Category: Dom Marcel Lefebvre
Arcebispo francês (29/11/1905-25/03/1991), fundador da Fraternidade Sacerdotal São Pio X e maior nome do tradicionalismo católico.
É o tempo apropriado de reagir. Quando Gaudium et Spes fala do movimento da história que “se torna tão rápido que cada um tem dificuldade de o seguir”, pode-se entender este movimento como uma precipitação das sociedades liberais na desagregação e no caos. Acautelemo-nos de o seguir!
Como compreender que dirigentes apelem para a religião cristã ao passo que destroem toda a autoridade no Estado? Importa ao contrário restabelecê-la, que foi querida pela Providência nas sociedades naturais de direito divino cuja influência neste mundo é primordial: a família e a sociedade civil. É a família que recebeu nestes últimos tempos os mais rudes golpes; a passagem para o socialismo em países como a França e a Espanha não fez senão acelerar o processo.
As leis e medidas que se sucederam mostram uma grande coesão na vontade de arruinar a instituição familiar: diminuição da autoridade paterna, divórcio facilitado, desaparecimento da responsabilidade no ato da procriação, reconhecimento administrativo dos casais irregulares e mesmo de duplas homossexuais, coabitação juvenil, casamento de experiência, diminuição das ajudas sociais e fiscais às famílias numerosas... O mesmo Estado, em seus interesses próprios, começa a perceber as conseqüências disto no que toca à diminuição da natalidade, ele se pergunta como, num tempo próximo, as jovens gerações poderão assegurar os regimes de retração daquelas que deixaram de ser economicamente ativas. Mas os efeitos são consideravelmente mais graves no domínio espiritual.
Os católicos não devem seguir mas ponderar com todo o seu peso, uma vez que são também cidadãos, para endireitar tudo o que for preciso. É por isso que eles não poderiam ficar à margem da política. Portanto seu esforço será sobretudo sensível na educação que proporcionam a seus filhos.
Sobre este assunto, a autoridade é contestada nas suas próprias fontes por aqueles que declaram que “os pais não são os proprietários dos filhos”, querendo dizer com isto que a educação destes cabe ao Estado, com suas escolas leigas, suas creches, suas maternais. Censuram-se os pais de não respeitar a “liberdade de consciência” de seus filhos quando os educam segundo suas próprias convicções religiosas.
Estas idéias remontam aos filósofos ingleses do século XVII que não queriam ver nos homens senão indivíduos isolados, independentes de nascimento, iguais entre si, subtraídos a toda autoridade. Nós sabemos que isto é falso. A criança recebe tudo de seu pai e de sua mãe, alimento corporal, intelectual, educação moral, social. Eles se fazem ajudar por professores que partilharão, no espírito dos jovens, a sua autoridade mas, seja por meio de uns ou por meio de outros, a quase totalidade da ciência adquirida no decurso da adolescência pessoal será mais uma ciência apreendida, recebida, aceita, do que uma ciência deduzida da observação e da experiência pessoal. Os conhecimentos vêm por uma parte considerável da autoridade que transmite. O jovem estudante acredita em seus pais, em seus professores, em seus livros e assim seu saber se estende.
Isto é ainda mais verdadeiro com os conhecimentos religiosos, com a prática da religião, com o exercício da moral conforme à fé, às tradições, aos costumes. Os homens em geral vivem em função das tradições familiares, isto se observa em toda a superfície do globo. A conversão a uma outra religião do que aquela que se recebeu durante a sua infância encontra sérios obstáculos.
Esta extraordinária influência da família e do meio é querida por Deus. Ele quis que seus benefícios se transmitissem em primeiro lugar através da família; é por esta razão que concedeu ao pai de família uma grande autoridade, um imenso poder sobre a sociedade familiar, sobre sua esposa, sobre seus filhos. A criança nasce numa fraqueza tão grande que se pode julgar da necessidade absoluta da permanência do lar, de sua indissolubilidade.
Querer exaltar a personalidade e a consciência da criança em detrimento da autoridade familiar, é fazer a sua desgraça, impeli-la à revolta, ao desprezo dos pais, enquanto que a longevidade é prometida àqueles que honrarem os seus. São Paulo, ao relembrá-lo, estabelece também um dever aos pais de não exasperarem os filhos, mas de educá-los na disciplina e no temor do Senhor.
Se fosse preciso esperar ter a inteligência da verdade religiosa para crer e converter-se, não haveria senão bem poucos cristãos atualmente. Crê-se nas verdades religiosas porque as testemunhas são dignas de credibilidade por sua santidade, seu desinteresse, sua caridade. Pois, como diz Santo Agostinho, a fé dá inteligência.
A função dos pais tornou-se muito difícil. Nós o vimos, a maioria das escolas livres foram laicizadas de fato, e nelas não se ensina mais a verdadeira religião nem as ciências profanas a luz da fé. Os catecismos difundem o modernismo. A vida trepidante é devoradora de tempo, as necessidades profissionais distanciam pais e filhos dos avôs e avós que participavam outrora da educação. Os católicos não estão apenas perplexos mas desarmados.
Mas isto absolutamente não a ponto de não poderem assegurar o essencial, suprindo a graça de Deus o resto. O que é preciso fazer? Existem escolas verdadeiramente católicas, se bem que em número reduzido. Enviai para lá vossos filhos, mesmo se isto pesar no vosso orçamento. Abri novas, como alguns já o fizeram. Se não podeis freqüentar senão escolas onde o ensino é desnaturado, manifestai-vos, reclamai, não deixeis os educadores fazer vossos filhos perder a fé.
Lede, relede em família o catecismo de Trento, o mais belo, o mais perfeito e o mais completo. Organizai “catecismos paralelos” sob a direção espiritual de bons sacerdotes, não tenhais medo de ser tratados, como nós, de “selvagens”. Aliás, numerosos grupos já funcionam que acolherão vossos filhos.
Rejeitai os livros que veiculam o veneno modernista. Fazei-vos aconselhar. Editores corajosos difundem excelentes obras e reimprimem as que os progressistas destruíram. Não adquirais qualquer Bíblia; toda família cristã deveria possuir a Vulgata, tradução latina feita por são Jerônimo no século IV e canonizada pela Igreja. Atende-vos à verdadeira interpretação das Escrituras, conservai a verdadeira missa e os sacramentos tais como eram administrados por toda a parte até bem pouco.
Atualmente o demônio desencadeou-se contra a Igreja, pois é bem disso que se trata: nós assistimos talvez a uma de suas últimas batalhas, uma batalha geral. Ele ataca em todas as frentes e se Nossa Senhora de Fátima disse que um dia ele subiria até as mais altas esferas da Igreja, é que isto podia acontecer. Nada afirmo de mim mesmo, entretanto há sinais que podem fazer-nos pensar que, nos mais elevados organismos romanos, pessoas perderam a fé.
Devem-se tomar medidas espirituais urgentes. É preciso rezar, fazer penitência, como a Santíssima Virgem o pediu, recitar o terço em família. As pessoas, viu-se em cada guerra, se põem a rezar quando as bombas começam a cair. Mas precisamente, elas caem neste momento: estamos a ponto de perder a fé. Compreendeis que isto ultrapassa em gravidade todas as catástrofes que os homens temem, as crises econômicas mundiais ou os conflitos atômicos?
Renovações se impõem, mas não creiais que não possamos contar para isto com a juventude. Não é toda a juventude que está corrompida, como se tenta persuadir-nos. Muitos têm um ideal, a muitos outros basta propor um. Abundam os exemplos de movimentos que fazem apelo com sucesso à generosidade: os mosteiros fiéis à tradição os atraem, não faltam vocações de jovens seminaristas ou de noviços que pedem formação. Há um magnífico trabalho a realizar conforme as instruções dadas pelos Apóstolos: Tenete traditiones... Permanete in iis quae didicistis.
O velho mundo chamado a desaparecer é o do aborto. As famílias fiéis à tradição são ao mesmo tempo famílias numerosas, sua própria fé lhes assegura a posteridade. “Crescei e multiplicai-vos!” Conservando o que a Igreja sempre ensinou, vós vos ligais ao futuro.
A declaração de 21 de novembro de 1974 que desencadeou o processo do qual eu acabo de falar, terminava por estas palavras: ”Agindo assim... nós estamos convencidos de permanecer fiéis à Igreja Católica e romana, a todos os sucessores de Pedro, e de ser os fiéis dispensadores dos mistérios de Nosso Senhor Jesus Cristo.” O “Osservatore Romano”, publicando o texto, omitiu este parágrafo. Há dez anos e mais, nossos adversários estão interessados em rejeitar-nos da comunhão da Igreja deixando entender que não aceitamos a autoridade do papa. Seria bem cômodo fazer de nós uma seita e declarar-nos cismáticos. Quantas vezes a palavra cisma foi pronunciada a nosso respeito!
Não cessei de repetir: se alguém se separa do papa, este alguém não serei eu. A questão se resume nisto: o poder do papa na Igreja é um poder supremo, mas não absoluto e ilimitado, pois está submetido ao poder divino, que se exprime na tradição, na Sagrada Escritura e nas definições já promulgadas pelo magistério eclesiástico. De fato este poder encontra seus limites no fim para o qual ele foi dado sobre a terra ao Vigário de Cristo, fim que Pio IX definiu claramente na Constituição Pastor aeternus do concílio Vaticano I. Não exprimo, pois, uma teoria pessoal ao dizê-lo.
A obediência cega não é católica; ninguém esta isento da responsabilidade por ter obedecido aos homens mais que a Deus, aceitando ordens duma autoridade superior, seja ela do papa, se se revelam contrárias à vontade de Deus tal como a tradição no-la faz conhecer com certeza. Não se poderia considerar uma tal eventualidade, certamente, quando o papa compromete sua infalibilidade, mas ele não o faz senão num número reduzido de casos. É um erro pensar que toda a palavra saída da boca do papa é infalível.
Dito isto, eu não sou daqueles que insinuam ou afirmam que Paulo VI era herege e que, pelo próprio fato de sua heresia, não era mais papa. Em conseqüência disto, a maior parte dos cardeais nomeados por ele não seriam cardeais e não teriam validamente eleito um outro papa. João Paulo I e João Paulo II por isso não teriam sido eleitos legitimamente. Eis a posição daqueles que se intitulam sede-vacantistas.
É preciso reconhecer que o papa Paulo VI colocou um sério problema para a consciência dos católicos. Este pontífice causou mais danos à Igreja do que a Revolução de 1789. Fatos precisos como as assinaturas apostas ao artigo 7 da “Institutio Generalis” assim como ao documento sobre a liberdade religiosa, são escandalosos. Mas o problema não é tão simples de saber se um papa pode ser herege. Bom número de teólogos pensam que ele o pode ser como doutor particular, não como doutor da Igreja universal. Seria preciso portanto examinar em que medida Paulo VI quis comprometer sua infalibilidade em casos como aqueles que acabo de citar.
Ora, nós pudemos ver que ele agiu muito mais como liberal do que se atendo à heresia. Com efeito, desde que se lhe fazia notar o perigo que corria, tornava o texto contraditório acrescentando uma fórmula oposta ao que era afirmado na redação: conhece-se o exemplo famoso da nota explicativa preliminar inserida em seguida à constituição Lumen Gentium sobre a colegialidade. Realmente ele redigia uma fórmula equívoca, o que é próprio do liberal, por natureza incoerente.
O liberalismo de Paulo VI, reconhecido por seu amigo o cardeal Danielou, basta para explicar os desastres de seu pontificado. O católico liberal é uma pessoa de duplo aspecto, em contínua contradição. Ele quer permanecer católico mas é possuído pela sede de agradar ao mundo. Um papa pode ser liberal e continuar papa? A Igreja sempre censurou severamente os católicos liberais mas nunca os excomungou. Os sedevacantistas adiantam um outro argumento: o afastamento dos cardeais de mais de 80 anos e os conventículos que prepararam os dois últimos conclaves não tornam inválida a eleição destes papas? Inválida é afirmar demais, mas eventualmente duvidosa. Todavia a aceitação posterior e unânime do fato por parte dos cardeais e do clero romano basta para tornar válida a eleição. Tal é a opinião dos teólogos.
O raciocínio daqueles que afirmam a inexistência do papa coloca a Igreja numa situação inextricável. A questão da visibilidade da Igreja é por demais necessária à sua existência para que Deus possa omiti-la durante decênios. Quem nos dirá onde está o futuro papa? Como se poderá designá-lo, se não há mais cardeais? Vemos aí um espírito cismático. Nossa Fraternidade se recusa absolutamente a entrar em semelhantes raciocínios. Nós queremos continuar ligados a Roma, ao sucessor de Pedro, recusando porém o liberalismo de Paulo VI, por fidelidade a seus predecessores.
É claro que em casos como a liberdade religiosa, a hospitalidade eucarística autorizada pelo novo direito canônico ou a colegialidade concebida como a afirmação de dois poderes supremos na Igreja, é um dever para todo clérigo e fiel católico resistir e recusar a obediência. Esta resistência deve ser pública, se o mal é público e representa um objeto de escândalo para as almas. É por isso que, referindo-nos a Santo Tomás de Aquino, Dom Castro Mayer e eu enviamos a 21 de novembro de 1983, uma carta aberta ao papa João Paulo II para suplicar-lhe que denunciasse as causas principais da situação dramática na qual se debate a Igreja. Todas as diligências que fizemos em particular durante quinze anos foram em vão e calar-nos parecer-nos-ia fazer de nós cúmplices da confusão das almas no mundo inteiro.
“Santíssimo Padre, escrevíamos, é urgente que esse mal estar cesse logo, porque o rebanho se dispersa e as ovelhas abandonadas estão seguindo mercenários. Nós vos conjuramos, pelo bem da fé católica e da salvação das almas, a reafirmar as verdades contrárias a estes erros. Nosso grito de alarme se torna ainda mais veemente diante dos erros, para não dizer heresias do novo direito canônico, e das cerimônias e discursos ao ensejo do quinto centenário do nascimento de Lutero.”
Não tivemos resposta, mas fizemos o que devíamos. Não podemos desesperar como se se tratasse duma empresa humana. As convulsões atuais passarão como passaram todas as heresias. Será preciso voltar um dia à tradição; na autoridade será necessário que reapareçam os poderes significados pela tiara, que um tribunal protetor da fé e dos bons costumes se estabeleça de novo permanentemente, que os bispos reencontrem seus poderes e sua iniciativa pessoal.
Será preciso liberar o verdadeiro trabalho apostólico de todos os impedimentos que hoje o paralisam e que fazem desaparecer o essencial da mensagem; restituir aos seminários sua verdadeira função, recriar sociedades religiosas, restaurar as escolas católicas e as universidades desembaraçando-as dos programas leigos do Estado, sustentar organizações patronais e operárias decididas a colaborar fraternalmente no respeito dos deveres e dos direitos de todos, interditando-se o flagelo social da greve, que não passa de uma guerra civil fria, promover enfim uma legislação civil conforme às leis da Igreja e ajudar na designação de representantes católicos movidos pela vontade de orientar a sociedade para um reconhecimento oficial do reinado social de Nosso Senhor.
Enfim, pois, que dizemos todos os dias quando rezamos? “Venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu”. E no Glória da missa? “Vós sois o único Senhor, Jesus Cristo”. Nós cantaríamos isto, e, apenas saídos da Igreja, diríamos: ”Ah não, estas noções estão ultrapassadas”, é impossível encarar no mundo atual a possibilidade de falar no reino de Jesus Cristo? Vivemos nós no ilogismo? Somos cristãos ou não?
As nações se debatem em dificuldades inextricáveis, em muitos lugares a guerra se eterniza, os homens tremem ao pensar na possível catástrofe nuclear, procura-se o que poderia ser feito para que a situação econômica se reerga, o dinheiro se valorize, o desemprego desapareça, as indústrias sejam prósperas. Pois bem, mesmo do ponto de vista econômico, é preciso que Nosso Senhor reine, porque este reino é o dos princípios de amor, dos mandamentos da lei de Deus, que criam um equilíbrio na sociedade, trazem a justiça e a paz. Pensais que seja uma atitude cristã colocar sua esperança em tal ou qual homem político, em tal combinação de partidos, imaginando que talvez um dia um programa melhor que outro resolverá os problemas dum modo seguro e definitivo, enquanto que deliberadamente se põe de lado “o único Senhor” como se Ele nada tivesse a ver com os assuntos humanos, como se isto não lhe fosse concernente? Qual é a fé daqueles que fazem de sua vida duas partes, com uma barreira estanque entre sua religião e suas outras preocupações políticas, profissionais, etc.? Deus que criou o céu e a terra não seria capaz de regular nossas miseráveis dificuldades materiais e sociais? Se vós já rezastes a Ele nos maus momentos de vossa existência, sabeis por experiência que Ele não dá pedras a seus filhos que lhe pedem pão.
A ordem social cristã se situa no oposto das teorias marxistas que jamais causaram, em todas as partes do mundo onde foram postas em prática, senão a miséria, o esmagamento dos mais fracos, o desprezo do homem e a morte. Ela respeita a propriedade particular, protege a família contra tudo o que a corrompe, encoraja a família numerosa e a presença da mulher no lar, deixa uma legítima autonomia às iniciativas privadas, encoraja as pequenas e médias indústrias, favorece o retorno à terra e estima em seu justo valor a agricultura, preconiza as uniões profissionais, concede a liberdade escolar, protege os cidadãos contra toda a forma de subversão e de revolução.
Esta ordem cristã se distingue com toda a certeza também dos regimes liberais fundados na separação da Igreja e do Estado e cuja impotência para superar as crises se afirma cada vez mais. Como o poderiam, após estarem voluntariamente privados d'Aquele que é “a luz dos homens”? Como poderiam reunir as energias dos cidadãos, uma vez que não têm mais outro ideal a propor-lhes senão o bem estar e o conforto? Eles puderam entreter a ilusão durante certo tempo porque os povos conservavam hábitos de pensamento cristãos e seus dirigentes mantinham, mais ou menos conscientemente, alguns valores. Na época das “reconsiderações”, as referências implícitas à vontade de Deus desaparecem; os sistemas liberais, abandonados a si mesmos, não sendo mais acionados por alguma idéia superior, se extenuam, são uma presa fácil para as ideologias subversivas.
Falar da ordem social cristã não é portanto apegar-se a um passado que teria terminado; é, ao contrário, uma posição de futuro com o qual não deveis ter medo de contar. Vós não travais um combate de retaguarda, vós sois os que sabem, porque receberam as lições d'Aquele que disse: “Eu sou o Caminho, a Verdade, a Vida”. Temos a superioridade de possuir a Verdade, o que não é defeito nosso, não temos que nos ensoberbecer com isto mas devemos agir conseqüentemente; a Igreja tem sobre o erro a superioridade de possuir a Verdade. Cabe a Ela, com a graça de Deus, propagá-la e não a esconder vergonhosamente sob o alqueire.
Ainda menos misturá-la ao joio, como se vê fazer constantemente. Li no Osservatore Romano, com a assinatura de Paolo Befani, um artigo interessante sobre o favor concedido ao socialismo pelo Vaticano. O autor compara a situação da América Central e a da Polônia e escreve:
“A Igreja, deixando a situação da Europa, se encontra confrontada duma parte com a situação dos países da América Latina e a influência dos E.U.A. que se exerce sobre eles, e doutra parte com a situação da Polônia que se encontra na órbita do império soviético.
“Chocando-se de encontro a estas duas fronteiras, a Igreja que, com o concílio, assumiu e ultrapassou as conquistas líbero-democráticas da Revolução Francesa, e que na sua marcha para a frente (ver a encíclica Laborem exercens) se constitui como um “após” da Revolução russa marxista, oferece uma solução à falência do marxismo nesta “chave” dum “socialismo pós-marxista, democrático, de raiz cristã, autogestionária e não totalitária.”
“A réplica ao Leste é simbolizada pelo Solidarnosc que arvora a cruz em face aos Estaleiros Lenine. É o erro da América latina procurar a solução no comunismo marxista, num socialismo de raiz anticristã.”
Eis aí bem o ilusionismo liberal que associa palavras contraditórias com a persuasão de exprimir uma verdade! É a estes sonhadores adúlteros obcecados pela idéia de consorciar a Igreja com a revolução que nós devemos o caos do mundo cristão que abre as portas ao comunismo. São Pio X dizia dos sillonistas: “Eles anseiam pelo socialismo, com o olhar fixo numa quimera”. Seus sucessores continuam. Após a democracia cristã, o socialismo cristão! Acabaremos por chegar ao cristianismo ateu.
A solução a encontrar não concerne somente à falência do marxismo, mas à falência da democracia cristã, que não é preciso demonstrar. Basta de compromissos, de uniões contra a natureza! Que iremos buscar nestas águas turvas? O católico tem a verdadeira “chave”, é seu dever trabalhar com todas as forças, seja comprometendo-se pessoalmente na política, seja por seu voto para dar à sua pátria prefeitos, conselheiros, deputados resolvidos a restabelecer a ordem social cristã, a única capaz de obter a paz, a justiça, a verdadeira liberdade. Não há outra solução.
Um fato sem dúvida não deixou de surpreender-vos: em nenhum momento desta questão se tratou da missa, a qual, não obstante, está no coração do conflito. Este silêncio forçado constitui a confissão de que o rito chamado de São Pio V continua bem autorizado.
Nesta matéria, os católicos podem estar perfeitamente tranqüilos: esta missa não foi interditada nem o pode ser. São Pio V que, repitamo-lo, não a inventou mas “restabeleceu o missal segundo a regra antiga e os ritos dos Santos Padres”, nos dá todas as garantias na bula Quo Primum, assinada por ele a 14 de julho de 1570. ”Decidimos e declaramos que os Superiores, Administradores, Cônegos, Capelães e outros padres de qualquer título por que sejam designados, ou os Religiosos de qualquer ordem, não podem ser obrigados a celebrar a missa de modo diferente do que fixamos, e que jamais, em tempo algum, quem quer que seja poderá constrangê-los e forçá-los a deixar este missal ou a ab-rogar a presente instrução ou modificá-la, mas que ela permanecerá sempre em vigor e válida, em toda a sua força... Se entretanto alguém se permitisse uma tal alteração, saiba que incorreria na indignação de Deus Todo Poderoso e de seus bem-aventurados Apóstolos Pedro e Paulo.”
Supondo que o papa pudesse voltar atrás a respeito deste indulto perpétuo, seria preciso que o fizesse por um ato também solene. A constituição apostólica Missale Romanum de 3 de abril de 1969 autoriza a missa dita de Paulo VI, que não contém interdição alguma expressamente formulada da missa tridentina. A tal ponto que o cardeal Ottaviani podia dizer em 1971: “O rito tridentino da missa, que eu saiba, não foi abolido”. Mons. Adam que pretendia, na assembléia plenária dos bispos suíços, que a constituição Missae Romanum tinha interditado celebrar, salvo indulto, segundo o rito de São Pio V, teve de retratar-se, depois de lhe pedirem que dissesse em que termos esta interdição teria sido pronunciada.
Daí resulta que se um padre fosse censurado, e mesmo excomungado por esta causa, a condenação seria absolutamente inválida. São Pio V canonizou esta santa missa; ora, um papa não pode revogar uma canonização, assim como não o pode fazer com a de um santo. Nós podemos celebrá-la com toda a tranqüilidade e os fiéis assisti-la sem o menor constrangimento, sabendo, quanto ao mais, que ela é a melhor maneira de manter a sua fé.
Isto é tão verdadeiro que Sua Santidade João Paulo II, após vários anos de silêncio sobre o capítulo da missa, acabou por desapertar a golilha imposta aos católicos. A carta da Congregação para o culto divino datada de 3 de outubro de 1984, “autoriza” de novo o rito de são Pio V para os fiéis que o pedirem. Ela impõe, certamente, condições que não podemos aceitar e, doutra parte, não tínhamos necessidade deste indulto para usufruir dum direito que nos foi outorgado até o fim dos tempos.
Mas este primeiro gesto — rezemos para que haja outros desta espécie — tira a suspeita indevidamente lançada sobre a missa e libera as consciências dos católicos perplexos que hesitavam ainda em assisti-la.
Venhamos agora à suspensão a divinis que me golpeou a 22 de julho de 1976. Ela foi conseqüência das ordenações de 29 de junho em Ecône: fazia três meses nos chegavam de Roma objurgações, súplicas, ordens, ameaças para dizer-nos que cessássemos nossas atividades, que não mais procedêssemos a estas ordenações sacerdotais. Durante os dias que precederam, não deixamos de receber mensagens e enviados: que nos diziam eles? Seis vezes seguidas pediram-me restabelecer relações normais com a Santa Sé, aceitando o rito novo e celebrando-o eu mesmo. Chegou-se até a me enviar um monsenhor que se ofereceu para concelebrar comigo, puseram-me nas mãos um missal novo prometendo-me que se eu celebrasse a missa de Paulo VI em 29 de junho, diante de toda a assembléia vinda para rezar pelos novos sacerdotes, tudo seria dali em diante aplainado entre Roma e mim.
O que significa que não me proibiam conferir estas ordenações mas as queriam segundo a nova liturgia. Ficava claro a partir deste momento que é sobre o problema da missa que desenrolava o drama entre Roma e Ecône, e que ainda se desenrola. Eu disse, no sermão da missa de ordenação: ”Amanhã talvez aparecerá nos jornais a nossa condenação, é muito possível devido a esta ordenação de hoje: serei atingido por uma suspensão provavelmente, estes jovens sacerdotes por uma irregularidade que em princípio deveria impedi-los de dizer a santa missa. É possível. Pois bem eu apelo para São Pio V”.
Certos católicos puderam ser perturbados por minha recusa desta suspensão a divinis. Mas o que é preciso compreender bem, é que tudo isto forma uma cadeia: por que se me recusava efetuar estas ordenações? Porque a Fraternidade tinha sido supressa e o seminário deveria ter sido fechado. Mas precisamente, eu não tinha aceito esta supressão, este fechamento, porque tinham sido decididos ilegalmente, porque as medidas tomadas estavam maculadas por diversos vícios canônicos tanto de forma como de fundo (notadamente o que os autores de direito administrativo denominam “desvio de poderes”, isto é, a utilização de competências contra o objetivo para o qual elas devem ser exercidas). Teria sido preciso que eu aceitasse tudo desde o início, mas não o fiz porque fomos condenados sem julgamento, sem poder defender-nos, sem admoestação, sem escrito e sem recurso. Uma vez que se recusa a primeira sentença, não há razão de não recusar as outras, pois as outras se apóiam sempre naquela. A nulidade duma acarreta a nulidade do que se segue.
Uma outra questão se coloca por vezes aos fiéis e aos sacerdotes, pode-se ter razão contra todo o mundo? Por ocasião de uma conferência de imprensa, o enviado de “Le Monde” me dizia: “Mas enfim vós estais só. Só contra o papa, só contra todos os bispos. Que significa vosso combate?” Pois bem, não, eu não estou sozinho. Tenho toda a tradição comigo, a Igreja existe no tempo e no espaço. E depois, eu sei que muitos bispos pensam como nós em seu foro interior. Hoje, desde a carta aberta ao papa que Dom Castro Mayer assinou comigo, somos dois a nos termos declarado abertamente contra a protestantização da Igreja. Temos muitos padres conosco. E depois há nossos seminários que fornecem atualmente cerca de 40 novos sacerdotes cada ano, nossos 250 seminaristas, nossos 30 irmãos, nossas 60 religiosas, nossos 30 oblatos, os mosteiros e os carmelos que se abrem e se desenvolvem, a multidão dos fiéis que vêm para nós.
A Verdade, aliás, não se realiza no número, o número não faz a Verdade. Mesmo se eu estivesse sozinho, se todos os meus seminaristas me deixassem, mesmo se toda a opinião pública me abandonasse, isto me seria indiferente no que me concerne. Estou ligado a meu credo, a meu catecismo, à tradição que santificou todos os eleitos que estão no céu, quero salvar minha alma. A opinião pública, conhece-se muito bem, foi a que condenou Nosso Senhor alguns dias após tê-lo aclamado. É o domingo de Ramos e depois há a Sexta-feira santa. Sua Santidade Paulo VI me perguntou: ”Mas enfim, no interior de vós mesmo, não sentis alguma coisa que vos reprova o que fizestes? Vós causais na Igreja um escândalo enorme, enorme. Vossa consciência não vo-lo diz? Respondi: Não, Santíssimo Padre, absolutamente. Se eu tivesse alguma coisa a me reprovar, cessaria imediatamente”.
O papa João Paulo II não confirmou nem invalidou a sanção pronunciada contra mim. Por ocasião da audiência que me concedeu em novembro de 1979, ele parecia bastante disposto, após uma conversação prolongada, a deixar a liberdade de escolha na liturgia, a deixar-me fazer, no final de contas, o que eu solicito desde o começo: entre todas as experiências que são efetuadas na Igreja, “a experiência da tradição”.
Parecia ter chegado o momento em que as coisas se iriam arranjar, não mais ostracismo contra a missa, não mais problema. Mas o cardeal Seper, que estava presente, viu o perigo; exclamou: “Mas Santíssimo Padre, eles fazem desta missa uma bandeira!” A pesada cortina que se havia erguido num instante recaiu. Será preciso esperar ainda.
Vós sois talvez, leitores perplexos, daqueles que vêem com tristeza e angústia o rumo que tomam as coisas, mas não obstante receiam assistir a uma verdadeira missa, apesar do desejo que experimentam, porque lhes fizeram crer que esta missa estava interditada. Sois talvez daqueles que não mais se dirigem aos padres de blusão mas que consideram com uma certa desconfiança os padres de batina, como se eles estivessem sob o golpe de alguma censura; aquele que os ordenou não é um bispo suspenso a divinis? Tendes medo de colocar-vos fora da Igreja; em princípio este temor é louvável, mas é mal esclarecido. Quero dizer-vos em que consistem as sanções, as quais foram postas em evidência, e com que os franco-maçons e os marxistas se regozijaram ruidosamente. Um curto apanhado histórico se revela necessário para que se compreenda bem.
Quando fui enviado ao Gabão como missionário, meu bispo me nomeou logo professor no seminário de Libreville, onde formei durante seis anos seminaristas, dentre os quais alguns, em seguida, receberam a graça do episcopado. Feito bispo por meu turno, em Dakar, pareceu-me que minha preocupação principal devia ser procurar vocações, formar os jovens que correspondessem ao apelo de Deus e de conduzi-los ao sacerdócio. Tive a alegria de conferir o sacerdócio ao que devia ser meu sucessor em Dakar, Dom Thiandoum e a Dom Dionne, o atual bispo de Thiès, no Senegal.
De volta à Europa para tomar posse do cargo de superior geral dos padres do Espírito Santo, esforcei-me por manter os valores essenciais da formação sacerdotal. Devo confessar que já nessa época, no começo dos anos 60, a pressão era tal, as dificuldades tão consideráveis que eu não pude obter o resultado que desejava; não podia manter o seminário francês de Roma, colocado sob a autoridade de nossa congregação na boa linha que era a sua quando nós mesmos aí estávamos, entre 1920 e 1930. Eu me demiti em 1968 para não avalizar a reforma empreendida pelo capítulo geral num sentido contrário ao da tradição católica. Antes já desta data, eu recebia numerosos apelos, de famílias e de sacerdotes perguntando-me para que lugares de formação dirigir os jovens que desejavam tornar-se padres. Confesso que estava muito hesitante. Exonerado de minhas responsabilidades e quando cogitava em retirar-me, pensei na universidade de Friburgo, na Suíça, ainda orientada e dirigida pela doutrina tomista. O bispo, Dom Charrière me recebeu de braços abertos, aluguei uma casa e acolhemos nove seminaristas que seguiam os cursos na universidade e levavam no resto do tempo, uma verdadeira vida de seminário. Eles muito depressa manifestaram o desejo de continuar, no futuro, a trabalhar juntos e, depois de refletir, fui perguntar a Dom Charrière se ele aceitava assinar um decreto de fundação duma “Fraternidade”. Aprovou os seus estatutos e assim nasceu, a 1° de novembro de 1970, a “Fraternidade Sacerdotal de São Pio X”.
Estávamos erigidos canonicamente na diocese de Friburgo.
Estes pormenores são importantes, vós ireis vê-lo. Um bispo tem o direito, canonicamente, de erigir em sua diocese associações que Roma pelo próprio fato reconhece. A tal ponto que se um bispo, sucessor do primeiro, desejar suprimir esta associação, ele não o pode fazer sem recorrer a Roma. A autoridade romana protege o que fez o primeiro bispo, afim de que as associações não estejam submetidas a uma precariedade que seria nociva ao seu desenvolvimento. Assim o quer o direito da Igreja.
A Fraternidade sacerdotal de São Pio X é por conseguinte reconhecida por Roma dum modo inteiramente legal, ainda que sendo de direito diocesano, e não de direito pontifício, o que não é indispensável. Existem centenas de congregações religiosas de direito diocesano que têm casas no mundo inteiro.
Quando a Igreja aceita uma fundação, uma associação diocesana, ela aceita que esta forme seus membros, se é uma congregação religiosa, ela aceita que haja um noviciado, uma casa de formação. Para nós são os seminários. A 18 de fevereiro de 1971, o cardeal Wright, prefeito da Congregação do clero, me enviara uma carta de encorajamento em que ele se mostrava tranqüilizado de que a Fraternidade ”poderia muito bem concordar com o fim visado pelo concílio neste santo Dicastério em vista da distribuição do clero no mundo”. E não obstante, em novembro de 1972 se falava na assembléia plenária do episcopado francês, em Lourdes, de “seminário selvagem”, sem que nenhum dos bispos presentes, necessariamente a par da situação jurídica do seminário de Ecône, protestasse.
Por que nos consideravam como selvagens? Porque nós não dávamos a chave da casa aos seminaristas para que eles pudessem sair todas as noites a seu gosto, porque não os fazíamos ver a televisão de oito a onze horas, porque não usavam “col roulé” e assistiam à missa todas as manhãs em lugar de ficarem na cama até a primeira aula.
E apesar disso, o cardeal Garrone, com quem eu me encontrei nesta época, me dizia: “Vós não dependeis diretamente de mim e eu não tenho a dizer-vos senão uma coisa: segui a ratio fundamentalis que eu dei para a fundação dos seminários, que todos os seminários devem seguir.” A ratio fundamentalis prevê que se ensine ainda latim no seminário, que se façam os estudos segundo a doutrina de Santo Tomás. Eu me permiti responder: “Eminência, acredito que somos alguns poucos a segui-la”. É ainda mais verdadeiro hoje e a ratio fundamentalis está ainda em vigor. Portanto, o que é que nos reprova?
Quando foi necessário abrir um verdadeiro seminário e eu aluguei a casa de Ecône, antiga casa de repouso dos monges do grande São Bernardo, fui encontrar dom Adam, bispo de Sion, que me deu seu consentimento. Esta criação não era o resultado dum projeto longínquo que eu tinha formado, ela se me impunha providencialmente. Eu tinha dito: ”se a obra se espalha mundialmente, será o sinal de que Deus está com ela.” De ano para ano o número dos seminaristas crescia: em 1970 havia 11 entradas, em 1974, 40. A inquietude se espalhava entre os inovadores: era evidente que, se nós formávamos seminaristas, era para ordená-los e que os futuros sacerdotes seriam fiéis à missa da Igreja; à missa da tradição à missa de sempre. Não é preciso buscar em outra parte a razão dos ataques aos quais nós estávamos expostos; um perigo para a Igreja neomodernista, importava detê-lo antes que fosse demasiado tarde.
É assim que, a 11 de novembro de 1974, chegavam ao seminário, com as primeiras neves, dois visitadores apostólicos enviados por uma comissão nomeada pelo papa Paulo VI e composta de três cardeais, Garrone, Wright e Tabera, sendo este último prefeito da Congregação dos religiosos. Eles interrogaram 10 professores e 20 dos 104 alunos presentes, assim como a mim mesmo, e regressaram dois dias mais tarde deixando uma desagradável impressão: tinham feito aos seminaristas afirmações escandalosas, julgando normal a ordenação de pessoas casadas, declarando que não admitiam uma verdade imutável e emitindo dúvidas sobre a maneira tradicional de conceber a Ressurreição de Nosso Senhor. Do seminário nada disseram nem deixaram nenhum protocolo. Em conseqüência disto, indignado com as afirmações feitas, eu publicava uma declaração que começava por estas frases:
“Nós aderimos de todo o coração, de toda a nossa alma à Roma católica, guardiã da fé católica e das tradições necessárias à manutenção desta fé, à Roma eterna, mestra da sabedoria e da verdade.
“Recusamos pelo contrário e sempre temos recusado seguir a Roma de tendência neo-modernista e neo-protestante que se manifestou claramente no concílio Vaticano II e depois do concílio, em todas as reformas dele provenientes.”
Os termos eram sem dúvida um pouco incisivos, mas traduziam e traduzem sempre o meu pensamento. É por causa deste texto que a comissão cardinalícia decidiu abater-nos, pois ela não o podia fazer referindo-se à conduta do seminário: os cardeais dir-me-ão dois meses mais tarde que os visitadores apostólicos tinham recolhido uma boa impressão de sua investigação.
Ela convidou-me, a 13 de fevereiro seguinte, para uma “conversa” em Roma, para esclarecer alguns pontos e eu fui até lá, sem duvidar de que se tratava de uma armadilha. A conversa, desde o início, se tornou um interrogatório cerrado, de tipo judiciário. Ela foi seguida por uma segunda, a 3 de março, e dois meses mais tarde, a comissão me informava “com inteira aprovação de Sua Santidade”, das decisões que havia tomado: Dom Mamie, novo bispo de Friburgo, se via reconhecer o direito de retirar a aprovação dada à Fraternidade por seu predecessor. Pelo próprio fato esta, assim como suas fundações e notadamente o seminário de Ecône, perdia o “direito à existência”.
Sem esperar notificação destas decisões, Dom Mamie me escrevia: Informo-vos pois de que eu retiro os atos e as concessões efetuados por meu predecessor no que respeita à Fraternidade sacerdotal são Pio X, particularmente o decreto de ereção de 1 de novembro de 1970. Esta decisão é imediatamente efetiva.”
Se bem me tendes seguido, podeis verificar que esta supressão foi feita pelo bispo de Friburgo e não pela Santa Sé. Em virtude do cânon 493 é assim uma medida nula de pleno direito por defeito de competência.
A isto se acrescentou um defeito de causa suficiente. A decisão não se pode apoiar senão na minha declaração de 21 de novembro de 1974, julgada pela comissão “em todos os pontos inaceitável”, uma vez que pelos dizeres da dita comissão, os resultados da visita apostólica eram favoráveis. Ora, minha declaração jamais foi objeto duma condenação da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé (o antigo Santo Ofício), a única habilitada a julgar se ela está em oposição à fé católica. Ela não foi tida “em todos os pontos inaceitável” a não ser por três cardeais, no decorrer do que ficou considerado oficialmente como uma conversa.
A existência jurídica da própria comissão não foi jamais demonstrada. Por qual ato pontifical foi ela instituída? Em que data? Em que forma foi tomada? A quem foi notificada? O fato de as autoridades romanas se haverem recusado a apresentá-lo, permite duvidar de sua existência. “Na dúvida de direito, a lei não obriga”, diz o Código de direito canônico. Ainda menos quando é a competência e mesmo a existência da autoridade que é duvidosa. Os termos “com a inteira aprovação de Sua Santidade“ são juridicamente insuficientes; eles só poderiam substituir o decreto que deveria ter constituído a comissão cardenalícia e definir seus poderes.
Outras tantas irregularidades de procedimento que tornam nula a suspensão da Fraternidade. Não se deve esquecer ademais que a Igreja não é uma sociedade totalitária de tipo nazista ou marxista, e que o direito, mesmo quando ele é respeitado — o que não é o caso nesta questão — não constitui algo de absoluto. Ele é relativo à verdade, à fé, à vida. O direito canônico é feito para fazer-nos viver espiritualmente e conduzir-nos assim à vida eterna. Se se emprega esta lei para impedir-nos de lá chegar, para fazer abortar de qualquer maneira nossa vida espiritual, estamos obrigados a desobedecer exatamente da mesma sorte que os cidadãos estão obrigados, numa nação, a desobedecer à lei do aborto.
Para permanecer no plano jurídico eu introduzi dois recursos sucessivos junto ao Tribunal apostólico, que é um pouco o equivalente ao Tribunal Supremo de cassação no direito civil. O cardeal secretário de Estado, Mons. Villot, proibiu este tribunal supremo da Igreja de recebê-los, o que corresponde a uma intervenção do executivo no judiciário.
A indisciplina está por toda a parte na Igreja, comissões de padres enviam intimações a seus bispos, os bispos desprezam exortações pontifícias, as próprias recomendações e decisões conciliares não são respeitadas e apesar disto não se ouve jamais pronunciar a palavra desobediência salvo para aplicá-la aos católicos que querem continuar fiéis à tradição e simplesmente conservar a fé.
A obediência constitui um assunto grave, ficar unido ao magistério da Igreja e particularmente ao Pontífice Supremo é uma das condições da salvação. Nós temos profunda consciência disto e também ninguém mais do que nós é apegado ao sucessor de Pedro atualmente reinante, como nós o fomos a seus predecessores, e eu falo aqui de mim e dos numerosos fiéis rejeitados das igrejas, dos sacerdotes obrigados a celebrar a missa em granjas como durante a Revolução Francesa, e a organizar catecismos paralelos nas cidades e nos campos.
Somos apegados ao papa enquanto ele se faz o eco das tradições apostólicas e dos ensinamentos de todos os seus predecessores. É a definição mesma do sucessor de Pedro guardar este depósito! Pio IX nos ensina na Pastor aeternus: “O Espírito Santo com efeito não foi prometido aos sucessores de Pedro para permitir-lhe publicar, segundo suas revelações, uma nova doutrina mas para conservar estritamente e expor fielmente, com sua assistência, as revelações transmitidas pelos Apóstolos, isto é, o depósito da fé.”
A autoridade delegada por Nosso Senhor ao papa, aos bispos e ao sacerdócio em geral está ao serviço da fé. Servir-se do direito, das instituições, da autoridade para aniquilar a fé católica e não mais comunicar a vida, é praticar o aborto ou a contraconcepção espirituais. É por isso que estamos submissos e prontos a aceitar tudo o que é conforme à nossa fé católica, tal como foi ensinada durante dois mil anos, mas recusamos tudo o que lhe é contrário.
Pois enfim, um problema grave se colocou à consciência e à fé de todos os católicos durante o pontificado de Paulo VI. Como é que um papa, verdadeiro sucessor de Pedro, assegurado pela assistência do Espírito Santo, pôde presidir à mais profunda e mais ampla destruição da Igreja na sua história num espaço de tão pouco tempo, coisa que nenhum heresiarca jamais conseguiu fazer? A esta pergunta será bem preciso responder um dia.
Na primeira metade do século V, são Vicente de Lerins, que foi soldado antes de se consagrar a Deus e declara ter sido “agitado muito tempo sobre o mar do mundo antes de se recolher ao porto da fé”, falava assim do desenvolvimento do dogma: “Não haveria nenhum progresso da religião na Igreja de Cristo? Havê-los-á certamente e muito importantes, de tal maneira que seja um progresso da fé e não uma mudança. Importa que cresçam abundante e intensamente em todos e em cada um, nos indivíduos como nas Igrejas, no decurso das épocas, a inteligência, a ciência, a sabedoria, contanto que seja na identidade do dogma, dum mesmo pensamento”. Vicente conhecia o impacto das heresias e deu uma regra de conduta ainda sempre boa após mil e quinhentos anos: “Que fará então o cristão católico se alguma parcela da Igreja acaba por desligar-se da comunhão, da fé universal? Que outro partido tomar senão preferir ao membro grangrenado e corrompido o corpo em seu conjunto que é são? E se algum contágio novo se esforça por envenenar, não mais uma pequena parte da Igreja, mas a Igreja inteira duma só vez, então seu grande cuidado será apegar-se à antigüidade, que evidentemente não pode mais ser seduzida por nenhuma novidade perigosa.”
Nas ladainhas das Rogações, a Igreja nos faz dizer: “Nós vos suplicamos, Senhor, manter na vossa santa religião o Soberano Pontífice e todas as ordens da hierarquia eclesiástica”. Isto quer bem dizer que uma tal desgraça pode suceder.
Na Igreja não há nenhum direito, nenhuma jurisdição que possa impor a um cristão uma diminuição de sua fé. Todo o fiel pode e deve resistir, apoiado no catecismo de sua infância, a quem quer que atentar contra a sua fé. Se ele se encontra em presença duma ordem que a põe em perigo de corrupção, a desobediência é um dever imperioso.
É porque julgamos que nossa fé está em perigo pelas reformas e as orientações pós-conciliares, que temos o dever de desobedecer e de conservar a tradição. Acrescentemos o seguinte: é o maior serviço que podemos prestar à Igreja e ao sucessor de Pedro recusar a Igreja reformada e liberal. Jesus Cristo, Filho de Deus feito homem, não é nem liberal nem reformável.
Eu ouvi por duas vezes enviados da Santa Sé me dizerem: ”O reinado social de Nosso Senhor não é mais possível em nosso tempo, é preciso aceitar definitivamente o pluralismo das religiões.” Eis exatamente o que eles me disseram.
Pois bem, eu não sou desta religião. Não aceito esta nova religião. É uma religião liberal, modernista, que tem seu culto, seus sacerdotes, sua fé, seus catecismos, sua Bíblia ecumênica traduzida em comum por católicos, judeus, protestantes, anglicanos, jogando com pau de dois bicos, dando satisfação a todo o mundo, sacrificando muito freqüentemente a interpretação do magistério. Nós não aceitamos esta Bíblia ecumênica. Há a Bíblia de Deus, é Sua Palavra a qual não temos o direito de misturar com a palavra dos homens.
Quando eu era criança, a Igreja tinha por toda parte, a mesma fé, os mesmos sacramentos, o mesmo sacrifício da missa. Se me houvessem dito então que isto mudaria, eu não teria podido acreditar. Em toda a extensão da cristiandade se rezava a Deus da mesma maneira. A nova religião liberal e modernista semeou a divisão.
Cristãos estão divididos no seio duma mesma família devido a esta confusão que foi instaurada, não vão mais à mesma missa, não lêem mais os mesmos livros. Sacerdotes não sabem mais o que fazer: ou obedecem cegamente ao que seus superiores lhes impõem e perdem de alguma sorte a fé de sua infância e de sua juventude, renunciam às promessas que fizeram no momento de sua ordenação, prestando o juramento antimodernista; ou resistem, mas é com a impressão de se separar do papa, do vigário de Cristo. Nos dois casos, que dilaceração! Muitos sacerdotes morreram prematuramente de desgosto.
Quantos outros foram obrigados a abandonar suas paróquias nas quais, há anos, eles exerciam seu ministério, expostos à perseguição aberta de sua hierarquia e apesar do apoio dos fiéis aos quais se arrancava o seu pastor.
Tenho debaixo dos olhos as despedidas comoventes de um deles à população das duas paróquias das quais era vigário: “Na sua conversa de... o senhor bispo me dirigiu um ultimatum: aceitar ou recusar a nova religião; eu não me poderia esquivar. Então para continuar fiel ao compromisso de meu sacerdócio, para continuar fiel à Igreja eterna... fui constrangido e forçado, contra a minha vontade, a retirar-me... A simples honestidade e sobretudo minha honra sacerdotal me criam uma obrigação de ser leal, precisamente nesta matéria de gravidade divina (a missa)... É esta prova de fidelidade e de amor que devo dar a Deus e aos homens, a vós em particular e é a respeito dela que eu serei julgado no último dia, como, aliás, todos aqueles a quem foi confiado este mesmo depósito”.
Na diocese de Campos, no Brasil, a quase totalidade do clero foi expulsa das igrejas após a saída de Dom Castro Mayer, por não querer abandonar a missa de sempre, tal como a celebravam ainda até uma data recente.
A divisão afeta as mínimas manifestações de piedade. Em Val-de-Marne, o bispado fez expulsar pela polícia vinte e cinco católicos que recitavam o rosário numa igreja particular de vigário titular há muitos anos. Na diocese de Metz, o bispo fez intervir o prefeito comunista para que fosse suspenso o empréstimo de um local concedido a um grupo de tradicionalistas. No Canadá seis fiéis foram condenados pelo tribunal, que a lei deste país permite ter competência nesta espécie de questão, por se haverem obstinado a comungar de joelhos. O bispo de Antigonish os havia acusado de “perturbar voluntariamente a ordem e a dignidade dum serviço religioso”. Os “perturbadores” foram postos pelo juiz em liberdade sob vigilância durante seis meses! Ao mesmo tempo o bispo proíbe aos cristãos de dobrarem o joelho diante de Deus! No ano passado, a peregrinação dos jovens a Chartres terminou com uma missa nos jardins da catedral, estando esta interditada à missa de são Pio V. Quinze dias mais tarde, as portas estavam abertas de par a par para um concerto espiritual no decorrer do qual foram interpretadas danças por uma antiga carmelita.
Duas religiões se afrontam; nós nos encontramos numa situação dramática, não é possível deixar de fazer uma escolha, mas esta escolha não é entre a obediência e a desobediência. O que se nos propõe, aquilo a que se nos convida expressamente, porquê nos perseguem, é escolher um simulacro de obediência. O Santo Padre, com efeito, não nos pode pedir que abandonemos nossa fé.
Nós escolhemos então conservá-la e não podemos enganar-nos atendo-nos àquilo que a Igreja ensinou durante dois mil anos. A crise é profunda, sabiamente organizada e dirigida, por sinal que se pode verdadeiramente crer que o chefe do empreendimento não é um homem, mas o próprio Satã. Ora é um golpe magistral de Satã ter chegado a fazer os católicos desobedecerem a toda a tradição em nome da obediência. Um exemplo típico é fornecido pelo aggiornamento das sociedades religiosas: por obediência se faz os religiosos e religiosas desobedecerem às leis e constituições de seus fundadores as quais eles juraram observar quando fizeram sua profissão. A obediência, neste caso, deveria ser uma recusa categórica. A autoridade, mesmo legítima, não pode ordenar um ato repreensível, mau. Ninguém pode obrigar qualquer pessoa a transformar seus votos monásticos em simples promessas. Igualmente ninguém pode fazer que nos tornemos protestantes ou modernistas.
Santo Tomás de Aquino a quem se é preciso sempre referir, chega mesmo a perguntar-se na Suma Teológica se a “correção fraterna” prescrita por Nosso Senhor pode-se exercer em relação aos superiores. Após ter feito todas as distinções úteis ele responde: “Pode-se exercer em relação aos superiores quando se trata da fé.”
Se nos mantivéssemos mais firmes neste capítulo evitaríamos vir a assimilar bem lentamente as heresias. No começo do século XVI, os ingleses conheceram uma aventura do gênero daquela que nós vivemos, com esta diferença, que ela começou por um cisma. Quanto ao resto, as semelhanças são espantosas e próprias a fazer-nos refletir. A nova religião, que tomará o nome de anglicanismo começa pela ofensiva contra a missa, a confissão pessoal, o celibato eclesiástico. Henrique VIII, se bem que assumiu a enorme responsabilidade de separar seu povo de Roma, recusa as sugestões que lhe são feitas, mas, no ano seguinte ao da sua morte, uma ordenação autoriza o uso do inglês na celebração da missa. As procissões são interditadas, um novo ordo é imposto, o Order of Communion, no qual o ofertório não existe mais. Para tranqüilizar os cristãos uma outra ordenação proíbe toda a sorte de mudanças, enquanto que uma terceira permite aos vigários suprimir as estátuas dos santos e da Santíssima Virgem nas igrejas. Obras de arte veneráveis são vendidas a comerciantes, tudo como hoje nos antiquários e bricabraques.
Alguns bispos apenas fizeram notar que o Order of Communion causava dano ao dogma da presença real, dizendo que Nosso Senhor nos dá seu corpo e seu sangue espiritualmente. O Confiteor traduzido em língua vernácula era recitado ao mesmo tempo pelo celebrante e pelos fiéis, ele servia de absolvição. A missa era transformada em refeição “turning into a Communion”. Mas mesmo os bispos lúcidos aceitavam finalmente o novo livro para manter a paz e a união. É exatamente pelas mesmas razões que a Igreja pós-conciliar queria impor-nos o novo ordo. Os bispos ingleses afirmaram, no século XVI, que a missa era um “memorial”! Uma farta propaganda fez passar as maneiras de ver luteranas para o espírito dos fiéis; os pregadores deviam ser aprovados pelo governo.
Durante o mesmo tempo, o papa não é mais chamado senão o “bispo de Roma”, ele não é mais o pai e sim o irmão dos outros bispos e no caso presente, o irmão do rei da Inglaterra que se instituiu chefe da Igreja nacional. O Prayer Book de Crammer foi composto misturando-se partes da liturgia grega com a liturgia de Lutero. Como não pensar em Mons. Bugnini redigindo a missa dita de Paulo VI com a colaboração de seus “observadores” protestantes adidos qualificados ao Conselho para a reforma da liturgia? O Prayer Book começa por estas palavras: “A Ceia e Santa Comunhão comumente chamada missa...” prefiguração do famoso artigo 7 da Institutio Generalis do Novo Missal, retomado pelo Congresso Eucarístico de Lourdes em 1981: “A Ceia do Senhor, chamada de outra maneira a missa...” A destruição do sagrado da qual eu falava mais acima, estavam incluídas também na reforma anglicana: as palavras do Canon deviam obrigatoriamente ser ditas em voz alta, assim como acontece nas “Eucaristias” atuais.
O Prayer Book foi também aprovado pelos bispos “para conservar a unidade interior do reino”. Os sacerdotes que continuavam a dizer “a missa antiga” incorriam em penas que iam da perda de seus proventos à exoneração pura e simples, em caso de reincidência, e à prisão perpétua. É preciso reconhecer que em nossos dias não se põem mais na prisão os sacerdotes “tradicionalistas”.
A Inglaterra dos Túdores descambou para a heresia sem bem se dar conta, aceitando a mudança sob pretexto de adaptar-se às circunstâncias históricas do tempo, tendo à frente seus pastores. É hoje toda a cristiandade que corre o risco de tomar o mesmo caminho e vós pensastes que se nós, que temos uma certa idade, corremos um perigo menor, as crianças, os jovens seminaristas formados nos novos catecismos, na psicologia experimental, na sociologia, sem nenhuma tintura de teologia dogmática e moral, de direito canônico, de história da Igreja, são educados numa fé que não é a verdadeira, encontram normais as noções neo-protestantes que se lhes inculcam? Que será da religião de amanhã se nós não resistimos?
Vós tereis a tentação de dizer: “Mas que podemos fazer? É um bispo que diz isto ou aquilo. Vede, este documento vem da comissão da catequese, ou duma outra comissão oficial.”
Portanto, nada mais vos resta senão perder a fé. Mas não tendes o direito de reagir assim. São Paulo nos advertiu: “Se mesmo um anjo viesse do céu dizer-vos outra coisa do que vos ensinei, não o escuteis.”
Tal é o segredo da verdadeira obediência.
É bem o modernismo que mina a Igreja do interior, em nossos dias como ontem. Tomemos ainda na encíclica Pascendi alguns trechos correspondendo ao que estamos vivendo. “Desde o momento em que seu fim é inteiramente espiritual, a autoridade religiosa deve despojar-se de todo este aparato exterior, de todos estes ornamentos pomposos pelos quais ela se dá como um espetáculo. Nisto eles se esquecem que a religião, se ela pertence propriamente à alma, apesar disto não se confina a ela, e que a honra prestada à autoridade recai sobre Jesus Cristo que a instituiu.”
É sob a pressão destes “dizedores de novidades” que Paulo VI abandonou a tiara, que os bispos se despojaram da batina roxa e mesmo da batina negra, assim como de seu anel, que os sacerdotes se apresentam em traje civil e na maior parte do tempo numa postura voluntariamente negligenciada. Não são somente as reformas gerais já postas em obra ou reclamadas com insistência que são Pio X mencionou como sendo o desejo “maníaco” dos modernistas reformadores. Vós os reconheceis nesta passagem: “No que toca ao culto (eles querem) que se diminua o número de devoções exteriores ou ao menos que se lhes detenha o crescimento... Que o governo eclesiástico se transforme numa democracia, que se dê uma parte no governo ao clero inferior e mesmo aos leigos; que a autoridade seja descentralizada. Reforma das congregações romanas, sobretudo das do Santo Ofício e do Índice... Há enfim quem, fazendo eco a seus mestres protestantes, desejam a supressão do celibato eclesiástico.”
Vedes que as mesmas reclamações são formuladas hoje e aí não há nenhuma imaginação nova. Para o pensamento cristão e a formação dos futuros sacerdotes, a vontade dos reformistas do tempo de Pio X era o abandono da filosofia escolástica, que devia ser relegada “à história da filosofia entre os sistemas caducos” e eles preconizavam “que se ensine aos jovens a filosofia moderna, a única verdadeira, a única que convém a nossos tempos... que a teologia dita racional tenha por base a filosofia moderna, a teologia positiva, por fundamento a história dos dogmas”. Neste ponto, os modernistas obtiveram o que queriam, e mais ainda. No que se tem em lugar de seminário, ensina-se a antropologia e a psicanálise, Marx em substituição a Santo Tomás de Aquino. Os princípios da filosofia tomista são rejeitados, em proveito de sistemas incertos dos quais eles mesmos reconhecem a inaptidão para dar conta da economia do universo, uma vez que propulsionam a filosofia do absurdo. Um revolucionário destes últimos tempos, sacerdote trapalhão muito escutado pelos intelectuais que colocava o sexo no centro de tudo, não receava declarar em reuniões públicas: “As hipóteses dos antigos no domínio científico eram puras asneiras e é sobre tais asneiras que Santo Tomás e Orígenes apoiaram seus sistemas.” Ele caía, logo depois no absurdo, definindo a vida como “um encadeamento evolutivo de fatos biológicos inexplicáveis.” Como o sabe ele, se é inexplicável? Como um sacerdote, acrescentaria eu, pode pôr de lado a única explicação que é Deus?
Os modernistas seriam reduzidos a nada se devessem defender suas elucubrações contra os princípios do Doutor Angélico, as noções de potência e ato, de essência, de substância e de acidentes, de alma e de corpo, etc. Eliminando estas noções, eles tornavam incompreensível a teologia da Igreja e, como se lê no Motu Proprio Doctoris Angelici, “disto resulta que os estudantes das disciplinas sagradas não percebem mais a própria significação das palavras pelas quais os dogmas que Deus revelou são propostos pelo magistério”. A ofensiva contra a filosofia escolástica é então necessária quando se quer mudar o dogma, atacar a Tradição.
Mas o que é a Tradição? Parece-me que, com freqüência, a palavra é imperfeitamente compreendida: comparam-na às tradições como existem nas profissões, nas famílias, na vida civil: o buquê fixado sobre a cumieira da casa quando se coloca a última telha, o cordão que se corta para inaugurar um monumento, etc. Não é disto que eu falo; a tradição, não são os costumes legados pelo passado e conservados por fidelidade a este, mesmo na ausência de razões claras. A tradição se define como o depósito da fé transmitido pelo magistério de século em século. Este depósito é aquele que nos deu a Revelação, isto é, a palavra de Deus confiada aos Apóstolos e cuja transmissão é assegurada por seus sucessores.
Ora atualmente, se quer pôr todo o mundo em pesquisa “como se o Credo não nos tivesse sido dado, como se Nosso Senhor não tivesse vindo trazer a Verdade, uma vez por todas. Que se pretende encontrar com toda esta pesquisa? Os católicos a quem se quer impor ”reconsiderações”, após se lhes ter feito “esvaziar suas certezas”, devem lembrar-se do seguinte: o depósito da Revelação terminou no dia da morte do último Apóstolo. Acabou, não se pode mais nele tocar até a consumação dos séculos. A Revelação é irreformável. O concílio I do Vaticano relembrou-o explicitamente: “a doutrina de fé que Deus revelou não foi proposta às inteligências como uma invenção filosófica que elas tivessem que aperfeiçoar, mas foi confiada como um depósito divino à Esposa de Jesus Cristo (Igreja) para ser por Ela fielmente conservada e infalivelmente interpretada.”
Mas, dir-se-á, o dogma que fez Maria a mãe de Deus não remonta senão ao ano de 431, o da transubstanciação a 1215, a infalibilidade pontifícia a 1870 e assim por diante. Não houve aí uma evolução? De modo nenhum. Os dogmas definidos no curso das idades estavam contidos na Revelação, a Igreja simplesmente os explicitou. Quando o papa Pio XII definiu, em 1950, o dogma da Assunção, ele disse precisamente que esta verdade da translação ao céu da Virgem Maria com seu corpo se encontrava no depósito da Revelação, que ela existia já nos textos que nos foram revelados antes da morte do último Apóstolo. Não se pode trazer nada de novo neste domínio, não se pode acrescentar um só dogma, mas exprimir os que existem duma maneira sempre mais clara, mais bela e mais grandiosa.
Isto é tão certo que constitui a regra a seguir para julgar os erros que se nos propõem quotidianamente e para rejeitá-los sem nenhuma concessão. Bossuet o escreveu com energia: “Quando se trata de explicar os princípios da moral cristã e os dogmas essenciais da Igreja, tudo o que não aparece na tradição de todos os séculos e especialmente na Antigüidade, é por isso mesmo não somente suspeito mas mau e condenável; e é o principal fundamento sobre o qual todos os santos Padres (da Igreja) e os papas mais que os outros, condenaram falsas doutrinas, não havendo nada de mais odioso à Igreja romana que as novidades.”
O argumento que se faz valer aos fiéis aterrorizados é este: “Vós vos agarrais ao passado, sois passadistas, vivei com vosso tempo!” Alguns desconcertados, não sabem o que responder; ora, a réplica é fácil; aqui não há nem passado nem presente, nem futuro, a Verdade é de todos os tempos, ela é eterna.
Para difamar a tradição, opõe-se-lhe a sagrada escritura, à maneira protestante, afirmando que o Evangelho é o único livro que conta. Mas a tradição é anterior ao Evangelho! Se bem que os Sinóticos tenham sido escritos bem menos tardiamente do que se tenta fazer crer, antes que os Quatro tivessem terminado a sua redação, passaram-se vários anos; ora a Igreja já existia, tinha havido Pentecostes, acarretando numerosas conversões, três mil no mesmo dia, ao sair do Cenáculo. Em que acreditaram eles naquele momento? Como se fez a transmissão da Revelação a não ser por tradição oral? Não se poderia subordinar a tradição aos Livros Santos e com mais forte razão recusá-la.
Mas não creiamos que, fazendo isto, eles tenham um respeito ilimitado pelo texto inspirado. Eles contestam mesmo que ele o seja na sua totalidade: ”O que há de inspirado no Evangelho? Somente as verdades que são necessárias à nossa salvação.” Por conseguinte os milagres, os relatos da infância, os acontecimentos e atos de Nosso Senhor são remetidos ao gênero biográfico mais ou menos lendário. No concílio discutiu-se sobre esta frase: ”Apenas as verdades necessárias à salvação”; havia bispos que queriam reduzir a autenticidade histórica dos evangelhos, o que mostra a que ponto o clero estava gangrenado pelo neo-modernismo. Os católicos não se devem deixar iludir: todo o Evangelho é inspirado; os que o escreveram tinham realmente sua inteligência sob a influência do Espírito Santo, de tal sorte que a totalidade é a palavra de Deus, Verbum Dei. Não é permitido escolher e dizer hoje: “Nós tomamos tal parte, nós não queremos tal outra.“ Escolher é ser herético, segundo a etimologia grega da palavra.
Não é menos verdade que é a tradição que nos transmite o Evangelho, e pertence à tradição, ao magistério, explicar-nos o que há no Evangelho. Se não temos ninguém para no-lo interpretar, podemos ser muitos a compreender dum modo inteiramente oposto a mesma palavra de Cristo. Desemboca-se então no livre exame dos protestantes e na livre inspiração de todo este carismatismo atual que nos lança na pura aventura.
Todos os concílios dogmáticos nos deram a expressão exata da tradição, a expressão exata do que os Apóstolos ensinaram. É irreformável. Não se podem mais mudar os decretos do concílio de Trento, porque eles são infalíveis escritos e baixados por um ato oficial da Igreja, à diferença do Vaticano II cujas proposições não são infalíveis, porque os papas não quiseram comprometer sua infalibilidade. Ninguém então vos pode dizer: “Vos nos agarrais ao passado, permanecestes no concílio de Trento.” Porque o concílio de Trento não é o passado! A tradição se reveste dum caráter intemporal, adaptado a todos os tempos e a todos os lugares.
No vocabulário inteiramente renovado dos homens da Igreja, algumas palavras sobreviveram. Fé é uma delas. Contudo é empregada nas mais diversas acepções. Ora, existe uma definição da fé, não se pode mudá-la. É a ela que se deve referir o católico quando não entende mais nada do palavreado confuso e pretensioso que se lhe apresenta.
A fé é a adesão da inteligência à verdade revelada pelo Verbo de Deus. Nós cremos numa verdade que vem de fora e que não é, de maneira alguma, segregada por nosso espírito. Nela acreditamos devido à autoridade de Deus que no-la revela, não é preciso buscar alhures.
Esta fé ninguém possui o direito de no-la tomar para substituí-la por uma outra. Vemos ressurgir uma definição modernista da fé, já condenada por Pio X há oitenta anos, e segundo a qual ela seria um sentimento interior: não seria preciso procurar a explicação da religião fora do homem: ”É pois no próprio homem que ela se encontra e, como a religião é uma forma de vida, na vida mesma do homem.” Ela seria alguma coisa de puramente subjetivo, uma adesão da alma a Deus sendo Ele próprio inacessível à nossa inteligência, cada um por si, cada um na sua consciência.
O modernismo não é uma invenção recente, ele já não o era em 1907, data da famosa encíclica; é o espírito perpétuo da Revolução, que nos quer fechar na nossa humanidade e colocar Deus fora da lei. Sua falsa definição não busca senão corromper a autoridade de Deus e a da Igreja.
A fé nos vem do exterior, nós estamos obrigados a nos submeter a ela. “Quem crer será salvo, quem não crer será condenado”, é Nosso Senhor que o afirma.
Quando eu fui ver o papa em 1976, ele, para minha imensa surpresa, me reprovou o fato de fazer meus seminaristas prestarem um juramento contra ele. Tive dificuldade de compreender donde isto poderia provir, pois alguém com toda a evidência lhe havia insuflado esta idéia, na intenção de prejudicar-me. Depois se fez a luz no meu espírito: tinha-se interpretado neste sentido o juramento antimodernista que até agora todo o sacerdote era obrigado a recitar solenemente antes de sua ordenação e todo o dignitário eclesiástico no momento de receber seu cargo. S.S. Paulo VI o havia ele mesmo prestado mais de uma vez na sua vida. Ora, eis aqui o que se encontra neste juramento:
“Eu tenho como certíssimo e professo sinceramente que a fé não é um sentimento religioso cego, que emerge das trevas do subconsciente sob a pressão do coração e a inclinação da vontade moralmente informada! Mas que ela é um verdadeiro assentimento da inteligência à verdade recebida de fora, pela qual nós cremos ser verdadeiro, devido à autoridade de Deus, tudo o que foi dito, atestado e revelado pela pessoa de Deus, nosso criador e soberano.”
O juramento antimodernista não é mais exigido para alguém se tornar padre ou bispo; se o fosse, haveria ainda menos ordenações que há. Com efeito, o conceito de fé foi falseado, e muitas pessoas, sem terem más intenções, se deixam influenciar pelo modernismo. É porque elas aceitam crer que todas as religiões salvam, se cada um tem uma fé segundo sua consciência, se é a consciência que produz a fé, não há razão de pensar que uma fé salva melhor que outra, contanto que a consciência seja orientada para Deus. Lêem-se afirmações como esta num documento proveniente da comissão de catequese do episcopado francês: “A verdade não é qualquer coisa de recebido, de inteiramente feito, mas alguma coisa que se faz.”
A diferença de ótica é total. Diz-se-nos que o homem não recebe a verdade, mas a constrói. Ora nós sabemos e nossa própria inteligência no-lo confirma que a verdade não se cria, não somos nós que a criamos. Mas como defender-se contra estas doutrinas perversas que arruínam a religião, visto que estes “dizedores de novidades” se encontram no próprio seio da Igreja? Eles foram, graças a Deus, desmascarados desde o início do século dum modo que permite reconhecê-los facilmente. Não pensemos que se trata de um fenômeno antigo que interessa apenas aos escritores eclesiásticos: a Pascendi é um texto que se acreditaria escrito hoje, é duma atualidade extraordinária e pinta, com cores tão frescas que não se poderia admirá-la demasiadamente, estes inimigos do interior.
Ei-los “curtos em filosofia e em teologia sérias, se apresentando, com desprezo de toda modéstia, como renovadores da Igreja... desprezadores de toda a autoridade, indóceis a todo o freio.” “Sua tática é jamais expor suas doutrinas metodicamente e no seu conjunto, mas de fragmentá-las de alguma sorte, de espalhá-las aqui e ali, o que faz julgá-los ondulantes e indecisos, quando suas idéias, ao contrário, são perfeitamente determinadas e consistentes... Tal página de sua obra poderia ser subscrita por um católico; virai a página e vós credes estar lendo um racionalista... Censurados e condenados, eles seguem o seu caminho dissimulando sob aparências enganadoras de submissão uma audácia sem limites... Quem quer que tem a desgraça de criticar uma ou outra de suas novidades, por monstruosa que seja, eles caem sobre ele em fileiras cerradas, quem a nega é tratado de ignorante, quem a abraça e a defende é elevado às nuvens... Uma obra aparece, respirando a novidade por todos os seus poros, eles a acolhem com aplausos e gritos de admiração. Quanto mais um autor levar sua audácia a difamar a antiguidade, a minar a Tradição e o magistério eclesiásticos tanto mais será sábio. Enfim, se acontece que um dentre eles é golpeado pelas condenações da Igreja, bem depressa os outros vão cerrar fileiras à sua volta, cumulá-lo de elogios e venerá-lo quase como um mártir da verdade.”
Todos estes traços correspondem tão bem ao que vemos, que se acreditariam esboçados bem recentemente. Em 1980, após a condenação de Hans Küng, um grupo de cristãos procedia, diante da catedral de Colônia, a um auto de fé à guisa de protesto contra a decisão da Santa Sé de retirar do teólogo suíço sua missão canônica; tinha-se feito uma fogueira sobre a qual eles jogaram um manequim e obras de Hans Küng “afim de simbolizar a interdição dum pensamento corajoso e honesto” (Le Monde). Pouco antes, as sanções contra o P. Pohier haviam provocado outros levantamentos de escudos: 300 dominicanos e dominicanas endereçaram uma carta pública de protesto contra estas sanções, uma vintena de personalidades assinavam um outro texto; a abadia de Boquen, a capela de Montparnasse e outros grupos de vanguarda vinham em ajuda. A única novidade em relação à descrição de São Pio X é que eles não se dissimulam mais sob aparências enganosas de submissão; tomaram confiança, têm muitos apoios na Igreja para esconder-se ainda. O modernismo não está morto, ao contrário, progrediu e se ostenta.
Continuemos a ler a Pascendi: “Depois disto, não há motivo de se admirar se os modernistas perseguem com toda a sua malevolência, com toda a sua acrimônia, os católicos que lutam vigorosamente pela Igreja. Não há sorte de injúrias que os modernistas não vomitem contra eles. Se se trata dum adversário cuja erudição e vigor de espírito o tornam temível: os modernistas buscarão reduzi-lo à impotência organizando em torno dele a conspiração do silêncio”. É o caso hoje dos padres tradicionalistas acossados, perseguidos, dos escritores religiosos ou leigos de quem a imprensa nas mãos dos progressistas jamais diz uma palavra. Movimentos de juventude são também postos de lado porque permanecem fiéis e cujas atividades edificantes, peregrinações ou outras, ficam desconhecidas do público que no entanto poderia encontrar nisto um reconforto.
“Se eles escrevem história, procuram com curiosidade e publicam aos quatro ventos, sob o pretexto de dizer toda a verdade e com uma sorte de prazer mal dissimulado, tudo que lhes parece macula na história da Igreja. Dominados por certos preconceitos, destroem, tanto como podem, as piedosas tradições populares. Põem em ridículo certas relíquias muito veneráveis por sua antiguidade. Eles são enfim possuídos pelo vão desejo de fazer falar deles; o que não sucederia, eles bem o compreendem, se dissessem como se tem sempre dito até aqui.”
Quanto à sua doutrina, ela repousa sobre alguns pontos seguintes, que não se terá dificuldade em reconhecer nas correntes atuais: ”A razão humana não é capaz de elevar-se até Deus, não, nem mesmo para conhecer, por meio das criaturas a sua existência.” Sendo impossível toda revelação exterior, o homem buscará em si mesmo a satisfação da necessidade do divino que sente e cujas raízes, se encontram no seu subconsciente. Esta necessidade do divino suscita na alma um sentimento particular ”que une de algum modo homem com Deus.“ Tal é a fé para os modernistas. Deus é assim criado na alma e é a revelação.
Do sentimento religioso se passa ao domínio da inteligência que vai elaborar o dogma: o homem deve pensar sua fé, é uma necessidade para ele, uma vez que é dotado de inteligência. Ele cria fórmulas que não contêm a verdade absoluta mas imagens da verdade, símbolos. Estas fórmulas dogmáticas estão, por conseguinte, submetidas à mudança, elas evoluem. “Assim está aberto o caminho à variação substancial dos dogmas.”
As fórmulas não são simples especulações teológicas, elas devem ser vivas para serem verdadeiramente religiosas. O sentimento deve assimilá-las ”vitalmente”.
Fala-se hoje da “vivência da fé”. “Afim de que elas sejam e permaneçam vivas, continua Pio X, estas fórmulas devem ficar ajustadas ao crente e à sua fé. No dia em que esta adaptação viesse a cessar, então elas se esvaziariam ao mesmo tempo de seu conteúdo primitivo; não haveria outro partido a tomar senão mudá-las dado o caráter tão precário e tão instável das fórmulas dogmáticas, compreende-se muitíssimo bem que os modernistas as tenham em tão pouca estima se é que não as desprezam abertamente. O sentimento religioso, a vida religiosa é o que eles têm sempre nos lábios”. Nas homilias, nas conferências, nos catecismos, dá-se caça às “fórmulas preparadas.”
O crente faz sua experiência pessoal da fé, depois ele a comunica a outros pela pregação, é assim que a experiência religiosa se propaga. “Quando a fé se tornou comum ou, como se diz, coletiva” experimenta-se a necessidade de se organizar em sociedade para conservar e fazer crescer o tesouro comum. Donde a fundação duma Igreja. A Igreja é “o fruto da consciência coletiva, falando de outra maneira, da coleção das consciências individuais: consciências que derivam dum primeiro crente - para católicos, de Jesus Cristo”.
E a história da Igreja se escreve como segue: no início, quando se acreditava ainda que a autoridade da Igreja vinha de Deus, era concebida como autocrática. “Mas hoje se voltou atrás a esse respeito. Assim como a Igreja é uma emanação vital da consciência coletiva, de igual modo, por seu lado, a autoridade é um produto vital da Igreja.” Então é preciso que o poder mude de mãos e venha da base. A consciência política criou o regime popular, deve acontecer o mesmo na Igreja: “Se a autoridade eclesiástica não quer, no mais íntimo das consciências, provocar e fomentar um conflito, cabe a ela ceder às formas democráticas.”
Vós compreendeis agora, católicos perplexos, aonde o cardeal Suenens e todos os teólogos turbulentos foram buscar suas idéias. A crise pós-conciliar está em perfeita continuidade com aquela que agitou o fim do último século e o início deste. Compreendeis assim porque, nos livros de catecismo que vossos filhos trazem para a casa, tudo começa nas primeiras comunidades, que se formaram depois de Pentecostes, quando os discípulos sentiram a necessidade do divino, devido ao choque provocado por Jesus e viveram em conjunto “uma experiência original”. Vós podeis explicar-vos a ausência dos dogmas, a Santíssima Trindade, a Encarnação, a Redenção, a Assunção etc., nestes mesmos livros e nos sermões. O texto de referência elaborado para a catequese pelo episcopado francês se estende sobre a criação de grupos que serão “mini-Igrejas” destinadas a recompor a Igreja de amanhã segundo o processo que os modernistas creram ler no nascimento da Igreja dos Apóstolos: “Num grupo de catequese, animadores, pais e crianças trazem sua experiência de vida, suas aspirações profundas, imagens religiosas, um certo conhecimento das coisas da fé. Segue-se uma confrontação que é condição de verdade, na medida em que ela põe em movimento os desejos profundos das pessoas e as compromete realmente em direção das transformações inevitáveis que todo o contato com o Evangelho manifesta. Bloqueios são possíveis. É no final duma ruptura, duma conversão, duma espécie de morte que se pode, pela graça, efetuar a confissão de fé.”
São os bispos que põem em aplicação às claras a tática modernista condenada por são Pio X! Tudo se encontra neste parágrafo relede-o com atenção. O sentimento religioso provocado pela necessidade, as aspirações profundas, a verdade originando-se na confrontação das experiências, a variação dos dogmas, a ruptura com a Tradição.
Para o modernismo os sacramentos nascem também duma necessidade “pois, como se notou, a necessidade, a exigência, tal é, em seu sistema, a grande e universal explicação”. É preciso dar à religião um corpo sensível. “Os sacramentos são (para eles) puros sinais ou símbolos, embora dotados de eficácia. Eles os comparam a certas palavras das quais se diz vulgarmente que elas têm sucesso, porque possuem a virtude de irradiar idéias fortes e penetrantes que impressionam e comovem. Bem se pode dizer: os sacramentos não foram instituídos senão para nutrir a fé: proposição condenada pelo concílio de Trento.”
Esta idéia se reencontra em Besret, por exemplo, que foi “perito” no concílio: “Não é o sacramento que põe o amor de Deus no mundo. O amor de Deus trabalha em todos os homens. O sacramento é o momento de sua manifestação pública na comunidade dos discípulos... Dizendo isto, não tenciono absolutamente negar o aspecto eficaz dos sinais formulados. O homem se realiza também ao revelar-se e isto vale nos sacramentos como no resto de sua atividade.
Os Livros Santos? Eles são para os modernistas “a compilação das experiências feitas numa determinada religião”. É Deus que fala através destes livros, mas o Deus que está em nós. São livros inspirados um pouco como se fala de inspiração poética; a inspiração é assimilada à necessidade intensa que experimenta o crente de comunicar sua fé por escrito. A Bíblia é uma obra humana.
Em Pedras Vivas, se diz às crianças que o Gênesis é um “poema” escrito um dia pelos crentes que “refletiram”. Esta compilação, imposta pelos bispos da França a todos os alunos do catecismo, respira modernismo em quase todas as páginas. Estabeleçamos um pequeno paralelo: São Pio X: ”É uma lei (para os modernistas) que a data dos documentos não poderia ser determinada de outra maneira senão pela data das necessidades às quais a Igreja está sujeita sucessivamente.”
Pedras Vivas: ”Para ajudar estas comunidades a viver o Evangelho, alguns Apóstolos lhes escrevem cartas que se chamam também Epístolas... Mas os Apóstolos contaram sobretudo de viva voz o que Jesus tinha feito no meio deles e o que lhes havia dito... Mais tarde quatro autores — Marcos, Mateus, Lucas e João — escreveram o que os Apóstolos disseram.”, “Redação dos Evangelhos: Marcos por volta de 70? Lucas entre 80-90? Mateus entre 80-90? João entre 95-100?”, “Eles narraram os acontecimentos da vida de Jesus, suas palavras e sobretudo sua morte e sua ressurreição para esclarecer a fé dos crentes.”
São Pio X: “Nos Livros Sagrados (dizem) há vários lugares, relativamente à ciência ou à história onde se verificam erros manifestos. Mas não é de história nem de ciência que estes livros tratam, é unicamente de religião e de moral.”
Pedras Vivas: “É um poema (o Gênesis) e não um livro de ciência. A ciência nos diz que foram precisos milhões de anos para ver aparecer a vida.” “Os Evangelhos não narram o relato da vida de Jesus como se refere hoje um acontecimento na rádio, na televisão ou num jornal.”
São Pio X: Eles não hesitam em afirmar que os livros em questão, sobretudo o Pentateuco e os três primeiros Evangelhos, se formaram lentamente de anexos feitos a uma narração primitiva muito breve: interpolações à maneira de interpretações teológicas ou alegóricas, ou simplesmente transições e suturas.”
Pedras Vivas: “O que se escreveu na maior parte destes livros tinha sido inicialmente narrado de pai para filho. Um dia alguém o escreveu para transmiti-lo a seu turno e freqüentemente o que escreveu, foi reescrito por outras pessoas ainda... 538, dominação dos Persas: a reflexão e as tradições tornam-se livros. Esdras, por volta de 400, reúne (diversos livros) para fazer deles a Lei ou Pentateuco. Os rolos dos Profetas são compostos. A reflexão dos Sábios acaba em diversas obras primas.”
Os católicos que se espantam com a linguagem nova utilizada na “Igreja Conciliar” têm ademais a saber que ela não é tão nova, que Lammenais, Fuchs, Loisy já a empregavam no século passado e que eles mesmos não tinham senão amontoado todos os erros que puderam ocorrer no decurso dos séculos. A religião de Cristo não mudou e não mudará jamais, não se deve deixar-se enganar.
Na origem da revolução, que é “o ódio de toda a ordem que o homem não estabeleceu e na qual ele não é rei e Deus ao mesmo tempo” encontra-se o orgulho que já tinha sido a causa do pecado de Adão. A revolução na Igreja se explica pelo orgulho de nossos tempos modernos que se crêem tempos novos, tempos em que o homem enfim “compreendeu por si mesmo a sua dignidade, em que tomou uma maior consciência de si mesmo” a tal ponto que se pode falar de metamorfose social e cultural cujos efeitos repercutem sobre a vida religiosa... O próprio movimento da história se torna tão rápido que cada um tem dificuldade em segui-lo... Em poucas palavras, o gênero humano passa duma noção antes estática da ordem das coisas a uma concepção mais dinâmica e evolutiva: daí nasce uma imensa problemática nova que provoca novas análises e novas sínteses”. Estas frases surpreendentes figurando, com muitas outras semelhantes, na exposição preliminar da constituição “A Igreja no mundo deste tempo” auguram mal o retorno ao espírito evangélico; vê-se que este dificilmente sobrevive a tanto movimento e a tantas transformações.
E como compreender o seguinte: ”Uma sociedade de tipo industrial se estende pouco a pouco, transformando radicalmente as concepções da vida em sociedade” senão que se dá como certo o que se deseja ver produzir-se: uma concepção da sociedade que nada terá a ver com a concepção cristã, segundo a doutrina social da Igreja? Tais premissas não poderão senão conduzir a um novo Evangelho, a uma nova religião. Ei-la: “Que eles vivam (os crentes) em união muito estreita com os outros homens de seu tempo e que se esforcem em compreender a fundo suas maneiras de pensar e de sentir, tais como se exprimem na cultura. Que eles unam o conhecimento das ciências e das novas teorias, como as descobertas mais recentes, com os costumes e o ensino da doutrina cristã, para que o senso religioso e a retidão moral caminhem a par, neles, do conhecimento científico e dos incessantes progressos técnicos; eles poderão assim apreciar e interpretar todas as coisas com uma sensibilidade autenticamente cristã” (Gaudium et Spes, 62-6). Singulares conselhos, enquanto que o Evangelho nos manda evitar as doutrinas perversas! E que não se diga que podem ser entendidas de duas maneiras: a catequese atual as entende como queria Schillebeeckx: ela aconselha às crianças freqüentar a escola dos ateus, porque estes têm muito a lhes ensinar e que de resto, para não crer em Deus, eles têm suas razões, que é proveitoso conhecer.
Pode-se também dizer que a primeira frase do capítulo primeiro: ”Crentes e descrentes estão geralmente de acordo neste ponto, que tudo na terra deve ser ordenado ao homem como a seu centro e a seu cume”, se explica no sentido cristão pelo que segue. Ela tem uma significação em si mesma, aquela que precisamente se vê pôr em obra em toda a parte na Igreja pós-conciliar, sob a forma duma salvação reduzida ao desenvolvimento econômico e social da humanidade.
Por minha parte, penso que os crentes que admitirem esta proposição como base comum num diálogo com os descrentes e que unirem as teorias novas com a doutrina cristã perderão a fé, nem mais nem menos. A regra de ouro da Igreja é invertida pelo orgulho dos homens de nosso tempo; não se escuta mais a palavra sempre viva e fecunda de Cristo, mas a do mundo. Este agiornamento se condena por si mesmo. A raiz da desordem atual está neste espírito moderno ou antes modernista que recusa reconhecer o Credo, os mandamentos de Deus e da Igreja, os sacramentos, a moral cristã como a única fonte de renovação para todos os tempos até o fim do mundo. Deslumbrados pelos “progressos da técnica que vão até transformar a face da terra e já se lançam à conquista do espaço” (Gaudium et Spes, 5-1), os homens da Igreja, que não devem ser confundidos com a Igreja, parecem considerar que Nosso Senhor não podia prever a evolução tecnológica de nossa época e que, por conseguinte, sua mensagem não está adaptada a ela.
O sonho dos liberais desde um século e meio consiste em consorciar a Igreja com a revolução. Durante um século e meio também, os Soberanos Pontífices condenaram este catolicismo liberal; citemos, entre os documentos, os mais importantes: a bula Auctorem fidei de Pio VI, contra o concílio de Pistóia, a encíclica Mirari vos de Gregório XVI contra Lamennais, a encíclica Quanta cura e o Syllabus de Pio IX, a encíclica Immortale Dei de Leão XIII, contra o direito novo, os documentos de são Pio X contra “le Sillon” e o modernismo, e especialmente o decreto Lamentabili, a encíclica Divini Redemptoris de Pio XI, contra o comunismo, a encíclica Humani Generis do papa Pio XII.
Todos os papas recusaram o consórcio da Igreja com a revolução, que é uma união adúltera e duma união adúltera não podem provir senão bastardos. O rito da missa é um rito bastardo, os sacramentos, são sacramentos bastardos, nós não sabemos mais se são sacramentos que conferem a graça ou que não a conferem. Os sacerdotes que saem dos seminários são sacerdotes bastardos, não sabem mais o que são; não sabem mais que são ordenados para subir ao altar, oferecer o sacrifício de Nosso Senhor Jesus Cristo às almas.
Em nome da revolução padres foram mandados para o cadafalso, religiosas foram perseguidas e assassinadas. Lembrai-vos das barcaças de Nantes que eram afundadas no alto mar depois de terem sido amontoados nelas todos os sacerdotes fiéis. Pois bem, o que a Revolução fez não foi nada em comparação das obras do Vaticano II pois teria sido preferível que os vinte ou trinta mil sacerdotes que abandonaram seu sacerdócio e seu juramento feito diante de Deus tivessem sido martirizados, subido ao cadafalso; aos menos eles teriam salvo sua alma e agora correm o risco de perdê-la.
Dizem-nos que entre estes pobres sacerdotes casados, muitos já se divorciaram, muitos já introduziram pedidos de anulação de casamento em Roma. Chamar-se-á a isto bons frutos do concílio? Vinte mil religiosas, nos Estados Unidos, e quantas outras nos demais países, romperam os votos perpétuos que as uniam a Jesus Cristo, para correrem também para o casamento. Se elas subissem ao cadafalso, teriam ao menos testemunhado sua fé. O sangue dos mártires é semente de cristãos, mas os padres ou os simples fiéis que se aliam ao espírito do mundo não fazem surgir messe nenhuma. É a maior vitória do diabo ter querido destruir a Igreja sem fazer mártires.
A união adúltera da Igreja e da revolução se concretiza pelo diálogo. Nosso Senhor disse: “Ide, ensinai as nações, convertei-as”, mas não falou: “Dialogai com elas sem tentar convertê-las”. O erro e a verdade não são compatíveis entre si, dialogar com o erro é colocar Deus e o demônio no mesmo plano. Eis o que sempre repetiram os papas e o que os cristãos compreendiam facilmente, pois é também uma questão de senso comum. Para impor uma atitude e reflexos diferentes, foi necessário agir sobre os cérebros de modo a tornar modernistas os clérigos chamados a difundir a doutrina nova. É o que se chama a reciclagem, processo de condicionamento destinado a remodelar o próprio instrumento que Deus deu ao homem para conduzir seu julgamento.
Eu fui testemunha duma operação deste gênero na congregação que é a minha, e da qual fui durante certo tempo superior geral. O que se exige em primeiro lugar da pessoa é que ela “reconheça a mudança”: o concílio operou transformações, e por isso é necessário que nós próprios mudemos. Mudança em profundidade, visto que se trata de adaptar as faculdades de raciocínio para fazê-las coincidir com idéias fabricadas arbitrariamente. Nós podemos ler num fascículo editado pela secretaria do arcebispado de Paris, A Fé palavra por palavra: “A segunda operação, mais delicada, consiste em assinalar as maneiras diferentes que têm os cristãos de apreciar, nas diversas mudanças, o fato mesmo da mudança. Esta determinação tem muita importância porque as oposições atuais dizem mais respeito às atitudes espontâneas e inconscientes diante da mudança que ao começo preciso de cada mudança.
“Duas atitudes típicas se delineiam, parece, com a condição de não negligenciar por isso todos os intermediários possíveis. Segundo a primeira cede-se a um certo número de novidades depois de ter verificado que elas se impõem uma após outra. É o caso de muitos cristãos, de muitos católicos, que cedem de degrau em degrau.
“Conforme a segunda, consente-se numa renovação de conjunto de formas da fé cristã à margem duma era cultural inédita. Deixa de assegurar-se sem cessar a fidelidade à fé dos Apóstolos.”
Esta precaução oratória está bem na tradição dos modernistas: eles fazem sempre protestos de seus sentimentos ortodoxos e tranqüilizam, com uma pequena frase, as almas que ficariam espantadas por perspectivas como “a renovação do conjunto das formas da fé cristã à margem duma era cultural inédita”, mas é já muito tarde, quando se se prestou a estas manipulações e será bem o tempo de ocupar-se com a fé dos Apóstolos, quando se tiver demolido completamente a fé!
Uma terceira operação se torna necessária no caso em que se retém o segundo diagnóstico: “O cristão não pode pressentir nisto um risco terrível para a fé. Não vai ela desaparecer pura e simplesmente, ao mesmo tempo que a problemática que a tinha conduzido até aí? Ele pede então uma garantia fundamental que lhe permite ultrapassar as primeiras atitudes estéreis.”
Todos os graus de resistência são então previstos. Que “garantia fundamental” se dá por fim ao neófito? O Espírito Santo. ”O Espírito Santo é precisamente quem assiste os crentes no movimento da história.”
O objetivo está atingido: não há mais magistério, nem dogma, nem hierarquia, nem mesmo Sagrada Escritura, como texto inspirado e historicamente certo: os cristãos são diretamente inspirados pelo Espírito Santo.
Então a Igreja desmorona, o cristão reciclado é abandonado a todas as influências, dócil a todos os slogans, pode-se conduzi-lo aonde se quer, agarrando-se, se ele busca uma garantia a esta afirmação: ”O Vaticano II apresenta seguramente numerosos indícios duma mudança de problemática.”
“A causa próxima e imediata (do modernismo) escreve Pio X na encíclica Pascendi, reside numa perversão de espírito.” A reciclagem cria uma tal perversão naqueles que não a possuíam. E o santo Pontífice cita esta observação de seu predecessor Gregório XVI: ”É um espetáculo lamentável ver até onde vão as divagações da razão humana, desde que se ceda ao espírito de novidade; que contrariamente à advertência do Apóstolo, se pretende saber mais do que é preciso e que, fiando-se demasiadamente em si mesmo, se pensa poder buscar a verdade fora da Igreja, na qual ela se encontra sem a mais leve sombra de erro.”.
A aproximação que eu faço da crise da Igreja com a Revolução Francesa não é uma simples metáfora. Nós estamos na continuidade dos filósofos do século XVIII e do transtorno que suas idéias provocaram no mundo. Os que transmitiram este veneno à Igreja são os mesmos a confessá-lo. É o cardeal Suenens exclamando: ”o Vaticano II, é o 1789 na Igreja”, e acrescentava, entre outras declarações desprovidas de precauções oratórias: ”Não se compreende nada da Revolução Francesa ou russa se se ignora o antigo regime ao qual elas puseram fim... Igualmente em matéria eclesiástica, uma reação não se julga senão em função do estado de coisas que a precedem.”
O que precedeu e que ele considerava como devendo ser abolido, é o maravilhoso edifício hierárquico que tinha no seu cimo o papa, vigário de Jesus Cristo sobre a terra: ”O concílio Vaticano II marcou o fim duma época, por menos que se recue, ele marcou mesmo o fim de uma série de épocas, o fim de uma era”.
O padre Congar, um dos artífices das reformas não falava de outra maneira: “A Igreja fez, pacificamente, sua Revolução de outubro.” Plenamente consciente, ele notava: “A declaração sobre a liberdade religiosa diz materialmente o contrário do Syllabus”. Eu poderia citar um grande número de testemunhos deste gênero. Em 1976, o Pe. Gelineau, um dos chefes de fila do centro nacional de pastoral litúrgica, não deixava nenhuma ilusão àqueles que querem ver no novo ordo alguma coisa um pouco diferente do rito que era universalmente celebrado até então, mas nada de fundamentalmente chocante: ”A reforma decidida pelo segundo concílio do Vaticano deu o sinal do degelo... lanços inteiros de muralha desabam... Que não haja engano a respeito: traduzir não é dizer a mesma coisa com outras palavras. É mudar a forma... Se as formas mudam, o rito muda. Se se muda um elemento a totalidade significativa é modificada... É preciso dizer sem circunlóquios: o rito romano tal como nós o conhecemos, não existe mais. Foi destruído” .
Os católicos liberais estabeleceram verdadeiramente um estado revolucionário. Eis o que líamos no livro de um deles, o senador do Doubs, M. Prelot. “Lutamos durante um século e meio para fazer prevalecer nossas opiniões no interior da Igreja e não tivemos êxito. Enfim chegou o Vaticano II e triunfamos. Doravante as teses e os princípios do catolicismo liberal foram definitiva e oficialmente aceitos pela Santa Igreja.”
É por meio da obliqüidade deste catolicismo liberal que a Revolução se introduziu, sob o pretexto de pacifismo, de fraternidade universal. Os erros e os falsos princípios do homem moderno penetraram na Igreja e contaminaram o clero, graças a papas liberais e ao favor do Vaticano II.
Uma vez que há um momento em que é preciso saber repor as coisas no devido lugar, eu lembrarei que não era refratário à reunião de um concílio ecumênico em 1962. Pelo contrário eu o saudei com uma grande esperança. Testemunho disto hoje é uma carta que eu endereçava em 1963 aos padres do Espírito Santo e que foi publicada numa de minhas obras precedentes. Nela eu escrevia: “Digamos, sem hesitação, que certas reformas litúrgicas eram necessárias e que é desejável que o concílio continue neste caminho.” Eu reconhecia que se impunha uma renovação para pôr fim a uma certa esclerose que provinha do fato de se haver cavado um fosso entre a oração, acantonada nos limites dos lugares de culto, e a ação, a escola, a profissão, a cidade.
Nomeado pelo papa membro da comissão central preparatória, participei de seus trabalhos com assiduidade e entusiasmo, durante os anos que duraram. A comissão central estava encarregada de verificar e examinar todos os esquemas preparatórios que provinham de comissões especializadas. Eu estava bem colocado, pois, para saber o que tinha sido feito, o que devia ser examinado e o que devia ser apresentado à assembléia.
Este trabalho era conduzido com muita consciência e perfeição. Possuo setenta e dois esquemas preparatórios; neles a doutrina da Igreja é absolutamente ortodoxa, estão adaptados duma certa maneira à nossa época, mas com muita moderação e sabedoria.
Tudo estava preparado para a data anunciada e, a 11 de outubro de 1962, os padres tomavam lugar na nave da basílica de São Pedro em Roma. Mas houve um acontecimento que não tinha sido previsto pela Santa Sé: o concílio, desde os primeiros dias foi invadido pelas forças progressistas. Nós o experimentamos, sentimos, e quando digo “nós”, eu entendo a maioria dos padres do concílio naquele momento.
Tivemos a impressão de que se passava alguma coisa de anormal, e esta impressão se confirmou rapidamente: quinze dias após a sessão de abertura, não restava mais nenhum dos setenta e dois esquemas. Tudo havia sido recambiado, rejeitado, lançado ao cesto.
Isto se produziu da seguinte maneira: tinha sido previsto no regulamento do concílio que eram precisos dois terços dos votos para rejeitar um esquema preparatório. Ora quando se procedeu ao sufrágio, houve sessenta por cento contra os esquemas e quarenta por cento a seu favor. Por conseguinte, os opositores não obteriam os dois terços e normalmente o concílio deveria desenrolar-se a partir destes trabalhos preparatórios.
É então que se manifestou uma organização poderosa, muito poderosa, posta em ação por cardeais das margens do Reno, com todo um secretariado, exatamente no momento oportuno. Eles foram ter com o papa João XXIII dizendo-lhe: “É inadmissível, Santíssimo Padre, querem fazer-nos estudar esquemas que não tiveram a maioria” e obtiveram ganho de causa: o imenso trabalho realizado foi posto à parte, a assembléia se encontrou de mãos vazias, sem nenhuma preparação. Que presidente de conselho administrativo, por pequena que seja a sua sociedade, aceitaria ocupar o seu lugar sem ordem do dia, sem dossiê? Contudo foi assim que o concílio começou.
Depois, houve a questão das comissões conciliares que seria precisa nomear. Problema árduo: imaginai bispos chegando de todos os países do mundo e encontrando-se bruscamente juntos no recinto conciliar. Na maior parte, eles não se conheciam, conheciam três ou quatro colegas e alguns outros de nome entre os 2.400 que lá estavam. Como poderiam saber quais eram os padres aptos a fazer parte da comissão do sacerdócio, da liturgia, do direito canônico, etc.?
Muito legitimamente o cardeal Ottaviani fez passar para todos a lista dos membros das comissões pré-conciliares, das pessoas que, por conseguinte, haviam sido escolhidas pela Santa Sé e tinham já trabalhado sobre os assuntos a respeito dos quais se deveria debater. Isto podia ajudar a escolher, sem que houvesse nenhuma obrigação e era certamente desejável que alguns destes homens experimentados figurassem nas comissões.
Mas então se elevou um grito; não tenho necessidade de relembrar o nome do príncipe da Igreja que se levantou e proferiu o discurso seguinte: “É uma pressão intolerável que foi exercida sobre o concílio fornecendo nomes. É preciso deixar aos padres conciliares a sua liberdade. Ainda uma vez, a Cúria romana procura colocar os seus membros.”
Um pouco tomado de surpresa diante desta brutal intervenção, levantou-se a sessão e, à tarde, o secretário, Mons. Felici, anunciou: “O Santo Padre reconhece que é talvez melhor que sejam as conferências episcopais que se reúnam e forneçam listas.”
As conferências episcopais eram, nesta época, ainda embrionárias, elas formaram bem ou mal as listas que se lhes pediam sem aliás terem podido reunir-se como seria preciso, pois não lhes deram senão vinte e quatro horas.
Mas os que haviam urdido este pequeno golpe de Estado as tinham feito de antemão com indivíduos selecionados nos diversos países. Eles puderam adiantar-se às conferências e, de fato, obtiveram uma grande maioria.
O resultado foi que as comissões eram formadas de membros pertencentes, em dois terços, à fração progressista, tendo sido o terço restante nomeado pelo papa. Dos novos esquemas proveio logo uma orientação inteiramente diferente da dos primeiros. Gostaria de publicar um dia uns e outros para que se possa fazer a comparação e verificar qual era a doutrina da Igreja no dia que precedeu o concílio.
Quem possui alguma experiência das assembléias civis ou clericais compreenderá em que situação se encontravam os padres. Destes novos esquemas bem se podiam modificar algumas frases, algumas proposições a modo de emendas, não se podia mudar o essencial. As conseqüências serão graves. Um texto distorcido na sua origem jamais se corrige inteiramente, conserva a marca de seu redator e do pensamento que o inspira. O concílio, desde este momento, estava orientado.
Um terceiro elemento contribuiu para dirigi-lo no sentido liberal. Em lugar dos dez presidentes que João XXIII havia nomeado, o papa Paulo VI instituiu para as duas últimas sessões quatro moderadores sobre os quais o mínimo que se pode dizer é que eles não foram escolhidos dentre os cardeais mais moderados. Sua influência foi determinante sobre a massa dos padres conciliares.
Os liberais formavam uma minoria, mas uma minoria atuante, organizada, apoiada por uma plêiade de teólogos modernistas dentre os quais se encontravam todos os nomes que não cessaram de mandar e desmandar, como Leclerc, Murphy, Congar, Rahner, Küng, Schillebeeckx, Bisset, Cardonnel, Chenu... Que se pense na produção enorme dos impressos do IDOC, o centro de informação holandês subvencionado pelas conferências episcopais alemã e neerlandesa, que pressionava a todo o instante os padres a agirem no sentido esperado pela opinião internacional, criando uma sorte de psicose neste particular: não se devia decepcionar a expectativa do mundo que esperava ver a Igreja aderir a seus pontos de vista. Os instigadores deste movimento estavam em condições favoráveis de exigir instantaneamente a adaptação da Igreja ao homem moderno, ou seja, ao homem que quer libertar-se de tudo. Eles se prevaleciam de uma Igreja esclerosada, inadaptada, impotente, batiam a mão no peito de seus predecessores. Os católicos eram apresentados como tão culpados pelas divisões de outrora como os protestantes e os ortodoxos: deviam pedir perdão aos “irmãos separados” presentes em Roma onde estes tinham sido convidados em grande número a participar dos trabalhos.
A Igreja da Tradição era culpada de suas riquezas, de seu triunfalismo, os padres do concílio se sentiam culpados de estar fora do mundo, de não ser do mundo; eles já se envergonhavam de suas insígnias episcopais, em breve eles se envergonhariam mesmo de aparecer de batina.
Esta ambiência de liberação deveria apossar-se logo de todos os domínios, o espírito colegial iria ser o manto de Noé que se lança sobre a vergonha de exercer uma autoridade pessoal, tão contrária à mentalidade do homem do século XX, digamos: o homem liberal! A liberdade religiosa, o ecumenismo, a pesquisa teológica, a revisão do direito canônico atenuariam o triunfalismo duma Igreja que se proclamava a única arca da salvação. Como se diz que há “pobres envergonhados”, houve “bispos envergonhados”, os quais se influenciava, dando-lhes má consciência. É um processo que foi empregado em todas as revoluções.
Os efeitos estão inscritos em muitas passagens das atas do concílio. Que se releia a este respeito o começo do esquema “A Igreja no mundo deste tempo” sobre a mutação do mundo moderno, o movimento acelerado da história, as condições novas que afetam a vida religiosa, a predominância das ciências e das técnicas. Como não ver nestes textos a expressão do mais puro liberalismo?
Nós poderíamos ter tido um concílio esplêndido, tomando como mestre neste assunto o papa Pio XII. Não creio que haja um problema do mundo moderno, da atualidade, que ele não tenha resolvido com toda a sua ciência, toda a sua teologia e toda a sua santidade. Ele lhes deu uma solução quase definitiva, tendo verdadeiramente visto as coisas sob o ângulo da fé.
Mas não se podia vê-los assim, no momento em que se recusava a fazer um concílio dogmático. O Vaticano II é um concílio pastoral; João XXIII o disse, Paulo VI o repetiu. No correr das sessões, quisemos várias vezes fazer definir noções; foi-nos respondido: “mas não fazemos aqui dogmatismo, não fazemos filosofia, fazemos pastoral.” Que é a liberdade? Que é a dignidade humana? Que é a colegialidade? É-se reduzido a analisar indefinidamente os textos para saber o que é preciso entender por isto, e não se chega senão a aproximações, pois os termos são ambíguos. E isto não por negligência ou por acaso; o padre Schillebeckx o confessou: ”Nós introduzimos termos equívocos no concílio e sabemos o que daí tiraremos depois.” Estas pessoas sabiam o que faziam.
Todos os outros concílios que ocorreram no decurso dos séculos eram dogmáticos. Todos combateram erros. Ora, sabe Deus se havia erros a combater em nosso tempo! Um concílio dogmático teria sido dos mais necessários. Eu me lembro do cardeal Wyszinsky a dizer-nos: ”Mas fazei então um esquema sobre o comunismo; se há um erro que é grave hoje e que ameaça o mundo, é certamente ele. Se o papa Pio XI creu dever escrever uma encíclica sobre o comunismo, seria igualmente bem útil que nós, aqui reunidos em assembléia plenária, consagrássemos um esquema a esta questão.”
O comunismo, o erro mais monstruoso que jamais saiu do espírito de Satã, tem suas entradas oficiais no Vaticano, sua revolução mundial é singularmente facilitada pela não resistência oficial da Igreja e mesmo pelos apoios freqüentes que nela encontra, apesar das advertências desesperadas dos cardeais que sofreram as masmorras dos países do Leste. A recusa deste concílio pastoral em condená-lo solenemente basta sozinha para cobri-lo de vergonha diante de toda a história; quando se pensa nas dezenas de milhões de mártires, nos cristãos e nos dissidentes despersonalizados cientificamente nos hospitais psiquiátricos, utilizados como cobaias para as experiências. E o concílio pastoral se calou. Tínhamos obtido quatrocentas e cinqüenta assinaturas de bispos em favor duma declaração contra o comunismo. Elas foram esquecidas numa gaveta... Quando o relator da Gaudium et Spes respondeu às nossas perguntas, ele nos disse: “houve duas petições para solicitar uma condenação do comunismo — Duas? exclamamos nós. Há mais de quatrocentas — Ah, eu não estou a par disto.” Feitas as buscas, elas foram encontradas, mas demasiado tarde.
Eu vivi estes fatos. Fui eu que havia levado as assinaturas a Mons. Felici, secretário do concílio, em companhia de Dom Proença Singaud, arcebispo de Diamantina, e sou obrigado a dizer que aconteceram coisas, para falar a verdade, inadmissíveis. Não o faço para condenar o concílio e não ignoro que isto influencie na perplexidade de muitos católicos.
Pois enfim, pensam eles, o concílio é mesmo assim inspirado pelo Espírito Santo! Não necessariamente. Um concílio pastoral, não dogmático, é uma pregação, que por si não compromete a infalibilidade. Quando pedimos a Mons. Felici, no fim das sessões: “Não poderíeis dar-nos o que os teólogos chamam a nota do concílio?”, ele respondeu: “É preciso distinguir segundo os esquemas, os capítulos, os que já são objeto de definições dogmáticas no passado, é preciso fazer reservas.”
Portanto, o Vaticano II não é um concílio como os outros e é por isso que nós temos o direito de julgá-lo, com prudência e reserva. Eu aceito no concílio e nas reformas tudo o que está em plena concordância com a Tradição. A obra que fundei prova isto amplamente. Nossos seminários, em particular, correspondem perfeitamente aos desejos expressos pelo concílio e à Ratio fundamentalís da Sagrada Congregação para o ensino católico.
Mas é impossível pretender que somente as aplicações pós-conciliares são más. As rebeliões de clérigos, as contestações da autoridade pontifícia, todas as extravagâncias da liturgia e da nova teologia, o esvaziamento das igrejas, nada teriam então a ver com o concílio como se afirmou ainda bem recentemente? Ora essa! Tudo isso é fruto dele.
Eu compreendo, ao dizer isto, que não faço senão aumentar, leitores inquietos, vossa perplexidade. E não obstante, nesta balbúrdia brilhou uma luz própria a reduzir a nada os esforços do mundo para levar a cabo a destruição da Igreja de Cristo: O Santo Padre proclamou a 30 de junho de 1968 sua profissão de fé. É um ato que, do ponto de vista dogmático, é mais importante que todo o concílio.
Este Credo, redigido pelo sucessor de Pedro para afirmar a fé de Pedro, revestiu-se de uma solenidade absolutamente extraordinária. Quando ele se levantou para pronunciá-lo, os cardeais também se levantaram e toda a multidão quis imitá-los mas ele fez sentarem-se todos de novo; queria ser o único, na qualidade de Vigário de Cristo, a proclamar seu Credo, e o fez com as palavras mais solenes, em nome da Santíssima Trindade, diante dos santos anjos e de toda a Igreja. Por conseguinte ele praticou um ato que engaja a fé da Igreja.
Temos assim esta consolação e esta confiança de sentir que o Espírito Santo não nos abandonou. Pode-se dizer que a arca da fé, tomando seu ponto de apoio no concílio Vaticano I, reencontra um novo ponto de apoio na profissão de fé de Paulo VI.
Mas donde provém então que as portas do inferno dirijam neste momento uma tal sarabanda? A história da Igreja foi sempre agitada por perseguições, heresias, conflitos com o poder temporal, pela conduta licenciosa em certas épocas, duma parte do clero, mesmo de alguns papas. Desta vez a crise parece mais profunda, uma vez que atinge a própria fé. O modernismo contra o qual nos chocamos não é uma heresia do mesmo tipo que qualquer outra, mas a cloaca coletora de todas as heresias; as perseguições não provêm somente do exterior, mas do interior do santuário; o escândalo de um clero demissionário ou dissoluto pretende institucionalizar-se, os mercenários que abandonam as ovelhas ao lobo são encorajados e cobertos de honras.
Reprovam-me por vezes o fato de eu denegrir a situação, de lançar um olhar reprovador, por não sei que complacência rabugenta, sobre uma evolução em resumo lógica e necessária. Mas o próprio papa, que foi a alma do Vaticano II, verificou muitas vezes seguidas a decomposição da qual falo com tristeza. A 7 de dezembro de 1969, Paulo VI dizia: “A Igreja se encontra numa hora de inquietude, de autocrítica, dir-se-ia mesmo, de autodestruição. É como uma reviravolta interior, aguda e complexa. Como se a Igreja se golpeasse a si própria.”
No ano seguinte ele confessava: “Em numerosos domínios, o concílio não nos deu até o presente a tranqüilidade mas antes suscitou perturbações e problemas não úteis à consolidação do Reino de Deus na Igreja e nas almas.”
Até este grito de alarme do dia 29 de junho de 1972, na festa de são Pedro e são Paulo: ”A fumaça de Satanás entrou por alguma brecha no templo de Deus: a dúvida, a incerteza, a problemática, a inquietude, a insatisfação, o desafio abriram caminho... A dúvida entrou nas nossas consciências.”
Qual é esta brecha? Podemos situar no tempo, com certeza, o momento em que ela se produziu: 1789 e lhe dar um nome: a Revolução.
Os princípios maçônicos e anticatólicos da Revolução francesa levaram dois séculos para penetrar nas cabeças clericais e nas cabeças mitradas. É hoje um fato consumado, tal é a realidade, e a causa, católicos inquietos, de vossas perplexidades. Foi preciso que os fatos estivessem diante dos nossos olhos para que nós acreditássemos, pois a priori julgaríamos esta empresa impossível, incompatível com a própria natureza da Igreja ajudada pelo Espírito de Deus.
Numa página famosa, escrita em 1877, Mons. Gaume fazia a própria revolução definir-se: “Eu não sou o que se acredita. Não sou nem o carbonarismo, nem o tumulto, nem a troca da monarquia pela república, nem a substituição de uma dinastia por outra, nem a perturbação momentânea da ordem pública. Eu não sou nem os uivos dos Jacobinos nem os furores da Montanha, nem o combate das barricadas nem a pilhagem, nem o incêndio, nem a lei agrária, nem a guilhotina, nem os afogamentos. Não sou nem Marat nem Robespierre, nem Babeuf nem Mazzini nem Kossuth. Estes homens são meus filhos, não são eu. Estas coisas são minhas obras, não são eu. Estes homens e estas coisas são fatos passageiros e eu sou um estado permanente... Sou o ódio de toda a ordem que o homem não estabeleceu e na qual ele não é rei e Deus ao mesmo tempo.”
Tem-se aqui a chave da vontade da “mudança” na Igreja; trata-se de substituir uma instituição divina por uma instituição feita pela mão do homem. E o homem toma a dianteira de Deus. Ele invade tudo, tudo começa e termina nele, é diante dele que se prosterna.
Paulo VI definia esta reviravolta da maneira seguinte em seu discurso de encerramento do concílio: “O humanismo leigo e profano apareceu enfim em sua terrível estatura e, num certo sentido, desafiou o concílio. A religião de Deus que se fez homem se encontrou com a religião (pois é uma religião) do homem que se faz Deus.” Ele acrescentava logo que, apesar deste terrível desafio, não se havia dado nenhum choque, nenhum anátema. Ai! Dando mostras duma “simpatia sem limites pelos homens” o concílio faltou ao dever de lembrar dum modo firme que não há compromisso possível entre as duas atitudes e mesmo o discurso de encerramento pareceu dar início àquilo que vemos pôr em prática cada dia. “Reconhecei-lhe ao menos este mérito (ao concílio), vós humanistas modernos que renunciais à transcendência das coisas supremas, e sabei reconhecer nosso novo humanismo, nós também, nós mais do que qualquer outro, temos o culto do homem.”
Depois ouvimos da mesma boca frases a desenvolverem este tema: ”Os homens, no fundo, são bons, são orientados para a razão, para a ordem e o bem comum” (Mensagem para a Jornada da Paz, 14 de novembro de 1970). “O cristianismo e a democracia têm em comum um princípio de base: o respeito pela dignidade e pelo valor da pessoa humana... A promoção integral do homem” (Manilha, 20 de novembro de 1970). Como não estar aterrado por este paralelo, enquanto que a democracia, sistema especificamente leigo, ignora no homem sua qualidade de filho de Deus resgatado, único aspecto que lhe confere sua dignidade? A promoção do homem não é certamente a mesma, vista por um cristão ou por um descrente.
A mensagem pontifical se secularizava a cada ocasião. Em Sydney, a 3 de dezembro de 1970, ouvíamos com surpresa esta afirmação: ”Não há mais isolamento permitido: é chegada a hora da grande solidariedade dos homens entre si, para o estabelecimento duma comunidade mundial unida e fraterna.” A paz entre todos os homens certamente, mas os católicos não reconheciam mais as palavras de Cristo: “Eu vos dou a minha paz; mas não vo-la dou como a dá o mundo.” O liame que unia a terra ao céu parecia ter-se rompido: “Pois bem, nós estamos na democracia! Isto quer dizer que o povo manda, que o poder provém do número, da população tal como é.” (Paulo VI, 1 de janeiro de 1970). Jesus tinha dito a Pilatos: “Não terias nenhum poder sobre mim se te não fosse dado do alto.” Todo o poder vem de Deus e não do número, mesmo se a escolha do chefe tenha sido feita por um sistema eletivo. Pilatos era o representante duma nação pagã e não obstante nada podia sem a permissão do Pai do céu.
E eis que a democracia entra na Igreja. O novo direito canônico mostra os poderes residindo no “Povo de Deus”. Esta tendência a fazer participar o que se chama base do exercício do poder se encontra em todas as estruturas estabelecidas: sínodo, conferências episcopais, conselhos presbiterais ou pastorais, comissões nacionais; há instituições equivalentes nas ordens religiosas.
É a democratização do magistério, perigo mortal para milhões de almas desamparadas e intoxicadas as quais os médicos não socorrem, pois ela arruinou a eficácia de que era provido precedentemente o magistério pessoal dos papas e dos bispos. Quando se põe uma questão concernente à fé ou à moral, ela é submetida a múltiplas comissões teológicas que não chegam a pronunciar-se a respeito, porque os membros estão divididos em suas opiniões, em seus métodos. Basta ler os relatos das assembléias em todos os escalões para reconhecer que a colegialidade do magistério equivale à paralisia do mesmo.
Foi a pessoas que Nosso Senhor mandou apascentar seu rebanho, não a uma coletividade; os Apóstolos obedeceram às ordens do Mestre e até o século XX foi assim. Foi preciso chegar ao nosso tempo para ouvir falar da Igreja em estado de concílio permanente, de Igreja em contínua colegialidade. Os resultados não se fizeram esperar: tudo está de pernas para o ar, os fiéis não sabem a quem se dirigir.
À democratização do magistério segue-se naturalmente a democratização do governo que se realizou sob o impulso do famoso slogan da “colegialidade”, difundida a todos os ventos pela imprensa comunista, protestante e progressista.
Colegializou-se o governo do papa ou o dos bispos com um colégio presbiteral, ou do padre de paróquia com um conselho pastoral de leigos, tudo articulado em inumeráveis comissões, conselhos, sessões, etc. O novo Código de Direito Canônico está todo impregnado desta noção. O papa é nele definido antes de tudo como o chefe do colégio episcopal. Encontra-se aí a doutrina já sugerida pelo documento Lumen Gentium do concílio, segundo a qual o colégio dos bispos unido ao papa, goza como ele do poder supremo na Igreja, e isto dum modo habitual e constante.
Não é uma modificação superficial; esta doutrina do duplo poder supremo é contrária ao ensino e a prática do magistério da Igreja. Ela se opõe às definições do Concílio Vaticano I e a encíclica de Leão XIII Satis Cognitum. Somente o papa tem o poder supremo; ele não o comunica senão na medida em que julga oportuno, e em circunstâncias extraordinárias. Só o papa tem um poder de jurisdição que se estende ao mundo inteiro.
Assiste-se assim a uma restrição da liberdade do poder do Soberano Pontífice. Sim, é a revolução! Os fatos demonstram que não temos aí uma modificação sem alcance prático, João Paulo II é o primeiro papa verdadeiramente atingido pela reforma. Podem-se citar vários casos precisos em que ele voltou atrás numa decisão sob a pressão duma conferência episcopal, o catecismo holandês terminou por receber o “imprimatur” do arcebispo de Milão sem que as modificações exigidas pela comissão cardinalícia tivessem sido feitas. Aconteceu o mesmo com o catecismo canadense, a propósito do qual eu ouvi uma voz autorizada dizer em Roma: “Que quereis que se faça diante duma conferência episcopal?”.
A independência tomada pelas conferências foi ilustrada também na França a respeito dos catecismos. Os novos manuais estão em oposição em quase todos os pontos à exortação apostólica Catechesi Tradendae. A visita ad limina dos bispos de Île de France, em 1982, consistiu para eles em fazer homologar pelo papa uma catequese que manifestamente não tem sua aprovação. A alocução pronunciada no fim da visita por João Paulo II tem todas as características dum compromisso, graças ao qual os bispos poderiam regressar de cabeça erguida a seu país e perseverar em sua empresa nefasta. A conferência do cardeal Ratzinger, em Paris e em Lyon, indica bem que Roma não aquiesceu às razões dadas pelos bispos da França para instaurar uma nova pedagogia e uma nova doutrina, mas que a Santa Sé foi constrangida a proceder assim por pressões desta sorte, por sugestões e conselhos, em lugar de dar as ordens requeridas para recolocar as coisas no bom caminho e condenar, se for preciso, como sempre fizeram os papas guardiães do depósito da fé.
Quanto ao bispo, cuja jurisdição pareceria assim ter aumentado, ele próprio é vítima da colegialidade, que o paralisa no governo de sua diocese.
Quantas reflexões foram feitas pelos próprios bispos a este respeito e como são instrutivas. Teoricamente pode o bispo, em numerosos casos, agir contra o voto da assembléia, por vezes mesmo contra uma maioria, se o voto não foi submetido à Santa Sé; mas na prática isto se revela impossível. Após o fim da assembléia, as decisões são publicadas pelo secretário. Elas são conhecidas por todos os padres e fiéis, os intermediários veiculam o essencial. Que bispo poderá opor-se de fato a estas decisões sem demonstrar seu desacordo com a assembléia e encontrar imediatamente diante de si alguns espíritos revolucionários que apelarão para a assembléia contra ele?
O bispo é o prisioneiro da colegialidade, que se deveria limitar a ser um organismo de consulta, de reunião, mas não se tornar um órgão de decisão. Mesmo para as coisas mais simples ele deixou de ser o chefe em sua casa. Pouco depois do concílio, como eu visitava nossas comunidades, o bispo duma diocese do Brasil veio buscar-me muito cortesmente na plataforma da estação.
— Eu não posso hospedar-vos no palácio episcopal, disse-me, mas mandei preparar-vos um alojamento no seminário menor.
Ele próprio me conduziu até lá, a casa estava em efervescência, eu via por toda parte, nos corredores e nas escadas, moços e moças.
— Estes jovens são seminaristas? perguntei.
— Infelizmente não! Acreditai bem que não estou de acordo com a presença de todos estes jovens no meu seminário, mas é a conferência episcopal que decidiu que devíamos doravante fazer sessões de ação católica em nossos estabelecimentos. Estes que vedes estão aqui por oito dias. Que quereis que eu faça? Não posso proceder diferentemente dos outros!
Os poderes conferidos por direito divino a pessoas foram assim confiscados, quer se trate do papa quer dos bispos, em proveito duma entidade cuja influência não fez senão reforçar-se.
As conferências episcopais, dir-se-á, não datam de hoje; Pio X já as havia aprovado no começo do século. É exato, mas este santo papa lhes havia dado uma definição que as justificava: ”Estamos persuadidos de que estas assembléias de bispos são da maior importância para manter e desenvolver o reino de Deus em todas as regiões e em todos os domínios. Quando os bispos guardiães das coisas santas, põem assim em comum suas luzes, resulta que não somente percebem melhor as necessidades de seus povos e escolhem os remédios mais convenientes, mas ainda estreitam os vínculos que os uniam entre si.”
Não se tratava, por conseguinte, duma instituição de caráter oficial, tomando, como tal, decisões aplicáveis obrigatoriamente por seus membros. Tanto como um congresso de sábios não fixa a maneira pela qual as pesquisas deverão ser conduzidas num tal ou tal laboratório.
A conferência episcopal funciona como um Parlamento, o conselho permanente do episcopado francês é o seu órgão executivo. O bispo se assemelha mais a um prefeito, a um comissário da República, para empregar a terminologia na moda, do que ao sucessor dos Apóstolos encarregado pelo papa de governar uma diocese.
Nestas assembléias, se vota; os escrutínios são mesmo tão numerosos que foi preciso instalar em Lourdes um sistema de voto eletrônico. Segue-se necessariamente a formação de partidos, pois as duas coisas não acontecem uma sem a outra. Quem diz partidos, diz divisões. Quando o governo habitual é submetido a votos consultivos no seu exercício normal ele se torna ineficaz. É então a coletividade que sofre com isto.
A introdução do colegialismo acarretou um enfraquecimento considerável de sua eficácia uma vez que o Espírito Santo é mais facilmente contrariado e contristado numa assembléia que numa pessoa. Quando as pessoas são responsáveis, elas agem, falam, mesmo se algumas se calam. Na assembléia, é o número que decide.
Mas o número não faz a verdade.
Ele não causa também a eficácia, como se verifica após vinte anos de colegialismo, e como se teria podido pressupor sem fazer a experiência; o fabulista falava, há já muito tempo, dos “muitos cabidos que se reuniram para nada”. Haveria necessidade de copiar os regimes políticos em que o sufrágio justifica as decisões, dado que eles não têm mais chefes soberanos? A Igreja possui a imensa vantagem de saber o que deve fazer para difundir o reino de Deus. Seus chefes são instituídos. Quanto tempo perdido em elaborar declarações comuns, que jamais satisfazem porque foi necessário ter em conta pareceres de uns e de outros! Quantas viagens incessantes para se dirigirem a comissões, e subcomissões, a reuniões preparatórias! Dom Etchegaray dizia em Lourdes, no encerramento da assembléia de 1978: ”Nós não sabemos mais onde pôr a cabeça.”
Daí resulta que o poder de resistência da Igreja ao comunismo, à heresia, à imoralidade, diminui consideravelmente. É o que seus adversários desejavam e é porque eles tanto fizeram, no momento do concílio e desde então, para impelir a Igreja pelo caminho da democracia.
Se se observa bem, é com sua divisa que a Revolução penetrou na Igreja de Deus. A liberdade, é a liberdade religiosa tal como foi dito mais acima, a qual dá direito ao erro. A igualdade, é a colegialidade, com a destruição da autoridade pessoal, da autoridade de Deus, do Papa, dos bispos, a lei do número. A fraternidade enfim é representada pelo ecumenismo.
Por estas três palavras, a ideologia revolucionária de 1789 tornou-se a Lei e os Profetas. Os modernistas chegaram ao que queriam.