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O monge e o passarinho

Diálogo entre um religioso e um secular
 
Secular — Já que me sucedeu caminhar em tão boa companhia, hei de aproveitar a ocasião e perguntar alguns pontos que desejava saber.
 
Religioso — Folgarei eu de poder servir a Deus, e prestar ao próximo em alguma coisa.

S. — Padre: Para que Deus criou o homem?
 
R. — Para que o homem se salvasse, e salvando-se, lhe desse glória no Céu eternamente.
 
S. — E que coisa é salvar-se?
 
R. —  É ver a Deus claramente, como ele é em si mesmo, gozar dele, amá-lo e louvÁ-lo para sempre.
 
S. —  Pois Deus tem corpo, ou figura, ou cor alguma para o podermos ver?
 
R. —  Deus é puro espírito: assim como os Anjos e as nossas almas também são espíritos. E por isso, nem os Anjos, nem as nossas almas tem cor, ou figura, que se possa ver com os olhos do corpo. Porém, o vermos a Deus não é senão com os da alma, que é outra vista muito mais clara e nobre.
 
S. — Para que são logo os olhos do corpo, ou em que se hão de empregar, quando estivermos no Céu?
 
R. —  Não lhes faltará que ver. Verão a Humanidade Santíssima de Cristo, cuja formosura excede sem comparação à de todas as coisas visíveis. Verão todos os mais Santos bem-aventurados, cada um dos quais resplandece mais que o Sol, e todos juntos postos por sua ordem, formam um espetáculo admirável, e deleitosíssimo. Verão o formosíssimo palácio do Céu Empíreo, com cuja grandeza comparado o Céu estrelado não vem a ser mais que um breve pontinho que desaparece. Verão todas as mais esferas celestes, sua fábrica, ornato e grandeza. E verão também toda a redondeza da terra com a nova formosura, que há de ter depois do dia do juízo. Ó quem nos dera já logrado este estado.
 
S. —  E por quanto tempo hão de ver a Deus os venturosos que se salvam?
 
R. —  Já disse que para sempre, em quanto o mesmo Deus for Deus: Considerais bem este para sempre, para sempre, e pasmareis da Bondade de Deus, que tal prêmio promete, e do descuido dos homens, que tal felicidade não estimamos e procuramos.
 
S. —  Tanto tem Deus que ver? E tanto que ser amado, e louvado que hão de estar as almas ocupadas nisto sempre, sempre sem cansarem?
 
R. —  Filho: os bens e gostos do mundo, uns mais, outros menos, todos finalmente enfastiam e cansam, porque em si são limitados, e o homem não é feito para eles. Porém, a formosura de Deus é infinita: suas perfeições, excelências e grandezas não têm limite. E assim, ainda que houvera infinitos Anjos e almas bem-aventuradas, nunca por toda a eternidade acabariam de compreender tão grande bem, nem cansariam de o amar, e louvar, especialmente sendo os Anjos e os homens criados para o logro deste bem. E senão, dizei-me vós: a pedra por ventura cansa de estar quieta, e assentada sobre o seu centro? Não, por certo: porque esse é o seu lugar próprio, e aí se acha bem. Sendo, pois, a vista de Deus o centro das nossas almas, e o seu lugar próprio, onde se acham sumamente ditosas: que muito que não cansem de ver a Deus, e por conseguinte de o amar, e louvar eternamente? Para que esta verdade se vos faça mais crível, vos contarei um exemplo, que trazem graves Autores.
 
Estando um Monge em Matinas com os outros Religiosos do seu Mosteiro, quando chegaram aquilo do Salmo, onde se diz que mil anos à vista de Deus são como o dia de ontem, que já passou, admirou-se grandemente, e começou a imaginar como aquilo podia ser. Acabadas as matinas, ficou em Oração, como tinha de costume: e pediu afetuosamente a Nosso Senhor se servisse de lhe dar inteligência daquele verso. Apareceu-lhe ali, no coro, um passarinho, que cantando suavíssimamente, andava diante dele dando voltas de uma para a outra parte, e deste modo o foi levando pouco a pouco até um bosque que estava junto do Mosteiro, e ali fez seu assento sobre uma árvore; e o servo de Deus se pôs debaixo dela a ouvir. Dali a um breve intervalo (conforme o Monge julgava) tomou o vôo e desapareceu com grande mágoa do servo de Deus, o qual dizia mui sentido: Ó passarinho da minha alma, para onde te fostes tão depressa? Esperou.  Como viu que não tornava, recolheu-se para o Mosteiro, parecendo-lhe que aquela mesma madrugada depois de Matinas tinha saído ele. Chegando ao Convento, achou tapada a porta, que de antes costumava servir, e aberta outra de novo em outra parte. Perguntou-lhe o Porteiro quem era, e a quem buscava. Respondeu-lhe: Eu sou o sacristão, que poucas horas há que saí de casa, e agora torno, e tudo acho mudado. Perguntado também pelos nomes do Abade e do Prior, e Procurador, ele lhos nomeou, admirando-se muito de que não o não deixasse entrar no Convento, e de que mostrava não se lembrar daqueles nomes. Disse-lhe que o levasse ao Abade: e posto em sua presença, não se conheceram um ao outro; nem o Monge sabia que dissesse, ou fizesse, mais que estar confuso e maravilhado de tão grande novidade. O Abade então, iluminado por Deus, mandou vir os Anais e histórias da Ordem: onde, buscando, e achando os nomes que o Monge apontava, se veio a averiguar com toda a clareza que eram passados mais de trezentos anos desde que o Monge saíra do Mosteiro até que tornara para ele. Então, este contou o que lhe havia sucedido, e os Religiosos o aceitaram como a Irmão seu do mesmo hábito. E ele, considerado na grandeza dos bens eternos, e louvando a Deus por tão grande maravilha, pediu os Sacramentos, e brevemente passou desta vida com grande paz no Senhor.
 
Este é o exemplo. Vede agora, que se a música de um passarinho pôde entreter aquele Monge trezentos anos com tanto gosto seu, que lhe pareceram poucas horas, e ainda desejasse que durasse mais: como não bastará a vista de Deus, que é um bem onde se encerram juntos infinitos bens, para suspender a nossa alma sem fastio, nem cansaço, por toda eternidade? Antes, com satisfação, e gozo tão cabal, como se naquele instante começasse a ver a Deus.
 
(trecho de “O Pão Partido em Pequeninos”. O título deste texto é de nossa autoria)

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