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Os Fatos

A menos que todos sejamos loucos, existe sempre uma história por trás do mais estranho e inquietante caso; e se todos somos loucos, então não existe o que se chama loucura. Se eu ateio fogo a uma casa pode acontecer que venha, com esse ato, iluminar fraquezas alheias ao mesmo tempo que evidencio as minhas. É possível que o dono da casa seja queimado porque estava embriagado; é possível que a dona da casa seja queimada por ser avara, e sucumba discutindo a despesa de um aparelho de salvamento. A verdade, porém, é que ambos foram queimados porque eu lhes pus fogo na casa. Essa é, no caso, a história. Os simples fatos da história, relativos à atual conflagração européia, são igualmente fáceis de contar.

Antes de abordarmos as questões mais profundas, que fazem desta guerra a mais sincera da história humana, é tão fácil responder à pergunta de como a Inglaterra nela se acha envolvida, como é fácil perguntar a um indivíduo o que fez ele para cair num bueiro ou para falhar numa entrevista. Os fatos não são a verdade completa. Mas os fatos são fatos, e neste caso são poucos e simples. A Prússia, a França e a Inglaterra tinham, todas, prometido não invadir a Bélgica. A Prússia propôs a invasão da Bélgica porque era o único caminho praticável para a invasão da França. Mas a Prússia prometeu que, mediante a ruptura da sua e da nossa promessa, arrombaria, mas não roubaria. Em outras palavras, oferecia-nos uma promessa de fidelidade para o futuro e uma proposta de perjúrio para o presente. Os que se interessam pela origem dos problemas humanos podem reportar-se a um velho escritor inglês da época vitoriana, que consagrou o último e mais compacto de seus ensaios históricos a Frederico-o-grande, fundador dessa política prussiana que desde então não mudou. Depois de descrever como Frederico rompeu o tratado que tinha assinado a favor de Maria Teresa, passa a descrever como tentou Frederico reajustar as coisas a seu favor com uma promessa que era um insulto. “Se Maria Teresa consentisse em lhe abandonar a Silésia, então ele tomaria a sua defesa contra qualquer potência que tentasse depojá-la de seus outros territórios. Assim dizia ele, como se já não tivesse prometido a defesa, ou como se a nova promessa pudesse valer mais que a antiga”. Esta passagem foi escrita por Macaulay mas, em relação aos fatos contemporâneos, poderia ter sido escrita por mim.
 
A respeito do imediato interesse inglês, de sua lógica e legal origem, não pode haver razoável controvérsia. Há coisas tão simples que podem ser provadas, quase, com planos e linhas, como em geometria. Seria possível fazer uma espécie de calendário cômico, contando o que iria acontecer com um diplomata inglês que, em cada circunstância, fosse reduzido ao silêncio pelo diplomata prussiano.
 
24 de julho: A Alemanha invade a Bélgica.
25 de julho: A Inglaterra declara guerra.
26 de julho: A Alemanha promete não anexar a Bélgica.
27 de julho: A Inglaterra retira-se da guerra.
28 de julho: A Alemanha anexa a Bélgica; a Inglaterra declara guerra.
29 de julho: A Alemanha promete não anexar a França; a Inglaterra retira-se da guerra.
30 de julho: A Alemanha anexa a França; a Inglaterra declara guerra.
31 de julho: A Alemanha promete não anexar a Inglaterra.
1 de agosto: A Inglaterra retira-se da guerra. A Alemanha invade a Inglaterra.
 
Quanto tempo pode alguém esperar que se prolongue um jogo dessa espécie ou que se mantenha a paz com tão ilimitado preço? Até que ponto deveríamos prosseguir neste caminho em que as promessas são fetiches quando estão na frente e escombros quando ficam para trás? Não. De acordo com os fatos, os nítidos fatos, das últimas negociações, contador por qualquer dos diplomatas em qualquer dos documentos, não há duas interpretações para a história. E não há dúvida também sobre quem representou nela o papel do vilão.
 
Esses são os últimos fatos, os que envolveram a Inglaterra. É igualmente fácil estabelecer os primeiros fatos, os que envolveram a Europa. O príncipe, que era praticamente senhor da Austria, foi assassinado por pessoas que o governo da Áustria acreditou serem conspiradores sérvios. O governo da Áustria acumulou armas e homens sem dizer palavra, nem à suspeitada Sérvia, nem à aliada Itália. Pelos documentos infere-se que a Áustria guardou segredo para todo mundo, exceto para a Prússia. Mais próximo da verdade, provavelmente, seria dizer que a Prússia guardou segredo para todo mundo inclusive para a Áustria. Tudo isso, porém, é o que se costuma chamar opinião, crença, convicção ou bom-senso; e não é do que tratamos aqui. O fato objetivo é que a Áustria advertiu a Sérvia que os oficiais sérvios deveriam se submeter à autoridade dos oficiais austríacos; e que a Sérvia tinha quarenta e oito horas para se submeter a essa advertência. Em outras palavras, o Rei da Sérvia estava praticamente convidado a se despojar, não somente dos louros de duas grandes campanhas, mas de sua própria coroa, de seu poder nacional e legal, e num lapso de tempo mais curto do que se exige, habitualmente, para a liquidação de uma conta de hotel. A Sérvia pediu uma protelação; uma arbitragem. A paz, enfim. Mas a Rússia já tinha começado a mobilização; a Prússia, presumindo que a Sérvia ia receber socorro, declarou a guerra.
 
Entre esses dois acontecimentos, o ultimato à Sérvia e o ultimato à Bélgica, e no que se refere à conexão entre eles, alguém poderá, evidentemente, discorrer como se todas as coisas fossem relativas. Se perguntar por que se apressou tanto o Czar a correr em auxílio da Sérvia, é fácil perguntar-lhe também por que se apressou o Kaiser a correr em auxílio da Áustria. Se alguém diz que os franceses estavam para atacar os alemães, basta responder que os alemães atacaram os franceses. Restam, entretanto, duas atitudes a considerar; talvez mesmo dois argumentos a refutar, e parece-me que tanto a refutação como a consideração se enquadram bem nesta introdução que, de um modo geral, trata dos fatos. Para começar, há uma espécie de estranho e brumoso argumento muito apreciado pelos retóricos profissionais que a Prússia envia para instruir e retificar as mentes americanas e escandinavas.  Consiste este argumento em convulsões de incredulidade e escárnio à simples menção da responsabilidade que teriam a Rússia com a sérvia e a Inglaterra com a Bélgica. E consiste também em insinuar que, com tratados ou sem tratados, com fronteiras ou sem fronteiras, a Rússia sairia a massacrar teutões, e a Inglaterra correria a lhes furtas colônias. Neste ponto, como aliás nos outros, eu acho que os professores que pululam na planície báltica carecem de lucidez e de simples discernimento. É óbvio que a Inglaterra tem interesses materiais a defender, e é provável que não deixará passar a oportunidade de os defender; ou, em outras palavras, a Inglaterra certamente ficaria muito mais tranqüila, como todo mundo, se a predominância da Prússia fosse menor.
 
Sobra entretanto o fato: nós não fizemos o que os alemães fizeram. Não invadimos a Holanda para adquirir vantagens navais e comerciais; se disserem que nossa cupidez nos incitava ao ato ou que nossa covardia no-lo impediu, mantém o fato: nós não invadimos a Holanda. Uma vez abandonado esse simples bom senso, eu não posso conceber a possibilidade de julgamento de um conflito. Um contrato pode ser feito entre duas pessoas para vantagem material recíproca; mas a vantagem moral, ainda é geralmente admitido que ela fique com a pessoa que cumpre o contrato. Não há certamente desonestidade em ser honesto, ainda que a honestidade seja a melhor política. Imagine o leitor o mais intrincado Dédalo de motivos e intenções; sempre, invariavelmente, o homem que mantém sua palavra por interesse financeiro não pode ser apontado como pior do que o homem que falta à palavra por interesse financeiro. E é fácil observar que esse critério se aplica do mesmo modo à Sérvia, à Bélgica e à Grã-Bretanha. Os sérvios podem não ser muito pacíficos, mas no caso que estamos discutindo eram eles, certamente, que desejavam a paz. O leitor pode, entre outras opiniões, considerar o sérvio como um salteador congênito, mas no caso, neste caso que estamos discutindo, era o austríaco, certamente, que tentava assaltar. Nessa mesma ordem de idéias, fazendo uma espécie de sumário histórico não é vedado dizer que a Inglaterra é pérfida, nem há inconveniente em considerarmos, em nosso foro íntimo, que Mr. Asquith1 estava votado desde a tenra infância à destruição do Império Germânico, como um Aníbal ou um devorador de águias. Contudo, será sempre pouco sensato dizer que um homem é pérfido porque manteve o que prometeu. É absurdo queixar-se da inopinada traição que comete um homem de negócio quando chega pontualmente na entrevista aprazada, ou do choque desleal produzido no credor pelo devedor que vem pagar sua conta.
 
Para terminar, há uma atitude, muito divulgada nesta crise, contra a qual eu faço questão de levantar um especial protesto. Dirijo-me aos enamorados da paz, aos perseguidores da paz, que inconsideradamente, e em mais de uma ocasião, tomaram a referida atitude. Refiro-me à impaciência que eles demonstraram quando se discutia quem fez isto ou aquilo, ou se tinha razão ou não tinha. Eles se contentam com dizer que uma monstruosa calamidade, chamada guerra, foi desencadeada por uns ou por todos nós e deve ser encerrada por uns ou por todos nós. Para essas pessoas este capítulo preliminar, relativo aos acontecimentos como se passaram, parecerá não somente árido (ele é efetivamente a parte mais árida da tarefa) mas sobretudo desnecessário e estéril. Ora, eu faço empenho em dizer a essas pessoas que elas não têm razão; que elas não têm razão, de acordo com os princípios da justiça humana e da continuidade histórica; e que, acima de tudo, elas estão erradas, particularmente e soberanamente enganadas em nome de seus próprios princípios de arbitragem e de paz internacional.
 
Esses sinceros e magnânimos enamorados da paz estão sempre a nos repetir que os cidadãos cessaram de resolver suas disputas pela violência privada, e que as nações deveriam cessar de resolver as suas pela violência pública. Não se cansam de nos dizer que já abolimos os duelos e que já é tempo de abolirmos as guerras. Em resumo, eles baseiam invariavelmente suas propostas de paz no fato de haver passado a época em que um cidadão comum se vingava a golpes de machado. Mas como se consegue evitar que esse cidadão resolva suas pendências de modo tão sumário? Que fazemos quando ele fere seu vizinho com a machadinha da cozinheira? Ficamos de mãos dadas, como crianças, brincando de ciranda-cirandinha, dizendo: “Somos todos responsáveis por isto, mas esperemos que o fato não se generalize. Esperemos dias melhores, em que nos absteremos de agredir os vizinhos a machado; em que nunca, jamais!, se lembre alguém de picar quem quer que seja”? Ou dizemos: “O que está feito, está feito; para que voltar a esses obscuros preliminares do caso? Quem poderá informar que sinistras intenções tinha aquele homem que ficou ao alcance do machado?”
 
Não; não é assim que costumamos resolver esses casos. Mantemos a paz na vida privada examinando os fatos, investigando de onde veio a provocação e quem devemos punir. Entramos em detalhes obscuros, inquirimos as origens, procuramos, com insistência, saber quem deu o primeiro golpe. Em resumo, costumamos fazer o que estou fazendo, um pouco sucintamente, neste capítulo.
 
Assentado este ponto, convenho que atrás desses fatos existem verdades, verdades de uma espécie terrível: verdades espirituais. Como simples fato, o poder germânico foi desleal com a Sérvia, desleal com a Rússia, desleal com a Bélgica, desleal com a Inglaterra, desleal com a Itália. Mas havia uma razão para que ele fosse sempre desleal; e é dessa primordial razão, que levantou contra ele a metade do mundo, que falarei nos capítulos seguintes. Trata-se de uma coisa onipresente demais, que dispensa provas, e tão indiscutível que não lucra com acúmulo de detalhes. Refiro-me, nem mais nem menos, à localização do mal europeu moderno, depois de um século de recriminações e falsas explicações; ou à descoberta do foco de onde saiu o veneno que se espalhou sobre todas as nações do mundo.

  1. 1. [Nota da Permanência]Hebert Henry Asquith (12/9/1852-15/2/1928) foi Primeiro Ministro do Reino Unido de 1908 a 1916.
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