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Category: Dom Marcel LefebvreConteúdo sindicalizado

Arcebispo francês (29/11/1905-25/03/1991), fundador da Fraternidade Sacerdotal São Pio X e maior nome do tradicionalismo católico.

12. Os Camaradas e os irmãos

Resumamos. O bom senso cristão se choca a cada instante com a nova religião. O católico está exposto a uma dessacralização geral; tudo se lhe mudou, adaptou. Faz-se-lhe compreender que todas as religiões trazem a salvação, que a Igreja acolhe indistintamente os cristãos separados e mesmo o conjunto dos crentes, inclinem-se eles diante de Buda ou de Krishna. Explica-se que os clérigos e os leigos são membros iguais do “Povo de Deus” de modo que leigos designados para funções particulares assumem tarefas clericais (vêem-se celebrar sozinhos os enterros e encarregar-se do viático aos doentes, enquanto que os clérigos assumem as tarefas dos leigos, se vestem como eles, vão trabalhar nas usinas, se inscrevem nos sindicatos, fazem política. O novo direito canônico reforça esta concepção. Ele confere prerrogativas inéditas aos fiéis, reduzindo a diferença entre estes e os sacerdotes e instituindo o que chama de “direitos”: teólogos leigos podem ter acesso às cátedras de teologia nas universidades católicas, os fiéis participam do culto divino no que estava reservado a certas ordens menores e à administração de certos sacramentos: distribuição da comunhão, participação no testemunho ministerial, nas cerimônias do casamento.

Fórmula suspeita, pois a doutrina de sempre ensina que a Igreja de Deus é a Igreja Católica.             
 
De outra parte lê-se que a Igreja de Deus “subsiste” na Igreja Católica. Se se aceita esta formulação recente, pareceria que as comunidades protestantes e ortodoxas façam igualmente parte dela, o que é falso, uma vez que elas se separaram da única Igreja fundada por Jesus Cristo: Credo in unam sanctam Ecclesiam.
 
O novo direito canônico foi redigido às pressas e na confusão, e a prova disto é que, promulgado em janeiro de 1983, ele conhecia, em novembro do mesmo ano, 114 modificações. Também isto desconcerta o cristão, que tinha o hábito de se referir à legislação eclesiástica, como a qualquer coisa de fixo.
 
Se, como pai de família, ele tem a preocupação de educar bem seus filhos, sendo praticamente assíduo ou afastado da prática dos sacramentos, as decepções o esperam. As escolas católicas adotaram em numerosos casos a co-educação, ministra-se nelas a educação sexual, o ensino religioso desaparece nas classes superiores, não é raro encontrarem-se professores com orientações socialistas, senão comunistas. Por ocasião de uma questão que causou muito rumor no oeste da França, um destes educadores, eliminado pelos pais e depois reintegrado pela direção diocesana, apresentava assim sua defesa. “Seis meses depois de ter entrado em Notre Dame, um pai de aluno quis simplesmente eliminar-me pois no início do ano eu me havia apresentado sob todos os pontos de vista, político (de esquerda), social, religioso... Não era possível, na sua opinião ser professor de filosofia e socialista num estabelecimento privado”.
 
Um outro caso que sucede no Norte: um novo diretor é nomeado numa escola pela direção diocesana: os pais se dão conta, ao cabo de algum tempo, de que ele é militante num sindicato de esquerda, de que se trata dum sacerdote reduzido ao estado leigo e casado, de que seus filhos não parecem ter sido batizados. Pelo Natal ele organiza uma festa para os alunos e os pais, com a participação do Auxílio popular que é, como se sabe, uma organização comunista. Então os católicos de boa vontade se perguntam se é útil fazer esforços para pôr seus filhos na escola livre.
 
Numa instituição para moças do centro de Paris, o catequista se apresenta numa manhã como o capelão de Fresnes, que acompanha um jovem detento de dezoito anos. Eles explicam às alunas que os prisioneiros se sentem muito sós, que têm necessidade de afeição, de contatos com o exterior e de correspondência. Se uma ou outra das alunas quiser tornar-se protetora, ela pode dar seu nome e seu endereço. Mas, sobretudo, não se deve falar disto aos pais, pois eles não compreendem estas coisas; isto deve permanecer um assunto de jovens.
 
Noutro lugar, é uma professora primária que é repreendida, desta vez por um grupo de pais, por ter ensinado a seus alunos fórmulas de catecismo e a Ave-Maria. Ela foi absolvida pelo bispo, coisa que não poderia ser mais normal, mas que parece tão insólita que a carta foi reproduzida na “Famille éducatrice” como se fora um acontecimento.
 
Como entender isto? Quando o governo francês decidiu acabar com a escola livre, ela se mostrou vulnerável porque, na quase totalidade dos casos, não correspondia mais à sua missão, quer num ponto, quer em vários. Seus adversários tinham motivos de dizer: que fazeis no sistema educativo? Para que servis? Nós fazemos a mesma coisa; por que duas escolas? Certamente encontram-se ainda reservas de fé e convém render homenagem a numerosos professores conscientes de suas responsabilidades, mas o ensino católico não se afirma mais de um modo claro em face da escola pública, ele percorreu uma boa metade do caminho no qual o querem comprometer os zeladores do laicismo. Foi-me relatado que, nas manifestações, grupos haviam causado escândalo cantando “Queremos Deus nas nossas escolas”. Os organizadores tinham secularizado o mais possível os cantos, os slogans, os discursos afim de, diziam eles, não pôr em posição embaraçosa as pessoas que tinham vindo sem preocupações religiosas particulares, e entre as quais se encontravam descrentes e até socialistas.
 
É fazer política querer afastar o comunismo e o socialismo de nossas escolas? O católico sempre pensou que a Igreja se opunha a estas doutrinas devido ao ateísmo militante que elas professam. Ele tem visto perfeitamente razão quanto ao princípio e quanto às aplicações: o ateísmo determina modos radicalmente diferentes de conceber o sentido da vida, o destino das nações, as orientações da sociedade. Houve tanto mais estranheza ao ler em Le Monde de 5 de junho de 1984 que Dom Lustiger, respondendo às perguntas deste jornal e exprimindo de resto várias idéias muito justas, se queixa de ter visto escapar uma oportunidade histórica com o voto do Parlamento sobre a escola livre. Esta oportunidade, explica ele, consistia em encontrar, em acordo com os social-comunistas, um certo número de valores fundamentais para a educação das crianças. Que valores fundamentais comuns pode haver entre a esquerda marxista e a doutrina cristã?
 
É tudo o oposto.
 
Mas o católico vê com surpresa intensificar-se o diálogo entre a hierarquia eclesiástica e os comunistas.
 
Os dirigentes soviéticos, e também terroristas como Yasser Arafat são recebidos no Vaticano. O concílio deu o tom, recusando renovar a condenação do comunismo. Não encontrando sinal desta condenação nos esquemas que lhes eram submetidos, quatrocentos e cinqüenta bispos, lembremo-lo, tinham assinado uma carta reclamando uma revisão neste sentido. Eles se apoiavam nas condenações passadas e, em particular, na afirmação de Pio XI que qualificava o comunismo de “intrinsecamente perverso”, significando com isto que não havia nesta ideologia aspectos negativos e aspectos positivos, mas que se devia rejeitá-lo em sua integralidade. Tem-se lembrança do que adveio daí: a emenda não foi transmitida aos padres, o secretariado central do concílio declarou não ter tido conhecimento dela, depois a comissão admitiu que a tinha recebido mas demasiadamente tarde, o que não era exato. Foi um escândalo, que terminou pela anexação, por ordem do papa, à constituição Gaudium et spes, duma passagem alusiva sem grande alcance.
 
Quantas declarações de bispos para justificar, senão para encorajar a colaboração com os comunistas, independentemente do ateísmo ostensivo! “Não compete a mim, mas aos cristãos, que são adultos responsáveis, dizia Dom Matagrin, ver em que condições eles podem colaborar com os comunistas.” Para Dom Delorme os cristãos devem “lutar por mais justiça no mundo com todos os que são animados pela justiça e pela liberdade, inclusive os comunistas”. É o mesmo tom em Dom Poupard que incita a “trabalhar com todos os homens de boa vontade em todas as obras da justiça onde se constrói incansavelmente um mundo novo”.
 
Num boletim diocesano, a oração fúnebre dum padre operário foi arranjada assim: “Ele tomou o partido do mundo dos trabalhadores por ocasião das eleições municipais. Não podia ser o sacerdote de todos, ele optou por aqueles que faziam a escolha da sociedade socialista. Foi duro para ele. Criou-se inimigos, mas também muitos novos amigos. Tito Paulo era um homem posicionado”. Um bispo dissuadia, há pouco tempo, seus sacerdotes de falar nas suas paróquias da obra “ajuda à Igreja na miséria” dizendo: “minha impressão é que esta obra se apresenta sob aparências muito exclusivamente anticomunistas.”
 
Verifica-se com assombro que a excusa dada a este gênero de colaboração repousa sobre a noção, falsa em si mesma, de que o partido comunista teria por objetivo instaurar a justiça e a liberdade. É preciso relembrar sobre este assunto as palavras de Pio IX: ”Se os fiéis se deixam enganar pelos promotores das manobras atuais, se consentem em conspirar com eles para os sistemas perversos do socialismo e do comunismo, que o saibam e o considerem seriamente: acumulam para si mesmos e junto do divino Juiz tesouros de vingança no dia da cólera; e, na espera disto, não provirá desta conspiração nenhuma vantagem temporal para o povo, mas antes um aumento de misérias e de calamidades.”
 
Basta, para ver a justeza desta advertência lançada em 1849, há mais de cento e quarenta anos, observar o que se passa em todos os países colocados sob o jugo comunista. Os acontecimentos deram razão ao papa do Syllabus e, não obstante isto, a ilusão continua viva e mesmo se acentua. Mesmo na Polônia país católico entre todos, os pastores não apresentam mais a questão da fé católica e da salvação das almas como primordial e que deve fazer aceitar todos os sacrifícios, inclusive o da vida. O que mais importa no seu espírito é não provocar ruptura com Moscou, o que permite a Moscou reduzir a uma escravidão ainda mais completa o povo polonês, sem encontrar a verdadeira resistência.
 
O padre Floridil mostra com clareza os compromissos da “Ostpolitik” vaticana1:
 
“É sabido que os bispos tchecoslovacos consagrados por Mons. Casaroli são colaboradores do regime, como o são os bispos que dependem do patriarcado de Moscou... Feliz de ter podido dar um bispo a cada diocese húngara, o papa Paulo VI rendeu homenagem a Janos Kadar, primeiro secretário do partido comunista húngaro” principal promotor e o mais autorizado da normalização das relações entre a Santa Sé e a Hungria”. Mas o papa não dizia o preço elevado pelo qual tinha sido paga esta normalização: a instalação em postos importantes da Igreja de “padres da paz”... De fato, grande foi o estupor dos católicos quando ouviram o sucessor do cardeal Mindzenty, o cardeal Laszlo Lekai, prometer intensificar o diálogo entre católicos e marxistas”. Falando da perversidade intrínseca do comunismo, Pio XI acrescentava: “e não se pode admitir em nenhum terreno a colaboração com ele da parte de qualquer que deseja salvar a civilização cristã!!
 
Esta ruptura com o ensino da Igreja, ajuntando-se àquelas que enumerei, nos  briga a afirmar que o Vaticano está ocupado por modernistas e por homens deste mundo que acreditam encontrar nas astúcias humanas e diplomáticas mais eficácia para a salvação do mundo do que aquilo que foi instituído pelo divino fundador da Igreja.
 
Citei o cardeal Mindszenty; como ele, todos os heróis e os mártires do comunismo, em particular os cardeais Beran, Stepinac, Wyszynski, Slipyi são considerados como testemunhas embaraçosas pela atual diplomacia vaticana e, digamo-lo como reprovações mudas no que respeita aos primeiros, hoje adormecidos na paz do Senhor, enquanto que se abafa a grande voz do cardeal Slipyi.
 
As mesmas aproximações se realizaram com a franco-maçonaria, não obstante a declaração desprovida de ambigüidade da Congregação para a Doutrina da Fé em fevereiro de 1981, à qual havia precedido uma declaração da Conferência episcopal alemã em abril de 1980. Mas o novo direito canônico não faz menção delas e não formula expressamente nenhuma sanção. Os católicos souberam anteriormente que os maçons B'nai Brith tinham sido recebidos no Vaticano e, numa data recente, o arcebispo de Paris acolhia, para uma conversa, o grão mestre duma loja, enquanto certos eclesiásticos não se cansam de querer reconciliar a Sinagoga de Satã com a Igreja de Cristo.
 
Tranqüilizam-se os católicos dizendo-lhes como para o resto: “A condenação das seitas ontem era talvez fundada, mas os irmãos tripingados não são mais aqueles que eram”. “Vejamo-los então agindo. O escândalo da loja P2, na Itália, está ainda bem fresco nas memórias. Na França não há dúvida de que a lei laica contra o ensino livre é antes de tudo obra do Grande Oriente, que multiplicou as pressões junto do Presidente da República e de seus filiados presentes no governo e nos gabinetes ministeriais para que se realize enfim o “grande serviço da educação nacional”. Eles agiram mesmo, desta vez, às claras; jornais como Le Monde fizeram regularmente a justificação de suas negociações, seu plano e sua estratégia foram publicadas em suas revistas.
 
Devo acrescentar que a maçonaria é sempre o que era? O antigo grão mestre do Grande Oriente, Jacques Mitterand, que confessava pela rádio em 1969: “Nós tivemos sempre bispos e padres nas nossas lojas”, fazia a seguinte profissão de fé: “Se colocar o Homem sobre o altar em vez de nele colocar Deus é o pecado de Lúcifer, todos os humanistas desde o Renascimento cometem este pecado. “ Esta foi uma das censuras invocadas contra os franco-maçons, quando foram excomungados pela primeira vez pelo papa Clemente XII em 1738. Em 1982, o grão mestre Jorge Marcou não dizia outra coisa: ”É o problema do homem que prevalece.” Na primeira ordem de suas preocupações, quando foi reeleito figurava o abono do aborto pelo seguro social, “passando por esta medida a igualdade econômica das mulheres.”
 
Os franco-maçons penetram na Igreja. Em 1976, informava-se de que aquele que tinha sido a alma da reforma litúrgica, Mons. Bugnini, era franco-maçon. Pode-se julgar, desta revelação, que não era ele o único. O véu que cobria a maior mistificação da qual o clero e os fiéis foram objeto começava a rasgar-se. Vê-se mais claro com o tempo e os adversários seculares da Igreja também: ”Há alguma coisa que mudou na Igreja, escreve Jacques Mitterand, as respostas formuladas pelo papa às questões mais candentes, como o celibato dos padres ou a regulação dos nascimentos, são ardentemente contestadas no seio da própria Igreja; a palavra do Soberano Pontífice é questionada por certos bispos, por padres, por fiéis. Para o franco-maçon o homem que discute o dogma já é um franco-maçon sem avental.”
 
Um outro irmão, M. Marsaudon, do rito escocês, fala assim do ecumenismo cultivado no decurso do concílio: ”Os católicos, particularmente os conservadores, não se deverão esquecer por isso de que todo o caminho conduz a Deus. E (deverão) manter-se nesta corajosa noção de liberdade de pensamento que, pode-se verdadeiramente falar aí de revolução, oriunda de nossas lojas maçônicas, se estendem magnificamente sobre a cúpula de São Pedro”.
 
Eu queria citar-vos ainda um texto próprio a esclarecer esta questão e mostrando quem espera ser o vencedor do outro na reaproximação preconizada pelo abade Six e pelo padre Riquet. Ele é extraído da revista maçônica Humanismo, número de novembro-dezembro de 1968. “Entre os pilares que desabariam mais facilmente, citemos o poder doutrinal dotado de infalibilidade que tinha acreditado solidificar, transcorridos cem anos, o primeiro concílio do Vaticano, e que acaba de suportar assaltos conjugados na ocasião do aparecimento da encíclica Humanae Vitae; a presença real eucarística que a Igreja tinha conseguido impor às massas medievais e que desaparecerá com o progresso das intercomunicações e das concelebrações entre padres católicos e pastores protestantes; o caráter sagrado do sacerdote, que decorria da instituição do sacramento do Ordem e que cederá o lugar a um caráter eletivo e temporário; a distinção entre a Igreja dirigente e o clero “negro”, operando-se o movimento, de agora em diante da base para cima, como em toda democracia; a desaparição progressiva do caráter ontológico e metafísico dos sacramentos e, com toda a certeza, a morte da confissão, tornando-se o pecado na nossa civilização uma das noções mais anacrônicas que nos legou a severa filosofia da Idade Média, herdeira do pessimismo bíblico.”
 
Notar-se-á que os franco-maçons estão prodigiosamente interessados no futuro da Igreja, mas é para devorá-la. Os católicos devem sabê-lo, não obstante as sereias que procuram fazê-los dormir, e todas estas forças destruidoras são estreitamente dependentes umas das outras. A maçonaria se define como a filosofia do liberalismo, cuja forma aguda é o socialismo. O conjunto se agrupa muito bem sob o termo empregado por Nosso Senhor: ”as Portas do inferno”.
  1. 1. R. P. Ulisses Floridi, MOSCOU ET LE VATICAN, Ed. France-Empire.

11. A liberdade religiosa

No concílio, foi o esquema sobre a liberdade religiosa que suscitou as mais acirradas discussões. Isto se explica facilmente pela influência que exerciam os liberais e pelo interesse que tinham nesta questão os inimigos hereditários da Igreja. Passaram-se vinte anos e é possível ver agora que nossos receios não eram exagerados quando este texto foi promulgado, sob a forma duma declaração que reunia noções opostas à Tradição e ao ensinamento de todos os últimos papas. Tanto isto é verdadeiro que princípios falsos ou expressos dum modo ambíguo têm infalivelmente aplicações práticas reveladoras do erro cometido em adotá-los. Vou mostrar, por exemplo, como os ataques dirigidos contra o ensino católico na França pelo governo socialista são a conseqüência lógica da nova definição dada à liberdade religiosa pelo Vaticano II.

 
Façamos um pouco de teologia para compreender bem com que espírito esta declaração foi redigida. A argumentação inicial — e nova — fazia repousar a liberdade, para cada homem, de praticar interior e exteriormente a religião de sua escolha, sobre a “dignidade da pessoa humana”. Era, portanto, esta dignidade que fundamentava a liberdade, que lhe dava sua razão de ser. O homem podia aderir a qualquer erro em nome de sua dignidade.
 
Isto era pôr o carro à frente dos bois, apresentar as coisas pelo avesso. Pois aquele que adere ao erro decai de sua dignidade e, ademais, nada se pode estabelecer sobre o erro. De outra parte, o que fundamenta a liberdade não é a dignidade, mas a verdade: “A Verdade vos tornará livres”, disse Nosso Senhor.
 
Que se entende por dignidade? O homem a tira, segundo a doutrina católica, de sua perfeição, isto é do conhecimento da verdade e da aquisição do bem. O homem é digno de respeito segundo sua intenção de obedecer a Deus e não segundo seus erros. Estes geram indefectivelmente o pecado. Quando Eva, a primeira pecadora, sucumbiu, disse: ”A serpente me enganou.” O seu pecado e o de Adão acarretaram a degradação da dignidade humana da qual sofremos desde então.
 
Daí resulta que não se pode ligar a liberdade à degradação como à sua causa. Ao contrário, a adesão à verdade e o amor de Deus são os princípios da autêntica liberdade religiosa. Pode-se definir esta como a liberdade de render a Deus o culto que lhe é devido e de viver segundo seus mandamentos.
 
Se tendes seguido bem este raciocínio, a liberdade religiosa não se pode aplicar às religiões falsas, ela não sofre a partilha. Na sociedade civil, a Igreja proclama que o erro não tem direitos; o Estado somente deve reconhecer para os cidadãos o direito de praticarem a religião de Cristo.
 
Certamente, isto deve parecer como uma pretensão exorbitante àquele que não tem fé. O católico não contaminado pelo espírito do tempo julga-o normal e legítimo. Mas ai! Muitos, entre os cristãos, perderam de vista estas realidades. Repetiu-se tanto que era preciso respeitar as idéias dos outros, colocar-se em seu lugar, aceitar seus pontos de vista, divulgou-se tanto este contra-senso: “A cada um a sua verdade”; tanto se tomou o diálogo pela virtude cardeal por excelência, diálogo que leva obrigatoriamente a concessões: o cristão, por uma caridade mal entendida, acreditou que devia fazê-las mais que seus interlocutores, é freqüentemente o único a fazê-las. Não se imola mais, como os mártires, pela verdade; é a verdade que é por ele imolada.
 
De outra parte, a multiplicação dos estados leigos na Europa cristã habituou os espíritos ao laicismo e os conduziu a adaptações contrárias à doutrina da Igreja. A doutrina não se adapta, ela é fixa, definida uma vez por todas.
 
À comissão central preparatória do concílio, dois esquemas tinham sido apresentados, um pelo cardeal Bea sob o título “Da liberdade religiosa”, o outro pelo cardeal Ottaviani, sob o título ”Da tolerância religiosa”.
 
O primeiro se estendia por catorze páginas sem nenhuma referência ao magistério que o precedeu. O segundo compreendia sete páginas de texto e dezesseis páginas de referências, indo de Pio VI (1790) a João XXIII (1959).
 
O esquema do cardeal Bea continha, no meu parecer e no de um número não negligenciável de padres, afirmações em desacordo com a verdade da Igreja eterna. Lia-se nele, por exemplo: “É por isso que se deve louvar o fato de que, em nossos dias, a liberdade e a igualdade religiosas são proclamadas por numerosas nações e pela Organização Internacional dos Direitos do Homem.”
 
O Cardeal Ottaviani, por seu turno, expunha muito corretamente a questão: “Da mesma forma que o poder civil se julga com o direito de proteger os cidadãos contra as seduções do erro... ele pode mesmo regular e moderar as manifestações públicas dos outros cultos e defender os seus cidadãos contra a difusão das falsas doutrinas que, a juízo da Igreja, põem em perigo sua salvação eterna.”
 
Leão XIII dizia (Rerum novarum) que o bem comum temporal, fim da sociedade civil, não é puramente de ordem material, mas “principalmente um bem moral”. Os homens se organizaram em sociedade em vista do bem de todos; como se poderia excluir o bem supremo, que é a bem-aventurança celeste?
 
Há um outro aspecto das coisas que guia a Igreja quando ela nega o direito de cidadania às religiões errôneas: os propagadores de idéias falsas exercem naturalmente uma pressão sobre os mais fracos, os menos instruídos. Quem contestará que o dever do estado seja o de proteger os fracos? É seu principal dever, a razão de ser da organização em sociedade. Ele defende seus indivíduos dos inimigos, no exterior, protege-os na vida quotidiana contra as agressões de todo o gênero, contra os ladrões, os assassinos, os vigaristas e mesmo os Estados leigos asseguram uma proteção em matéria de costumes, proibindo, por exemplo, a afixação de jornais pornográficos, se bem que a situação se tenha degradado bastante na França neste últimos anos e que ela seja dos piores países como a Dinamarca. Mas enfim, por longo tempo os países de civilização cristã conservaram o senso de suas obrigações em relação aos mais vulneráveis e em particular às crianças! O povo permaneceu sensível a isso e pede ao Estado, por intermédio de suas associações familiares, que tome as medidas necessárias.
 
Proibir-se-ão emissões de rádio em que o vício é muito ostensivamente apresentado, embora ninguém esteja obrigado a escutá-las, mas porque as crianças dispõem freqüentemente de transistores e por conseguinte não estão mais protegidas. A doutrina da Igreja, que pode parecer excessivamente severa, é acessível ao raciocínio corrente e ao bom senso.
 
É de regra atualmente rejeitar toda forma de repressão e deplorar que ela se tenha exercido em certos momentos da história. SS. João Paulo II, cedendo a esta moda, condenou a Inquisição por ocasião de sua viagem à Espanha. Mas da Inquisição não se quer reter senão os exageros, esquecendo que a Igreja, criando o Santo Ofício, cujo título exato é “Sanctum Officium Inquisitonis”, preenchia sua função de defesa das almas e perseguia aqueles que tentavam falsificar a fé e punham assim em perigo uma população inteira no que concernia à sua eterna salvação. A Inquisição vinha em socorro dos próprios hereges, como se vai em socorro de pessoas que se lançam ao mar para acabar com a vida; acusar-se-iam os salvadores de exercer uma repressão intolerável para com esses infelizes? Para usar duma outra comparação, eu não penso que ocorra à mente de um católico, mesmo perplexo, censurar um governo por interdizer a droga, sob o pretexto de que ele exerce deste modo uma repressão sobre os drogados.
 
Pode-se compreender que um pai de família imponha a fé a seus filhos. Nos Atos dos Apóstolos, o centurião Cornélio, tocado pela graça, recebe o batismo “com todos os de sua casa”. Igualmente Clóvis se fez batizar com os seus soldados.
 
Os benefícios que traz a religião católica mostra o caráter ilusório de preconceitos dos clérigos pós-conciliares de abster-se de toda a pressão, e mesmo de toda a influência em relação aos “não crentes”. Na África, onde passei a maior parte de minha vida, as missões combateram os flagelos que são a poligamia, a homossexualidade, o desprezo com que é considerada a mulher. Esta, cuja situação degradante se sabe qual é na sociedade islâmica, se torna uma escrava ou um objeto, desde que a civilização cristã desaparece. Não se pode duvidar do direito da verdade se impor e substituir as religiões falsas. E não obstante a Igreja não preconiza na prática uma intransigência cega em relação ao culto público delas. Ela professou sempre que este podia ser tolerado pelos poderes públicos em vista a evitar um mal maior. É por isso que o cardeal Ottaviani preferia o termo “tolerância religiosa”.
 
Se nós nos colocamos no caso de um Estado católico, onde a religião de Cristo é reconhecida oficialmente, esta tolerância evita perturbações que seriam prejudiciais ao conjunto. Numa sociedade laica que professa a neutralidade, a lei da igreja, seguramente, não será observada. Então, direis, de que serve mantê-la?
 
É que em primeiro lugar não se trata duma lei humana que se pode ab-rogar ou modificar. Depois o próprio abandono do princípio tem graves conseqüências; nós já temos registrado várias.
 
Os acordos entre o Vaticano e certas nações que atribuíam muito justamente um estatuto preferencial à religião católica foram revistos. É o caso da Espanha e há pouco tempo o da Itália, onde o catecismo não é mais obrigatório nas escolas. Até onde se irá? Os novos legisladores da natureza humana pensaram que o papa é também um chefe de Estado? Seria ele levado a laicizar o Vaticano, a autorizar a construção ali dum templo ou duma mesquita?
 
É também o desaparecimento dos Estados católicos. No mundo atual, há estados protestantes, um estado anglicano, estados muçulmanos, estados marxistas e não se quer mais que haja estados católicos! Os católicos não teriam mais o dever de trabalhar em estabelecê-los, mas o dever de manter o indiferentismo religioso do Estado!
 
Pio IX chamou a isso “delírio” e “uma liberdade de perdição”. Leão XIII condenou o indiferentismo do Estado em matéria religiosa. O que era bom no seu tempo então não é mais verdadeiro?
 
Não se pode afirmar a liberdade de todas as comunidades religiosas na sociedade humana sem conceder igualmente a liberdade moral a estas comunidades. O Islão admite a poligamia, os protestantes têm, segundo as Igrejas, posições mais ou menos laxistas sobre a indissolubilidade dos vínculos conjugais e sobre a contracepção... O critério do bem e do mal desaparece. Na Europa, o aborto não é proibido pela lei a não ser na Irlanda católica. Não é possível que a Igreja de Deus acoberte de certa maneira estes excessos afirmando a liberdade religiosa.
 
Outra conseqüência: as escolas livres. O Estado não pode mais compreender que existam escolas católicas e que elas se atribuam a parte do leão no setor do ensino particular. Ele as coloca no mesmo plano, como se viu recentemente, que as escolas fundadas pelas seitas e diz: ”Se nós vos permitirmos existir, devemos fazer o mesmo para Moon e por qualquer outra comunidade deste gênero, que têm uma reputação tão má.” E a Igreja não possui mais argumentos! O governo socialista tirou muito bem partido da declaração sobre a liberdade religiosa. Conforme o mesmo princípio imaginou-se fazer uma fusão das escolas católicas com as outras, contanto que estas observem o direito natural! Ou então as abriram às crianças de qualquer religião, lisonjeando-se algumas de ter mais crianças muçulmanas que cristãs.
 
É assim que a Igreja, aceitando um estatuto de direito comum nas sociedades civis, corre o risco de tornar-se uma seita entre as outras. Ela se coloca na conjuntura de desaparecer, pois é evidente que a verdade não pode ceder seus direitos ao erro sem se renegar.
 
As escolas livres adotaram na França para se manifestarem nas ruas um hino muito belo mas cujas palavras traem o contágio deste espírito detestável: “Liberdade, tu és a única verdade.” A liberdade, considerada como um bem absoluto, é quimérica. Aplicada à ordem religiosa, conduz ao relativismo doutrinal e à indiferença prática. Os católicos perplexos devem agarrar-se à palavra de Cristo que eu citava: “É a verdade que os libertará”.

 

10. O ecumenismo

Existe, nesta confusão de idéias em que os cristãos parecem comprazer-se, uma tendência particularmente prejudicial à fé e tanto mais perigosa quanto ela se apresenta sob as aparências de caridade. A palavra, que apareceu em 1927 por ocasião dum congresso realizado em Lausanne, deveria por si própria prevenir os católicos se eles se referiam à definição que lhe dão todos os dicionários: ”Ecumenismo: movimento favorável à reunião de todas as Igrejas cristãs numa só.” Não se podem misturar princípios contraditórios, é evidente, não se podem reunir de maneira a fazer deles uma só coisa, a verdade e o erro. A não ser que se adotem os erros e se rejeite toda ou parte da verdade. O ecumenismo se condena por si mesmo.

 
O termo conheceu uma tal voga desde o último concílio, que penetrou a linguagem profana. Fala-se de ecumenismo universitário, de ecumenismo informático, e lá sei mais ainda, para exprimir um gosto ou uma idéia preconcebida de diversidade, de ecletismo.
 
Na linguagem religiosa, o ecumenismo se estendeu ultimamente às religiões não cristãs, traduzindo-se bem depressa em atos. Um jornal do Oeste nos indica por um exemplo preciso a maneira pela qual se processa a evolução: numa pequena paróquia na região de Cherburgo, a população católica se preocupa com trabalhadores muçulmanos que acabam de chegar para uma construção. É uma atitude caridosa pela qual não se pode deixar de felicitá-los. Numa segunda fase, vemos os muçulmanos pedir um local para festejar o Ramadã e os cristãos oferecer-lhes o sub-solo de sua igreja. Depois começa a funcionar neste lugar uma escola corâmica. No fim de dois anos, os cristãos convidam os muçulmanos a festejar o Natal com eles, “em torno de uma prece comum preparada com extratos dos capítulos do Corão e com versículos do Evangelho. A caridade mal entendida levou estes cristãos a pactuarem com o erro.
 
Em Lille, os dominicanos ofereceram uma capela aos muçulmanos para ser transformada em mesquita. Em Versalhes, pediu-se auxílio financeiro nas igrejas para “a aquisição dum lugar de culto para os muçulmanos”. Duas outras capelas foram-lhes cedidas em Roubaix e em Marselha, assim como uma igreja em Argentenil. Os católicos se fazem os apóstolos do pior inimigo da Igreja de Cristo, que é o Islão e oferecem seus óbulos a Maomé! Há, parece, mais de 400 mesquitas na França e em muitos casos são os católicos que deram o dinheiro para sua construção.
 
Todas as religiões têm hoje direito de cidadania na Igreja. Um cardeal francês celebrava um dia a missa em presença de monges tibetanos que tinham sido colocados na primeira fila vestidos com seus hábitos de cerimônia, e se inclinava diante deles enquanto que um animador anunciava: “Os bonzos participarão conosco da celebração eucarística.” Numa igreja de Rennes foi celebrado o culto de Buda; na Itália, vinte monges foram iniciados solenemente no Zen por um budista.
 
Não acabaria de citar os exemplos de sincretismo aos quais assistimos. Vêem-se desenvolver associações, nascer movimentos que encontram sempre para presidir-lhes um eclesiástico em pesquisa, como aquela que quer chegar “à fusão de todas as espiritualidades no amor”. Ou projetos pasmosos como a transformação de Nossa Senhora da Guarda em lugar de culto monoteísta para os cristãos, os muçulmanos e os judeus, projeto felizmente contrariado por grupos de leigos.
 
O ecumenismo, na sua acepção estrita, reservada então aos cristãos, faz organizar celebrações eucarísticas comuns com os protestantes, assim como sucedeu em particular em Estrasburgo. Ou então são os anglicanos que são convidados na catedral de Chartres para celebrar a “Ceia eucarística”. A única celebração que não se admite nem em Chartres, nem em Estrasburgo, nem em Rennes, nem em Marselha é a da santa missa segundo o rito codificado por São Pio V.
 
Que conclusão pode tirar de tudo isso o católico que vê as autoridades eclesiásticas dar cobertura a cerimônias tão escandalosas? Que todas as religiões se equivalem, que ele poderia muito bem obter sua salvação com os budistas ou os protestantes. Ele corre o risco de perder a fé na santa Igreja. É bem o que se lhe sugere; quer-se submeter a Igreja ao direito comum, quer-se pô-la no mesmo plano que as outras religiões, recusa-se a dizer, mesmo entre os sacerdotes, os seminaristas e os professores de seminário, que a Igreja Católica é a única Igreja, que ela possui a verdade, que somente ela é capaz de dar a salvação aos homens por Jesus Cristo. Agora se diz abertamente: “A Igreja não é senão um fermento espiritual na sociedade, mas em pé de igualdade com as outras religiões, um pouco mais que as outras, talvez...” Aceita-se em rigor, e nem sempre, em conferir-lhe uma ligeira superioridade.
 
Neste caso, a Igreja seria apenas útil, não mais necessária. Ela constituiria um dos meios de alcançar a salvação.
 
É preciso dizê-lo claramente, uma tal concepção se opõe dum modo radical ao próprio dogma da Igreja católica. A Igreja é a única arca da salvação, nós não devemos ter medo de afirmá-lo. Vós freqüentemente ouvistes dizer. “Fora da Igreja não há salvação” e isto choca as mentalidades contemporâneas. É fácil fazer crer que este princípio não está mais em vigor, que se renunciou a ele. Parece ser de uma severidade excessiva.
 
Entretanto, nada mudou, nada pode ser mudado neste domínio. Nosso Senhor não fundou várias igrejas, mas só uma. Não há senão uma só cruz pela qual nos possamos salvar e esta cruz foi dada à igreja católica; ela não foi dada às outras. À sua Igreja, que é sua esposa mística, Cristo deu todas as suas graças. Nenhuma graça será distribuída ao mundo, na história da humanidade, sem passar por ela.
 
Isto quer dizer que nenhum protestante, nenhum muçulmano, nenhum budista, nenhum animista será salvo? Não; e constitui um segundo erro pensá-lo.
 
Aqueles que reclamam da intolerância ouvindo a fórmula de São Cipriano “Fora da Igreja não há salvação” rejeitam o Credo: “Reconheço um só batismo para a remissão dos pecados” e estão insuficientemente instruídos a respeito do batismo. Há três maneiras de recebê-lo: o batismo da água, o batismo do sangue (é o dos mártires que confessam sua fé sendo ainda catecúmenos) e o batismo de desejo.
 
O batismo de desejo pode ser explícito. Bastantes vezes, na África, ouvíamos um de nossos catecúmenos dizer: “Meu padre, batizai-me logo, pois se eu morrer antes de vossa próxima passagem, eu irei para o inferno.”
 
Nós lhe respondíamos: “Não; se não tendes pecado mortal na consciência e se tendes o desejo do batismo, já tendes a sua graça em vós.”
 
Tal é a doutrina da Igreja, que reconhece também o batismo de desejo implícito. Ele consiste no ato de fazer a vontade de Deus. Deus conhece todas as almas e sabe, por conseqüência que nos meios protestantes, muçulmanos, budistas e em toda a humanidade, existem almas de boa vontade. Elas recebem a graça do batismo sem o saberem, mas duma maneira efetiva. Por aí mesmo elas se unem à Igreja.
 
Mas o erro consiste em pensar que elas se salvam por meio de sua religião. Elas se salvam em sua religião, mas não por meio dela. Não há salvação por meio do Islão ou pelo xintoísmo. Não há Igreja budista no céu, nem Igreja protestante. São coisas que podem parecer duras de ouvir, mas esta é a verdade. Não fui eu quem fundou a Igreja, foi Nosso Senhor, o Filho de Deus. Nós, sacerdotes, somos obrigados a dizer a verdade.
 
Mas a preço de quantas dificuldades os homens dos países não penetrados pelo cristianismo chegam a receber o batismo de desejo! O erro é um obstáculo ao Espírito Santo. Isto explica porque a Igreja tenha sempre enviado missionários a todos os países do mundo, que inúmeros dentre eles tenham conhecido aí o martírio. Se se pode encontrar a salvação em qualquer religião, para que atravessar os mares, ir submeter-se, em climas insalubres, a uma vida penosa, à doença, a uma morte precoce? Desde o martírio de Santo Estevão, o primeiro a dar sua vida por Cristo e o qual por esta razão se festeja no dia seguinte ao do Natal, 26 de dezembro, os Apóstolos puseram-se a caminho para ir difundir a boa nova na bacia do Mediterrâneo; te-lo-iam feito se se soubesse que haveria salvação também no culto de Cibele ou pelos mistérios de Eleusis? Por que Nosso Senhor lhes teria dito: “Ide evangelizar às nações”?
 
E assombroso que hoje em dia alguns pretendam deixar cada um seguir o seu caminho para Deus segundo as crenças em vigor no seu “meio cultural”. A um padre que queria converter crianças muçulmanas, o seu bispo disse: “Não, fazei delas boas muçulmanas, será muito melhor do que torná-las católicas!” Foi-me certificado que os monges de Taizé tinham pedido, antes do concílio, para abjurar seus erros e tornar-se católicos. As autoridades disseram-lhes então: “Não, esperai. Depois do concílio vós sereis a ponte entre os católicos e os protestantes.”
 
Os que deram esta resposta assumiram uma grave responsabilidade diante de Deus, pois a graça vem num momento, talvez não venha sempre. Atualmente os caros padres de Taizé, que têm sem dúvida boas intenções, estão ainda fora da Igreja e semeiam a confusão no espírito dos jovens que os vão ver.
 
Falei das conversões que cessaram brutalmente em países como os Estados Unidos, onde se contavam cerca de 170.000 por ano, a Grã Bretanha, a Holanda... O espírito missionário se extingue porque se deu uma falsa definição da Igreja e por causa da declaração conciliar sobre a liberdade religiosa, da qual devo agora falar.

 

9. A nova teologia

As devastações da catequese são visíveis nas gerações que já tiveram que as sofrer. Eu tinha incluído na Ratio Studiorum de meus seminários, como a Sagrada Congregação dos seminários e universidades obrigou desde 1970, um ano de espiritualidade colocado no início dos estudos que duram seis anos. Espiritualidade, isto é, ascetismo, mística, formação na meditação e na oração, aprofundamento das noções de virtude, de graça sobrenatural, de presença do Espírito Santo...

Foi-nos preciso muito pouco tempo para desiludir-nos. Nós nos demos conta de que estes jovens, tendo vindo com um vivo desejo de se tornarem verdadeiros sacerdotes, possuindo uma vida interior mais profunda que muitos de seus contemporâneos e o hábito da oração, não conheciam mesmo as noções fundamentais de nossa fé. Não se lhes haviam ensinado. Durante o ano de espiritualidade, foi preciso ministrar-lhes o catecismo!

Eu contei muitas vezes o nascimento do seminário de Ecône. Nesta casa situada no Valais entre Sion e Martigny, estava previsto que os futuros sacerdotes não fariam ali senão este primeiro ano de espiritualidade: em seguida eles seguiriam os cursos da universidade de Friburgo. Se a criação dum seminário completo foi muito rapidamente visada é porque a universidade de Friburgo não assegurava mais um ensino verdadeiramente católico.
 
A Igreja sempre considerou as cátedras universitárias de teologia, de direito canônico, de liturgia e de direito eclesiástico como órgãos de seu magistério ou pelo menos de sua pregação. Ora é coisa certa que atualmente em todas ou quase todas as universidades católicas, não é mais a fé católica ortodoxa que se ensina. Não vejo uma só para fazê-lo nem na Europa livre, nem nos Estados Unidos, nem na América do Sul. Há nelas professores que sob o pretexto de pesquisas teológicas, se permitem emitir opiniões que vão contra nossa fé e não somente em aspectos secundários.
 
Falei mais cima deste decano da faculdade de teologia de Estrasburgo para quem a presença de Nosso Senhor na missa se pode comparar à de Wagner no Festival de Bayreuth. Para ele não se trata mais da questão do “Novo Ordo”: o mundo evolui com tal rapidez que estas coisas se encontram logo no tempo passado. Ele julga, portanto, que é preciso prever uma Eucaristia que provirá do próprio grupo. Em que consistirá ela? Ele mesmo não o sabe. Mas, profetiza no seu livro Pensamentos contemporâneos e expressão da fé eucarística, os membros do grupo, encontrando-se, criarão o sentimento desta comunhão com Cristo que estará presente no meio deles, mas sobretudo não sob as espécies do pão e do vinho. Ele sorri desta Eucaristia que se chama “sinal eficaz”, definição comum a todos os sacramentos. “Isto é ridículo, diz ele, não podem dizer mais estas coisas presentemente; em nossa época isto não tem mais sentido.”
 
Os jovens alunos que ouvem estas coisas da boca de seu professor, e além do mais decano da faculdade, os jovens seminaristas que assistem a estes cursos são pouco a pouco impregnados pelo erro; eles recebem uma formação que não é mais católica. Acontece o mesmo com aqueles que ouviam há pouco um professor dominicano de Friburgo assegurar que as relações pré-matrimoniais são uma coisa normal e desejável.
 
Meus próprios seminaristas conheceram outro dominicano que lhes ensinava a compor novos cânones: “Isto não é muito difícil; eis aqui alguns princípios que podereis utilizar facilmente quando fordes sacerdotes.” Poder-se-iam multiplicar os exemplos.
 
Smulders, na Escola superior de teologia de Amsterdam, suspeita que São Paulo e São João tenham imposto abusivamente o conceito de Jesus filho de Deus, e rejeita o dogma da Encarnação. Schillebeeckx, na universidade de Nimega, emite as idéias mais extravagantes, inventa a transignificação, submete o dogma às variações impostas pelas circunstâncias de cada época, assinala um fim social e terrestre à doutrina da salvação. Küng, em Tübingen, antes de lhe interditarem de ensinar numa cátedra de teologia católica, punha em questão o mistério da Santíssima Trindade, a Virgem Maria, os sacramentos e tratava Jesus de narrador público desprovido de “toda a cultura teológica”. Snackenburg, na universidade de Würzburg, acusa São Mateus de ter forjado o episódio da Confissão de Cesaréia, para autenticar o primado de Pedro. Rahner, que acaba de morrer, minimizava a Tradição nos seus cursos na universidade de Munique, negava praticamente a Encarnação falando sem cessar, a propósito de Nosso Senhor, de um homem “concebido naturalmente”, negava o pecado original e a Imaculada Conceição, preconizava o pluralismo teológico.
 
Todos eles foram colocados nas nuvens por elementos avançados do neomodernismo; eles têm o apoio da imprensa, de tal maneira que suas teorias tomam importância aos olhos do público e seus nomes são conhecidos. Eles parecem desde então representar toda a teologia e autorizam a crer na idéia de que a doutrina da Igreja mudou.
 
Eles podem prosseguir seu ensino pernicioso durante longos anos, interrompidos às vezes por leves sanções. Os papas relembram dum modo regular os limites da missão do teólogo. “Não é mais possível, dizia ainda recentemente João Paulo II, desviar-se, separar-se dos pontos fundamentais de referência que são os dogmas definidos, sob a pena de perder a identidade católica. “Schillebeeckx, Küng, o padre Pohier foram repreendidos mas não condenados, este último por um livro em que negava a ressurreição corporal de Cristo.
 
Pode-se imaginar que, nas universidades romanas, inclusive na Gregoriana, se permitem, sob o pretexto de pesquisa teológica, as teorias mais inverossímeis sobre as relações entre a Igreja e o Estado, sobre o divórcio e sobre outras questões fundamentais?
 
É certo que o fato de se ter transformado o Santo Ofício, que sempre foi considerado pela Igreja como o Tribunal da fé, favorece estes abusos. Até então qualquer um, fiel, padre e com mais forte razão, bispo, podia submeter ao Santo Ofício um escrito, uma revista, um artigo e perguntar o que a Igreja pensava a respeito, se este escrito era conforme ou não à doutrina católica. Um mês, seis semanas mais tarde, o Santo Ofício respondia: “Isto é justo, isto é falso, isto se deve distinguir, há uma parte verdadeira e uma parte falsa.”
 
Todo documento era, desta maneira, examinado e julgado definitivamente. Choca-vos o fato que se possam levar assim os escritos de uma terceira pessoa ao conhecimento dum tribunal? Que acontece então nas sociedades civis? Não existe um Conselho constitucional para decidir o que é conforme ou não à Constituição? Não existem tribunais, a que se recorre a respeito dos diferentes prejuízos sofridos pelos particulares e pelas coletividades? Pode-se mesmo pedir ao juiz intervir no caso de moralidade pública contra a afixação de um cartaz licencioso ou contra um jornal vendido às claras e cuja primeira página constitui um ultraje aos bons costumes, embora o limite do que é permitido tenha recuado consideravelmente, nestes últimos tempos, em numerosos países.
 
Mas na Igreja, não se aceitava mais a intervenção dum tribunal, não se devia mais julgar nem condenar. Os modernistas extraíram dos Evangelhos, como os protestantes, a frase que lhes interessava: “Não julgueis.” Mas não tiveram em conta o fato de que Nosso Senhor logo após disse: “Acautelai-vos dos falsos profetas... É pelos seus frutos que os julgareis.” O católico não deve julgar inconsideradamente as faltas de seus irmãos, seus atos pessoais, mas Cristo lhe deu a ordem de preservar sua fé e como ele o fará sem lançar um olhar crítico a tudo o que se faz ler ou ouvir? É ao magistério que ele se dirigirá quando uma opinião lhe parecer duvidosa; eis para quê servia o Santo Ofício. Mas este, desde a reforma que o afetou, se define a si próprio como “Ofício de pesquisas teológicas”. A diferença é sensível.
 
Lembro-me de ter perguntado ao cardeal Browne, antigo superior geral dos dominicanos que esteve muito tempo no Santo Ofício:
 
— Eminência, tendes a impressão de que esta mudança é radical ou simplesmente superficial e acidental?
 
— Oh, disse-me ele, mas não! A mudança é essencial. É por isso que não nos devemos admirar de que não mais se condene ou tão pouco, se o Tribunal para a fé da Igreja não exerce mais sua função frente aos teólogos e a todos aqueles que escrevem sobre os assuntos religiosos. Segue-se que os erros se disseminam por toda a parte, eles deixaram as cátedras universitárias para invadir os catecismos e os presbitérios das mais remotas paróquias. O veneno da heresia acabou por apoderar-se de toda a Igreja. O magistério eclesiástico está portanto submetido a uma crise muito grave.
 
Os arrazoados mais absurdos são utilizados para fazerem o jogo destes teólogos, que de teólogos só possuem o nome. Viu-se um padre Duquoc, professor em Lyon, percorrer a França fazendo conferências sobre a oportunidade de conferir o sacerdócio a certos fiéis, inclusive às mulheres. Bom número e católicos reagiram aqui e ali, um bispo do sul tomou firmemente posição contra este pregador duvidoso, o que acontece algumas vezes. Mas em Laval, os leigos ouviram escandalizados a resposta do episcopado: “Nosso dever mais absoluto nesta circunstância é preservar a liberdade de palavra na Igreja.” É estarrecedor! Onde se pôde adquirir esta noção de liberdade de palavra? Ela é totalmente estranha ao direito da Igreja. E além do mais, far-se-ia disto um dever absoluto do bispo! Isto redunda numa inversão total do senso da responsabilidade episcopal, que consiste em defender a fé e em preservar da heresia o povo que lhe foi confiado.
 
Eu preciso citar exemplos, escolhidos aliás no domínio público; que o leitor queira acreditar entretanto, que não escrevo para criticar pessoas. É a atitude que se fixou sempre o Santo Ofício. Ele não considerava as pessoas, mas somente as obras. Tal teólogo se queixava de que se condenara um de seus livros sem ouvi-lo. Mas o Santo Ofício condenava precisamente trechos de obras e não os autores. Dizia: “Este livro contém frases que não são conformes à doutrina tradicional da Igreja”. Um ponto, eis tudo! Por que remontar àquele que as havia escrito? Suas intenções, sua culpabilidade são da competência dum outro tribunal, o da penitência.

 

8. Do catecismo Holandês a “Pierres Vivantes”

Nas fileiras católicas eu ouvi freqüentemente e continuo a ouvir esta observação: “Querem impor-nos uma religião nova.” O termo é exagerado? Os modernistas que se infiltraram por todos os lados na Igreja e que comandam o jogo tentaram primeiramente tranqüilizar: “Mas não, vós tendes esta impressão porque formas caducas foram substituídas por outras, por razões que se impunham: não se pode mais rezar exatamente como se fazia antigamente, era preciso sacudir a poeira, adotar uma linguagem compreensível aos homens de nosso tempo, praticar a abertura em direção de nossos irmãos separados... Mas seguramente nada mudou.”

 
Depois eles tomaram menos precauções e os mais ousados passavam mesmo às declarações quer em grupos pequenos diante de pessoas já ganhas à sua causa, quer publicamente. Um padre Cardonell se ufanava bastante anunciando um novo cristianismo no qual seria contestada “a famosa transcendência que faz de Deus o monarca universal” e arrogando-se abertamente o modernismo de Loisy: “Se vós nascestes numa família cristã, os catecismos por vós aprendidos são esqueletos da fé.” “Nosso cristianismo, proclamava ele, aparece o melhor possível de forma neo-capitalista”. O cardeal Suenens, após ter reconstruído a Igreja a seu modo, convocava a “abrir-se ao mais largo pluralismo teológico” e reclamava o estabelecimento duma “hierarquia das verdades” com o que se deveria crer muito, com o que se deveria um pouco e com o que não tinha mais importância.
 
Em 1973, nos edifícios do arcebispado de Paris, o padre Bernardo Feillet ministrava um curso, da maneira mais oficial, dentro do quadro da “formação cristã dos adultos” onde afirmava várias vezes: “Cristo não venceu a morte. Ele foi levado à morte pela morte... No plano da vida, Cristo foi vencido e todos nós o seremos. É que a fé não foi justificada por nada, vai ser este grito de protesto contra este universo que acaba, como dizíamos há pouco, pela percepção do absurdo, pela consciência da condenação e pela realidade do nada.”
 
Eu poderia citar um número importante de casos deste gênero que causavam mais ou menos escândalo, eram mais ou menos desaprovados, e por vezes não o eram absolutamente. Mas o povo cristão, em sua grande maioria, não se dava conta do fato; se se informava pelos jornais, pensava tratar-se de abusos que não tinham nenhum caráter geral e não punham em jogo sua própria fé.
 
Ele começou a interrogar-se e a inquietar-se quando encontrou nas mãos dos seus filhos livros de catecismo que não mais expunham a doutrina católica tal como era ensinada de maneira imemorial.
 
Todos os novos catecismos se inspiraram mais ou menos no Catecismo holandês publicado pela primeira vez em 1966. As proposições contidas nesta obra eram tão forjadas que o papa nomeou um comissão cardinalícia para examiná-lo, o que se realizou em Gazzada, na Lombardia, em abril de 1967. Ora, esta comissão destacou dez pontos a respeito dos quais ela aconselhava que a Santa Sé exigisse modificações.
 
Era um modo de dizer, conforme aos costumes pós-conciliares, que estes pontos estavam em desacordo com a doutrina da Igreja; alguns anos antes, teriam sido decididamente condenados e o Catecismo holandês posto no “Index”. Com efeito, os erros ou omissões destacadas afetam o essencial da fé.
 
Que encontramos aí? O Catecismo holandês ignora os anjos e não considera as almas humanas como criadas imediatamente por Deus. Ele deixa entender que o pecado original não foi transmitido por nossos primeiros pais a todos os seus descendentes, mas que foi contraído pelos homens pelo fato de sua vida no meio da comunidade humana, onde reina o mal; ele teria de alguma sorte um caráter epidêmico. A virgindade de Maria não é afirmada. Não se diz que Nosso Senhor foi morto pelos nossos pecados, enviado para este fim por seu Pai, e que a graça divina nos foi restituída a este preço. Por via de conseqüência, a missa é apresentada como um banquete e não como um sacrifício. Nem a Presença real nem a realidade da transubstanciação são afirmadas dum modo claro.
 
A infalibilidade da Igreja e o fato de que ela detém a verdade desapareceram deste ensinamento, como também a possibilidade para inteligência humana de “significar e atingir os mistérios revelados.” O Soberano Pontífice perde o seu poder pleno, supremo e universal. A Santíssima Trindade, o mistério das três pessoas divinas não são apresentados de maneira satisfatória. A comissão critica também a exposição feita sobre a eficácia dos sacramentos, a definição do milagre, a sorte reservada às almas dos justos após a morte. Ela aponta obscuridades na explicação das leis morais e das “soluções de casos de consciência”, que não dão importância à indissolubilidade do matrimônio.
 
Mesmo se todo o resto é, neste livro, “bom e louvável”, o que não é nada de admirar, pois os modernistas sempre misturaram o verdadeiro com o falso, assim como notava com firmeza São Pio X, há certamente bastante razão para dizer que se trata duma obra perversa, eminentemente perigosa para a fé. Ora sem esperar o relatório da comissão e até deturpando o mesmo, os promotores da operação faziam publicar traduções em várias línguas. E, por conseguinte, o texto jamais foi modificado. Às vezes o texto da comissão era acrescentado ao índice, às vezes não. Falarei mais adiante do problema da obediência. Quem desobedece nesta questão? Quem denuncia um tal catecismo?
 
Os holandeses traçaram o caminho. Nós depressa os alcançamos. Não farei o histórico da catequese francesa para não me deter senão na sua última transformação, a “compilação católica de documentos privilegiados da fé” intitulado Pedras Vivas e a maré dos “roteiros catequéticos”. Estas obras deveriam, para respeitar a definição da palavra catequese, ostensivamente empregada em todos os documentos, proceder por meio de perguntas e respostas. Eles abandonaram esta construção que permitia um estudo sistemático do conteúdo da fé e não dão quase nunca respostas. Pedras Vivas tem o cuidado de nada afirmar, salvo as proposições novas, insólitas, estranhas à Tradição.
 
Os dogmas, quando são evocados, o são como crenças particulares a uma parte dos homens aos quais este livro chama “cristãos”, pondo-os em concorrência com os judeus, os protestantes, os budistas e mesmo os agnósticos e os ateus. Nos vários roteiros os “animadores de catequese” são convidados a fazer com que a criança abrace uma religião, pouco importa qual. Aliás se tem interesse em colocar-se à escuta dos descrentes que têm muito a ensinar-lhe. O importante é “fazer equipe”, prestar serviço entre camaradas de classe e preparar para amanhã as lutas sociais, nas quais será preciso comprometer-se, mesmo com os comunistas, como explica a história edificante de Madalena Delbêl, esboçada em Pedras Vivas e narrada minuciosamente em certos roteiros. Um outro “santo” proposto à imitação das crianças é Martin Luther King, enquanto que se elogiam Marx e Proudhon “grandes defensores da classe operária” que “parecem vir de fora da Igreja”. Esta, vede bem, teria querido empreender este combate, não soube como fazê-lo. Contentou-se com “denunciar a injustiça”. Eis o que se ensina às crianças.
 
Contudo mais grave ainda é o descrédito que se lança sobre os Livros santos, obra do Espírito Santo. Enquanto que se esperava ver começar a compilação de textos escolhidos da Bíblia pela Criação do mundo e do homem, Pedras Vivas começa pelo livro do Êxodo, sob o título: “Deus cria seu povo.” Como os católicos não estariam, mais que perplexos, desconcertados com este desvio de vocabulário?
 
É preciso chegar ao Primeiro Livro de Samuel para fazer um recuo em direção do Gênesis e aprender que Deus não criou o mundo. Eu não invento nada também desta vez, está escrito: “O autor desta narração da Criação se pergunta, como muitas pessoas, o modo pelo qual o mundo começou. Os crentes refletiram. Um deles compôs um poema...” Depois, na corte de Salomão, outros sábios refletem no problema do mal. Para explicá-lo eles escrevem um “relato figurado” e nós temos a tentação pela serpente, a queda de Adão e de Eva. Mas nada de castigo: o texto é truncado neste lugar. Deus não castiga, assim como a nova Igreja não mais condena, salvo aqueles que permanecem fiéis à Tradição. O pecado original, citado entre aspas é um “mal de nascimento”, uma “enfermidade que remonta às origens da humanidade”; qualquer coisa de muito vago, e inexplicável.
 
Evidentemente, toda a religião desmorona. Se não se pode mais responder àquilo que concerne ao problema do mal, não vale mais a pena pregar, celebrar missas, confessar. Quem vos escutará?
 
O Novo Testamento se abre com Pentecostes. O acento se coloca sobre esta primeira comunidade que eleva um grito de fé. Em seguida estes cristãos “se lembram” e a história de Nosso Senhor se desprende das brumas de sua memória. Começando pelo fim: a Ceia, o Gólgota. Depois vem a vida pública e enfim a infância, sob este título ambíguo: “Os primeiros discípulos fazem a narração da infância de Jesus.”
 
Sobre estas bases, os roteiros não terão trabalho em fazer compreender que os Evangelhos da infância são uma piedosa lenda, como os povos antigos tinham o costume de fazer ao traçarem a biografia de seus grandes homens. Pedras Vivas fornece ademais uma data tardia dos Evangelhos, que reduz sua credibilidade, e, num quadro tendencioso, mostra os Apóstolos e seus sucessores pregando, celebrando e ensinando antes de “reler a vida de Jesus a partir da sua vida”. É uma inversão completa: sua experiência pessoal se torna a origem da Revelação em vez de ser a Revelação que modela seu pensamento e sua vida.
 
A propósito dos novíssimos, Pierres Vivantes mantém uma inquietante confusão. O que é alma? “É preciso alento para correr; é preciso alento para ir até o fim das coisas difíceis. Quando alguém está morto se diz: “Ele rendeu seu último suspiro.” O alento é a vida, a vida íntima de alguém. Chama-se também “a alma”. Num outro capítulo a alma é comparada ao coração, o coração que bate, o coração que ama. O coração é também a sede da consciência. Como prosseguir? Em que consiste então a morte? Os autores do livro não se pronunciam: “Para alguns, a morte é a parada definitiva da vida. Outros pensam que se pode viver ainda depois da morte, mas sem saber se isto é certo. Outros enfim têm a firme segurança. Os cristãos são destes.“ A criança não tem mais do que escolher, a morte é uma matéria de opção. Mas aquele que segue os cursos de catecismo não é cristão? Neste caso por que lhe falar dos cristãos na terceira pessoa em lugar de dizer firmemente: “Nós, nós sabemos que existe uma vida eterna, que a alma não morre”? O paraíso é objeto dum desenvolvimento também equívoco: “Os cristãos falam por vezes do paraíso para designar a alegria perfeita de estar com Deus para sempre depois da morte: é o “céu”, o Reino de Deus, a Vida eterna, o reino da Paz.”
 
Esta explicação continua muito hipotética. Pareceria que se tem a ver com um modo de dizer, com uma metáfora tranqüilizadora empregada pelos cristãos. Nosso Senhor nos prometeu, se nós observarmos os seus mandamentos, o céu que a Igreja sempre definiu como “um lugar de felicidade perfeita onde os anjos e os eleitos vêem a Deus e o possuem para sempre”. A catequese marca um recuo certo no que era afirmado nos catecismos. Disto não pode resultar senão uma falta de confiança nas verdades ensinadas e uma desmobilização espiritual: de que serve resistir a seus instintos e seguir o caminho estreito se não se sabe muito bem o que espera o cristão após a morte?
 
O católico não vai buscar de seus sacerdotes e de seus bispos sugestões que lhe permitam fazer uma idéia sobre Deus, o mundo, os fins últimos; ele lhes pede o que deve crer e o que deve fazer. Se eles lhes respondem por um amontoado de proposições e de projetos de vida, ele não tem mais a fazer senão se constituir uma religião pessoal, ele se torna protestante. A catequese faz das crianças pequenos protestantes.
 
A palavra chave da reforma é a caça às “certezas”. Criticam-se os cristãos que as possuem como um avarento guardaria o seu tesouro, eles são tidos como egoístas, como fartos, envergonham-nos. É preciso abrir-se às opiniões contrárias, admitir as diferenças, respeitar as idéias dos franco-maçons, dos marxistas, dos muçulmanos, mesmo dos animistas. O sinal de uma vida santa é dialogar com o erro.
 
Então tudo é permitido. Falei das conseqüências da nova definição do casamento; não são conseqüências eventuais, o que poderia suceder se os cristãos tomassem esta definição ao pé da letra. Elas não tardaram a realizar-se, nós o verificamos pela licença dos costumes que se difunde cada dia mais. Mas, o que é mais consternador, é que a catequese lhe presta auxílio. Tomemos um “material catequético” como se diz, publicado em Lyon por volta de 1972 com o “imprimatur” e destinado aos educadores. O título? Eis o homem. O dossiê consagrado à moral diz o seguinte: “Jesus não teve intenção de deixar à posteridade uma “moral” seja ela política, social ou tudo o que se quiser... A única exigência que subsiste é o amor dos homens entre si... Depois disto, vós sois livres; a vós cabe escolher a melhor maneira, em cada circunstância, de exprimir este amor que vós dedicais a vossos semelhantes.”
 
O dossiê “Pureza”, da mesma origem, tira as aplicações desta lei geral. Após ter explicado, a despeito do Gênesis, que o vestuário não apareceu senão tardiamente, “como sinal dum nível social, duma dignidade” e para desempenhar uma “função de dissimulação”, define-se a pureza como o seguinte: “Ser puro é estar na ordem, e ser fiel à natureza... Ser puro é estar em harmonia, em paz com a terra e com os homens; é estar de acordo sem resistência nem violência, às grandes forças da natureza.” Encontramos agora uma pergunta e uma resposta: “Uma tal pureza é compatível com a pureza dos cristãos? — Não somente é compatível mas necessária a uma pureza humana e cristã. Jesus Cristo não negou nem rejeitou nenhuma destas descobertas, destas aquisições fruto da longa pesquisa dos povos — muito pelo contrário ele lhes veio dar um prolongamento extraordinário: “Não vim abolir mais cumprir”. Em apoio destas afirmações, os autores dão como exemplo Maria Madalena: “Nesta assembléia, é ela que é pura, porque amou muito, amou profundamente. “É assim que se deturpou o Evangelho: de Maria Madalena não se retém senão o pecado, a vida dissoluta: o perdão que Nosso Senhor lhe concedeu é apresentado como uma aprovação de sua existência passada, não se tem em conta a exortação divina: “Vai e não peques mais” nem o firme propósito que levou a antiga pecadora até o Calvário, fiel a seu Mestre no resto de seus dias”. Este livro revoltante não conhece nenhum limite: “Pode-se ter relações com uma moça, perguntam os autores, mesmo se se sabe muito bem que é para se divertir ou para ver o que é uma mulher?” E eles respondem: Colocar assim o problema das leis da pureza é indigno dum verdadeiro homem, dum homem que ama, dum cristão... Isto significaria impor ao homem um arrocho, um jugo intolerável? Ao passo que Cristo veio precisamente livrar-nos do jugo pesado das leis: “Meu jugo é suave e meu fardo leve”. Vede como se interpretam as palavras mais santas para perverter as almas! De Santo Agostinho retiveram apenas uma frase: “Ama e faze o que quiseres!”
 
Enviaram-me livros ignóbeis que apareceram no Canadá. Não se fala aí a não ser do sexo e sempre em caracteres destacados: a sexualidade vivida na fé, a promoção sexual, etc. As imagens são absolutamente repugnantes. Parece que se quer dar, por toda a força, à criança o desejo e a obsessão do sexo, fazer-lhe crer que não há senão isto na vida. Numerosos pais cristãos protestaram, reclamaram mas não havia nada a fazer e devido a uma boa razão: lê-se na última página que estes catecismos são aprovados pela comissão de catequese. A permissão de imprimir foi dada pelo presidente da comissão episcopal de ensino religioso de Québec!
 
Um outro catecismo aprovado pelo episcopado canadense convida a criança a romper com tudo: com seus pais, com a Tradição, com a sociedade, a fim de reencontrar sua personalidade que todos estes vínculos asfixiam, a libertar-se dos complexos que lhe advêm da sociedade ou da família. Buscando sempre uma justificação no Evangelho, os que dão este gênero de conselho pretendem que Cristo viveu estas rupturas e assim se revelou filho de Deus. É portanto Ele que quer façamos o mesmo.
 
Pode-se adotar uma concepção tão contrária à religião católica, sob a cobertura da autoridade episcopal? Em vez de falar de ruptura, dever-se-ia falar dos vínculos que devemos buscar porque eles constituem a nossa vida. Que é o amor de Deus senão um vínculo com Deus, uma obediência a Deus, a seus mandamentos? O vínculo com os pais, o amor pelos pais são liames de vida e não de morte. Ora, eles são apresentados à criança como qualquer coisa que a constrange, que a estreita, que diminui sua personalidade e dos quais ela se deve desembaraçar!
 
Não, não é mais possível que deixeis corromper os vossos filhos desta maneira. Falo francamente: vós não podeis enviá-los a estes catecismos que os fazem perder a fé.

 

7. Os novos padres

Há cada vez menos sacerdotes, é um lugar comum, o homem da rua mais indiferente às questões religiosas é informado disto por seu jornal em intervalos regulares. Faz já mais de quinze anos que aparecia um livro intitulado Amanhã, uma igreja sem padres? Mas a situação é ainda mais grave que parece. Seria preciso acrescentar: Quantos sacerdotes ainda têm fé? E mesmo pôr uma terceira questão: Certos padres ordenados nestes últimos anos, o foram verdadeiramente? De outra maneira, as ordenações, ao menos em parte, são válidas? A dúvida é idêntica à que pesa sobre os outros sacramentos. Ela se estende a certas sagrações de bispos, por exemplo àquela que se realizou em Bruxelas durante o verão de 1982, na qual o bispo sagrante disse ao ordenando: “Sê apóstolo como Gandhi, Helder Câmara e Maomé!” Podem-se conciliar estas referências, ao menos no que concerne a Gandhi e a Maomé, com a intenção evidente de fazer o que quer a Igreja?

 
Eis o fascículo duma ordenação sacerdotal que se desenrolou em Toulouse há alguns anos. Um “animador” começa a celebração apresentando o ordenando, designado por seu nome próprio: C. e dizendo: “Ele decidiu viver (o dom total, que fez a Deus) mais em profundidade, consagrando-se totalmente ao serviço da Igreja na classe operária.” C. efetuou seu “encaminhamento”, ou seja, seu seminário, em equipe. É esta equipe que o apresenta ao bispo: “Nós vos pedimos reconhecer, autenticar o seu proceder e ordená-lo sacerdote. “O bispo lhe faz então várias perguntas consideradas como definição do sacerdócio: Queres ser ordenado sacerdote “para ser, com os crentes, Sinal e Testemunha do que buscam os homens, em seus esforços de Justiça, de Fraternidade e de Paz” “para servir ao Povo de Deus”, “para reconhecer na vida dos homens a ação de Deus em modos de vida, culturas e opções múltiplas”, “para celebrar a ação de Cristo e assegurar este serviço”, queres participar comigo e com o conjunto dos bispos da responsabilidade que nos foi confiada para o serviço do Evangelho”?
 
A matéria do sacramento foi preservada: é a imposição das mãos que se deu a seguir e a forma igualmente: são as palavras da ordenação. Mas se é obrigado a notar que a intenção não é clara. O Padre é ordenado para o uso exclusivo duma classe social e antes de tudo para estabelecer a justiça, a fraternidade e a paz num plano que parece ademais limitado à ordem natural? A celebração eucarística que segue, a “primeira missa”, em suma, do novel sacerdote se processa neste sentido. O ofertório foi composto para a circunstância do momento: “Nós te acolhemos, Senhor, recebendo de tua parte este pão e este vinho que nos ofereces, nós queremos representar com isso todo o nosso trabalho, nossos esforços por construir um mundo mais justo e mais humano, tudo o que tentamos instituir a fim de serem asseguradas melhores condições de vida...” A oração sobre as oferendas é ainda mais duvidosa: “Olha, Senhor, nós te oferecemos este pão e este vinho; que eles se tornem para nós uma das formas de tua presença.” Não, as pessoas que celebram desta maneira não têm a fé na Presença real!
 
Uma coisa é certa: a primeira vítima desta ordenação escandalosa é o jovem que se acaba de comprometer para sempre, sem saber exatamente em quê ou acreditando que o sabe. Como não chegará ele, dentro de um prazo mais ou menos curto, a se fazer certas perguntas pois o ideal que se lhe propôs não pode satisfazer-lhe por muito tempo; a ambigüidade de sua missão se lhe revelará. É o que se chama “a crise da identidade do sacerdote”. O padre é essencialmente o homem da fé. Se ele não sabe mais aquilo que ele é, perde a fé em si mesmo, naquilo que é o seu sacerdócio.
 
A definição do sacerdócio dada por São Paulo e pelo concílio de Trento foi radicalmente modificada. O sacerdote não é mais aquele que sobe ao altar e oferece a Deus um sacrifício de louvor e para a remissão dos pecados. Inverteu-se a ordem dos fins. O sacerdócio tem um fim principal, que é oferecer o sacrifício, e um fim secundário: a evangelização.
 
O caso de C., que está longe de ser o único, nós temos disto múltiplos exemplos, mostra a que ponto a evangelização prevalece sobre o sacrifício e os sacramentos. Ela é um fim em si mesma. Este grave erro tem conseqüências trágicas: a evangelização, perdendo seu objetivo, será desorientada, ela buscará motivos que agradam ao mundo, como a falsa justiça social, a falsa liberdade que tomam nomes novos: desenvolvimento, progresso, construção do mundo, melhoramento das condições de vida, pacifismo. Nós estamos totalmente na linguagem que conduz a todas as revoluções.
 
Não sendo mais o sacrifício do altar a razão primordial do sacerdócio são todos os sacramentos que estão em jogo e para os quais o “responsável do setor paroquial e sua “equipe” farão apelo aos leigos, ao passo que eles mesmos estão demasiado ocupados com tarefas sindicais ou políticas e freqüentemente mais políticas que sindicais. Com efeito, os padres que se comprometem nas lutas sociais escolhem quase exclusivamente as organizações mais politizadas. No seio destas eles partem para a guerra contra as estruturas políticas, eclesiais, familiares, paroquiais. Nada mais deve permanecer. Jamais o comunismo encontrou agentes tão eficazes como estes padres.
 
Eu expunha um dia a um cardeal o que fazia nos meus seminários, a espiritualidade orientada sobretudo para o aprofundamento da teologia do Sacrifício da missa e para a prece litúrgica. Ele me disse:
 
— Mas senhor bispo, é exatamente o oposto do que os jovens sacerdotes desejam atualmente em nosso país. Não se define mais o sacerdote a não ser em relação à evangelização.
 
Eu respondi:
 
— Que evangelização? Se ela não tem uma relação fundamental e essencial com o Santo Sacrifício como a compreendeis? Evangelização política, social, humanitária? Se não anuncia mais Jesus Cristo, o apóstolo se torna militante sindicalista e marxista. É normal. Compreende-se muito bem. Ele tem necessidade de uma nova mística, ele a encontra desta maneira, mas perdendo a do altar. Completamente desorientado, não nos admiramos se ele se casa e abandona seu sacerdócio. 285 ordenações na França, em 1970, 111 em 1980. Mas quantos retornaram ou retornarão à vida civil? Mesmo as cifras dramáticas que se citam não correspondem ao crescimento real do clero. O que se propõe aos jovens e o que se diz que eles “desejam atualmente” não corresponde visivelmente às suas aspirações.
 
Aliás é fácil fazer a prova. Não há mais vocações porque não se sabe mais o que é o Sacrifício da Missa. Em conseqüência, não se pode mais definir o sacerdote. Em compensação, onde o Sacrifício é conhecido e estimado como a Igreja sempre ensinou, as vocações são numerosas.
 
Tenho testemunho disto nos meus próprios seminários. Aí não se faz outra coisa senão reafirmar as verdades de sempre. As vocações vêm para nós por si mesmas, sem publicidade. A única publicidade foi feita pelos modernistas. Ordenei 187 sacerdotes em treze anos. Desde 1983, o ritmo regular atingido é de 35 a 45 ordenações por ano. Eu não digo isto para daí tirar qualquer glória pessoal: neste domínio também nada inventei. Os jovens que pedem para entrar em Ecône, em Ridgefield (EUA), em Zaitzkofen (RFA), em Francisco Alvares (Argentina), em Albano (Itália) são atraídos pelo Sacrifício da Missa.
 
Que graça extraordinária para um jovem subir ao altar como ministro de Nosso Senhor, ser um outro Cristo! Nada é mais belo nem mais grandioso aqui na terra. Para isto vale a pena abandonar sua família, renunciar a constituir uma, renunciar ao mundo, aceitar a pobreza.
 
Contudo, se não há mais este atrativo, então, eu digo francamente, aquilo não vale mais a pena, e é por isso que os seminários estão vazios.
 
Se se continua na linha adotada pela Igreja há vinte anos, à pergunta: Haverá ainda padres no ano 2000? pode-se responder: Não. Se se retorna às verdadeiras noções da fé, haverá vocações tanto nos seminários como nas congregações religiosas.
 
Com efeito, o que é que faz a grandeza e a beleza dum religioso e duma religiosa? É oferecer-se como vítima no altar com Nosso Senhor Jesus Cristo. Do contrário, a vida religiosa não possui mais sentido algum. A juventude na nossa época é tão generosa como nas épocas anteriores. Ela aspira a dedicar-se. É a nossa época que é falha.
 
Tudo está ligado; abalando-se a base do edifício, destrói-se inteiramente. Não mais missa, não mais sacerdotes. O ritual, antes de ser reformado, fazia o bispo dizer: “Recebei o poder de oferecer a Deus o Santo Sacrifício e de celebrar a santa missa, tanto pelos vivos como pelos mortos, em nome do Senhor.” Ele havia previamente benzido as mãos do ordenando ao pronunciar estas palavras: “Afim de que tudo que elas abençoarem seja abençoado e tudo o que consagrarem seja consagrado e santificado...” O poder conferido é expresso sem ambigüidade: “Que eles operem para a salvação de vosso povo, e pela sua santa bênção, a transubstanciação do pão e do vinho no corpo e no sangue de vosso divino Filho.”
 
O bispo diz agora: “Recebei a oferenda do povo santo para apresentá-la a Deus.” Ele faz do novo sacerdote mais um intermediário que o detentor do sacerdócio, que um sacrificador. A concepção é toda diferente. O sacerdote foi sempre considerado, na santa Igreja, como alguém que possui um caráter dado pelo Sacramento da Ordem. Viu-se um bispo não suspenso escrever: “O padre não é aquele que faz coisas que os simples fiéis não fazem; ele não é mais um “Outro Cristo” do que qualquer um batizado.” Este bispo tirava simplesmente as conclusões do ensinamento que prevalece desde o concílio e da nova liturgia.
 
Introduziu-se uma confusão a propósito do sacerdócio dos fiéis e do sacerdócio dos padres. Ora, como diziam os cardeais encarregados de fazer suas observações sobre o muito famoso catecismo holandês, “a grandeza do sacerdócio ministerial (o dos padres) na sua participação do sacerdócio de Cristo, difere do sacerdócio comum dos fiéis de uma maneira não somente gradual mas essencial”. Pretender o contrário vem a dar, também neste ponto, no alinhamento com o protestantismo.
 
A doutrina constante da Igreja é que o sacerdote está revestido de um caráter sagrado indelével: Tu es sacerdos in aeternum. Por mais que faça, diante dos anjos, diante de Deus, na eternidade, ele continuará sacerdote. Embora lance sua batina às urtigas, use um pulôver vermelho ou de qualquer outra cor, cometa os maiores crimes, isto não mudará nada. O sacramento da ordem modificou-o na sua natureza.
 
Nós estamos longe do sacerdote “escolhido pela assembléia para assumir uma função na Igreja”, e ainda mais do sacerdócio por tempo limitado, proposto por alguns, no fim do qual o preposto ao culto — pois não vejo outro termo para designá-lo — retoma o seu lugar entre os fiéis.
 
Esta visão dessacralizada do ministério sacerdotal conduz muito naturalmente a interrogar-se sobre o celibato dos padres. Grupos de pressão ruidosos reclamam sua abolição, não obstante as advertências repetidas do magistério romano. Viram-se nos Países Baixos, seminaristas fazer a greve das ordenações para obterem “garantias” a este respeito. Não citarei as vozes episcopais que se elevaram para pressionarem a Santa Sé a abrir este processo.
 
A questão nem mesmo se colocaria se o clero tivesse conservado o sentido da missa e do sacerdócio.
 
Pois a razão profunda apresenta-se por si própria quando se compreendem bem estas duas realidades. É a mesma razão que faz com que a Santíssima Virgem permaneceu virgem: tendo trazido Nosso Senhor no seu seio era justo e conveniente que ela o fosse. Igualmente o padre, pelas palavras que ele pronuncia, na Consagração, faz vir Deus à terra. Ele tem uma tal proximidade com Deus, Ser espiritual, Espírito antes de tudo, que é bom, justo e eminentemente conveniente que ele seja também virgem e permaneça celibatário.
 
Existem, objetar-se-á, padres casados no Oriente. Que não haja engano a respeito, isto não passa de uma tolerância. Os bispos orientais não podem ser casados, nem os que exercem função de alguma importância. Este clero venera o celibato sacerdotal, que faz parte da mais antiga Tradição da Igreja e que os apóstolos observaram desde o instante de Pentecostes, continuando aqueles que, como São Pedro, eram casados a viver ao lado de suas esposas mas não as “conheciam” mais.
 
É sintomático o fato de que os padres que sucumbem às miragens duma pretensa missão social ou política contraírem quase automaticamente o matrimônio. As duas coisas vão paralelas.
 
Querer-se-ia fazer-nos crer que os tempos atuais justificam todas as maneiras de abandono, que é impossível, nas condições atuais de vida, ser casto, que o voto de virgindade para os religiosos e religiosas é um anacronismo. A experiência destes vinte anos mostra que os danos causados ao sacerdócio, sob o pretexto de adaptá-lo à época atual são mortais para o sacerdócio. Ora não se pode mesmo encarar uma “Igreja sem padres”; a Igreja é essencialmente sacerdotal.
 
Triste época que quer a união livre para os leigos e o casamento para os clérigos! Se vós percebeis neste aparente ilogismo uma lógica implacável que tem por objeto a ruína da sociedade cristã, tendes uma boa visão das coisas e fazeis um julgamento exato.

 

6. O novo batismo, o novo casamento, a nova penitência, a nova extrema-unção.

O católico, seja ele um praticante regular ou um que reencontra o caminho da igreja nos grandes momentos da vida, é levado a fazer-se perguntas no fundo tais como esta: o que é o batismo?

 É um fenômeno novo: não há muito tempo, qualquer um sabia responder e ademais ninguém lhe perguntava. O primeiro efeito do batismo é a remissão do pecado original, isto se sabia, transmitido de pai para filho e de mãe para filha.

Mas eis que não se fala mais disto em parte alguma. A cerimônia simplificada que se realiza na igreja evoca o pecado num contexto tal que parece tratar-se daquele ou daqueles que cometerá o batizado na sua vida e não da falta original com a qual nós todos nascemos carregados.
 
O batismo aparece por conseqüência simplesmente como um sacramento que nos une a Deus, ou antes, nos faz aderir à comunidade. Assim se explica o rito de “recepção” que se impõe em certos lugares como uma primeira etapa, numa primeira cerimônia. Isto não é devido a iniciativas particulares, uma vez que nós encontramos amplos desenvolvimentos sobre o batismo por etapas nas fichas do Centro nacional de pastoral litúrgica. Chama-se também batismo diferido. Após a recepção, o “encaminhamento”, a “busca”, o sacramento será ou não administrado, quando a criança puder, segundo os termos utilizados determinar-se livremente, o que pode ocorrer numa idade bastante avançada, dezoito anos ou mais. Um professor de dogmática muito apreciado na nova Igreja estabeleceu uma distinção entre os cristãos cuja fé e cultura religiosa ele julga capaz de atestar, e os outros — mais de três quartos do total — aos quais não atribui senão uma fé suposta quando eles pedem o batismo para seus filhos. Estes cristãos “da religião popular” são descobertos no decorrer das reuniões de preparação e dissuadidos de ir além da cerimônia de acolhimento. Esta maneira de agir seria “mais adaptada à situação cultural de nossa civilização”.
 
Recentemente, devendo um pároco do Somme inscrever duas crianças para a comunhão solene, exigiu as certidões de batismo, que lhe foram enviadas pela paróquia de origem da família. Ele verificou então que uma das crianças tinha sido batizada mas que a outra não, contrariamente ao que acreditavam os seus pais. Ela havia simplesmente sido inscrita no registro de recepção. É uma das situações que resultam destas práticas; o que se dá é efetivamente um simulacro de batismo, que os fiéis tomam de boa fé pelo verdadeiro sacramento.
 
Que tudo isto vos desconcerte é bem compreensível. Tendes também que fazer frente a uma argumentação especiosa, que figura mesmo nos boletins paroquiais, geralmente sob a forma de sugestões, de testemunhos subscritos por nomes próprios, ou seja, anônimos. Lemos num deles que Alamo e Evelina declaram: “O batismo não é um rito mágico que apagaria por milagre qualquer pecado original. Nós cremos que a salvação é total, gratuita e para todos: Deus escolheu todos os homens no seu amor, não importa com que condição, ou antes sem condição. Para nós, fazer-se batizar é decidir mudar de vida, é um compromisso pessoal que ninguém pode assumir em vosso lugar, é uma decisão consciente que supõe uma instrução prévia, etc.” Quantos erros monstruosos em poucas linhas! Elas tendem a justificar um outro método: a supressão do batismo das criancinhas. É ainda mais um alinhamento com os protestantes, com desprezo do ensinamento da Igreja desde as origens, como escrevia Santo Agostinho no fim do século IV: “O costume de batizar as crianças não é uma inovação recente, mas o eco fiel da tradição apostólica. Este costume por si só e fora de todo o documento escrito, constitui a regra certa da verdade.” O concílio de Cartago no ano de 251 prescrevia que o batismo fosse conferido às crianças “mesmo antes de seu oitavo dia” e a Sagrada Congregação para a Doutrina de Fé relembrava esta obrigação a 21 de novembro de 1980 baseando-a “numa norma de tradição imemorial”1.
 
É preciso que saibais disto para fazer valer um direito sagrado quando se pretende recusar-vos a fazer participar os vossos recém-nascidos da vida da graça. Os pais não esperam que seu filho tenha dezoito anos para decidir em seu lugar sobre o seu regime alimentar ou sobre uma operação cirúrgica necessária devido ao seu estado de saúde. Na ordem sobrenatural seu dever é ainda mais imperioso e a fé que preside ao sacramento quando a criança não é capaz de assumir por si mesma um “compromisso pessoal”, é a fé da Igreja. Pensai na aterradora responsabilidade que tereis privando vosso filho da vida eterna no Paraíso. Nosso Senhor disse de um modo claro: “Ninguém pode entrar no Reino de Deus se não renascer por meio da água e do Espírito Santo.”
 
Os frutos desta pastoral singular não se fizeram esperar. Na diocese de Paris em 1965 uma criança dentre duas era batizada, mas em 1976 só uma dentre quatro. O clero duma paróquia dos arredores observa, sem mostrar muito pesar por isso, que ocorriam ali 450 batismos em 1965 e 150 em 1976. Para o conjunto da França a baixa prossegue. De 1970 a 1981 a cifra global descia de 596.673 a 530.385, enquanto que a população crescia de mais de três milhões no mesmo tempo.
 
Tudo isto provém do fato de se ter falseado a definição do batismo. Desde que se cessou de dizer que ele apagava o pecado original, as pessoas perguntaram: “Que é o batismo?” e logo depois: “Para que serve o batismo?” Se elas não foram até este ponto, refletiram pelo menos nos argumentos que lhes eram apresentados e admitiram que não se impunha a urgência e que afinal de contas a criança poderia sempre, na adolescência, engajar-se, se quisesse, como quem se inscreve num partido ou num sindicato.
 
De igual maneira se colocou a questão para o casamento. O matrimônio foi sempre definido por seu fim principal, que era a procriação, e seu fim secundário, que era o amor conjugal. Pois bem, no concílio, se quis transformar esta definição e dizer que não havia mais fim primário, mas que os dois fins que acabo de citar eram equivalentes. Foi o cardeal Suenens que propôs esta mudança e eu me lembro ainda do cardeal Brown, superior geral dos dominicanos, levantando-se para dizer: “Caveatis, caveatis! (Tomai cuidado!) Se aceitamos esta definição, nós vamos contra toda a Tradição da Igreja e pervertemos o sentido do matrimônio. Não temos o direito de modificar as definições tradicionais da Igreja.”
 
Ele citou textos em apoio de sua advertência e a emoção foi grande na nave de São Pedro. O Santo Padre pediu ao cardeal Suenens que este moderasse os termos que tinha empregado e mesmo os mudasse. A Constituição pastoral Gaudium et Spes contém mais de uma passagem ambígua, onde o acento é posto na procriação “sem subestimar por isso os outros fins do matrimônio”. O verbo latino post habere permite traduzir: “sem colocar em segundo plano os outros fins do casamento”, o que significaria: pô-los todos no mesmo plano. É assim que se quer entendê-lo hoje em dia; tudo o que se diz do casamento se liga à falsa noção expressa pelo cardeal Suenens que o amor conjugal — que bem se chamou simplesmente e mais cruamente “sexualidade” — vem à testa dos fins do matrimônio. Conseqüência: a título da sexualidade, todos os atos são permitidos: contracepção, limitação dos nascimentos, e enfim aborto.
 
Uma má definição e eis-nos em plena desordem.
 
A Igreja em sua liturgia tradicional, faz o padre dizer: “Senhor, assisti em vossa bondade as instituições que vós estabelecestes para a propagação do gênero humano...” Ela escolheu a passagem da Epístola de São Paulo aos Efésios que precisa os deveres dos esposos, fazendo de suas relações recíprocas uma imagem das relações que unem Cristo e a sua Igreja. Hoje, muito freqüentemente, os próprios esposos são convidados a compor a sua missa, sem mesmo serem obrigados a escolher a epístola nos livros santos, substituindo-a por um texto profano, tomando uma passagem do Evangelho sem relação com o sacramento recebido. O sacerdote, em sua exortação, se acautela de fazer menção das exigências às quais eles se devem submeter, por medo de apresentar uma imagem rebarbativa da Igreja, eventualmente de chocar os divorciados presentes na assistência.
 
Como para o batismo, fizeram-se experiências de casamento por etapas ou casamentos não sacramentais, que escandalizam os católicos; experiências toleradas pelo episcopado, que se desenrolam segundo esquemas fornecidos por organismos oficiais e encorajados por responsáveis diocesanos. Uma ficha do Centro Jean-Bart indica algumas maneiras de proceder. Eis uma delas: “Leitura do texto: o essencial é invisível aos olhos (Epístola de São Pedro). Não houve aí troca de consentimentos, mas uma liturgia sobre a mão, sinal do trabalho e da solidariedade operária. Troca de alianças (sem bênção) em silêncio. Alusão à profissão de Roberto: liga, soldadura (ele é chumbador). O beijo. O Padre-Nosso pelos crentes da assistência. Ave Maria! Os jovens esposos depositam um buquê de flores diante da estátua de Maria.”
 
Pôr que Nosso Senhor teria instituído sacramentos se se devia substituí-los por este gênero de cerimônia isenta de todo sobrenatural, à exceção das duas preces que lhe põem termo? Falou-se muito de Lugny no Saona e Loire, há alguns anos. Para motivar esta “liturgia de recepção” tinha-se dito que se queria dar aos jovens pares o desejo de voltar para casar de verdade em seguida. Dois anos mais tarde, dentre duzentos falsos matrimônios, nenhum par tinha voltado para regularizar sua situação. Se eles o tivessem feito, o pároco desta igreja teria oficializado e acobertado com sua caução senão com sua bênção, no decorrer de 2 anos, o que simplesmente não passava de um concubinato.
 
Uma pesquisa de origem eclesiástica revelou que, em Paris, 23% das paróquias tinham já efetuado celebrações sacramentais para casais dos quais um dos membros, se não mesmo os dois, não era crente, com a intenção de comprazer às famílias ou aos próprios noivos, freqüentemente por preocupação com conveniências sociais. É escusado dizer que um católico não tem o direito de assistir a tais encenações.
 
Quanto aos pretensos casados, eles poderão sempre dizer que estiveram na igreja e acabarão sem dúvida por acreditar na regularidade de sua situação, à força de ver seus amigos seguir o mesmo caminho. Os fiéis desorientados se perguntam se não é melhor isto do que nada. O indiferentismo se instala; está-se disposto a aceitar qualquer outra fórmula, o simples casamento na municipalidade ou ainda a co-habitação juvenil, a propósito da qual tantos pais dão prova de “compreensão”, para chegar à união livre. A descristianização total está em via de concretizar-se; aos casais faltarão as graças que decorrem do sacramento do matrimônio para educar seus filhos, se ao menos eles consentem em tê-los. As rupturas destas uniões não santificadas se multiplicam a ponto de inquietar o Conselho econômico e social, do qual uma relação recente mostra que mesmo a sociedade laica tem consciência de correr para a sua ruína em conseqüência da instabilidade das famílias ou das pseudo-famílias.
 
A extrema unção não é mais verdadeiramente o sacramento dos enfermos, o sacramento dos doentes; é agora o sacramento dos velhos, alguns padres o administram às pessoas em idade avançada que não apresentam nenhum sinal particular de morte próxima. Ele não é mais o sacramento que prepara para o último instante, que apaga os pecados antes da morte, e que prepara a união definitiva com Deus. Tenho debaixo dos olhos uma nota distribuída numa igreja de Paris a todos os fiéis para avisá-los da data da próxima extrema-unção: “O sacramento dos enfermos é conferido às pessoas ainda bem conservadas, em meio a toda a comunidade cristã, durante a celebração eucarística. Data: no domingo, na missa das 11 horas.” Estas extremas-unções são inválidas.
 
O mesmo espírito coletivista provocou a voga das celebrações penitenciais. O sacramento da penitência não pode ser senão individual. Por definição e conforme a sua essência, ele é, como lembrei mais acima, um ato judiciário, um julgamento. Não se pode julgar sem estar a par de uma causa; é preciso ouvir a causa de cada um para julgá-la e depois perdoar ou reter os pecados. S. S. João Paulo II insistiu várias vezes neste ponto, dizendo notadamente no dia 1°. de abril de 1983 a bispos franceses que a confissão pessoal das faltas seguida da absolvição individual “é antes de tudo uma exigência de ordem dogmática”. Por conseguinte é impossível justificar as cerimônias de “reconciliação” explicando que a disciplina eclesiástica se abrandou, que se adaptou às exigências do mundo moderno. Não se trata de um caso de disciplina.
 
Havia precedentemente uma exceção; a absolvição geral dada em caso de naufrágio, de guerra: absolvição aliás cujo valor é discutido pelos autores. Não é permitido fazer da exceção uma regra. Se se consultam os Atos da Sé apostólica salientam-se as expressões seguintes tanto nos lábios de Paulo VI como nos de João Paulo II em diversas ocasiões: “o caráter excepcional da absolvição coletiva”, “em caso de grave necessidade”, “caráter inteiramente excepcional”, “circunstâncias excepcionais”...
 
As celebrações deste gênero não deixaram, contudo, de se tornar um hábito, sem, entretanto, serem freqüentes numa mesma paróquia, à falta de fiéis dispostos a pôr-se em ordem com Deus mais de duas ou três vezes no ano. Não se experimenta mais a necessidade disto, o que era de prever, visto que a noção de pecado se extinguiu nos espíritos. Quantos sacerdotes lembram a necessidade do sacramento da penitência? Um fiel me disse que, confessando-se conforme os seus deslocamentos numa ou noutra das igrejas parisienses onde ele sabe poder encontrar um “sacerdote de acolhimento”, recebe freqüentemente as felicitações ou os agradecimentos deste, todo surpreso de ter um penitente.
 
Estas celebrações submetidas à criatividade dos “animadores” compreendem cantos; ou então se coloca um disco. Depois se dá um lugar à liturgia da palavra antes de uma prece litânica à qual a assembléia responde: “Senhor, tende piedade do pecador que sou”, ou uma espécie de exame de consciência geral. O “Eu pecador me confesso a Deus” precede a absolvição dada uma vez por todas e a todos os assistentes, o que não deixa de pôr um problema: uma pessoa presente que não a desejasse vai receber a absolvição contra a sua vontade? Vejo numa folha roneotipada distribuída aos participantes de uma destas cerimônias, em Lourdes, que o responsável se coloca a questão: “Se desejamos receber a absolvição, venhamos mergulhar nossas mãos na água da fonte e tracemos sobre nós o sinal da cruz” e, no fim: “Sobre aqueles que se benzeram com o sinal da cruz com a água da fonte o sacerdote impõe as mãos (?). Unamo-nos à sua prece e recebamos o perdão de Deus.”
 
Um jornal católico inglês, The Universe, fazia-se, há alguns anos, o defensor duma operação lançada por dois bispos e que consistia em reaproximar da Igreja os fiéis que tinha há muito tempo abandonado a prática religiosa. O apelo lançado pelos bispos assemelhava-se aos comunicados publicados pelas famílias de adolescentes fugitivos: “O pequeno X pode retornar à sua casa, não lhe será feita nenhuma censura.”
 
Dizia-se então a estes futuros filhos pródigos: “Vossos bispos vos convidam durante esta Quaresma a rejubilar-vos e a celebrar. A Igreja oferece a todos os seus filhos, à imitação de Cristo, o perdão de seus pecados, com toda liberdade e facilidade, sem que eles o mereçam e sem que o peçam. Ela os pressiona a aceitá-lo e lhes suplica que voltem para casa. Há muitos que desejam retornar à Igreja após anos de afastamento, mas eles não se podem resolver a ir confessar-se. Em todo o caso não logo...”
 
Eles podiam então aceitar o oferecimento seguinte: “Na missa da estação à qual o
bispo assistirá no vosso decanato (aqui se mencionam o dia e a hora) todos os que
estiverem presentes serão convidados a aceitar o perdão de todos os seus pecados
passados. Não lhes é necessário confessar-se neste momento. Ser-lhes-á suficiente ter o pesar de seus pecados e o desejo de retornar a Deus, de confessar seus pecados mais tarde após serem acolhidos de novo no aprisco.
 
“Esperando, eles não têm senão que deixar Nosso Pai dos céus” estreitá-los em seus braços e abraçá-los ternamente”! Mediante um ato generoso de arrependimento o bispo concederá a todos os presentes que o desejarem, o perdão de seus pecados. Eles podem então imediatamente voltar à santa comunhão”...
 
O Jornal da Gruta, folha bimensal de Lourdes, reproduzindo este curioso mandamento episcopal impresso sob o título “General absolution. Communion now, confession later” (“Absolvição geral. Comunhão já, confissão mais tarde”) comentava-o assim: “Nossos leitores poderão dar-se conta do espírito profundamente evangélico que o inspirou, assim como da compreensão pastoral das situações concretas das pessoas.”
 
Eu não sei o resultado que foi obtido, mas a questão é outra: a anistia pronunciada pelos dois bispos evoca a liquidação dos estoques em fim de semana comercial. Pode a pastoral tomar a dianteira sobre a doutrina a ponto de levar à comunhão do Corpo de Cristo a fiéis dos quais muitos estão provavelmente em estado de pecado mortal, após terem abandonado há tantos anos a prática religiosa? Certamente não. Como encarar tão levianamente pagar a conversão com sacrilégio? E esta conversão tem porventura muitas probabilidades de ser seguida de perseverança? Em todo caso pudemos verificar que antes do concílio e do aparecimento desta pastoral de aceitação contavam-se 50 a 80.000 conversões por ano na Inglaterra. Elas caíram quase a zero. A árvore se conhece pelos seus frutos.
 
Os católicos estão tão perplexos na Grã-Bretanha como na França. Um pecador ou um apóstata que seguiu o conselho de seu bispo apresentando-se à absolvição coletiva e à mesa sagrada nestas condições, não corre o risco de perder sua confiança na validade de sacramentos tão facilmente administrados? Que vai acontecer se, em conseqüência, ele negligencia “regularizar” a situação confessando-se? Sua volta falha à casa do Pai não fará senão tornar mais difícil uma conversão definitiva.
 
Eis aonde termina o laxismo dogmático. Nas cerimônias penitenciais que se praticam, dum modo menos extravagante, em nossas paróquias, que certeza tem o cristão de estar verdadeiramente perdoado? Ele é abandonado às inquietudes que conhecem os protestantes, aos tormentos interiores provocados pela dúvida. Certamente não ganhou com a troca.
 
Se a coisa é má no plano da validade, ela também o é no plano psicológico. Assim, que absurdo conceder perdões coletivos, salvo, para as pessoas que têm pecados graves, desde que se confessem em seguida! Elas não se vão designar diante das outras como tendo pecados graves na consciência, é evidente! É como se o segredo da confissão fosse violado.
 
Deve-se acrescentar que o fiel que comungar após a absolvição coletiva, não verá mais a necessidade de se apresentar de novo ao tribunal da penitência e isto se compreende. As cerimônias de reconciliação não se ajuntam pois à confissão auricular, elas a eliminam e a suplantam. Está-se a caminho do desaparecimento do tribunal da penitência, instituído como os seis outros pelo próprio Senhor. Nenhuma preocupação pastoral poderia justificá-lo.
 
Para que um sacramento seja válido é preciso a matéria, a forma e a intenção. Isto nem mesmo o papa pode mudar. A matéria é de instituição divina; o papa não pode dizer: “Amanhã se usará o álcool para batizar as crianças ou o leite.” Ele não pode mais mudar essencialmente a forma. Há palavras essenciais; por exemplo não se pode dizer: “Eu te batizo em nome de Deus”, pois o próprio Cristo fixou a forma: “Vós batizareis em nome do Padre e do Filho e do Espírito Santo.”
 
O sacramento da confirmação é igualmente mal-administrado. Uma fórmula corrente hoje é: “Eu te assinalo com a Cruz e recebe o Espírito Santo.” Mas o ministro não precisa então qual é a graça especial do sacramento pelo qual se dá o Espírito Santo e o sacramento é inválido.
 
Por isso eu respondo sempre aos pedidos dos pais que têm uma dúvida sobre a validez da confirmação recebida por seus filhos ou que temem fazê-la administrar-lhes duma maneira inválida, vendo o que sucede em torno deles. Os cardeais diante dos quais eu me devi explicar em 1975 me censuraram por isto, continua-se desde então a publicar comunicados reprovadores a cada uma das minhas viagens. Eu expliquei por que procedia assim. Eu concordo com o desejo dos fiéis que me pedem a confirmação válida mesmo se ela não é lícita, porque nós estamos num tempo no qual o direito divino natural e sobrenatural prevalece sobre o direito positivo eclesiástico quando este se opõe ao primeiro em lugar de lhe ser o canal. Estamos numa crise extraordinária e não se deve admirar de que eu adote por vezes uma atitude que se afasta da ordinária.
 
A terceira condição de validade do sacramento é a intenção. O bispo ou o sacerdote deve ter a intenção de fazer o que quer a Igreja. O próprio Papa também não pode mudá-lo.
 
A fé do sacerdote não é um elemento necessário; um sacerdote ou um bispo pode já não ter fé; outro pode ter menos fé e outro, uma fé não totalmente íntegra. Isto não tem uma influência direta na validade dos sacramentos, mas pode ter uma influência indireta. Lembremos o Papa Leão XIII que proclamava que todas as ordenações anglicanas não eram válidas por falta de intenção. Isto porque tinham perdido a fé, que não é somente a fé em Deus, mas a fé em todas as verdades contidas no Credo, inclusive “Credo in unam sanctam catholicam et apostolicam Ecclesiam”, quer dizer, “Creio na Igreja que é una”; por isso, os anglicanos não podem fazer o que quer a Igreja.
 
Não ocorrerá o mesmo com os padres que perdem a fé? Já vemos como alguns não celebram o sacramento da Eucaristia conforme a definição do Concílio de Trento. “Não — dizem estes sacerdotes — há muito tempo que se realizou o Concílio de Trento. De lá para cá, já tivemos o Vaticano II. Hoje é a transignificação, a transfinalização. Transubstanciação? Não, isto não existe mais. A presença real do Filho de Deus sob as espécies do pão e do vinho? Ora, não mais no nosso tempo!”
 
Quando um sacerdote diz isto, a consagração é inválida. Não há missa nem comunhão. Pois os cristãos são obrigados a crer, até o fim dos tempos, o que definiu o concílio de Trento sobre a Eucaristia. Podem-se tornar mais explícitos os termos de um dogma, porém não se podem mudar, isto e impossível. O concílio Vaticano II não acrescentou nem tirou nada; aliás, não o poderia ter feito. Porém aquele que declara não aceitar a transubstanciação está, segundo os termos do próprio concilio de Trento, anatematizado e, portanto, separado da Igreja.
 
É por esta razão que os católicos deste fim do século XX têm a obrigação de ser mais vigilantes que seus pais.

 

  1. 1. Instrução Pastoralis Actio.

5. "Vocês são retrógrados"

Os católicos que na verdade sentem que se operam transformações radicais têm dificuldades em resistir à propaganda insistente, comum a todas as revoluções. Dizem-lhes: “Vós não aceitais a mudança, mas a vida consiste na mudança. Mantendes-vos no fixismo, mas o que era bom há cinqüenta anos não convém mais à mentalidade atual nem ao gênero de vida que temos. Vós vos apegais ao vosso passado, não sois capazes de mudar vossos hábitos.” Muitos se submeteram à reforma para não incorrer nesta censura, não encontrando os argumentos suscetíveis de preservá-los de acusações infamantes: “Vós sois retrógrados, passadistas, não viveis com o vosso tempo.”

 
O cardeal Ottaviani dizia já dos bispos: “Eles têm medo de parecer velhos.”

Mas nós jamais recusamos certas mudanças, certas adaptações que testemunham a vitalidade da Igreja. Em matéria litúrgica, não é a primeira reforma à qual assistem homens da minha idade: eu acabava justamente de nascer quando São Pio X se preocupava em introduzir melhoramentos, especialmente dando mais importância ao ciclo temporal, antecipando a idade da primeira comunhão para as crianças e restaurando o canto litúrgico que havia conhecido um obscurecimento. Pio XII, em seguida, reduziu a duração do jejum eucarístico em razão das dificuldades inerentes à vida moderna, autorizou pelo mesmo motivo a celebração da missa vespertina, recolocou o ofício da vigília pascal na noite do Sábado santo, remodelando ofícios da semana santa. João XXIII mesmo fez alguns retoques, antes do concílio, no rito chamado de S. Pio V.

 

Mas nada disto se aproximava de perto ou de longe daquilo que se realizou em 1969, a saber uma nova concepção da missa.
 
Censuram-nos também por nos apegarmos a fórmulas exteriores e secundárias como o latim. É, proclama-se, uma língua morta que ninguém compreende, como se o povo cristão a compreendesse melhor nos séculos XVII ou XIX. Que negligência teria mostrado a Igreja, segundo eles, esperando tanto tempo para suprimi-las! Eu penso que ela possuía as suas razões. Não se deve admirar que os católicos experimentem a necessidade de uma maior compreensão dos textos admiráveis nos quais eles haurem seu alimento espiritual, nem que desejem associar-se mais intimamente à ação que se desenrola sob os seus olhos. Entretanto não seria satisfazer-lhes adotar as línguas vernáculas do princípio ao fim do Santo Sacrifício. A leitura em francês da Epístola e do Evangelho constitui um melhoramento, e é praticada, quando isto convém, em São Nicolau du Chardonnet, como também nos priorados da Fraternidade que fundei. Quanto ao resto, o que se ganharia, seria fora de proporção com o que se perderia. Pois a compreensão dos textos não é o fim último da prece nem o único meio de pôr a alma em oração, isto é, em união com Deus. Se se dá uma atenção demasiadamente grande ao sentido dos textos, isto pode mesmo ser um obstáculo. Eu me admiro que não o compreendam enquanto se prega ao mesmo tempo uma religião do coração, menos intelectual, mais espontânea. A união com Deus se obtém ora por meio de um canto religioso e celeste, ora por uma ambiência geral da ação litúrgica, pela piedade e o recolhimento do lugar, sua beleza arquitetônica, pelo fervor da comunidade cristã, pela dignidade e piedade do celebrante, pela decoração simbólica, pelo perfume do incenso, etc.
 
Contanto que a alma se eleve, pouco importa por qual degrau o faça. Disto fará experiência qualquer um que abrir a porta duma abadia beneditina que conservou o culto divino em todo o seu esplendor.
 
Isto não diminui em nada a necessidade de buscar uma melhor compreensão das orações, das preces e dos hinos assim como uma participação mais perfeita; mas é um erro querer chegar aí pelo emprego puro e simples da língua vernácula e pela supressão total da língua universal da Igreja, infelizmente consumada quase em toda a parte do mundo. Basta ver o sucesso das missas, celebradas no entanto segundo o novo ordo nas quais se mantiveram o canto do Credo do “Sanctus” e do “Agnus Dei”.
 
Pois o latim é uma língua universal. Ao empregá-lo, a liturgia nos forma para uma comunhão universal, isto é, católica. Pelo contrário localizando-se, individualizando-se, ela perde esta dimensão que marca profundamente as almas.
 
Para evitar cometer tal erro, bastava observar os ritos orientais nos quais as ações litúrgicas se exprimem, há muito tempo, na língua vulgar. Ora, aí se verifica um isolamento o qual os membros destas comunidades sofrem. Quando elas se dispersam fora de seu país de origem têm necessidade de sacerdotes que lhes sirvam para a missa, para os sacramentos, para toda a espécie de cerimônia: elas constroem igrejas especiais que as colocam, por força das circunstâncias, à parte do resto do povo católico.
 
Tiram eles proveito disto? Não apareceu de um modo evidente que a língua litúrgica particular as tenha tornado mais fervorosas e mais praticantes do que aquelas que se beneficiam de um idioma universal, não entendido por muitos, talvez, mas suscetível de tradução.
 
Se observarmos fora da Igreja, como o Islão conseguiu assegurar sua coesão enquanto ele se espalhava em regiões tão diferentes e entre povos de raças tão diversas como a Turquia, a África do Norte, a Indonésia ou a África negra? Impondo por toda parte o árabe como língua única do Corão. Na África eu via os marabus fazerem crianças aprender de cor os capítulos do Corão dos quais elas não podiam compreender uma palavra sequer. E o que é mais, o Islão chega até a interditar a tradução de seu Livro santo. É de bom tom atualmente admirar a religião de Maomé à qual se sabe, se converteram milhares de franceses, fazer coleta nas igrejas para construir mesquitas na França.
 
Houve bastante cautela, entretanto, de não se inspirar no único exemplo que podia ser retido: a persistência duma língua única para a oração e para o culto.
 
O fato de ser o latim uma língua morta prega a favor de sua manutenção: ela é o melhor meio de proteger a expressão da fé contra as adaptações lingüísticas que ocorrem naturalmente no decurso dos séculos. O estudo da semântica foi muito difundido há uma dezena de anos, e mesmo introduzido nos programas de francês dos colégios. Um dos objetos da semântica não é a mudança de significação das palavras, as variações de sentido observadas na sucessão dos tempos e freqüentemente em períodos muito curtos? Tiremos então partido desta ciência para compreender o perigo de confiar o depósito da fé a modos de dizer que não são estáveis. Credes que se teria podido conservar durante dois milênios sem corrupção alguma, a formulação das verdades eternas, intangíveis, com línguas evoluindo sem cessar e diferentes segundo os países e mesmo segundo as regiões? As línguas vivas são mutáveis e instáveis. Se se confia a liturgia ao idioma do momento, será preciso adaptá-lo continuamente, tendo em conta a semântica. Nada de estranho que se devam constituir sem cessar novas comissões e que os sacerdotes não tenham mais tempo de dizer a missa.
 
Quando fui ver Sua Santidade Paulo VI em Castelgandolfo em 1976, eu lhe disse: “Não sei se vós sabeis, Santíssimo Padre, que existem atualmente treze preces eucarísticas oficiais na França.” O papa então elevou os braços para o céu e me respondeu: “Mas bem mais, senhor bispo, bem mais!” Fui então levado a me propor uma questão: existiriam tantas se os liturgistas fossem obrigados a compô-las em latim? Além destas fórmulas postas em circulação após terem sido impressas cá e lá, seria necessário falar também dos cânons improvisados pelo sacerdote no momento da celebração e de todos os incidentes que ele introduz desde a “preparação penitencial” até a “despedida da assembléia”. Credes que isto sucederia se ele devesse oficiar em latim?
 
Uma outra forma exterior contra a qual se levantou toda uma opinião, é o uso da batina não tanto nas igrejas ou para as visitas ao Vaticano, como também na vida de cada dia. A questão não é essencial, mas tem grande importância. Cada vez que o papa lembrou isto — e João Paulo II por sua parte o fez com insistência — elevaram-se protestos indignados nas fileiras do clero. Eu lia num diário parisiense as declarações feitas a este propósito por um padre de vanguarda: “É folclore... Na França, o uso duma vestimenta reconhecível não tem sentido, pois não há nenhuma necessidade de se reconhecer um padre na rua. Ao contrário a batina ou o “clergyman” provoca aversão. O padre é um homem como todos os outros. Certamente, ele preside à Eucaristia”.
 
Este “presidente” exprimia ali idéias contrárias ao Evangelho e às realidades sociais mais verificadas. Em todas as religiões, os chefes religiosos usam distintivos. A antropologia da qual se faz muito caso, aí está para atestá-lo. Entre os muçulmanos se vêem utilizar vestimentas diferentes, colares e anéis. Os budistas se vestem com uma túnica tingida de açafrão e raspam a cabeça de um certo modo. Podem-se notar nas ruas de Paris e de outras grandes cidades jovens ligados a esta doutrina e cujo modo de trajar não suscita nenhuma crítica.
 
A batina assegura especificação do clero, do religioso ou da religiosa, como o uniforme a do militar ou do mantenedor da paz. Com uma diferença porém: estes, retomando o comportamento civil, se tornam cidadãos como os outros, enquanto que o sacerdote deve conservar sua veste distintiva em todas as circunstâncias da vida social. Com efeito, o caráter sagrado que ele recebeu na ordenação fá-lo viver no mundo sem ser do mundo. Lemos isto em São João: “Vós não sois do mundo... minha escolha vos tirou do mundo” (Jo 15, 19). Sua veste deve ser distinta e ao mesmo tempo escolhida num espírito de modéstia, de discrição e de pobreza.
 
Uma segunda razão é o dever do padre de dar testemunho de Nosso Senhor: “Vós sereis minhas testemunhas”, “não se coloca o castiçal debaixo do alqueire”. A religião não é para ser acantonada nas sacristias, como decretaram há muito tempo os dirigentes dos países do Leste; Cristo mandou-nos exteriorizar a nossa fé, torná-la visível por um testemunho que deve ser visto e compreendido por todos. O testemunho da palavra, certamente mais essencial para o sacerdote que o do traje, é todavia grandemente facilitado pela manifestação muito clara do sacerdócio que é o uso da batina.
 
A separação entre a Igreja e o Estado, aceita, estimada por vezes como o melhor estatuto, fez o ateísmo penetrar pouco a pouco em todos os domínios da atividade e nos permite bem verificar que bom número de católicos e mesmo de sacerdotes não têm mais uma idéia exata do lugar da religião católica na sociedade civil. O laicismo invadiu tudo.
 
O sacerdote que vive numa sociedade deste gênero tem a impressão crescente de ser estranho a ela, e depois de ser incômodo, de ser a testemunha dum passado votado ao desaparecimento. Sua presença é tolerada, e nada mais, ao menos é assim que ele a considera. Daí o seu desejo de se alinhar pelo mundo laicizado, de se confundir com a massa. Falta a este tipo de padre ter viajado a países menos descristianizados que o nosso. Falta-lhe sobretudo uma fé profunda no seu sacerdócio.
 
É também avaliar mal o senso religioso que ainda existe. Supõe-se dum modo inteiramente gratuito que aqueles perto dos quais nos encontramos nas relações de negócios ou no trato casual são arreligiosos. Os jovens sacerdotes que saem de Ecône e todos aqueles que não sacrificaram à corrente do anonimato o verificam todos os dias. Aversão? É inteiramente contrário. As pessoas os abordam nas ruas, nas plataformas das estações para falar-lhes; freqüentes vezes é simplesmente para expressar-lhes sua alegria em ver sacerdotes. Na Igreja nova se preconiza o diálogo. Como iniciá-los se nós começamos por dissimular-nos aos olhos dos possíveis interlocutores? Nas ditaduras comunistas o primeiro cuidado dos donos da situação foi interditar o uso da batina; isto faz parte dos meios destinados a sufocar a religião. Deve-se acreditar que o inverso é também verdadeiro. O padre que se apresenta como tal por sua aparência exterior é uma pregação viva. A ausência de sacerdotes reconhecíveis numa grande cidade denota um grave recuo da pregação do Evangelho; é a continuação da obra nefasta da Revolução e das leis de separação.
 
Acrescentemos que a batina preserva o padre do mal, impõe-lhe uma atitude, lembra-lhe a todo instante sua missão sobre a terra, defende-o das tentações. Um sacerdote de batina não tem crise de identidade. Os fiéis, quanto a eles, sabem com quem tratam; a batina é uma garantia da autenticidade do sacerdócio. Católicos me falaram da dificuldade que eles experimentavam em se confessar com um padre de jaquetão, tendo impressão de confiar a um qualquer os segredos de sua consciência. A confissão é um ato judiciário; por que a justiça civil sente a necessidade de fazer seus magistrados usarem a toga?
 

 

4. A Missa de Sempre e a Missa "a sabor do vento"

 

Para preparar o Congresso eucarístico de 1981 foi distribuído um questionário cuja primeira pergunta era esta:
 
“Dentre estas duas definições: “Santo Sacrifício da Missa” e “Refeição eucarística”, qual adotais espontaneamente?” Haveria muito a dizer sobre esta maneira de interrogar os católicos deixando-lhes de algum modo a escolha e fazendo apelo a seu julgamento pessoal num assunto onde a espontaneidade nada tem a fazer. Não se escolhe sua definição de missa como se escolhe um partido político.
 
Ai! A insinuação não resulta duma imperícia do redator deste questionário. É preciso convencer-se disto: a reforma litúrgica tende a substituir a noção e a realidade do Sacrifício pela realidade duma refeição. É assim que se fala de celebração eucarística, de Ceia, mas o termo “Sacrifício” é muito menos evocado; ele desapareceu quase totalmente dos manuais de catequese bem como da  pregação. Está ausente do Canon nº. 2 dito de Santo Hipólito.
 
Esta tendência se une àquela que nós verificamos a propósito da Presença real; se não há mais sacrifício, não há mais necessidade de vítima. A vítima está presente em vista do sacrifício. Fazer da missa uma refeição memorial, uma refeição fraterna é o erro dos protestantes. Que aconteceu no século XVI? Precisamente o que está para suceder hoje. Eles substituíram imediatamente o altar por uma mesa, suprimiram o crucifixo colocado sobre aquele, e fizeram o “presidente da assembléia” voltar-se para os fiéis. O cenário da Ceia protestante se encontra em Pedras Vivas, a compilação composta pelos bispos da França e que todas as crianças dos catecismos devem utilizar obrigatoriamente: “Os cristãos se reúnem para celebrar a Eucaristia. É a missa... Eles proclamam a fé da Igreja, rezam pelo mundo inteiro, oferecem o pão e o vinho... O sacerdote que preside à assembléia diz a grande oração de ação de graças...”
 
Ora, na religião católica é o sacerdote que celebra a missa, é ele que oferece o pão e o vinho. A noção de presidente é tomada de empréstimo ao protestantismo. O vocabulário segue a transformação dos espíritos. Dizia-se antigamente: “Dom Lustiger celebrará uma missa pontificial.” Foi-me relatado que na Rádio Notre-Dame, a frase utilizada presentemente é: “João Maria Lustiger presidirá a uma concelebração.”
 
Eis como se fala da missa numa brochura editada pela Conferência dos bispos suíços:
 
“A refeição do Senhor realiza primeiramente a comunhão com Cristo. É a mesma comunhão, que Jesus realizava durante sua vida terrestre sentando-se à mesa com os pecadores, que continua na refeição eucarística desde o dia da Ressurreição. O Senhor convida Seus amigos a se reunirem e estará presente entre eles.”
 
Pois bem, todo o católico está obrigado a responder dum modo categórico: Não! A missa não é isto. Não é a continuação duma refeição semelhante àquela para a qual Nosso Senhor convidou São Pedro e alguns discípulos em uma manhã, à beira do lago, após a Sua ressurreição: “Quando saltaram em terra, viram umas brasas preparadas e um peixe em cima e pão... Disse-lhes Jesus: “Vinde, almoçai” nenhum dos discípulos, sabendo que era o Senhor, ousava perguntar-lhe: “Quem sois vós”. Jesus chega, toma o pão, deu-lho, e igualmente do peixe” (Jo 21, 9-13).
 
A comunhão do sacerdote e dos fiéis é uma comunhão com a vítima que se ofereceu sobre o altar do sacrifício. Este é maciço, de pedra; se não o é, contém ao menos a pedra d'ara que é uma pedra sacrifical. Nela se incrustaram as relíquias dos mártires, porque eles ofereceram o seu sangue pelo seu Mestre. Esta comunhão do sangue de Nosso Senhor com o sangue dos mártires nos encoraja a oferecer também as nossas vidas.
 
Se a missa é uma refeição, eu compreendo porque o padre se volta para os fiéis. Não se preside a uma refeição dando as costas aos convivas. Mas um sacrifício se oferece a Deus, não aos assistentes. É por esta razão que o padre, à testa dos fiéis, se volta para Deus, para o crucifixo que domina o altar.
 
Insiste-se em qualquer ocasião no que o Novo Missal dos domingos chama “o relato da instituição”. O Centro Jean-Bart, centro oficial do bispado de Paris declara: “No coração da missa há um relato.” Ainda uma vez. Não! A missa não é uma narração, é uma ação.
 
Três condições indispensáveis existem para que ela seja a continuação do Sacrifício da Cruz: a oblação da vítima, a transubstanciação que a torna presente efetivamente e não simbolicamente, a celebração por um sacerdote que toma o lugar do Sacerdote principal que é Nosso Senhor e que deve ser consagrado por seu sacerdócio.
 
Assim a missa pode alcançar a remissão dos pecados. Um simples memorial, um relato da instituição acompanhado de uma refeição estaria longe de ser suficiente para isto. Toda a virtude sobrenatural da missa provém de sua relação com o Sacrifício da Cruz. Se não se acredita mais nisto, não se acredita mais em nada da Igreja, esta não tem mais razão de ser, não se deve pretender mais ser católico. Lutero havia compreendido muito bem que a missa é o coração, a alma da Igreja. Ele dizia: “Destruamos a missa e teremos destruído a Igreja.”
 
Ora, nós percebemos que o Novus Ordo Missae, isto é, a nova regulamentação adotada após o concílio, se alinha sobre concepções protestantes, ou pelo menos se aproxima perigosamente delas. Para Lutero a missa pode ser um sacrifício de louvor, ou seja, um ato de louvor, de ação de graças, mas não certamente um sacrifício propiciatório que renova e aplica o Sacrifício da Cruz. Para ele o Sacrifício da Cruz se realizou num momento determinado da história; é prisioneiro desta história, nós não nos podemos aplicar os méritos de Cristo a não ser pela nossa fé em sua morte e em sua ressurreição. Ao contrário, a Igreja afirma que este sacrifício se realiza misticamente, de uma maneira incruenta, pela separação do corpo e do sangue sob as espécies do pão e do vinho. Esta renovação permite aplicar aos fiéis presentes os méritos da cruz, perpetuar esta fonte de graças no tempo e no espaço. O Evangelho de São Mateus termina com estas palavras: “E eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos.”
 
A diferença de concepção não é pequena. Não obstante fazem-se esforços para reduzi-la, pela alteração da doutrina católica, e desta alteração se podem observar numerosos sinais na liturgia. Lutero dizia: “O culto se dirigia a Deus como uma homenagem, de agora em diante ele se dirigirá ao homem para consolá-lo e iluminá-lo. O sacrifício ocupava o primeiro lugar, o sermão vai suplantá-lo”. Isto significava a introdução do culto do homem, e na igreja, a importância dada à “liturgia da palavra”. Abramos os novos missais, esta revolução se realizou neles. Uma leitura foi acrescentada às duas que existiam, bem como uma “prece universal” utilizada freqüentemente para transmitir idéias políticas ou sociais; contando com a homilia, termina-se num desequilíbrio em proveito da palavra. Acabado o sermão, a missa está bem perto de seu fim.
 
Na Igreja, o sacerdote é marcado por um caráter indelével que faz dele um ''alter Christus”; só ele pode oferecer o Santo Sacrifício. Lutero considera a distinção entre clérigos e leigos como “a primeira muralha elevada pelos romanistas”; todos os cristãos são sacerdotes, o pastor não faz senão exercer uma função presidindo a “missa evangélica”. No novo “ordo”, o “eu” do celebrante foi substituído pelo “nós”; escreve-se por toda a parte que os fiéis “celebram”, são associados aos atos cultuais, lêem a Epístola, eventualmente o Evangelho, distribuem a comunhão, fazem por vezes a homilia, que pode ser substituída por uma troca em pequenos grupos sobre a Palavra de Deus”, reúnem-se com antecedência, para “estabelecer” a celebração do domingo. Mas isto não passa de uma etapa; há numerosos anos ouve-se emitir pelos responsáveis de organismos episcopais proposições deste gênero: “não são os ministros, mas é a assembléia que celebra” (Fichas do Centro nacional de pastoral litúrgica) ou “A assembléia é o sujeito principal da liturgia”; o que conta não é mais o “funcionamento dos ritos, mas a imagem que a assembléia se dá a si própria e as relações que se instauram entre os concelebrantes” (P. Gelineau, artífice da reforma litúrgica e professor no Instituto Católico de Paris). Se é a assembléia que conta, compreende-se que as missas particulares sejam mal consideradas, o que faz com que os sacerdotes não as rezem mais, pois é cada vez menos fácil encontrar uma assembléia sobretudo durante a semana. É uma ruptura com a doutrina invariável: a Igreja tem necessidade da multiplicação dos Sacrifícios da missa tanto para a aplicação do Sacrifício da Cruz como para todos os fins que lhe são assinalados: adoração, ação de graças, propiciação1 e impetração2.
 
Isto não é ainda suficiente, o objetivo de vários é eliminar decididamente o sacerdote, o que dá lugar às famosas ADAP (Assembléias dominicais na ausência do padre). Poder-se-ia conceber três fiéis reunindo-se para rezar em conjunto de modo a honrar o dia do Senhor; ora, estas ADAP são na realidade uma espécie de missas “em branco”, às quais só falta a consagração, e ainda, como se pode ler num documento do Centro regional de estudos sócio-religiosos de Lille, somente porque “até nova ordem os leigos não têm o poder de executar este ato”. A ausência do padre pode ser desejada “a fim de que os fiéis aprendam a desembaraçar-se por si mesmos. O P. Gelineau em Liturgia amanhã, escreve que as ADAP não passam de uma “transição pedagógica até que as mentalidades tenham mudado” e conclui com uma lógica embaraçadora que há ainda sacerdotes demais na Igreja, ”demais sem dúvida para que as coisas evoluam depressa”.
 
Lutero suprimiu o ofertório: por quê oferecer a Hóstia pura e sem mácula se não há mais sacrifício? No novo “ordo” francês o ofertório é praticamente inexistente; aliás ele não tem mais este nome. O novo missal dos domingos fala de “orações de apresentação”. A fórmula utilizada lembra mais uma ação de graças, um agradecimento pelos frutos da terra. Para se dar conta disto basta compará-la com as fórmulas tradicionalmente empregadas pela Igreja, onde aparece claramente o fim propiciatório e expiatório do sacrifício, “que vos ofereço... pelos meus inumeráveis pecados, ofensas e negligências; por todos os assistentes e por todos os cristãos vivos e defuntos; a fim de que a mim e a eles aproveite este sacrifício para a vida eterna. Elevando o cálice o sacerdote diz em seguida: Senhor, nós vos oferecemos o cálice de vossa redenção e imploramos a vossa misericórdia que ele suba como suave perfume à presença de vossa divina majestade, pela salvação nossa e de todo o mundo.”
 
Que resta disto na missa nova? O seguinte: Bendito és Deus do universo, tu que nos dás este pão, fruto da terra e do trabalho dos homens. Nós t'o apresentamos; ele se tornará o pão da vida”, e igualmente para o vinho que se tornará “o vinho do Reino eterno”. De que serve acrescentar um pouco mais longe: “Lavai-me de minhas faltas, Senhor, purificai-me de meu pecado” e: “Que sacrifício, neste dia, encontra graça diante de ti”? Qual pecado? Qual sacrifício? Que ligação pode fazer o fiel entre esta apresentação vaga das oferendas e a redenção que ele está habilitado a esperar? Eu colocarei uma outra questão: porque substituir um texto claro e cujo sentido é completo por uma seqüência de frases enigmáticas mal ligadas entre si? Se se experimenta a necessidade de mudança, esta deve ser para melhorar. Estas poucas menções que parecem retificar a insuficiência das “orações de apresentação” fazem ainda pensar em Lutero, que se aplicava a arranjar as transições. Ele conservava o mais possível as cerimônias antigas limitando-se a mudar-lhes o sentido. A missa mantinha em grande parte seu aparato exterior, o povo encontrava nas igrejas quase o mesmo cenário, quase os mesmos ritos, com retoques feitos para agradar-lhe, pois doravante se dirigia a ele muito mais do que anteriormente; tinha ademais consciência de contar com alguma coisa no culto, tomava nele uma parte mais ativa pelo canto e pela oração em voz alta. Pouco a pouco o latim dava lugar definitivamente ao alemão.
 
Tudo isto não vos faz lembrar de nada? Lutero se inquieta igualmente em criar novos cânticos para substituir “todos os estribilhos da papistaria”; as reformas tomam sempre um ar de revolução cultural.
 
No novo “ordo”, a parte mais antiga do Canon romano, que remonta à idade apostólica, foi remanejada para aproximá-la da fórmula consecratória luterana, com um acréscimo e uma supressão. A tradução francesa a extrapolou alterando a significação das palavras “pro multis”. Em lugar de “meu sangue... que será derramado por vós e por um grande número”, nós lemos: “que será derramado por vós e pela multidão”. O que não significa a mesma coisa e que teologicamente não é neutro.
 
Vós pudestes notar que a maior parte dos padres pronuncia hoje sem parar a parte principal do Canon que começa por “Na véspera de sua paixão ele tomou o pão em suas santas e veneráveis mãos...” sem fazer a pausa incluída pela rubrica do missal romano: “Segurando com as duas mãos a hóstia entre o indicador e o polegar ele pronuncia as palavras da Consagração em voz baixa mas distinta e atentamente sobre a hóstia.” O tom muda, ele se torna intimativo, as cinco palavras “Hoc est enim Corpus mesm” operam o milagre da transubstanciação, do mesmo modo que as que são ditas para a consagração do vinho. O novo missal convida o celebrante a manter o tom narrativo, como se ele procedesse, efetivamente, a um memorial. Sendo a criatividade de regra, vêem-se certos oficiantes recitar o seu texto mostrando a hóstia à roda ou mesmo partindo-a com ostentação para ajuntar o gesto às palavras e ilustrar melhor a sua narração. Tendo sido supressas duas genuflexões dentre quatro, e omitindo-se por vezes as que restaram, tem-se o direito de se perguntar se o sacerdote possui mesmo o sentido de consagrar, supondo que tenha realmente a intenção de fazê-lo.
 
E então, de católicos perplexos vós vos tornais católicos inquietos: a missa à qual acabais de assistir era válida? A hóstia que recebestes era verdadeiramente o corpo de Cristo?
 
É um grave problema. Como pode o fiel julgar a respeito? Existem para a validez duma missa condições essenciais: a matéria, a forma, a intenção e o sacerdote validamente ordenado. Se se preenchem as condições, não se vê como se poderia deduzir a invalidade. As orações do ofertório, do Canon e da Comunhão do sacerdote são necessárias à integridade do sacrifício e do sacramento, mas não à sua validade. O cardeal Mindzenty, pronunciando “clandestinamente” na sua prisão as palavras da Consagração sobre um pouco de pão e de vinho para nutrir-se do corpo e do sangue de Nosso Senhor sem ser percebido pelos seus guardas efetuou certamente o sacrifício e o sacramento. Uma missa celebrada com os bolinhos com mel do bispo americano de que já falei é certamente inválida, como aquela em que as palavras consecratórias fossem gravemente alteradas ou mesmo omitidas. Eu não invento nada: chamou a atenção o caso dum celebrante que, tendo feito um tal uso da criatividade, muito simplesmente se esqueceu da Consagração. Mas como aquilatar a intenção do sacerdote? Que haja sempre menos missas válidas, à medida que a fé dos sacerdotes se corrompe e que eles não têm mais a intenção de fazer o que sempre fez a Igreja — pois a Igreja não pode mudar de intenção — é evidente.
 
A formação atual daqueles que são chamados seminaristas não os prepara para celebrar missas válidas. Não se lhes ensina mais a considerar o Santo Sacrifício como a obra essencial de sua vida sacerdotal.
 
De outra parte pode-se dizer sem nenhum exagero que a maior parte das missas, celebradas sem pedra d'ara, com utensílios vulgares, pão fermentado, introdução de palavras profanas no próprio corpo do Canon, etc., são sacrílegas e pervertem a fé ao mesmo tempo que a diminuem. A dessacralização é tal que estas missas podem chegar a perder seu caráter sobrenatural, o “mistério da fé”, para não serem mais do que atos de religião natural.
 
Vossa perplexidade assume talvez a forma seguinte: posso assistir a uma missa sacrílega mas que entretanto é válida, na falta de outra e para satisfazer à obrigação dominical? A resposta é simples: estas missas não podem ser objeto duma obrigação; devem-se-lhes aplicar as regras da teologia moral e do direito canônico no que concerne à participação ou à assistência a uma ação perigosa para a fé ou eventualmente sacrílega.
 
A nova missa, mesmo dita com piedade e no respeito às normas litúrgicas, cai sob o golpe das mesmas reservas, uma vez que ela está impregnada de espírito protestante. Ela traz em si um veneno prejudicial à fé. Posto isto, o católico francês de hoje reencontra as condições de prática religiosa que são as dos países de missão. Nestes, os habitantes de certas regiões não podem assistir à missa senão três ou quatro vezes por ano. Os fiéis de nosso país deveriam fazer o esforço de assistir uma vez por mês à missa de sempre, verdadeira fonte de graças e de santificação, num dos lugares onde ela continua a ser estimada.
 
Com efeito, eu devo na verdade dizer e afirmar sem medo de me enganar que a missa codificada por S. Pio V — e não inventada por ele como se dá a entender freqüentemente — exprime claramente estas três realidades: sacrifício, presença real e sacerdócio dos padres. Ela tem em conta também, como precisou o concílio de Trento, a natureza do homem, que tem necessidade de alguns auxílios exteriores para elevar-se à meditação das coisas divinas. Os usos estabelecidos não o foram ao acaso, não se pode atropelá-los ou aboli-los de modo súbito, impunemente. Quantos fiéis, quantos jovens sacerdotes, quantos bispos perderam a fé desde a adoção das reformas! Não se contrariam a fé e a natureza sem que elas se vinguem.
 
Mas justamente, afirmam-nos, o homem não é mais o mesmo que há um século atrás; sua natureza foi modificada pela civilização técnica na qual ele está imerso. Que absurdo! Os inovadores se acautelam bem de revelar aos fiéis o seu desejo de alinhamento com o protestantismo. Invocam um outro argumento: a mudança. Eis o que se explica na escola teológica noturna de Estrasburgo:
 
“Nós devemos reconhecer hoje que estamos em presença duma verdadeira mutação cultural. Uma certa maneira de celebrar o memorial do Senhor estava ligada a um universo religioso que não é mais o nosso.” Está dito em poucas palavras e tudo desaparece. É preciso recomeçar da estaca zero. Tais são os sofismas de que se servem para fazer-nos mudar a nossa fé. O que é um “universo religioso”? Seria melhor falar francamente e dizer: “uma religião que não é mais a nossa”.

 

  1. 1. Ação de tornar Deus propício.
  2. 2. Ação de obter as graças e as bênçãos divinas.

3. Missas ou quermesses?

Tenho debaixo dos olhos fotografias publicadas por jornais católicos e que representam a missa tal como ela é rezada com bastante freqüência. A respeito da primeira, eu tenho dificuldade em compreender de qual momento do Santo Sacrifício se trata. Atrás de uma mesa ordinária de madeira que não tem aspecto muito conveniente, sem qualquer toalha a cobri-la, dois personagens de paletó e gravata elevam ou apresentam, um deles um cálice, o outro um cibório. A legenda me diz que são sacerdotes, dos quais um é capelão federal da Ação católica. Do mesmo lado da mesa, junto do primeiro celebrante, duas moças de calças compridas; junto do segundo, dois rapazes de camisa esportiva. Uma guitarra está apoiada num tamborete.

Outra fotografia: a cena se passa no canto de um compartimento que poderia ser a sala de um centro de jovens. O padre está de pé, com um hábito branco de Taizé diante de um banco de vaqueiro que serve de altar; vê-se uma grande tigela de argila e um pequeno copo do mesmo material, bem como dois cotos de vela acesos. Cinco jovens vestidos de tailleurs estão sentados no chão, e um deles dedilha a guitarra.
 
Terceira foto, referente a um acontecimento ocorrido há alguns anos: a vigilância marítima de alguns ecologistas que queriam impedir as experiências atômicas francesas na ilhota de Mururoa. Há entre eles um sacerdote que celebra a missa na coberta do barco, em companhia de dois outros homens. Todos os três estão de short, apresentando-se um deles, de resto, com o peito nu. O padre ergue a hóstia, sem dúvida para a elevação. Ele não está nem de pé nem ajoelhado, mas sentado ou antes recostado numa super-estrutura da embarcação.
 
Um traço comum se depreende destas imagens escandalosas: a Eucaristia foi rebaixada ao nível dum ato corriqueiro, na vulgaridade do ambiente, dos instrumentos utilizados, das atitudes, dos trajes. Ora, as revistas ditas católicas, vendidas nos mostruários das igrejas não apresentam mais estas fotografias para criticar tais maneiras de proceder mas ao contrário, para recomendá-las. La Vie julga mesmo que isso não é suficiente. Utilizando, conforme o seu hábito, trechos de cartas de leitores para dizer o que ela pensa sem se comprometer, escreve: “A reforma litúrgica deveria ir mais longe... As repetições desnecessárias, as fórmulas sempre repisadas, toda esta ordenação freia uma verdadeira criatividade.” O que deveria ser a missa? O seguinte: “Nossos problemas são múltiplos, nossas dificuldades crescem e a Igreja parece estar ausente. Freqüentemente se sai da missa enfadado; há como um deslocamento entre nossa vida, nossas preocupações do momento, e o que se nos propõe a viver no domingo.”
 
Certamente se sai enfadado duma missa que se esforçou em descer ao nível dos homens em lugar de elevá-los para Deus e que mal compreendida, não permite superar os “problemas”. O encorajamento a ir ainda mais longe traduz uma vontade deliberada de destruir o sagrado. Despoja-se assim o cristão de alguma coisa que lhe é necessária, à qual ele aspira, pois é levado a honrar e a reverenciar tudo o que tem uma relação com Deus. Quanto mais a matéria do Sacrifício destinada a tornar-se o Seu corpo e o Seu sangue! Porque confeccionar hóstias cinzentas ou marrons deixando uma parte de sua sêmea? Quer-se fazer esquecer a expressão supressa no novo ofertório: hanc immaculatam hostiam, esta hóstia imaculada?
 
Não obstante esta não é senão uma inovação menor. Ouve-se falar freqüentemente da consagração de pedaços de pão comum, fermentado, em lugar do trigo puro prescrito e cujo emprego exclusivo foi ainda relembrado recentemente na instrução Inaestimabile donum. Estando todos os limites transpostos, viu-se mesmo um bispo americano recomendar a confecção de bolinhas com leite, ovos, levedura, mel e margarina. A dessacralização se estende às pessoas consagradas ao serviço de Deus, com o desaparecimento do traje eclesiástico para os sacerdotes e as religiosas, o uso apenas dos nomes próprios, o tratamento por tu, o modo de vida secularizado em nome dum novo princípio e não, como se tenta fazer crer, por necessidades práticas. Aduzo, como prova disto, estas religiosas que abandonaram o seu claustro para morar em apartamentos alugados em cidades, fazendo assim uma dupla despesa, que deixam o véu e devem arcar com os gastos em idas regulares ao cabeleireiro.
 
A perda do sagrado conduz também ao sacrilégio. Um jornal do oeste da França nos informa que o concurso nacional de balizas se realizou, em 1980, na Vendeia. Houve uma missa durante a qual as balizas dançaram, distribuindo algumas delas, em seguida, a comunhão. E o que mais é, a cerimônia foi coroada com uma dança em roda, da qual participou o celebrante com paramentos sacerdotais. Não tenho a intenção de estabelecer aqui um catálogo dos abusos que se encontram, mas de dar alguns exemplos mostrando porque os católicos de hoje têm toda a razão de estarem perplexos e mesmo escandalizados. Não revelo nenhum segredo, a própria televisão se encarrega de difundir nos lares, durante a emissão de domingo de manhã, a desenvoltura inadmissível que bispos ostentam publicamente em relação ao Corpo de Cristo, como nesta missa televisionada de 22 de novembro de 1981, na qual o cibório foi substituído por cestos que os fiéis passavam uns para os outros e que acabaram por serem postos no chão com o que restava das Sagradas Espécies.
 
Em Poitiers, na Sexta-feira Santa do mesmo ano, uma concelebração com grande aparato consistiu em consagrar promiscuamente pães e pichéis de vinho sobre mesas aonde cada um se vinha servir.
 
Os concertos de música profana organizados nas igrejas são agora generalizados. Aceita-se mesmo emprestar os lugares de culto para audições de música rock, com todos os excessos que elas acarretam habitualmente. Igrejas e catedrais foram entregues à orgia, à droga, às imundícies de toda a espécie e não é o clero local que efetuou cerimônias expiatórias, mas grupos de fiéis justamente revoltados com estes escândalos. Como é que os bispos e padres que os favoreceram não receiam atrair sobre si e sobre o conjunto de seu povo a maldição divina? Ela apareceu já na esterilidade que castiga as suas obras. Tudo se perde, se desorganiza porque o Santo Sacrifício da Missa, profanado como está, não dá mais a graça nem mais a transmite.
 
O menosprezo da presença real de Cristo na Eucaristia é o fato mais flagrante pelo qual se exprime o espírito novo, que não é mais católico. Sem chegar até os excessos espalhafatosos de que eu acabo de falar, é todos os dias que isto se verifica. O concílio de Trento explicitou sem dúvida possível que Nosso Senhor está presente nas menores partículas da hóstia consagrada. Sendo assim, que pensar da comunhão na mão?
 
Quando se serve duma patena, mesmo se as comunhões são pouco numerosas, nela ficam sempre partículas. Por conseguinte, estas partículas ficam agora nas mãos dos fiéis. Em vista disto a fé se abala em muitas pessoas, sobretudo nas crianças.
 
A nova maneira não pode ter senão uma explicação: se se vem à missa para partir o pão da amizade, da refeição comunitária, da fé comum, então é normal que não se tomem precauções excessivas. Se a Eucaristia é um símbolo materializando a simples lembrança de um acontecimento passado, a presença espiritual de Nosso Senhor, é inteiramente lógico que haja pouca preocupação com as migalhas que podem cair no chão. Mas se se trata da presença do próprio Deus, de nosso Criador, como o quer a fé da Igreja, como compreender que se admita uma tal prática e até que se encoraje, a despeito de documentos romanos bem recentes ainda?
 
A idéia que se esforça por inculcar assim é uma idéia protestante contra a qual se rebelam os católicos ainda não contaminados. Para melhor impô-la, obrigam-se os fiéis a comungar de pé.
 
É conveniente que se vá receber sem o menor sinal de respeito ou de consolação, a Cristo diante do qual, como diz São Paulo, se dobra todo o joelho no céu, na terra e nos infernos? Muitos sacerdotes não se ajoelham mais diante da Sagrada Eucaristia; o novo rito da missa os encoraja a isso. Para tal não vejo senão duas razões possíveis: ou um imenso orgulho que nos faz tratar a Deus como se fôssemos seus iguais ou a certeza de que Ele não está realmente na Eucaristia.
 
Estou movendo um processo de intenção contra a pretensa “Igreja conciliar”? Não, eu nada invento. Escutai como se exprime o decano da faculdade de teologia de Estrasburgo:
 
“Fala-se também da presença dum orador, dum ator, designando com isto uma qualidade diferente de um simples “estar lá” topográfico. Enfim qualquer um pode estar presente por uma ação simbólica que não realiza fisicamente, mas que outros efetuam por fidelidade criadora à sua intenção profunda. Por exemplo, o festival de Bayreuth realiza, sem dúvida, uma presença de Ricardo Wagner, que é bem superior em intensidade àquela que podem manifestar obras ou concertos ocasionais consagrados ao músico. É nesta última perspectiva que convém situar a presença eucarística de Cristo.”
 
Comparar a missa ao festival de Bayreuth! Não, decididamente, não estamos de acordo nem nas palavras nem na música.

 

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