Num recanto de Paris, margem esquerda, quase escondida atrás do Bon Marché, onde trepida toda a variedade do efêmero, há uma rua estreita, um portão abrindo para um pátio que, no fundo, por uma porta à direita também quase escondida abre para uma sombria capela espaçosa onde, em todas as horas, encontramos um permanente contraste: a multidão e o recolhimento. Estamos na Capela das Irmãs da Caridade, 140, Rue du Bac, permanentemente cheia e permanentemente imersa no mais profundo e silencioso recolhimento.
Num belo livro publicado há poucos meses, Jean Guitton escreve estas linhas que atribuí ao caderno de apontamentos de algum marciano descido num disco voador nas cercanias da Rue du Bac: “Vi ontem em Paris um fenômeno bastante raro. Que nome lhe darei? Oração em estado puro, oração constante, ou imploração mais ainda do que oração — a adoração misturada à imploração. Difícil definir. Há ali silêncios, murmúrios e gestos desconcertantes: homens e mulheres de todas as raças, de todos os níveis, ajoelham-se diante de uma cadeira de braços colocada no fundo, à direita: beijam o rebordo, os pés, os braços, ou deixam bilhetes enrolados sobre o assento”.
Guitton desenvolve a estupefação do marciano, que registra em seu caderno o “fenômeno regressivo”. Não precisava ir buscar em Marte, a mais de cinqüenta milhões de quilômetros, a testemunha de tal estupefação. Basta interpelar o abundante e acessível homem moderno, no outro lado da rua, ou no Bon Marché, para encontrar o espanto e a reflexão relativa ao caráter regressivo do fenômeno. Bastava talvez entrevistar algum dos sacerdotes acaso escalados para uma das missas da Capela da Rue du Bac, 140, porque hoje, como sabemos, a estupefação causada pelo catolicismo se encontra especialmente nos meios ditos católicos, e não creio que a Rue du Bac consigo isolar-se absolutamente do mundo, que aliás escorre, ou pinga continuamente, para vir buscar naquele recanto um lugar que esteja no mundo sem ser do mundo.
Mais precisamente, mais concretamente, o que vem fazer tanta gente nessa rua, nessa Capela, diante dessa cadeira de braços? Sim, tanta gente. Muito mais do que jamais imaginara. Na mesma página 23 do livro de Jean Guitton lemos que em 1957 o número de visitantes do Louvre foi de 631.000 e do Panthéon 150.000. Ora, o número de visitantes da discreta e recolhida Capela foi 900.000!
E por quê? Porque na noite de 18 de julho de 1830 a Irmã Catarina de Labouré, noviça do seminário da Rue du Bac, depois de ouvir da mestra de noviças instruções sobre a devoção aos santos e em particular à Virgem Santíssima, “adormeceu com a idéia de que São Vicente obteria para ela a graça de ver a Virgem”.
Ora, às onze e meia da noite “ouvi que me chamavam por meu nome: ‘Irmã Catarina! Irmã Catarina!’ e acordando puxei a cortina do lado da passagem e vi um menino vestido de branco, 4 ou 5 anos de idade, que me dizia: ‘Levanta-te depressa e vamos à Capela, porque a Virgem Santíssima te espera’. Logo me veio a idéia de que eu seria ouvida, mas o menino disse: ‘Fique tranqüila porque são onze e meia e todos dormem, vem!’ E eu me apressei a vestir-me, e acompanhei o menino que me esperava, e que espalhava raios de luz por onde passava. As luzes estavam acesas por onde passávamos, o que me espantava muito, mas ainda mais surpresa fiquei à entrada da Capela cuja porta se abriu logo que o menino a tocou com o dedo. E minha admiração chegou ao cúmulo quando vi as luzes e os círios acesos como para a missa de meia-noite. Mas eu não via a Virgem. O menino me conduziu no Santuário até junto da cadeira de braços em que se sentava o Sr. Diretor. Ajoelhei-me e o menino ficou todo o tempo de pé (...). Enfim a hora chegou e o menino me disse: ‘A Virgem está chegando, ela vem...’. E eu ouvi um frufru de saia de seda (...). Eu ainda duvidava mas o menino disse: ‘Eis a Virgem Santíssima’. (...) Então dei um salto para junto d’Ela e fiquei de joelhos com as mãos apoiadas em seus joelhos. E aí passei um momento o mais doce de toda a minha vida. É impossível dizer tudo o que eu sentia. E a Virgem começou a falar-me...”.
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Diante dessa singela narração é minha vez de dizer que é impossível transmitir o que eu também, pobre velho tão carregado de complicações, senti, não apenas a primeira vez mas cada dia mais, diante daquela cadeira onde várias vezes sentou-se a Rainha dos Céus e da Terra para falar e chorar na companhia de uma alma simples e santa. Creio que posso dar uma aproximação simples do que sentia se disser que, aos pés daquela cadeira, eu e minha mãe do céu estávamos sós, sem ninguém na Capela apinhada de gente. E eu podia encostar a cabeça no braço da cadeira, esquecido de tudo, de todos, e especialmente de mim mesmo. E imagino que deva ser a sede desse confronto que leva um milhão de pessoas por ano ao santuário da Rue du Bac. Mas então você não pediu a Nossa Senhora que te melhorasse um pouco o princípio de cegueira que te molesta tanto? Não pedi nada para mim nem para os outros. De longe quando via alguém chegar-se, ajoelhar-se, deixar no assento da cadeira um bilhetinho de súplica, eu me torcia de súplicas por aquela pessoa desconhecida ou conhecida; mas o fato é que quando eu mesmo me ajoelhava e beijava os bordos da cadeira esquecia-me de tudo para só querer aquela doce proximidade que Nossa Senhora já me dava, no silêncio, no recolhimento, no isolamento criado naquele recanto de Paris, atrás do Bon Marché.
Trago ao pescoço a medalhinha milagrosa que ressaltou do pedido simples de Catarina de Labouré, que em 18 de julho de 1830, depois das orações da noite, adormeceu dizendo a São Vicente que desejava ver Nossa Senhora.
Conversa em Sol Menor, Agir 1980.