Nas discussões atuais sobre as relações entre o Islã e o Cristianismo defrontamo-nos continuamente com três juízos preconcebidos que não resistem a um estudo preciso do que é o Alcorão. Esses juízos, no entanto, parecem paralisar de maneira preocupante a capacidade de defesa da nossa sociedade contra essa religião cheia de perigos. São correntes de fato, as seguintes afirmações:
1) É preciso distinguir entre islamitas fanáticos e muçulmanos moderados. Estes últimos se referem, com razão, às exortações à tolerância feitas por Maomé: é preciso, pois, colaborar com estes;
2) Os judeus e os cristãos gozariam segundo o Alcorão de certos direitos: enquanto juridicamente “protegidos”, eles deveriam ser separados dos “infiéis” que o Islã combateria mais duramente;
3) A base dessa distinção estaria na classificação alcorânica dos judeus e dos cristãos como “gente do livro”, porque titulares de uma Escritura inspirada por Deus. Nesse contexto, cita-se muitas vezes a Surata 5, 51 segundo a qual o Cristianismo dependeria abertamente, em aparência, das normas da Bíblia: “As pessoas do Evangelho julgam portanto segundo o que Deus revelou nele”.
Começando por esse último ponto, cabe notar que seria totalmente errado considerar que o Alcorão reconhece as verdades anunciadas no Novo Testamento tais quais chegam a nós na Tradição Apostólica. Na realidade, não se pode avaliar corretamente a referência do muçulmano às duas outras “religiões do Livro”, se não se conhece a doutrina do tahrif, isto é, em substância, a acusação que se dirige igualmente aos judeus e aos cristãos, de terem falsificado a posteriori a Revelação recebida, que é — segundo os muçulmanos — a que originariamente teria sido comunicada ao “profeta” . Essa doutrina é originária de Sour e está solidamente enraizada no Alcorão (cf. Surata 5, 16-18). A teoria da falsificação oferece aos muçulmanos, com efeito, a chave hermenêutica para interpretar as contradições múltiplas, unilaterais e muitas vezes grotescas, que se encontram entre o Alcorão de um lado e Antigo e o Novo Testamento de outro. Infelizmente, no clima atual, cheio de irenismo ecumênico, perdeu-se o conhecimento dessa condição de base, decisiva para compreender a maneira segundo a qual o Alcorão entende o Cristianismo; um conhecimento que, no século XV, o grande papa humanista Pio II possuía ainda que de maneira totalmente natural... Esse papa fez de fato a única coisa que era realmente essencial: refutou essa doutrina completamente absurda, com uma série de análises críticas apertadas dos textos .
A origem da teoria não falta de interesse. O Alcorão afirma ter sido comunicado diretamente a Maomé pelo arcanjo Gabriel (Surata 2, 91) e pretende que representa uma cópia, comunicada oralmente, do Livro original que se encontra no céu e que constitui como o arquétipo de todas as outras Santas Escrituras (Surata 56, 77-80). Em nítida oposição a essas afirmações, nenhum especialista moderno honesto pode negar que Maomé, à maneira dos sincretistas, tenha claramente se servido de empréstimos tomados ao seu próprio meio cultural. De resto, isto já lhe tinha sido censurado durante toda sua vida (Surata 16, 103). As fontes desses empréstimos, que não podem ser concretamente negadas, são o gnosticismo “cristão” e sobretudo o maniqueísmo que lhe está ligado.
Por grandes que sejam as diferenças entre os sistemas religiosos de um Manés e de um Maomé, não se pode no entanto negar que o árabe tenha tomado diversos elementos (de modo algum secundários) da escola do persa. Dessa última escola vem de fato a teoria de uma sucessão profética na qual os anúncios ou revelações sucessivas são consideradas como cópias perfeitas de um Livro que é o arquétipo celeste da Revelação, cópias que teriam sido, não obstante, falsificadas pelos homens (com exceção, naturalmente, da cópia original!). E exatamente do mesmo modo que Manés, Maomé definiu como o “Marca dos profetas” (Surata 30, 40); e claramente como o “Paráclito” prometido por Jesus (Jo. 14, 16 ss.). (CF. Surata 61, 6, onde a palavra grega é interpretada de maneira completamente falsa, como se significasse “o glorioso” [e não o consolador n.d. t.], que em árabe, é ahmed, ou ainda, Mohammed, Maomé). À maneira dos gnósticos, as duas religiões negam, pelo contrário, o sofrimento físico e a morte de Jesus na Cruz, e a Redenção oferecida aos homens que dela resulta (Surata 4, 157). Esses aspectos e outros foram daí por diante definitivamente estabelecidos pela mais recente pesquisa científica .
Abordemos agora os dois juízos apriorísticos mencionados nos pontos 1) e 2). No que diz respeito ao primeiro, muitas vezes se superestima a condição de “protegidos”, afirmando que ela seria capaz de garantir os judeus e os cristãos que se encontram sob o domínio muçulmano. Todo “Dhimmi” ou “protegido” goza, em realidade, de uma liberdade (relativa) de religião, em troca da qual ele deve pagar uma taxa — algumas vezes alta — e contentar-se com uma posição subordinada na sociedade e no Estado. Assim, por exemplo, é expressamente proibido aos muçulmanos ligar-se por amizade com judeus e cristãos (Surata 5, 56). Mas — o que é ainda pior — também é superestimada a amplitude da tolerância no Islã. Seu conceito, no Alcorão, não se deixa caracterizar jamais, de maneira unívoca e moral, nem mesmo para os muçulmanos. Os islamitas fanáticos poderiam, por exemplo, referir-se à versículos do seu “livro sagrado” com a mesma legitimidade com que os muçulmanos liberais, ao aludir a outros versículos, invocariam esse mesmo “livro sagrado” para demonstrar a disponibilidade pacifica de sua religião ao diálogo. A causa de um fato tão extraordinário está nas numerosas contradições que se encontram nas Escrituras de Maomé, contradições determinadas, em grande parte, pela radicalização extrema da vida do “profeta”, particularmente após sua transferência de Meca para Medina . Com isso, as relações de Maomé com os judeus e os cristãos foram enormemente perturbadas. Assim, na Surata 9, 29-33, os cristãos são considerados como adoradores de ídolos e pagãos assimilados aos “infiéis”, por causa da sua fé na natureza divina de Cristo: o Alcorão incita, portanto, à luta contra eles. O que espera os cristãos quando os muçulmanos se sentirem obrigados a preparar a Djihad, o “grande esforço” pela “ortodoxia”, no plano da luta armada, encontramos na Surata 47, 4 e 5: “Quando reencontrar aqueles que não crêem, mate-os [literalmente: corte sua cabeça], até que tenha feito um massacre; então, reforce os ferros dos restantes. Depois disso, ou dê-lhes a graça [literalmente: liberte-os] ou exija um resgate, até o momento em que a guerra tenha deposto suas armas”.
Quando se conhece esses contextos, não é possível evitar o espanto ante o fato de que, recentemente, Walter Kasper — bispo alemão — haja anunciado que nada tem a objetar à introdução de cursos de religião islâmica nas nossas escolas . O porta-voz da representação da C.D.U. no parlamento do Saarre, J. Schreier, mostrou, por sua parte, melhor compreensão da realidade. Numa carta ao diretor sobre o mesmo tema, repetiu que existem dúvidas consideráveis a respeito de que princípios determinados do Islã possam harmonizar-se com a Constituição do “Land”, assim como com a concepção dominante dos valores e com os fins da educação. Entre esses princípios (incompatíveis) cita-se: a posição da mulher na sociedade, a poligamia, o sistema penal draconiano do Alcorão, a falta de liberdade de fé e de consciência, a falta de tolerância para com as outras crenças e a vinculação da religião com o Estado. A assembléia de primavera da Conferência Episcopal Alemã, que houve em Münster no início deste ano, sentiu-se obrigada a manifestar sua preocupação face à evolução da situação na Argélia, no Paquistão e no Sudão, países nos quais as minorias cristãs estão sempre mais ameaçadas, não somente no livre exercício da sua fé mas também na sua vida e nos seus bens . E na Turquia, que foi um tempo considerada muito liberal nos assuntos religiosos, poderia-se citar episódios específicos, que demonstram como se tornou cada vez mais difícil dar às crianças uma educação cristã, conservar os lugares de reunião e as instituições cristãs . Quem estiver seriamente convencido de que o ensinamento do Islã nas escolas alemãs deveria ajudar a incentivar as tendências de um Islã moderado e tolerante se verá constrangido a lamentar sua incompreensão da realidade. Em todo caso, deverá meditar a conclusão que tiraremos deste artigo. Perguntemo-nos, de fato, abertamente e com espírito crítico se, como cristãos, por causa da tibieza da nossa fé, não temos nós boa parte de responsabilidade pela rápida expansão do Islã em nossos países. Um chefe religioso iraniano, o cheik Morteza Motahhari, recentemente exprimiu-se com desprezo totalmente justificado sobre o modo de conceber a religião no Ocidente: “Não é possível que alguém negue a existência de Deus ou de Jesus e ainda afirme ser cristão. São pequenas brincadeiras que não têm nada a ver com a religião autêntica da qual a humanidade tem necessidade” .
(Extraído de Mitteilungsblatt der Priesterbruderschaft St Pius X fuer den deutschen Sprachum. Boletim da Fraternidade São Pio X, de lingua alemã)
(Revista SIM SIM NÃO NÃO n° 45 ― Setembro de 1996)