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Pleito entre frades e formigas

Foi o caso (conforme narrou um sacerdote da mesma religião e província) que naquela capitania as formigas, que são muitas, e mui grandes e daninhas, para estenderem o seu reino subterrâneo e ensancharem os seus celeiros, de tal sorte minaram a despensa dos frades, afastando a terra debaixo dos fundamentos, que ameaçava próxima ruína. E, acrescentando delito a delito, furtavam a farinha de pau, que ali estava guardada para quotidiano abasto da comunidade. Como as turmas do inimigo eram tão bastas e incansáveis a toda a hora do dia e da noite, vieram os religiosos a padecer falta e a buscar-lhe o remédio: e, não aproveitando alguns do que fizeram experiência, porque, enfim, a concórdia na multidão a torna insuperável, ultimamente, por instinto superior (ao que se pode crer), saiu um religioso com este arbítrio: que eles, revezando-se daquele espírito de humildade e simplicidade com que seu seráfico patriarca a todas as criaturas chamava irmãs (irmão sol, irmão lobo, irmã andorinha, etc.), pusessem demanda àquelas irmãs formigas, perante o tribunal da Divina Providência, e sinalassem procuradores, assim por parte deles, autores, como delas, rés; e o seu prelado fosse o juiz, que, em nome da Suprema Equidade, ouvisse o processado e determinasse a presente causa.

Agradou a traça, e isto assim disposto, deu o procurador dos padres piedosos libelo contra as formigas; contestada por parte delas a demanda, veio articulando que eles, autores, conformando-se com seu instituto mendicante, viviam de esmolas, ajuntando-as com grande trabalho seu pelas roças daquele país, e que as formigas, animal de espírito totalmente oposto ao Evangelho, e por isso aborrecido de seu padre S. Francisco, não faziam mais que roubá-los, e não somente procediam como ladrões formigueiros, senão que com manifesta violência os pretendiam expelir de casa, arruinando-a. E, portanto, dessem razão de si, ou, quando não, fossem todas mortas com algum ar pestilente ou afogadas com alguma inundação ou, pelo menos, exterminadas para sempre daquele distrito.
 
A isto veio contrariando o procurador daquele negro e miúdo povo, e alegou, por sua parte, fielmente:
 
«Em primeiro lugar: que elas, uma vez recebido o benefício da vida por seu Criador, tinham direito natural a conservá-la por aqueles meios que o mesmo Senhor lhes ensinara;
 
Item: que na praxe e execução destes meios serviam ao Criador, dando aos homens os exemplos de virtudes que lhes mandara, a saber: de prudência, acautelando os futuros e guardando para o tempo da necessidade; de diligência, ajuntando nesta vida merecimentos para a vida eterna; de caridade ajudando umas às outras, quando a carga é maior que as forças; e também de religião e piedade, dando sepultura aos mortos da sua espécie...;
 
Item: que o trabalho que elas punham na sua obra era muito maior, respectivamente, que o deles, autores, em ajuntar as esmolas, porque a carga muitas vezes era maior que o corpo, e o ânimo que as forças;
 
Item: que, suposto que eles eram irmãos mais nobres e dignos, todavia diante de Deus também eram umas formigas, e que a vantagem do seu grau racional harto se descontava e batia com haverem ofendido ao Criador, não observando as regras da razão, como elas observavam as da natureza, pelo que se faziam indignos de que criatura alguma os servisse e acomodasse, pois maior infidelidade era neles defraudarem a glória de Deus por tantas vias, do que nelas furtarem sua farinha;
 
Item: que elas estavam de posse daquele sítio antes deles, autores, fundarem, e, portanto, não deviam ser dele esbulhadas, e da força que se lhes fizesse apelariam para a Coroa da regalia do Criador, que tanto fez os pequenos como os grandes e a cada espécie deputou seu anjo conservador. E, ultimamente, concluíram que defendessem eles a sua casa e farinha, pelos modos humanos que soubessem, porque isto lhes não tolhiam, porém que elas, sem embargo, haviam de continuar as suas diligências, pois do Senhor, e não deles, era a terra e quanto ela cria (Domini est terra et plenitudo eius).»
 
Sobre esta contrariedade houve réplicas e contra-réplicas, de sorte que o procurador dos autores se viu apertado, porque, uma vez deduzida a contenda ao simples foro de criaturas, e abstraindo razões contemplativas com espírito de humanidade, não estavam as formigas destituídas de direito, pelo que o juiz, vistos os autos, e pondo-se com ânimo sincero na equidade que lhe pareceu mais racionável, deu sentença que os frades fossem obrigados a sinalar dentro da sua cerca sítio competente para vivenda das formigas, e que elas, sob pena de excomunhão, mudassem logo habitação, visto que ambas as partes podiam ficar acomodadas sem mútuo prejuízo, maiormente porque eles, religiosos, tinham vindo ali, por obediência, a semear o grão evangélico e era digno o operário do seu sustento, e o das formigas podia consignar-se em outra parte, por meio da sua indústria, a menos custo.
 
Lançada esta sentença, foi outro religioso, de mandado do juiz, intimá-la em nome do Criador àquele povo, em voz sensível, nas bocas dos formigueiros.
 
Caso maravilhoso e que mostra como se agradou deste requerimento aquele Supremo Senhor de quem está escrito que brinca com as suas criaturas (Ludens in orbe terrarum!). Imediatamente saíram, a toda a pressa, milhares de milhares daqueles animalejos, que, formando longas e grossas fieiras, demandaram em direitura o sinalado campo, deixando as antigas moradas, e livres de sua molestíssima opressão aqueles santos religiosos, que renderam a Deus as graças por tão admirável manifestação de seu poder e providência!

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