Esteve recentemente no Brasil Mgr. Marcel Lefèbvre, bispo francês que está realizando na Suíça uma experiência deveras extraordinária e extraordinariamente simples. Dom Lefèbvre fundou e dirige um seminário tradicional, um seminário católico, onde entre outras restaurações essenciais celebra a missa católica canonizada por Pio V, e assim prepara para amanhã padres isentos, tanto quanto possível, das deformações de nosso tempo. E para grande surpresa dos outros bispos da França e do mundo, o seminário de Dom Lefèbvre encheu-se em pouco tempo. Apesar de tudo — louvado seja Deus — ainda há fome e sede de verdade. De pureza. De autenticidade. Como já disse, há duas ou três semanas, esse mesmo bispo acaba de publicar um livro intitulado Un evêque parle, no qual reuniu diversos artigos e conferências das tormentas católicas de nosso tempo.
Ofereço hoje ao leitor as palavras tranqüilas e formidáveis desse bispo que viveu todo o drama muito de perto e sempre manteve intactos e serenos seus critérios católicos, para bem avaliar os acontecimentos. Recomendo vivamente o livro inteiro, e chamo especialmente a atenção do leitor para estas palavras: “Parece-me impossível explicar a situação em que hoje nos achamos, sem remontar ao Concílio” (grifo do próprio autor) “Volto a ele, por parecer-me indispensável estudar os esquemas do Concílio, lê-los com atenção, para discernir as portas que se abriram para o modernismo como tão bem disse o Pe. Simon, e insistirei no fato de nunca ter o Concílio (por sua maioria) querido dar definições exatas dos assuntos discutidos, e é esta recusa das definições exatas dos assuntos discutidos, e é esta recusa das definições, a recusa do exame teológico e filosófico dos temas abordados, que nos prendeu a simples descrições dos assuntos que não podíamos definir. E não somente nunca definiram como também, nas discussões surgidas em torno desses assuntos, freqüentemente se falsificaram as definições tradicionais, e é por isto, penso eu, que nós hoje nos achamos diante de todo um sistema que não conseguimos abranger, e que dificilmente conseguimos combater uma vez que os conceitos e definições tradicionais se perderam ou não são aceitos. Eis um exemplo a respeito do Casamento. A definição tradicional, por seu fim principal, a prole, e seu fim secundário, o amor e a felicidade conjugal, foi contestada no Concílio que negou a hierarquia dos dois fins. Foi o Cardeal Suenes que atacou a posição clássica da Igreja, e eu ainda me lembro bem do Cardeal Brown, Superior Geral dos Dominicanos, que se levantou para advertir ‘Caveatis! Caveatis!’ ‘Cuidado! Cuidado!’ E com veemência ele declarou: ‘Se nós aceitarmos essa definição do Cardeal Suenes estaremos contra toda a tradição da Igreja, e perverteremos o sentido do casamento’”.
“E ele citava muitos textos. Tal foi a emoção produzida na Assembléia que o Cardeal Suenes foi interpelado pelo Papa que lhe pediu que moderasse ou mesmo mudasse os termos usados (...). Mas agora ouçamos o que em torno de nós se diz do Casamento e logo veremos que, na continuação foram as falsas definições que triunfaram. Este é um exemplo entre muitos. Mais cruamente do que se exprimia o Cardeal Suenes o que hoje se apresenta como fim do Casamento é a sexualidade (...)”.
“Uma falsa definição traz a desordem. Consideremos agora a ausência de definição. Muitas vezes procuramos e pedimos a definição de “Colegialidade”. Nunca chegamos a um acordo. Muitas vezes pedimos que nos definissem “Ecumenismo”. Eles nos respondiam a mesma coisa pela boca dos Secretários das Comissões. “Nós não fazemos um Concílio Dogmático, nem procuramos definições filosóficas. É um Concílio Pastoral que se dirige ao mundo inteiro. Seria portanto inútil dar aqui definições que não seriam compreendidas”.
“Era insensato — continua Dom Lefèbvre — reunirem-se os bispos sem conseguir sequer definir os termos das questões debatidas” (Págs. 154, 156).
Mais adiante, na página 158 lemos: “Há um outro assunto que também deveria ter sido definido de maneira muito exata: as Assembléias ou Conferências Episcopais. (grifo do autor). O que é uma Assembléia Episcopal? Que representa ela? Quais são seus poderes? Qual é o objetivo de uma Conferência Episcopal? Nunca pôde alguém defini-la. O próprio Papa disse que veríamos na continuação, ou veríamos depois, na prática, como se poderiam definir e delimitar as atribuições das Conferências. E assim lançaram-se todos na prática sem saber o que era uma Conferência Episcopal, aonde chegaríamos sem sabermos para onde nos dirigíamos. Isto foi de uma gravidade extrema. Evidentemente, essas Assembléias Episcopais, quanto mais crescer sua importância e seus poderes, e seus direitos, mais esmagarão os bispos. Assim, o episcopado que é o arcabouço verdadeiro da Igreja de Nosso Senhor desaparece com o crescimento dessas Conferências”.
O leitor verificará que essas palavras de Dom Lefèbvre, bispo Católico empenhado em defender e em restaurar os direitos da Igreja de Cristo, e empenhado na formação de padres verdadeiros, dizem das Assembléias ou Conferências Episcopais exatamente o mesmo que venho em vão dizendo em meus artigos de jornal, e que disse pessoalmente ao sr. Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro na visita com que me honrou pouco depois de sua posse no cargo. Não me gabo de nenhuma lucidez especial porque a coisa me parece clara demais. Diria até: monstruosamente clara. Sim, é evidente que todo esse neoplasma saído das indefinições e indecisões do Concílio, embora tenha aparências de aparatosa hierarquia, ao contrário segue a tendência da anarquia que procura destruir, por inchação, por subversão, as verdadeiras hierarquias da Igreja que temos como artigo de fé.
O leitor ignorante da doutrina católica talvez imagine que venho combatendo e atacando os bispos, quando na verdade outra coisa não faço senão defender a real autoridade de que são portadores, autoridade de direito divino, contra a usurpação de grupos cuja dinâmica, por estranha coincidência, serve sempre e em toda a parte os interesses dos mais declarados inimigos da Igreja.
(O Estado de São Paulo, de 3 de outubro de 1974.)