Esta semana, compelido à busca de alguns textos em vista de um estudo que ainda sonho escrever, passei-a quase toda a ler os autores antigos: o Pe.Garrigou Lagrange, o Pe. Gardeil, e a incomparável Doutora Santa Teresa de Jesus em cujas páginas não encontrei o texto exato que procurava, mas encontrei o que não procurava, e que mais me valeu do que se tivesse alcançado aquilo que por deliberação própria procurava. Aproveito para recomendar, na leitura das coisas sábias e santas, este método da falta de método. Creio que o simples fato de nos dispormos a ouvir as palavras de sabedoria nos coloca em posição favorável dentro da comunhão dos santos. Parece que corre no céu um frêmito de alegria, não somente nos grandes momentos em que uma alma faz penitência como também nos pequenos instantes em que um ouvido se inclina para ouvir as palavras da Vida. No prolongamento desta idéia, leitor amigo e companheiro de aflições, pensemos no tesouro imenso que a Igreja há vinte séculos nos oferece. Nesta semana, o passado que não passa descansou-me do exíguo e aflitivo presente que logo passa sem que a maior parte de suas frivolidades ganhe nobreza e solidez de passado. A maior parte da atualidade não passa, perde-se, evacua-se, niiliza-se.
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Lendo o Caminho da Perfeição de Santa Teresa d’Ávila, encontramos, desde os primeiros capítulos a lição mais insistente, mais monótona, mais aparentemente convencional dos autores espirituais: a do desprendimento ou espírito de pobreza, que foi também a primeira palavra de Jesus no sermão das Bem-Aventuranças.
Ora, por acaso ou favor de Deus, encontrei no belo livro de Garrigou Lagrange, La vie eternelle et les profondeurs de l’âme, a mesma doutrina exposta, não na linguagem ardente, hiperbólica e poética dos místicos, mas na pausada entonação dos teólogos que passam a vida a arrumar as idéias e a logo depois desarrumá-las amorosamente na longa conversação com aqueles que nos trazem notícias das conversações que tiveram no céu da contemplação.
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No caso presente, a lição que complementou a de Santa Teresa foi aquela que nos veio lembrar o desdobramento da natureza humana em duas partes: a da natureza genérica que temos em comum com os animais, e da natureza racional que é específica do homem, e cuja espiritualidade o aproxima dos anjos, e o faz imagem e semelhança de Deus. A este desdobramento de nossa natureza corresponde um desdobramento das faculdades que relacionam o ser vivo com a realidade exterior: a faculdade do conhecimento, e a faculdade do querer. Não podendo, nos limites de um pequeno artigo, abordar metodicamente esses grandes problemas e desenvolvê-los, proponho algumas reflexões sobre as duas vontades do homem. A vontade inferior, ou apetite sensível, que ele tem em comum com os animais, é dirigida para os bens sensíveis de sua mantença e sua reprodução. Nos animais, essa vontade sensível é peculiar a cada espécie e muito simplificada, e principalmente é limitada pela sociedade. <PNo homem, a vontade espiritual é, de início, ontologicamente superior a todo o universo sensível; e como se não bastasse essa soberania para dar ao homem uma coroa de realeza, dotou-a Deus de tal abertura que, não apenas nenhum ser sensível, mas nenhum ser criado poderá saciá-la e determiná-la. Em relação a tudo, aos mais altos bens criados a vontade permanece disponível, insatisfeita, livre. Como, porém, Deus nos escondeu a sua face, e a tênue luz da fé não basta para convencer invencivelmente a vontade convalescente do pecado original, ocorre o que de certo modo retoma a tragédia do primeiro pecado: a sede de infinito e de universalidade da vontade espiritual se volta para baixo e projeta na vontade sensível uma força nova de pluralização e de insaciabilidade. E então, em contraste com a frugalidade dos animais, o homem aparece no quadro visível do universo com uma polivalência de apetites e uma pluralização de conhecimentos que constituem uma prova irrefutável de sua natureza especificamente superior e irredutível à dos animais. Mas essa mesma estonteante variedade de conhecimento e de vontade sensíveis nos dá uma evidência da desordem em que se acha tão admirável natureza. Observemos bem, leitor, o trágico contraste: uma natureza tão bem ordenada pode chegar a um estado de tão deplorável desordem. Imaginemos mais detidamente o quadro de tal desordem: enquanto nos porões da alma se instalou o supermercado de todos os desejos inventados, inúteis, impróprios e indigestos, lá no salão nobre da vontade espiritual, deserto e silencioso, ela atesta que o homem, por sua vontade mais alta, não sabe querer. Trocou o infinito integral de Deus pelo desintegrado infinito do pó. E por aí se começa a compreender o imenso acerto dos mestres espirituais que nos ensinam que, no caminho da perfeição, isto é, da restauração da ordem, temos de começar pela sola dos pés, pelo desprendimento, pela santa temperança que traz à ilharga, como filha dileta, a virtude primeira do primeiro passo para Deus: a humildade.
Para compreender mais profundamente a gravidade abismal da pavorosa intemperança do homem moderno, é preciso compreender que seu irmão gêmeo é o orgulho direta e especialmente voltado contra Deus, e debruçado avidamente sobre as criaturas.
E aqui cabe uma reflexão sobre a crise atual da Igreja. O mal maior que dela nos advém não está no torrencial palavrório do que dizem nas Conferências e nas Epístolas para atiçar o orgulho e a intemperança. A contribuição que trazem é medíocre demais para nos incomodar. A grande calamidade não está na tagarelice dos levitas estonteados, está no eclipse da Igreja, no Silêncio da Mestra, está no que não dizem os que deviam dizer palavras de condenação amorosa, de proteção, de sabedoria inspirada ― e por subserviência ao século calam-nas. Felizmente temos ao alcance das mãos a Igreja de todos os tempos. Temos as santas Doutoras, os sábios Doutores, e os santos pontífices. E temos a Igreja do Céu cuja diligente Rainha não se esquece um só instante da doce terra que tanto amou. Ave Maria.
18-01-75
Permanência n°144 -145, Novembro-Dezembro 1980