É inegável que existe uma persistente dúvida no espírito de muitas pessoas, que reconhecem a legítima defesa na viva réplica da espada britânica, e que morrem de amores pelo sabre devastador de Sadowa e Sedan. Duvidam que a Rússia, comparada com a Prússia, seja suficientemente democrática e decente para ser aliada de potências liberais e civilizadas. Começarei, pois, por essa questão de civilização.
É essencial, numa discussão desse gênero, assegurarmo-nos de que não nos prendemos a meras palavras, mas às significações. Não é necessário, numa argumentação, estipular o que uma palavra significa ou deveria significar. Mas é indispensável, em cada caso, deixar bem claro o que pretendemos dizer com as palavras. Desde que nosso adversário compreenda qual é a coisa de que estamos falando, pouco importa para a clareza da discussão que ele preferisse outra palavra. Um soldado não diz: “Temos ordens de ir a Mechlin, mas eu prefiriria ir a Malines”. Durante o caminho ele poderia discutir a diferença, sob o ponto de vista etimológico ou arqueológico: o essencial, porém, é que ele saiba aonde deve ir. Desde que saibamos o sentido que determinada palavra tem em determinada discussão, não importa muito que ela possa tomar outro sentido em outra discussão. Temos, indubitavelmente, o direito de dizer que a largura de uma janela orça por quatro pés, ainda que, de repente, desloquemos o assunto para os paquidermes dizendo que o elefante tem quatro pés. A identidade das palavras não importa onde não existe dúvida sobre o sentido. Ninguém irá, provavelmente, pensar que o elefante mede quatro pés ou que a janela tenha duas presas e uma tromba flexível.
É essencial insistir no conhecimento bem consciente da coisa discutida, em conexão com duas ou três palavras que são, por assim dizer, as palavras-chave desta guerra. Uma delas é a palavra “bárbaro”. Os prussianos aplicam-na aos russos; os russos aplicam-na aos prussianos. Ambos querem designar, creio eu, alguma coisa que existe, que existe realmente, qualquer que seja o nome. Cada um, porém, designa uma coisa diferente. E, se perguntarmos quais são e qual é a diferença, compreenderemos então por que a Inglaterra e a França preferem a Rússia, e consideram que a Prússia é realmente, das duas, a mais bárbara e perigosa. Para começar, devo advertir que a questão é mais profunda do que o exame das atrocidades, cuja prática, pelo menos no passado, foi equitativamente partilhada pelos três impérios da Europa central, como também entre eles foi partilhada a Polônia. Um escritor inglês, tentando nos desviar da guerra e prevenindo-nos contra a influência russa, disse que havia, entre nós e a aliança, os dorsos fustigados das mulheres polonesas. Mas não faz muito tempo que um general austríaco foi linchado pelas ruas de Londres, pelos carroceiros de Barclay e Perkin, por ter esbordoado mulheres. Quanto à terceira potência, parece claro que o tratamento infligido pelos prussianos às mulheres belgas teve tal estilo que, em comparação, o espancamento pode ser considerado mera formalidade. Mas, como já disse, existe algo mais profundo do que as recriminações atrás do sentido da palavra que ambas as partes empregam. Quando o Imperador da Alemanha se queixa da nossa aliança com uma potência bárbara semi-oriental, não está — eu o garanto — derramando lágrimas sobre o túmulo de Kosciusko. E quando eu digo — e veementemente o afirmo — que o Imperador da Alemanha é um bárbaro, não estou exprimindo apenas os preconceitos que eu possa ter contra a profanação de igrejas e crianças. Meus concidadãos e eu, quando tratamos de bárbaros os prussianos, exprimimos uma idéia certa e inteligível, que difere daquela que se atribui aos russos e que, de fato, não pode ser atribuída aos russos. É muito importante que o mundo neutro aprenda essa idéia.
Se um alemão chama o russo de bárbaro, quer dizer imperfeitamente civilizado. Há um certo caminho que as nações ocidentais trilharam nesses últimos tempos, e é admissível dizer que a Rússia não avançou tanto como os outros; é incontestável que ela está atrasada em relação aos nossos modernos sistemas em ciência, em comércio, em técnica, em meios de transporte e em instituições políticas. O russo lavra a terra com uma velha charrua; usa uma barba hirsuta; adora relíquias; e sua vida é tão rude e tão dura como a de um súdito de Alfredo, o Grande. Assim é que o russo é bárbaro no sentido alemão. Pobres-diabos como Gorki e Dostoievski terão que se arranjarem, sozinhos, nas suas próprias reflexões sobre as paisagens, sem o auxílio de grossas citações de Schiller pintadas nos bancos de jardim, ou de inscrições convidando-os a agradecerem, com recolhimento, ao Todo-Poderoso, o belíssimo panorama de Hesse-Pumpernickel. Os russos, não possuindo senão sua fé, seus campos, sua grande coragem, e suas comunas autônomas, estão absolutamente excluídos daquilo que, nos quarteirões mais elegantes de Frankfurt, é chamado o Verdadeiro, o Belo e o Bem. Existe realmente um sentido que nos autoriza a considerar como bárbaro um país tão retardatário em comparação com a Kaiserstrasse; e, nesse sentido, os russos são bárbaros.
Mas não é nisso que pensamos, nós outros franceses e ingleses, quando chamamos os prussianos de bárbaros. Ainda que suas cidades se elevassem acima de seus navios aéreos, e seus trens viajassem mais rápidos que suas balas, nós ainda os chamaríamos de bárbaros. É preciso saber exatamente o que queremos dizer; e é preciso saber que é verdade. O que designamos não é uma civilização imperfeita por acidente, mas algo que é hostil à civilização de propósito. Algo que está voluntariamente em guerra contra os princípios que tornaram possível até hoje a vida humana em sociedade. Sem dúvida, é preciso ser parcialmente civilizado, mesmo para destruir a civilização. Selvagens indolentes e incultos não seriam incapazes de tão importante devastação. Não poderíamos ter hunos sem cavalos; ou cavalos sem a arte da equitação. Não poderíamos ter piratas dinamarqueses sem navios, e navios sem a arte de navegação. Esse personagem que eu chamo o Bárbaro Positivo deve estar, de um modo geral, mais ao par das coisas do que esse outro que eu chamo o Bárbaro Negativo. Alarico era oficial nas legiões romanas, o que não o impediu de destruir Roma. Ninguém irá supor que os esquimós pudessem fazer o mesmo e tão bem. Mas, no sentido que adotamos, a barbaria não é uma questão de métodos, mas de fins. Afirmamos que esses vândalos postiços têm o objetivo perfeitamente definido de destruir certas idéias que, na opinião deles, se tornaram estreitas demais para o mundo, e sem as quais, em nossa opinião, o mundo sucumbiria.
É essencial que essa perigosa particularidade do Prussiano ou Bárbaro Positivo, seja bem apreendida. Ele possui uma coisa que imagina ser uma idéia nova, e está procurando aplicá-la a todos. Na verdade, trata-se apenas de uma falsa generalização, mas ele está realmente tentando torná-la geral. Ora, isso não se aplica ao Bárbaro Negativo; não se aplica aos russos e aos sérvios, ainda que eles sejam bárbaros. Se um camponês russo espanca sua mulher, é porque seus pais já antes dele o faziam; é provável até que espanque cada vez menos, porque as coisas do passado tendem a se desvanecerem. Não lhe passa pela idéia, como aconteceria a um Prussiano, ter feito uma nova descoberta em fisiologia, observando que a mulher é mais fraca do que o homem. Se um sérvio apunhala seu rival sem uma palavra, é porque outros sérvios antes dele fizeram o mesmo. Talvez mesmo considere isso um ato de piedade, mas certamente não considera um progresso. Ele não crê, como o Prussiano, ter fundado uma nova escola em cronometria pelo fato de sair correndo antes do sinal de partida. Não pensa que está adiantado em militarismo em relação ao resto do mundo somente porque está atrasado em costumes. Não; o prussiano é perigoso porque está preparado para combater por velhos erros como se fossem verdades novas. Ouviu falar, vagamente, de algumas simplificações pouco interessantes, e imagina que nós nada sabemos a respeito. Como já disse, sua mesquinha mas sincera demência consiste em querer duas idéias, as duas raízes gêmeas da sociedade humana. A primeira é a idéia de registro e promessa; a segunda, é a idéia de reciprocidade.
É claro que a promessa, ou extensão da responsabilidade no tempo, é aquilo que nos diferencia principalmente, não digo dos selvagens, mas das bestas e dos répteis. Assim o reconhece, com sagacidade, o Antigo Testamento, quando resume nestas palavras a sombria e irresponsável monstruosidade do Leviatã: “Fará ele um pacto contigo?” A promessa, como a roda, é desconhecida da natureza: é a primeira marca do homem. Relativamente à civilização humana é que se pode dizer com convicção que no princípio era a Palavra. O juramento está para o homem como o canto está para o pássaro ou o latir para o cão; é sua voz, pela qual é ele conhecido. Assim como o homem, que não pode ser pontual num encontro, não é bom mesmo para um duelo, também o homem, que não pode manter as promessas que a si mesmo faz, não é são, mesmo para o suicídio. Não é fácil citar uma coisa da qual se possa dizer que dela depende toda a enorme complexidade da vida humana. Mas, se de alguma coisa depende, é dessa frágil corda estendida entre as colinas estendidas do ontem e as invisíveis montanhas do amanhã. Neste fio solitário e vibrátil estão penduradas todas as coisas, desde o Armageddon até o almanaque, desde uma revolução bem sucedida até um bilhete de volta. E é esse fio solitário que o Bárbaro golpeia pesadamente com um sabre, que felizmente já está bastante embotado.
Basta ler as últimas negociações entre Londres e Berlim, para que isso se torne evidente. Os prussianos fizeram uma nova descoberta em política internacional: que muitas vezes é conveniente fazer uma promessa, e que é curiosamente desvantajoso mantê-la. Ficaram encantados, em sua ingenuidade, com essa descoberta científica e desejaram comunicá-la ao mundo. Fizeram, então, à Inglaterra uma promessa, sob a condição de romper ela uma promessa, e ficando implicitamente entendido que a nova promessa poderia ser quebrada tão facilmente quanto a primeira. Com profunda estupefação da Prússia, essa razoável oferta foi recusada! E eu estou convencido da perfeita sinceridade da estupefação prussiana. E é nesse sentido que eu digo que o Bárbaro está tentando cortar o fio da honestidade e dos límpidos testemunhos em que está suspenso tudo o que os homens têm feito.
Os amigos da causa alemã queixaram-se de termos trazido da Índia e da Algéria, contra os alemães, asiáticos e africanos que vivem no limiar da selvageria. Em circunstância ordinárias eu simpatizaria com tal queixa formulada por um povo europeu. Mas as circunstâncias atuais não são ordinárias. Aqui, mais uma vez, a tranqüila e incomparável barbaria prussiana desce profundamente abaixo do que chamamos barbaridades. Em matéria de barbaridade estou certo que o árabe e o sikh levariam vantagens sobre o superior teutão. De um modo geral, a razão justa para evitar o emprego de tribos não européias contra os europeus foi dada por Chatham a propósito do uso dos pele-vermelhas: aliados dessa espécie seriam capazes de atos diabólicos. Mas o pobre árabe que passasse um week-end na Bélgica, poderia perguntar, muito razoavelmente, que diabólicos atos teriam ficado para ele depois do que fizeram por conta própria os alemães de alta cultura. Entretanto, como já disse, a justificação dos auxílios extra-europeus é mais profunda do que as discussões desses detalhes. Baseia-se em que, mesmo as outras civilizações, mesmo as mais retrógradas civilizações, mesmo as remotas e repulsivas civilizações, dependem tanto quanto a nossa própria desse primordial princípio, ao qual a supermoralidade de Potsdam declarou guerra aberta. Os próprios selvagens fazem promessas, e respeitam quem as mantém. Os próprios orientais registram seus compromissos por escrito, e embora escrevam da direita para a esquerda, eles sabem a importância que tem um “farrapo de papel”. Muitos negociantes nos dirão que um sinistro e quase desumano chinês é muitas vezes um homem de palavra; e foi no meio das palmeiras e das tendas sírias que a grande voz abriu o tabernáculo àquele que presta juramento contra o seu interesse e que o cumpre. Há, sem dúvida alguma, um intrincado labirinto de duplicidade entre os orientais, e talvez maior dose de malícia num asiático tomado isoladamente do que num alemão. Mas não estamos aqui tratando das violações da moral humana nas diferentes partes do mundo. Estamos tratando de uma nova e desumana moral que se gaba de sonegar o dia do compromisso. Os prussianos ouviram dizer, de seus homens de letras, que tudo depende de um impulso da vontade, e de seus políticos que todos os arranjos se dissolvem diante da “necessidade”. Eis aí o alcance da frase pronunciada pelo chanceler alemão. Ele não alegou, no caso da Bélgica, alguma especial desculpa que pudesse apresentar esse caso como uma exceção confirmando a regra. Ao contrário, argumentou nitidamente em nome de um princípio aplicável a outros casos, que a vitória é uma necessidade, e a honra um farrapo de papel. É evidente que a imaginação semi-educada de um prussiano não pode, realmente, ir muito além disso. Não pode chegar a descobrir que, se fossem as ações humanas completamente imprevisíveis em cada instante, seria o fim não somente de todas as promesas mas de todos os projetos. A incapacidade de compreender isto coloca o filósofo de Berlim, em nível mental, abaixo do árabe que respeita o sal, ou do brâmane que preserva a casta. E nesta pendência temos o direito de comparecer com a cimitarra ou com o sabre, com arcos ou com fuzis, com a azagaia, com o tomahawk, com o boomerang — porque em todas essas coisas existe, ao menos, uma semente de civilização que esses anarquistas intelectuais quereriam matar. E se, em nosso último reduto, em nosso último combate, eles nos encontrarem equipados com tão estranhas armas ou formados em torno de tão exóticas bandeiras, e se nos perguntarem por que combatemos em tão singular companhia, saberemos o que responder: “Nós combatemos pelo crédito e pela palavra; pelo registro da memória e pela possibilidade de um comércio entre os homens; por tudo que distingue a vida humana de um desgovernado pesadelo. Combatemos pelo longo braço da honra e da lembrança, por tudo que eleva o homem acima das areias movediças de seus humores, e que lhe dá o domínio sobre o tempo”.