quando Fernando Carneiro me comunicou por telefone a morte de Bernanos, foi uma falta enorme, instantânea, brusca, como se aquele homem que apenas encontrara meia dúzia de vezes, e que se achava perdido para mim, “somewhere in France”, estivesse ligado à minha vida com os vínculos de uma antiga amizade. E estava. Realmente, estava. Sem que eu mesmo o soubesse, Bernanos tinha deixado em mim a marca inapagável de um contato verdadeiramente humano. Um minuto antes da notícia, mal me lembrava de seu vulto, de sua voz, de suas bengalas, de sua cólera pronta e de sua prontíssima ternura. Agora, pondo o fone no gancho, eu sentia crescer em mim, por todos os lados, em torno, atrás, adiante, nas recordações e nas esperanças uma falta enorme.
Desenhava-se, com a nitidez das coisas duras que se partem, os contornos do buraco que acabara de me engolir um amigo. E eu via, ampliados e detalhados, o que deveriam ter sido os nossos poucos encontros – e o que não foram. A sensação crispada de uma frustração assaltava-me lembrando cada conversa nossa, cada gesto, cada tentativa de entendimento perfeito que se havia detido em nossos duros limites. Mesmo agora, poucos dias atrás, eu devia ter escrito uma carta – e não a escrevi. Devia ter enviado umas revistas em que nós o defendíamos e que certamente lhe dariam prazer – e não as enviei. Adiara a carta, protelara a remessa das revistas, calculando, como se costuma fazer entre vivos, que o tempo é ilimitado e a vida inextinguível.
A morte projeta uma luz rasante e crua que tem a esquisita propriedade de exaltar as minudências de um passado perdido, transformando a lembrança aparentemente mais clara e mais lisa numa paisagem lunar com suas montanhas e crateras. Que importância tem agora a carta que interrompi e que não enviarei hoje a um amigo distante que ainda pertence à orgulhosa aristocracia dos vivos? Nenhuma, evidentemente. Que importância tem o gesto de enfado com que hoje afasto a criança que me puxa pelas calças? Nenhuma, evidentemente. E o telefone que não toquei, e a mão que encolhi, e a visita que adiei? A vida é uma planície imensa mal varrida, cheia de quinquilharias inúteis: cacos de gestos, cacos de palavras, por aqui, por ali, dificultando os passos... quantas vezes temos vontade de proceder a uma sistemática eliminação de incômodos, e de por um pouco de ordem nesse chão cheio de escombros?
Chega então a morte, e de repente, no cemitério das lembranças truncadas, corre um frêmito de vida. E as lembranças aleijadas se levantam, e tudo na vida passada nos parece abortivo e irremediável. Quem poderia adivinhar que aquele desenho de criança, representando uma casinha no alto de um morro, com um sol ingenuamente dardejante por trás, seria contemplado com religioso temor, à luz da morte, por entre a névoa das lágrimas? A mãe do menino atropelado desculpa-se de ter posto fora os outros desenhos. O irmão do menino atropelado chora de ter comido na véspera o pedaço maior da sobremesa. E tudo isto, entre nós, os vivos, os orgulhosos vivos, que não sentiram o gosto dos abismos, parece ridículo, insensato, passageiro, porque entre nós parece estar definitivamente estabelecido que essas coisas miúdas são o lixo da vida.
O que no primeiro momento mais se chora no morto não é falta que se adivinha para amanhã ou depois: é a falta atroz que ele já faz no passado. É a decepção, é o sentimento agudo de uma frustração naquilo mesmo que mais solidamente nos parecia adjudicado. A falta que o morto irá fazer dia por dia, no futuro, essa, chegará a seu tempo envolta numa tristeza que, de certo modo, é boa e harmoniosa. Imaginamos facilmente encontros perfeitos, soluções perfeitas, se o morto estivesse ali. Ao contrário, a retrospecção, diante da morte, deixa-nos o gosto amargo dos encontros imperfeitos e das soluções imperfeitas. E o peso do nunca-mais nos oprime intoleravelmente.
Nós não precisamos corar da boa e humilde saudade de nossos mortos; nem precisamos pensar que a Fé e a Esperança nos proíbem as lágrimas da saudade. Mas o que não devemos permitir, de modo algum, é que se instale em nós esse primeiro dardo com que a notícia da morte nos fere.
Eu gostaria de dizer a quem tenha seus mortos, à mãe do menino atropelado, ao irmão que chora hoje pelo olho-grande de ontem, e aos outros, que têm seus mortos, que a tristeza de não ter dado o que devia ter sido dado tem uma solução perfeita.
O insulto que a morte nos causa não pode ser vencido pela Fé e pela Esperança, que são virtudes da peregrinação. A idéia de que o morto esteja no céu, e o consolo de esperar que lá o encontraremos, não basta entretanto para curar a ferida das faltas que ficaram para trás. Precisamos abraçar-nos à virtude que não passa, à Caridade, que é a única que vence a morte e que desconhece a separação entre o passado e o futuro. A solução perfeita desta tremenda sabatina da morte está na transferência das dívidas. Pague-se aos outros o que já não se pode pagar ao que morreu, e vem tudo a dar na mesma, e vem tudo se encontrar na mesma pirâmide de ofertas e donativos, o patrimônio da comunhão dos santos, de cuja distribuição Deus mesmo se encarrega. Valha-nos agora essa angústia passageira causada pelo invisível para que melhor sirvamos o visível, e assim o morto começa logo na eternidade o seu ofício de advogado dos vivos.
* * *
A falta que senti de Bernanos, brusca, instantânea, era dessa amarga espécie, feita de retrospecções. Não se tratava do buraco enorme, difícil de preencher. Não me lembrei de Bernanos escritor, de Bernanos grande, de Bernanos genial, senão mais tarde, no dia seguinte, lendo o jornal. Lembrei-me de Bernanos-Bernanos. No momento em que depus o fone no gancho, mal acabando de ouvir a voz perturbada de Carneiro, não me passou pela idéia escrever um artigo que começasse assim: “Calou-se uma grande voz...”. Não me ocorreu escrever artigo nenhum; e efetivamente não o escrevi; mas não me gabo disto, porque seria melhor ter escrito.
O que me surgiu pela frente, naquele instante, foi o decalque, o negativo absoluto da figura de Bernanos, viva, pessoal, única, para me cobrar as oportunidades perdidas. E andei longo tempo, sentindo do morto a saudade que não sentira do vivo, até conseguir alinhavar, para os outros, para o que desse e viesse, essa meia dúzia de páginas de recordações.
* * *
Foi numa tarde de domingo, há três ou quatro anos, que recebi pelo telefone o aviso — e até diria o apelo — do amigo Fernando Carneiro:
— Bernanos está aqui. Em casa de Murilo! Venha! Venha!
Larguei o jornal que estava lendo e expliquei à minha mulher a natureza e a procedência do recado, acrescentando que não me esperasse para o jantar. Desci a rua contente. Ia ver Bernanos.
Mas — levado pelo péssimo costume de discutir tudo comigo mesmo, e de analisar e esmiuçar as razões dos menores prazeres, arriscando-me a achar a razão perdendo o prazer, ou levado talvez pelo comodismo domingueiro que me censurava o abandono do jornal e da poltrona — pus-me logo a criticar esse desejo de ver Bernanos, essa fútil curiosidade, como se possa haver o que mereça ser visto num autor de livros. De fato, o que ele tinha de melhor estava-me ao alcance da mão, sem por a gravata e sem tomar o ônibus. Bastava tirar um volume da estante para ter Bernanos, a melhor parte de Bernanos. Bastava abrir Journal d’un Cure de Campagne ou Lettre aux Anglais, para receber, com segurança e conforto, as golfadas de gênio do escritor que ousou dizer o escândalo da verdade, e ousou sondar o escândalo da santidade.
Além disso, desde aquele tempo, embora não tanto como hoje, eu já tinha uma sadia aversão por essas reuniões de pessoas implacavelmente condenadas a só dizerem coisas interessantes. Gostava de visitar Murilo, aquele doente que a gente ia ver para sair confortado. Gostaria de conversar com Bernanos, se pudesse começar pela centésima vez. Mas a idéia daquele encontro arranjado e fugaz, que mal daria tempo para vencer as primeiras dificuldades do vocabulário, fazia crescer em mim o desejo de voltar atrás trocando Bernanos pelo livro e a caminhada pela poltrona.
Felizmente — digo-o hoje, depois de saber que Bernanos morreu — o meu discurso interior durou tanto quanto a caminhada e quando chegava à pessimista conclusão sobre o valor das conversas literárias, estava diante do portão da velha casa em que Murilo morava. E, fosse pela lei do quadrado da distância, fosse pela vitória da simplicidade sobre os retorcidos meandros de minha dialética, o fato é que entrei.
* * *
Anoitecia. O casarão, recuado da rua enfronhado entre as árvores de um velho jardim de outrora, parecia esconder-se dos indiscretos, como um fidalgo arruinado que disfarçasse a pobreza. O portão era pesado e rangia. Onde e quando empurrara eu assim, faz muito tempo, um portão pesado que rangia? Indecisamente, oscilando entre as calças curtas e o despontar do bigode, ora moço, ora menino, entrei pelo jardim a dentro, sem saber se era brinquedo ou chicote queimado ou encontro de namorada. Dois patos, graves e pachorrentos como duas tias velhas de muito antigamente, passaram falando qualquer coisa de mim — do menino travesso ou do moço galante — e desapareceram na sombra, continuando a conversa, cuáh-cuáh-cuáh ..., num tom mexeriqueiro e confidencial.
Abriu-me a porta uma senhora idosa, alta e magra, que trazia um gato ao colo. Fez-me um sinal misterioso; exatamente o que deveria fazer se nós dois tivéssemos saído, naquele instante, duma estampa de livro de aventuras e crimes. Atravessei uma sala de estar espaçosa e mal iluminada, onde cinco ou seis pessoas de nacionalidades indecifráveis conversavam com cicios, como se conspirassem, entre a fumaça dos cigarros. Ao pé da escada um gato preto, que lambia um pires de leite, olhou-me com maldade e fugiu, pondo ao canto desse quadro, já sombrio, uma sinuosa pincelada negra.
Subi uma escada imensa que me deixou num corredor ainda mais escuro. No fundo, à direita, uma fresta de luz, uma porta, um retrato de Mozart: era o quarto de Murilo.
* * *
Nessa noite o quarto estava cheio. Perdi-me na confusão dos boas noites, uns em francês, outros em vernáculo, e foi só depois de me instalar numa cadeira ao canto, perto da porta, e depois de me aliviar da humilhante sensação de recém-chegado, que pude reparar em Bernanos.
Bernanos, no centro do quarto, sentado numa cadeira de braços, estava sendo torturado pelos quatro cavalos da amizade e da admiração. Parecia cansado e angustiado. Enquanto um senhor desconhecido, grego, rumáico ou tcheco, tentava em vão economizar Bernanos, Carneiro, do outro lado, sentado num tamborete baixo, procurava acender o misterioso pavio que fizesse explodir a mina da esperada e generosa indignação.
Bernanos pareceu-me uma montanha. Estava sendo explorado. Estava sendo escalado, percorrido, sondado por mineiros ávidos de novos filões. Ou então era um navio, um enorme e velho navio de muitas viagens, que tivesse encalhado ali em país exótico, com os porões abarrotados de tesouros...
* * *
Na rua choviscava. Bernanos, apoiado em suas bengalas, recusava-se a acompanhar Carneiro, queixando-se do cansaço, da angústia, da escada imensa que mal conseguira vencer com suas pernas entropiadas, e que descera depois, a força das bengalas, com o estrépito de um centauro doente. Carneiro bem sabia como ele estava doente, como sofria, e assim mesmo fizera-o falar diante daquelas pessoas. Que dissera ele? Que dissera ele àquelas pessoas? Que esperava Carneiro que ele pudesse dizer àquelas pessoas que lá o tinham ido escutar?
Mas Carneiro, esquivando-se às objurgatórias do artista inquieto de como falara, e do arauto preocupado com o que falara, puxou pelo menino escondido dentro do velho atleta, e levou-o dali, já docilmente, embora ainda a gemer, para um jantar no Recreio, sou les arbres.
Escolhemos porém a mesa na varanda, por causa da chuva, que crescera. Bernanos mal percebeu a falta das árvores. Sentado diante de mim, cotovelos fincados na mesa, capa impermeável aberta no peito, chapéu do mesmo pano, amassado, e posto de qualquer jeito no alto da cabeça, ele me parecia agora um recém-chegado de dolorosa peregrinação que ainda trouxesse no rosto a agonia dos naufrágios e o susto das emboscadas.
Ali estava George Bernanos. Agüentava a cabeça fatigada nas mãos, e os dedos entravam pelas carnes do rosto envelhecido, indo esmagar o olho esquerdo que tomava posições e proporções cômicas, enquanto o outro, livre da brutal trituração, guardava a serenidade e a candura de um olho azul de criança.
Ali estava George Bernanos. O autor de Sous le Soleil de Satan. O francês de verbo fustigante que viera ao Brasil “cuver as honte”. O bom cristão que, pelo menos, não tinha a pesar na consciência o crime de calar a justa indignação e a vergonha de fazer da mediocridade um estandarte e um voto.
Provocado por Carneiro, pôs-se a contar que passara toda a manhã em São Bento, que conversara muito com o Père Paul, que recebera a santa comunhão na capela... e logo, num salto brusco, pôs-se a rugir contra o barroco da igreja, e contra o especial estilo de cristandade inventado pelos portugueses. E enquanto ele falava, parecia-me ver no seu olho direito (porque o esquerdo, cada vez mais macerado, parecia prestes a saltar) o itinerário daquele peregrino. Não sei por que, se pela capa mal abotoada, ou pelo fato de ser um estrangeiro, voltava-me com persistência a idéia de que era um recém-chegado. “Quelqu’un qui vient d’arriver”. E que, depois de comer com pressa, vai continuar, agarrado às suas bengalas, a jornada apenas interrompida. Bernanos, não sei porque, não me deixava pensar em coisas quietas e estáveis: em família, em casa, em jardins. Ao contrário, o panorama que obscuramente corria por trás de suas palavras, eram quilhas erguidas nas ondas, ou eram cavalos fogosos com crinas ao vento, em planícies imensas vistas num relance, da janela de um trem, e longe, lá num horizonte de sonho, as montanhas roxas, como um renque de enormes hortênsias de pedra.
Mas, esse itinerário que eu via na transparência de seu olho, agora perdido num ponto do espaço, acima de nossas cabeças, era o da aventura nascida na infância, e continuada no obstinado menino que aquele hercúleo São Cristóvão carregava pelas águas. Ele diz que esse menino morreu: “Le plus mort des morts est le petit garçon que je fus...” Mas já contava com esse morto supervivo para o instante supremo, esse de que Carneiro me deu notícia há pouco pelo telefone: “... et pourtant, l’heure venue, c’est lui qui reprenda as place a la tête de ma vie, rassemblera mês pauvres années jusqu’a la dernière, et, comme um jeune chef ralliant ses veterans et la troupe em desordre, entrera le premier dans la Maison du Père”.
Bernanos continuava a falar. Ora exaltado, ora enternecido. Sua indignação, aliás, não é outra coisa senão a viril manifestação de sua infantil e inesgotável capacidade de se enternecer. Como poucos, ele sente os contrastes. Sente o claro-escuro do mundo. Adivinha a tragédia de seu tempo. E debate-se entre um mundo de traficantes, e um mundo de maravilhas.
Foi então que Fernando Carneiro, aproveitando um silêncio maior, e usando o quase privilégio seu de improvisar situações absurdas, perguntou:
— Bernanos, você gosta deste meu amigo?
Em condições ordinárias essa pergunta teria uma enorme banalidade ou uma chocante impropriedade. No caso, de absurda, tornou-se simples e natural. Em lugar de responder logo com amabilidade, ou de esquivar-se com um subterfúgio, Bernanos levou a sério a pergunta, e, detendo o discurso que ia recomeçar por cima de nossas cabeças, olhou-me demoradamente, e, por fim, com um sorriso franco e bom, declarou que gostava.
Nesse momento exato nós três, Bernanos, Carneiro e eu, poderíamos ter calças curtas e blusas à marinheira, porque, no fogo de uma amizade nova, tínhamos os corações limpos dos meninos de oito anos.
(publicado em DEZ ANOS, Editora Agir)