Skip to content

Carta ao milionário brasileiro

 

CARTA AO MILIONÁRIO BRASILEIRO
 
Nelson Rodrigues
1
Meu caro milionário paulista. Não, não. Melhor será dizer: brasileiro. Meu caro milionário brasileiro: em primeiro lugar, devo dizer-lhe que não sinto nenhum preconceito contra o rico. Fica-lhe muito bem a sua fortuna e vou-lhe dizer mais: desejo do fundo da alma que você tenha uma casaca. Se a tem, creia-me: está justificado o fato de você ter nascido.

 

2

Nem pense que a casaca seja um dado frívolo, intranscendente. Sabe você por onde se demonstra o nosso racismo jamais confessado? Por um fato muito mais dramático do que se imagina: até hoje, não se viu um preto brasileiro de casaca. Não importa que os nossos sociólogos ponham a mão no fogo por uma democracia racial que nunca existiu. Primeiro, a casaca; depois, a sociologia.
3
Mas como ia dizendo: não tenho o preconceito contra a fortuna e tenho o preconceito oposto, ou seja: contra a miséria. Entendo que o Dom Hélder ame a miséria, ame a mortalidade infantil, ame a fome. Tudo isso é o seu ganha-pão. Por uma questão de sobrevivência e de turismo (ele, que viaja tanto), interessa-lhe que o Nordeste apodreça de fome infantil e adulta. Mas eu quero, inversamente, a multiplicação dos ricos.
4
Está escrito que é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus. Escrevo isso e já uma dúvida me ocorre: será “fundo de uma agulha” ou “buraco de uma agulha”? Em ambas as hipóteses, tanto faz. Não sei se é católico e, em caso afirmativo — que tipo de católico? No passado, o católico era simplesmente católico. Mas hoje tudo mudou. Os “padres de passeata”, ditos “progressistas”, questionam todos os dogmas e, até, acham graça nos dogmas. Uns são católicos-marxistas, outros católicos sem vida eterna, e ainda outros “católicos-maoístas'“, ou “católicos-fidelistas” etc. etc. Só não são católicos.
5
Se meu caro milionário está na linha de D. Hélder e Dr. Alceu, a história do camelo e da agulha não passa de fábula de “gibi”. Mas quero crer que você seja um católico de verdade e não dos falsamente chamados “progressistas”. E, nesse caso, entre o efêmero e o eterno, você terá escolhido a eternidade.
6
Mas pergunto: entrará você no reino dos céus? Façamos aqui uma breve meditação sobre o seu destino efêmero e o seu destino eterno. Na Terra ou por outra — no Brasil, ser rico é um risco. Duas forças o ameaçam: de um lado, o comunismo; de outro lado, o anticomunismo. O que o salva do comunismo é o comunista. Com que inépcia, cegueira, obtusidade, irrealismo, alienação o comunista liquida o comunismo.
7
Resta o anticomunismo, que, por um ressentimento ingênuo, também não gosta dos ricos. Outro dia, dizia-me um milionário: “Ainda vou-me disfarçar de ceguinho.” Não brincava. Falo muito no ceguinho da Rua do Ouvidor. É o que toca ao violino sempre o mesmo tango: “La Cumparsita”. E o meu amigo milionário, nas suas fantasias, imagina-se de óculos escuros, bisando eternamente “La Cumparsita”. Gemeu: “O ceguinho da Rua do Ouvidor está muito mais seguro do que os milionários do Brasil.” Certamente, há, no seu pânico, um relativo exagero.
8
Eu me pergunto se você será ou não um herdeiro. Fez a sua fortuna ou se a recebeu, de graça? Em ambas as hipóteses, não há mal nenhum. Admitamos que seja um milionário de berço. Antes da primeira chupeta, já era milionário. Resta saber que destino escolheu para a sua herança. Você a dinamizou, você a potencializou, você injetou-lhe a sua vontade criadora?
9
Não sei se você passa muitas vezes pela Avenida Atlântica. É o meu caminho diário. Aquelas máquinas, aqueles guindastes, aquelas estacas, aquelas dragas, tudo aquilo parece a fundação do mundo. Todas as manhãs, faço o caminho do Forte ao Leme. E sinto que a praia da véspera não é a mesma do dia seguinte; que o mar é outro; que as dunas conquistam o mar. E como a praia muda, e muda o mar, e as espumas, tudo começa a mudar. É um delírio. Eis o que eu quero dizer: o seu dinheiro pode transformar também a realidade. Pode fazer inventar outras praias, outros mares, outros horizontes, outras ilhas.
10
Quero saber se você, meu bom milionário, tem feito horizontes, ilhas, praias. Há de gostar de uísque. Ou por outra: não gosta, mas toma uísque. Ninguém gosta e todos se encharcam de uísque. Está maravilhosamente certo. Ninguém bebe o que quer, ninguém come o que quer, ninguém tem a mulher que quer. Também finge que adora o seu jardim. Mandou Burle Marx fazê-lo. E o seu jardim só tem uma cor: um verde obsessivo, apavorante, alucinatório. Nós sabemos que não há nada mais feio do que uma cor sem as outras. E as visitas invejam o seu insuportável jardim e acham Burle Marx um gênio.
11
Você gosta de ter, nas imediações, decotes ideais. Nada disso o impedirá de atravessar o buraco da agulha (não o estou chamando de camelo). Mas o que é que você faz ou que é que você tem feito? O Brasil está para ser feito, nós temos de fazê-lo. Você nasceu, e como justifica o fato de ter nascido? É milionário e o acusam de ter dinheiro. Estão contra você o comunismo e o anticomunismo. E é possível que você mesmo, em suas insônias, faça uma autoflagelação.
12
Estou dizendo tudo isso para lhe fazer um pedido, meu bom milionário. Não quero de você nada de épico, de sublime. Pelo contrário. É um pequeno ato, de uma infinita modéstia. Sim, ato humilde, que não vai absolutamente promovê-lo. Ninguém vai saber que você o fez, senão você mesmo. É o seguinte: há, no Brasil, uma revista católica chamada Permanência. Imagino o seu pânico: “Revista católica?” Não se assuste, meu caro milionário. Permanência é uma desesperada batalha contra os “assassinos da Igreja”.
13
Não sei se você sabe, e, se não sabe, fique sabendo: a maioria absoluta, a quase unanimidade das revistas católicas são feitas, precisamente, pelos anticatólicos. Outro dia, li um pequeno jornalzinho e lá Cristo é apresentado como um guerrilheiro. Sim, como um assassino. Dirá alguém: “Mas o guerrilheiro não é assassino.” Acontece, porém, que é perfeitamente — assassino. Sabemos que qualquer guerra é monstruosa. Na última, morreram milhões e milhões de pessoas. Essa abundância cadavérica chega para o nosso horror. Pois a guerrilha é a mais infame das guerras, a chamada “guerra suja”. Direi, apenas, que é a guerra sem prisioneiro, que não admite prisioneiros, que mata prisioneiros. Você entende? Se quem mata prisioneiros não é assassino, quem o será?
14
Permanência constitui uma dramática exceção. É uma das raras, raríssimas revistas católicas feitas por católicos e não pelos inimigos da Igreja. Vive e sobrevive graças ao esforço abnegado e solitário de uma meia dúzia. E, sem meios promocionais, é pouquíssimo conhecida. Imagino que você, milionário, diga: ”Eu nunca a li.” E outros dirão: ”Nem eu, nem eu.” Não importa que ninguém a tenha lido. Mesmo sem um único leitor, Permanência precisa existir, continuar, não morrer.
15
Bem. Vamos ao pedido. Eu queria, milionário, que você fizesse o seguinte: mandasse um cheque para Permanência. Ninguém saberá, ou por outra: saberá aquele que o receber. Mas não mande uma quantia pequenina e vil. Se você, milionário, me pedisse uma sugestão, eu diria: um cheque de vinte milhões antigos. Gostaria de saber se, entre os milionários brasileiros, há um capaz desse gesto de amor. Se você fizer isso, meu amigo, o camelo passará pelo buraco da agulha. Sua doação será um momento da consciência católica.
(O Globo 27-12-69; PERMANÊNCIA, 1990, julho/agosto, números 260/261.)

 

AdaptiveThemes