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Category: Pe. Hervé Gresland, FSSPXConteúdo sindicalizado

A luta de São Pio X contra o modernismo

Pe. Hervé Gresland, FSSPX

 

Louis Jugnet expõe do seguinte modo a situação que São Pio X encontrou ao subir na cátedra de Pedro, em 4 de agosto de 1903:

Hoje em dia todos sabem a que ponto o fim do pontificado de Leão XIII, apesar da sua doutrina tão magnificamente ilustrada, foi marcado pela eclosão de ideias falsas na Igreja, na Alemanha, na França, na Inglaterra e na Itália. Basta ler as Memórias de Loisy para ver o quanto a filosofia, a teologia, a história, a exegese, a disciplina eclesiástica e o pensamento político-social estavam impregnados dos erros da moda. Porém, graças ao que Loisy chamou, com um eufemismo divertido, de ´um forte movimento de opinião e de verdade´, designando assim grupos de pressão muito influentes (São Pio X falará mais tarde de “clandestinum foedus[1]), possuindo ramificações por toda parte, nos seminários, nas faculdades católicas, no Episcopado e mesmo em alguns círculos da Cúria, seria quase impossível de obter do Magistério romano uma medida minimamente eficaz.”[2]

Esta apresentação nos permite compreender o papel capital que São Pio X desempenhou na ação contra o modernismo. Em face deste erro multiforme, a primeira medida do seu pontificado foi a condenação, já no final de 1903, das principais obras do Pe. Alfred Loisyt, um dos chefes de fileira do modernismo.

Em 1907, outras medidas mais genéricas vieram completar essa ação. Em 15 de abril de 1907, em uma alocução consistorial, o papa declarou que os que mais devem ser temidos são os que, dentro da Igreja, professam “erros monstruosos”.

No dia 3 de julho de 1907, a Sagrada Congregação do Santo Ofício publicou o decreto Lamentabili condenando 65 proposições[3].

 

A Encíclica Pascendi

No dia 8 de setembro do mesmo ano, São Pio X promulgou a Encíclica Pascendi pela qual desmascarou e condenou com força e clareza o modernismo. Essa encíclica surpreendeu não apenas os modernistas que trabalhavam às ocultas para espalhar as suas ideias, mas também muitos católicos adormecidos que não haviam percebido de modo algum o mal profundo que ameaçava a Igreja e a doutrina católica. Essa encíclica foi um clarão dissipando as trevas.

Desde as primeiras palavras, São Pio X indicou que seu primeiro dever de papa é o de “guardar com todo o desvelo o depósito da fé”. E continou dizendo que a razão que o levou a se pronunciar sem demoras é que “os partidários do erro já não devem ser procurados entre os inimigos declarados; mas, o que é muito para sentir e recear, eles se ocultam no próprio seio da Igreja.”[4]

Os modernistas não são apenas inimigos da Igreja, mas os seus piores inimigos, diz o papa, pois agem desde o interior da Igreja. Inicialmente, São Pio X usou da paciência e da mansidão para tentar reconduzi-los ao reto caminho, mas foi em vão. Agora, ele os denuncia publicamente: “Há, pois, um dever de quebrar o silêncio, que agora seria culpável. É hora de tornar bem conhecidos à Igreja esses homens tão mal disfarçados.”

A Encíclica expóe longamente as doutrinas modernistas e as analisa para demonstrar o laço lógico que há entre elas; demonstra que o modernismo constitui um sistema bem organizado, e que as partes são solidárias. A Encíclica decompõe os modernistas em diferentes personagens[5] a fim de passar em revista, uma após a outra, as idéias que professam. Ela remonta aos princípios errôneos na origem deste erro: se o modernismo é um erro religioso, sua raiz profunda é uma filosofia falsa. Esta é a fonte envenenada da qual tudo decorre, e é muito normal que assim seja, pois, no progresso do espírito humano – seja consciente ou inconsciente – tudo começa pela filosofia e depende dela. O papa começa, portanto, pela exposição do filósofo modernista.

 

O filósofo modernista

Os modernistas estabelecem como base do seu sistema o que chamamos de agnosticismo, que consiste no seguinte: só podemos conhecer as coisas aparentes, perceptíveis aos nossos sentidos; nossa razão não pode conhecer nada para além disso, não pode estar certa de uma verdade que ultrapassa o domínio dos sentidos, não pode possuir certeza intelectual. As consequências são imensas: a inteligência não pode conhecer nada sobre Deus, nem mesmo a sua existência: Deus é incognoscível. Ela não pode conhecer nada tampouco de uma revelação que Deus nos teria dado, nem dos motivos de credibilidade da fé.

Então, como o homem pode conhecer Deus e a religião? Posto que não pode lhes encontrar fora de si mesmo, todo acesso lhe estando vedado desse lado, ele vai encontrar-lhes em si mesmo. Eis a segunda face do modernismo, o seu segundo princípio, que chamamos de imanentismo. Isso quer dizer que a explicação da religião encontra-se no homem, mais precisamente, na vida do homem: “Em consequência, como o objeto da religião é Deus, devemos concluir que a fé, princípio e base de toda a religião, se deve fundar em um sentimento, nascido da necessidade da divindade”. “O sentimento religioso, que por imanência vital surge dos esconderijos da subconsciência, é pois o gérmen de toda a religião”, inclusive da religião católica. Esse sentimento que aparece na consciência é a “revelação” e, ao mesmo tempo, aquilo que os modernistas chamam de “fé”. Vê-se a importância fundamental do sentimento interior, da experiência individual, para os modernistas.

Na doutrina católica, o objeto da fé, o seu conteúdo, é exterior a nós. No modernismo, a fé vem do coração do homem, do seu foro interno. Somos nós que fazemos a fé, que forjamos aquilo em que cremos. A fé é, antes de mais nada, “vivida”; é preciso “partir da vida”, isso é uma verdadeiro lugar-comum na Igreja nos últimos 50 anos.

Assim, o modernismo não crê mais nas verdades contidas no Credo, mas produz sua própria opinião pessoal em função do que descobre e sente: “Para mim, Deus é isso ou aquilo, Jesus Cristo é isso ou aquilo”. A fé torna-se puramente subjetiva, e toda afirmação da realidade sobrenatural colide com esse muro subjetivo: “Isso é verdade... para você. Portanto, creia no que quiser, mas não queira impô-lo aos demais.”

 

O teólogo modernista

Posto que o modernismo coloca a fé (ou aquilo que chama de “fé”) na experiência vivida do divino, muitas consequências se seguem em todos os domínios: o conteúdo da fé deve ser relativizado, assim como a teologia.

A fé reside no sentimento religioso, mas o homem possui uma inteligência que quer exercer o seu papel de reflexão, é para ela uma necessidade natural. Por meio da sua inteligência, o crente vai trabalhar a sua fé, vai pensá-la, especificá-la, traduzir em formulas o que se passa na sua consciência: esses serão os dogmas, que buscam exprimir a fé de maneira mais ou menos adequada. Os dogmas são, pois, obra humana.

Se o sentimento interior do homem muda, se a consciência evolui, a fé que é o seu produto também evolui, e é necessário modificar o dogma para adaptá-lo ao novo pensamento. Como os sentimentos religiosos que traduzem, os dogmas devem, portanto, ser vivos, eles podem e devem evoluir. Daí esse aspecto de permanente construção a partir do “vivenciado”, de perpétua reinterpretação, que não poupa até mesmo os dogmas.

Do mesmo modo, não há mais verdades estabelecidas, definitivas, às quais o homem tenha de aderir, pois os modernistas não as querem. A verdade deve viver, e quem diz vida diz movimento: “A verdade não é mais imutável que o homem, pois que evolui com ele, nele e por ele.”[6] Permanece o núcleo, todo o resto evolui ao sabor dos tempos, das culturas, das circunstâncias históricas, da experiência e da vivência do “povo de Deus”. Finalmente, o dogma não se reveste mais de grande importância. O modernismo é, portanto, um evolucionismo radical.

 

Consequências desses princípios

Apliquemos esses princípios a diferentes pontos para mensurar a sua repercussão:

- A tradição católica transmite o objeto da fé; a tradição modernista se torna a transmissão da experiência da fé, daquilo que os crentes experimentam nas suas vidas. Ela é viva -- repetem sem cessar – e, portanto, evolutiva.

- O modernismo possui uma “fé” que, ao invés de se fundar no Deus que se revela, enraíza-se em um terreno puramente humano. Posto que a fé provém do sentimento religioso, “chega-se a afirmar que a nossa santíssima religião, no homem Jesus Cristo assim como em nós, é fruto inteiramente espontâneo da natureza. Em verdade, há algo mais capaz de destruir toda a ordem sobrenatural?”

- Esse naturalismo tem por consequência o indiferentismo religioso. Com efeito, a que título certas experiências religiosas seriam mais verdadeiras ou melhores do que outras? Todos os sentimentos religiosos são respeitáveis, dignos de serem acolhidos e, portanto, todas as religiões são válidas. O ecumenismo é uma consequência do imanentismo. Não há uma verdade, mas tantas quantas pessoas. É a fantasia subjetiva do homem no lugar da realidade objetiva de Deus.

- Para os modernistas, a Igreja, os sacramentos etc., são fruto de uma construção progressiva[7]. A inspiração das Sagradas Escrituras reduz-se a uma experiência pessoal. Os livros santos são compêndios de experiências religiosas. Os Evangelhos não são relatos de acontecimentos históricos por testemunhas oculares: possuem um fundo histórico, mas são em grande parte subjetivos, pois são o eco da “fé” cristã. Eles foram escritos para exprimir o que os cristãos das primeiras gerações criam de Jesus e queriam comunicar aos demais. Os sacramentos resultam de uma necessidade sensível dos crentes e são puros símbolos para alimentar nossa fé.

Cada crente continua, por sua vez, a elaborar a doutrina cristã, cada um acrescentando algo por si mesmo. De todos esses elementos individuais se desprende uma síntese coletiva. Mas esse edifício jamais será arrematado, e sempre deverá ser reconstruído. O magistério da Igreja é apenas o interprete de um movimento cujos resultados ele recolhe.

Fé, dogmas, Igreja, culto... tudo isso provém do sentimento, da experiência “vital”, necessariamente mutável e sujeita à evolução. Compreende-se que São Pio X chame o modernismo de “cloaca de todas as heresias”; ele utilizará muitas vezes essa expressão que revela o seu pensamento profundo[8].

Os modernistas estavam dentro da Igreja e pretendiam nela continuar. Sem dúvida, é essa a principal novidade dessa heresia. Os heresiarcas precedentes terminavam por abandonar a Igreja abertamente; continuavam a ataca-la, mas desde o exterior. O principal equívoco dos modernistas é pretender permanecer em uma Igreja com a qual estão em desacordo, com o intuito de mudá-la aos poucos, de fazer com que ela evolua desde o interior.

Os modernistas não são inimigos declarados, são inimigos de dentro. É essa uma característica essencial do modernismo: um modernista que abandona a Igreja não é mais um modernista. É talvez um racionalista, um protestante liberal... mas um modernista, não.

 

Os remédios

A salvação das almas estava em jogo, por isso, São Pio X não se contenta em demonstrar o erro: na última parte da sua encíclica, lança uma verdadeira campanha para impedir o modernismo de se estender pela Igreja, ele traça o plano de uma reconquista contra os modernistas. Percebe-se o homem de governo, que sabe o que quer e que lança mão de meios eficazes. Manda os bispos adotarem medidas imediatas contra os modernistas e suas doutrinas.

Como o modernismo é, na sua origem, um erro filosófico, o primeiro remédio é de ordem filosófica: São Pio X impõe que a filosofia de Santo Tomás de Aquino seja a base dos estudos.

Para a Santa Igreja não é possível submeter os seus filhos a autoridades manchadas de modernismo: São Pio X ordena que sejam excluídos das cátedras de ensino, nos seminários e universidades católicas, todos aqueles que estão imbuídos de modernismo, ou que favorecem esses erros. Os modernistas também devem ser excluídos do sacerdócio.

Os bispos impedirão a publicação e a leitura de livros ruins e instituirão conselhos de vigilância que terão “a incumbência de ver se, e de que modo, os novos erros se ampliam e se propagam.”

 

A continuação do pontificado

No dia 18 de novembro de 1907, São Pio X publicou um motu próprio que ajunta a pena de excomunhão aos contraditores do Decreto Lamentabili e da Encíclica Pascendi

Depois, em 1 de setembro de 1910, ele endereçou a toda a Igreja um motu próprio[9] “estabelecendo leis para repelir o perigo do modernismo.” Neste documento, o papa não hesita em afirmar que, apesar das condenações precedentes, os modernistas “não cessaram de arregimentar e filiar em uma associação secreta novos adeptos, e inocular neles, nas veias da sociedade cristã, o veneno das suas opiniões.” O perigo é muito atual: no interior mesmo da Igreja, notadamente entre o clero, os modernistas formaram uma sociedade mais ou menos fechada. O papa promulga, portanto, um juramento antimodernista, que deve ser prestado por todo o clero, ao menos antes de receber as ordens maiores, pelos professores e, de modo geral, por todos os padres que acedem a uma função[10].

O Santo Padre via longe, e sabia que muitos não o seguiam, pois os santos têm um amor pela verdade e uma detestação do erro que lhes são inspirados por Deus, mas que os outros homens compreendem mal. Ao bispo de Bergamo, confidenciava: “Alguns me acusam de ser pessimista e de ver o mal em toda parte. Mas o mal latente é muito mais grave e extenso do que se pode imaginar, e jamais haverá vigilância o bastante para descobri-lo”[11]. No dia 27 de maio de 1914, escreveu aos novos cardeais que acabava de introduzir no Sacro Colégio: “Entre tantos perigos, e em toda ocasião, não deixei de fazer com que minha voz fosse ouvida a fim de admoestar os que estão em erro, assinalar os danos e traçar aos católicos o caminho a seguir. Mas minha palavra não foi sempre, nem por todos, bem escutada ou interpretada, por mais clara e precisa que tenha sido.”

 

O modernismo depois de Pascendi

A publicação da Encíclica Pascendi representou um formidável golpe ao desenvolvimento do modernismo. Os leigos de boa fé que haviam sido atraídos para as idéias modernistas, sem verdadeiramente as compreender, rejeitaram os erros. A imprensa católica, por sua vez, denunciou o modernismo. Uma tal energia e uma tal constância no combate contra o erro enfraqueceram consideravelmente a corrente modernista. No momento da morte de São Pio X, em 1914, essas diversas medidas tinham começado a dar fruto.

Os modernistas, séria e eficazmente combatidos pelas autoridades romanas e por numerosos bispos, deram continuidade, no entanto, à sua ação. Souberam abaixar a cabeça para reergue-la progressivamente quando a repressão mostrou-se menos firme, o que veio a acontecer após a morte de São Pio X: os erros condenados recobraram ímpeto. A rede modernista se comportava como uma corrente subterrânea reaparecendo com força nos anos 1930 e 1940, para triunfar a partir do Concílio Vaticano II.

Hoje, o modernismo segue mais do que nunca vivo na Igreja. Esses erros reinam por toda parte, e os modernistas ou neo-modernistas detém todas as alavancas de comando. A encíclica de São Pio X não perdeu em nada o seu valor: esse texto que foi escrito há cem anos parece ter sido escrito para a Igreja de hoje, tal é a sua atualidade. Poder-se-ia dizer que São Pio X foi um verdadeiro profeta para os nossos tempos.

Esse papa foi o homem chamado por Deus para o papel capital de defender a fé, ameaçada pela mais terrível das heresias. A inteligência esclarecida pela luz da graça, mediu a gravidade do perigo que a Igreja corria, e lutou contra a heresia com uma coragem digna dos maiores pontífices de outrora. Como declarou Pio XII, foi a santidade que lhe deu a força de ser um campeão da fé: “A lucidez e a firmeza com as quais Pio X conduziu a luta vitoriosa contra os erros do modernismo, atestam a que grau heroico a virtude da fé queimava no seu coração de santo (...) Teve a consciência clara de lutar pela mais santa das causas, que é a de Deus e das almas”[12]

É com palavras do mesmo Pio XII que rogaremos a São Pio X guardar-nos firmes na fé:

“Ó Santo Pio X, pontífice de fé íntegra e de intrépida firmeza, volvei vosso olhar para a Santa Igreja, que tanto amastes. Obtende para ela a integridade e a constância no meio das dificuldades e perseguições de nosso tempo.”[13]

 

(Le Rocher, 90. Tradução: Permanência)

 


[1] Associação secreta.

[2] Comment combattre une hérésie, Itinéraires, 1964, pp. 126-127.

[3] Reconhecemos [nessas proposições] grandes clássicos da teologia e da catequese atuais. Damos dois exemplos: “Pode conceder-se que Cristo, tal como história o representa, é muito inferior ao Cristo, objeto da fé.” (proposição 29); “A ressurreição do Salvador não é propriamente um fato de ordem histórica, mas de ordem meramente sobrenatural que não foi demostrado, nem é demonstrável, e que a consciência cristã insensivelmente deduziu de outros fatos.” (proposição 36).

[4] Citações tiradas de Pascendi.

[5] O filósofo, o crente, o teólogo, o historiador, o crítico, o apologista e o reformador.

[6] Lamentabili, proposição no. 58.

[7] Lamentabili, proposição 54: “Os dogmas, os sacramentos e a hierarquia, tanto em sua noção quanto em sua realidade, não passam de interpretações e evoluções do pensamento cristão que, por meio de incrementos externos, desenvolveram e aperfeiçoaram um pequeno germe que existia em estado latente no Evangelho”.

[8] “Certo é que se alguém se propusesse fazer, por assim dizer, o destilado de todos os erros que a respeito da fé até hoje se produziram, nunca poderia chegar a resultado mais completo do que aquele que os modernistas alcançaram” (Pascendi).

[9] Sacrorum antistitum.

[10] A obrigação de prestar esse juramento foi suprimida após o Concílio Vaticano II, em 1967.

[11] Dal-Gal, Pie X, p. 306.

[12] Discurso por ocasião da canonização, 29 de maio de 1954.

[13] Idem.

Santidade e ação sobrenatural de São Pio X

Pe. Hervé Gresland,FSSPX

Nesse ano do centenário [o artigo é de 2014 - N. da P.], a fim de nos remetermos à escola da pura e luminosa figura de Pio X, estudemos um pouco a santidade do único papa canonizado desde o século XVI. A atualidade nos obriga a começar por emitir sérias reservas no que diz respeito às canonizações recentes. Após as pretensas “canonizações” dos Papas João XXIII e João Paulo II, o presente estudo nos permitirá recordarmos o que é a verdadeira santidade.

 

O programa do seu pontificado

O filho do agente comunal de Riese conheceu uma “prodigiosa ascensão desde a pequenez da aldeia natal e desde a humildade do nascimento aos cumes da grandeza e da glória sobre a terra e no céu” 1;  foi-lhe dado conhecer a vida da Igreja de ponta a ponta, se assim podemos dizer, visto que foi, sucessivamente, vigário, cura, cônego, professor, chanceler, bispo, cardeal e, finalmente, papa. Em todas essas funções, pôde demonstrar a sua grande alma, em particular no papado: o povo via nele um santo, e dizia: “Il Papa Sarto, il Papa santo.”2

Na sua primeira encíclica3, São Pio X anunciou o programa do seu pontificado, declarando que seu único fim era o de “instaurare omnia in Christo”, ou seja, restaurar tudo em Cristo, reconduzir tudo à unidade de Cristo. Ele retornará incessantemente a essa idéia: os ensinamentos e os atos do seu pontificado resumem-se inteiramente nessa firme vontade de reconduzir tudo a Cristo, para render a Cristo o primado que lhe pertence de direito. Mas, como realizar esse programa? Pelos padres, pois eles são o meio instituído por Jesus Cristo para estabelecer o seu reino. “Para fazer Jesus Cristo reinar sobre o mundo, nada é mais necessário do que a santidade do clero, a fim de que, pelo exemplo, pela palavra e pela ciência, seja o guia dos fiéis que, conforme um antigo provérbio, sempre serão tais como forem os padres: Sicut sacerdos, sic populus”4.

“Ele via no sacerdócio, com razão, o fundamento indispensável para a realização do seu programa de restauração de todas as coisas em Cristo (...). Essa convicção era tão viva nele, que, quando foi diretor espiritual do seminário de Treviso, ou bispo de Mântua, ou ainda patriarca de Veneza, estava como que obcecado por essa ideia” 5. Pode-se escrever que “o aspecto mais evidente da santidade de Pio X era, antes de tudo, sacerdotal. Ele teve realmente o gênio do sacerdócio” 6.

Os padres foram, portanto, o objeto privilegiado das suas solicitudes, sobretudo porque compreendia a ameaça que o mundo moderno representava especialmente para o padre (pois o demônio sabe bem onde atacar para destruir a Igreja). Bispo, zelava pessoalmente pela formação dos seminaristas. Papa, desde o início do seu pontificado, recomendou instantemente aos bispos de pôr todo o seu empenho em formar Cristo naqueles cuja missão é a de formar Cristo nos outros: “Se assim é, Veneráveis Irmãos, quão grande não deve ser a vossa solicitude para formar o clero na santidade! Não há negócio que não deva ceder o passo a este. E a consequência é que o melhor e o principal do vosso zelo deve aplicar-se aos vossos Seminários” 7. Ele demanda que, nos seminários, zele-se pela integridade da doutrina: cuidado com “uma certa ciência nova que se enfeita com a máscara da verdade e onde se não respira o perfume de Jesus Cristo; ciência mendaz que, com o favor de argumentos falazes e pérfidos, se esforça por abrir caminho aos erros do racionalismo ou do semi-racionalismo”8.

O documento que revela melhor a sua alma de padre, pai dos padres, é sua comovente exortação Haerent animo, que ainda guarda toda a sua atualidade, pois o sacerdócio permanece e permanecerá sendo aquilo que é desde que Jesus Cristo o instituiu. O papa recorda aos bispos o seu dever primordial de se ocupar dos padres e, aos padres mesmos, a necessidade de trabalharem para a sua própria santificação, de modo a se assemelharem mais e mais com Jesus, o Padre eterno. O que é mais necessário ao padre é a santidade, pois a Igreja tem necessidade, sobretudo, de padres verdadeiramente santos, de padres que rezam, que oram: isso é algo de importância capital. Podemos constatar a mediocridade espiritual e a fragilidade de um padre sem oração. Um padre sem fervor tem pouca eficácia apostólica. Ao contrário, um padre verdadeiramente santo possui uma eficácia impressionante.

Paralelo entre São Pio X e Dom Marcel Lefebvre

É muito interessante constatar que encontramos o mesmo pensamento no nosso fundador, Dom Marcel Lefebvre. Para ele, o diagnóstico era claro: “A causa fundamental da crise é o embotamento do sacerdócio” 9. Ele indica o remédio, que é o seu pensamento profundo, no prefácio do seu Itinerário espiritual:

Diante da degradação progressiva do ideal sacerdotal, transmitir, em toda a sua pureza doutrinal, em toda a sua caridade missionária, o sacerdócio católico de Nosso Senhor Jesus Cristo, tal como Ele o transmitiu aos seus apóstolos e tal como a Igreja romana o transmitiu até meados do século XX”.

“Como realizar este que me parecia então o único caminho para a renovação da Igreja e da Cristandade? (...) O desejo de fundar as vias da verdadeira santificação do padre nos princípios fundamentais da doutrina católica e da santificação católica e sacerdotal sempre me absorveu (...) É pela razão do reinado de Nosso Senhor não estar mais no centro das preocupações e das atividades daqueles que são nossos “praepositi” que eles perdem o senso de Deus e do sacerdócio católico, e que nós não os podemos mais seguir”.

Percebemos que nosso fundador está perfeitamente alinhado com São Pio X. Para ambos, o fim a ser perseguido é o reinado de Nosso Senhor, que deve estar no “centro das nossas preocupações e das nossas atividades”; o caminho para atingi-lo é o autêntico sacerdócio católico, a santidade dos padres. Esse parentesco das visões de São Pio X e de Dom Marcel Lefebvre sobre o lugar central do padre é uma das razões que levaram o bispo a escolher o santo papa como patrono da sua Fraternidade: “A Fraternidade coloca-se sob o patrocínio de São Pio X, porque a preocupação primordial dessa santo papa foi a integridade do sacerdócio e a santidade que dele decorre” 10.

 

Uma ação impregnada do sobrenatural

Como todo bom papa, Pio X procurou santificar o rebanho que Jesus Cristo lhe confiou. Sua grandeza vinha de que ele mesmo estava repleto de vida sobrenatural, e seu pontificado não tinha outro fim que o de transmitir essa vida às almas. Ele recordou pela palavra e pelo exemplo que o primeiro dever de cada um é de tender à santidade: é sempre ao buscar a santidade na intimidade das almas que a Igreja encontra uma juventude renovada. O segredo da reforma estará sempre na união com Nosso Senhor pela oração, pelos sacramentos, pela fidelidade, pela mortificação. Ao invés de buscar inventar novas teorias, novas espiritualidades, ao sabor da fantasia de cada um, é preciso se aplicar a encontrar a santidade tal como a Igreja nos ensina na sua tradição e no exemplo dos seus santos. Não há santidade sem a graça; não há apostolado verdadeiro e eficaz sem vida interior, sem uma vida interior fundada na autêntica tradição espiritual da Igreja, isto é, à base de oração. Não poderia haver espiritualidade verdadeira onde falta o senso de adoração ou o espírito de sacrifício.

É a preocupação de ir às fontes da vida sobrenatural que levou São Pio X a conduzir o povo fiel à Eucaristia. Coube a ele ser, em nosso tempo, o papa da Santa Eucaristia. Se ele quis que os católicos vivessem mais desse sacramento, é que ele mesmo viveu intensamente dele. “A Eucaristia é o centro da fé”, dizia11, e sua fé ardente encontrava nela o seu alimento. Seus decretos sobre a comunhão das crianças representaram uma revolução na Igreja, a ponto de provocar algumas resistências. Ele “deu Jesus para as crianças e as crianças para Jesus” 12 e foi o promotor da Cruzada eucarística, suscitando assim santos no meio das crianças.

São Pio X conhecia a importância da beleza do culto para elevar as almas, em particular, a importância da música sagrada, pois a música tem um poder sobre as almas que as demais artes não tem: pode lhes rebaixar como pode lhes abrir as portas da contemplação. É por isso que ele restabeleceu o canto litúrgico na sua pureza e na sua primitiva beleza, foi o restaurador do canto gregoriano. O canto gregoriano é, a um tempo, arte popular e uma arte que nos introduz nos mais altos mistérios da fé pelo seu caráter sobrenatural. É o melhor educador da vida espiritual.

É preciso dizer, portanto, que, para São Pio X, importava sobretudo o conhecimento da doutrina católica, o ensino do catecismo, tanto aos adultos como às crianças. Por toda a sua vida deu a isso uma importância primordial, e sempre deu o exemplo: mesmo quando era papa, em certos domingos, após o almoço, ele mesmo comentava o evangelho do dia para os fiéis das paroquias de Roma. Por isso foi muito justamente chamado de papa da doutrina cristã.

 

A santidade de Pio X

Com relação aos santos de épocas mais distantes, cuja fisionomia mal conhecemos, quando conhecemos, temos a felicidade de possuir muitas fotografias de São Pio X. “Quando estudamos uma série de retratos desse grande papa nas diferentes idades da sua vida, ficamos impressionados com a harmonia cada vez mais radiante que deles depreende. É preciso que essa alma tenha sido constantemente fiel às inspirações do Espírito Santo para que emane dela um charme tão sobrenatural” 13. O rosto é enérgico e ponderado, com uma grande distinção. Os traços são amáveis, o olhar paternal e bom. Esse rosto irradia uma bondade envolvente e uma mansidão impregnada de força. Assim, a vida de Deus na alma se manifesta exteriormente.

O que caracteriza um santo são as virtudes, e as de Pio X foram, ao longo da sua vida, cada vez mais arrebatadoras. Seu espírito eminentemente sobrenatural vivia da fé, na dependência da Providência. Assim como nasceu em uma família modesta, quis viver e morrer pobre. Era a um tempo firme e doce, simples, afável e acessível a todos. Sua caridade foi atestada por uma quantidade de testemunhos que nos revelam um coração inesgotável, transbordando de amor pelo próximo.

A oração da sua festa ressalta duas qualidades em especial com que Deus o dotou “para defender a fé católica e reunir todas as coisas em Cristo”: uma sabedoria celeste e uma força apostólica, isto é, digna dos apóstolos. Detalhemos essas duas qualidades.

A sabedoria divina com que Deus o cumulou lhe deu a luz nas conjunturas mais difíceis. Ela se manifestava por “uma amplidão e uma clareza de vista que são próprias dos santos”. E que força de persuasão!

“A sua palavra era trovão, era espada, era bálsamo; comunicava-se intensamente a toda a Igreja e estendia-se muito ao longe com eficácia; atingia o irresistível vigor, não só pela incontestável substância do conteúdo, mas também pelo seu íntimo e penetrante calor. Sentia-se nela ferver a alma de um Pastor que vivia em Deus e de Deus, sem outro objetivo senão levar para Ele os seus cordeiros e as suas ovelhas.” 14

Como um bom pastor vigilante, que cuida do seu rebanho, praticou de maneira eminente e mesmo sublime as duas virtudes necessárias a todo aquele que governa: a prudência e a força. “o formidável furacão provocado pelos que negam a Cristo e pelos seus inimigos, soube demonstrar desde o princípio uma consumada experiência no manejo do leme da barca de Pedro”, declarou Pio XII15. A sabedoria do seu governo, que todos admiravam, mostrava que ele estava inspirado por Deus.

Ao mesmo tempo, o seu coração magnânimo lhe permitiu empreender numerosas reformas na Cúria romana, o direito canônico, o breviário... Diante da imensidade da tarefa, era preciso uma coragem e um zelo sobrenatural para se pôr a obra. Ele se mostrou intrépido na defesa da fé e da Igreja, e “demonstrou no seu espírito a indomável firmeza, a robustez viril, a grandeza da coragem, que são as prerrogativas dos Heróis da santidade.” 16

“Aos olhos do mundo moderno, viu-se surgir essa grande figura de doutor, de pai, de chefe. Esse santo monarca espantou pelo vigor extremo com que apoiou os direitos da verdade e da justiça, pela grandeza de alma que lhe permitiu afrontar o ódio dos homens para manter-se fiel a Deus, pela força que nele se unia à mansidão de uma caridade inextinguível.” 17

Seu equilíbrio, tanto na ordem natural como na sobrenatural fazem dele um papa modelo. É essa harmonia de virtudes no heroísmo que marca a verdadeira santidade, pois ela só pode ser encontrada numa estreita união com Deus. Entre os papas dos últimos séculos, não há nenhum que alcance tantos méritos e virtudes.

Que do céu a sua intercessão nos assegure a fé nesses tempos difíceis! Que seu exemplo suscite uma geração de padres que possuam todas as virtudes sacerdotais das quais ele deu um tão belo exemplo, e um devotamento sem reservas à Santa Igreja!

(Le Rocher, junho de 2014. Tradução: Permanência)

  1. 1. Pio XII, discurso para a beatificação de Pio X, 3 de junho de 1951.
  2. 2. Sarto era seu sobrenome.
  3. 3. Encíclica E supremi apostolatus, de 4 de outubro de 1903.
  4. 4. Carta ao Cardeal Respighi, vigário geral de Roma, 5 de maio de 1904.
  5. 5. Icilio Felici, Pie X, p. 82.
  6. 6. Nello Vian, Pio X, p. 223.
  7. 7. Encíclica E supremi apostolatus.
  8. 8. Idem.
  9. 9. Conferência de 12 de novembro de 1969 aos primeiros seminaristas da futura Fraternidade.
  10. 10. Dom Bernard Tissier de Mallerais, Marcel Lefebvre, une vie, p. 462.
  11. 11. Dom Bernard Tissier de Mallerais, Marcel Lefebvre, une vie, p. 462.
  12. 12. Pio XII, discurso para a beatificação, 3 de junho de 1951.
  13. 13. André Charlier, Itinéraires, novembro de 1964.
  14. 14. Pio XII, discurso de 3 de junho de 1951.
  15. 15. Idem.
  16. 16. Idem.
  17. 17. Nello Viana, Pie X, p. 166.

O canto gregoriano é, antes de tudo, oração

Pe. Hervé Gresland

 

Existem muitas missas compostas por vários músicos que são boa música, e que podemos chamar de música religiosa, pois possuem caráter religioso. O gregoriano, porém, não é uma “música religiosa” entre outras, mas, segundo a feliz fórmula de Dom Gajard1, é uma “oração cantada”. Aí está toda a diferença.

A alma que canta essa oração, ou que escuta esse canto num espírito de fé, é o contrário de um esteta. Quem concorda em abrir a sua alma para o mistério do cantochão, atinge o objetivo para o qual foi concebido, pois o gregoriano tem a vocação de nos abrir e nos conduzir ao reino do qual Nosso Senhor nos fala no Evangelho, que é o reino da graça.

 

O canto gregoriano ensina a rezar

Antes de tudo, esse canto é essencialmente oração. É verdadeiramente um canto “consagrado” 2, porque deve servir unicamente ao culto. O seu fim primeiro, com efeito, é o “sacrifício de louvor” da Igreja. Por ser feito e por voltar-se para Deus, coloca-nos de saída diante do nosso Criador numa atitude de oração. Esse canto faz com que nos voltemos para as realidades sobrenaturais e divinas. Ensina ao homem o senso do sagrado e da grandeza de Deus. Ele lhe ensina a rezar, a contemplar a Deus, a louvá-lo. Ele nos faz encontrar a Deus para podermos lhe falar de coração a coração. Suas melodias nos introduzem imediatamente numa atmosfera sobrenatural.

A maior parte das peças gregorianas são curtas, mas são capazes de impor desde logo uma atitude de fé, de admiração, de confiança, de adesão a Deus e a sua vontade – elas nos fazem atingir Deus diretamente. Elas conduzem à contemplação dos mistérios mesmos que revivem. Com efeito, a virtude essencial do nosso canto é a de ser capaz de conduzir e manter o nosso olhar (tanto quanto possível aqui embaixo) em algo de perfeitamente puro, em Deus, que habita uma luz inacessível. Esse canto é transparente ao espiritual, reflete um outro mundo, diz o que nenhuma outra música diz: fala à alma do invisível, dos mistérios divinos. Introduz-nos no mistério, no sagrado, abre-nos as mais altas realidades espirituais. É uma arte impregnada do sobrenatural.

O canto gregoriano ajuda e favoriza assim o recolhimento, a contemplação e inspira o bom gosto3. Dirige-se ao que há de mais profundo dentro da alma. É por isso que atrai as almas amantes da beleza e do sagrado. Traz consigo uma graça própria que é a de nos introduzir de modo único no coração do mistério, na contemplação.

Ordenado desde o início ao louvor de Deus, é igualmente um admirável fator de vida interior. Transforma a alma que se abandona à sua divina influência. Em um canto assim, a música é instrumento de vida, de vida sobrenatural. Como explicava Dom Gajard, “são os atos com os quais louvamos a Deus que nos santificam”4. Esse canto é um veículo da graça, e é por essa razão que podemos chamá-lo de um sacramental, e mesmo de um poderoso sacramental. Por meio dele, a Igreja procura à nossa alma uma santificação certa. Sim, o canto gregoriano é um meio de santificação.

Isso mostra que foi composto não apenas por grandes artistas, por homens de gênio, mas por homens cheios de luz sobrenatural, grandes contemplativos que tiraram a sua inspiração de um contato estreito com Deus e viviam intensamente do Criador. Essa música nasceu da oração, da contemplação, e ela alimenta a contemplação.

Auguste Le Guennant tinha razão ao definir o gregoriano como “a oração que se fez música” 5. Verdadeiramente, assim como se dizia dos quadros pintados por Fra Angélico, algumas melodias gregorianas parecem ter sido compostas de joelhos.

É nesse mesmo espírito de oração que o canto deve ser escutado ou cantado, como dizia o Papa Pio XII:

“visto que a voz de quem reza repete os cantos escritos por inspiração do Espírito Santo, que proclamam e exaltam a perfeitíssima grandeza de Deus, é ainda necessário que a essa voz se junte o movimento interior do nosso espírito para fazer nossos aqueles mesmos sentimentos com os quais nos elevamos ao céu, adoramos a santíssima Trindade e lhe rendemos os devidos louvores e ações de graças: ´Devemos salmodiar de modo que a nossa mente concorde com a nossa voz´6. Não se trata, pois, de uma recitação somente, ou de um canto que, embora perfeitíssimo segundo as leis da arte musical e as normas dos sagrados ritos, chegue apenas ao ouvido; mas sobretudo de uma elevação da nossa mente e da nossa alma a Deus”7.

 

Origens do canto gregoriano

Após evocar os compositores desse canto, será útil ao nosso propósito dizer algumas palavras sobre a sua história.

Em conformidade com práticas que remontam ao Antigo Testamento, o uso do canto litúrgico na Igreja remonta ao início. Numa celebre carta ao imperador Trajano, Plínio, o Jovem, governador da Bitínia, descreve os católicos como homens que “se reuniam habitualmente num dia fixo [o domingo], antes do amanhecer, para cantar entre eles um cântico a Cristo como a um Deus”. Os católicos eram assim definidos como aqueles que cantam louvores a Cristo.

Mas, de quando data o canto gregoriano? Nos livros de canto que possuímos, as datas das composições das peças do Kyriale (isto é, Kyrie, Gloria, Sanctus, Agnus Dei) é indicada, por exemplo, como do XIo ou XIIo século. Mas, para o próprio das missas, nada está indicado. Qual é a razão disso? A data de composição de cada peça é a dos manuscritos mais antigos conhecidos, quando os encontramos; mas as peças próprias de cada missa formam os manuscritos mais antigos que possuímos, remontando ao IXo século. Antes dessa data, não existiam manuscritos e os cantos eram decorados. Portanto, as peças do próprio da missa já existiam no IXo século, no império de Carlos Magno, tal como as cantamos atualmente.

Mas, na verdade, o canto gregoriano é anterior a isso. Foi de São Gregório Magno (papa de 590 a 604) que tirou o nome. Não porque o canto tenha sido obra desse papa, mas por ter ele desempenhado um papel muito importante na refundação do repertório litúrgico. “Ele recolheu cuidadosamente e dispôs com sabedoria tudo o que os antigos haviam transmitido”8. Sua obra foi, portanto, a de reunir e ordenar “o tesouro das melodias sacras, a herança e a memória dos Padres.”9

“Do ponto de vista litúrgico e musical, o período criador estende-se do Vo ao VIIo século; no VIIIo século já havia se encerrado”10. Foi Carlos Magno que estendeu esse canto a todo o seu império: “a liturgia romana e o canto romano entraram na Gália franca sob Pepino, em 754, e foram impostos por Carlos Magno a todo o Império.”11 A perfeição desse canto era tamanha, a obra tão equilibrada e dotada de tal variedade, que ninguém ousou, a partir de então, retoca-la. Esse canto tornou-se a língua litúrgica de toda a Idade Média cristã.

O cantochão não foi uma obra artificial, uma construção que surgiu pronta num belo dia, como o esperanto, saída do cérebro de um intelectual. Suas origens ainda são misteriosas, mas os musicólogos pensam que partiu das ladainhas da liturgia sinagogal, das modas da música grega, dos velhos cantos celtas, gauleses ou romanos. Com esses elementos diversos, foi formado e lentamente elaborado por homens que lhe transmitiram sua marca própria: esses homens são os católicos. Quando esses homens receberam a revelação de que foram redimidos, reintroduzidos na família de Deus, feitos irmãos dos anjos pela graça e concidadãos dos santos, o seu canto precisou exprimir algo novo, algo que jamais havia sido expresso.

Canções de amor, de sofrimento ou marchas militares sempre foram inventadas, canções que exprimem a alegria ou o sentimento nacional -- ao menos é o que sabia fazer no passado, como testemunham muitas e admiráveis canções populares. Mas há uma coisa de que os cantos da terra não nos falam, a saber: da Beleza e da Bondade absoluta, de Deus. Se a alma iluminada pela fé conhece e saboreia o mistério da sua elevação à ordem sobrenatural, então, o seu canto não se assemelha a nenhum outro. O gregoriano não se assemelha a nenhum dos cantos de que lançou mão. A alma e a sensibilidade católica  os transformaram e transfiguraram para que pudessem dizer coisas que jamais foram ditas, e fazer com que servissem a um propósito que ultrapassa a ordem natural12.

Um pequeno número de exceções à parte, essas melodias são anônimas. Os nomes dos compositores não chegaram até nós. Poderíamos ver nisso uma intenção da Providência que, desejando dotar a Igreja de um canto muito próprio, dissimulou a sua origem sob o anonimato? Desse modo, as melodias não são de tal ou tal compositor, mas pertencem à Igreja. Camille Bellaigue escreveu a esse propósito: “Tudo que elas receberam dos homens, ainda que fosse um nome, pereceu. Elas só guardaram o que veio de Deus.”

 

A oração da Igreja

À nossa oração pessoal, o canto gregoriano acrescenta a eficácia espiritual da orgação da Igreja, posto que se trata aqui não da oração de um homem particular, ou de uma pequena comunidade, mas de um ato de toda a Igreja, da “sociedade do louvor divino” (como a definia Dom Guéranger), dito de outro modo, da Santa Igreja, do Corpo místico de Cristo, que apresenta pessoalmente – com Jesus à sua frente – essa súplica ao Pai.

A Igreja, e somente ela, possui o segredo da oração e sabe como se portar perante Deus. Ela traduz nesses cantos aquilo cujo segredo só ela possui. Ela mesma roga ao Pai, a Cristo, seu divino Esposo, por meio desses textos e dessas melodias. Nossas melodias são o seu canto. Exprimem os sentimentos com os quais presta culto ao Pai, por meio de Cristo, seu divino Esposo. Pois a liturgia não é outra coisa que a piedade da Esposa de Cristo que se une ao seu Esposo. Essa voz que nós ouvimos é a voz da Esposa que nos revela algo do seu mistério mais profundo. E nossa oração funde-se com a sua. Por meio dessas orações cantadas na liturgia, a alma da Igreja comunica-se a nossa, e essa alma é o Espírito Santo que a assiste sempre e que inspirou esses cantos.

Forma-se, assim, dia a dia, festa a festa, canto a canto, esse “sensus Ecclesiae” que cada católico pode adquirir quase automaticamente por meio da oração solene. A Igreja nos faz cantar como crê, como espera, como ama. O católico que entra nessa oração oficial e se associa a ela pode, com a certeza de ser ouvido, fazer seu o clamor da liturgia: “Não olhai os meus pecados, mas a fé da vossa Igreja.”

É por isso que a Igreja reconheceu no gregoriano o seu canto próprio. E o fez a tal ponto que podemos mesmo dizer que se tornou conatural à Igreja latina: quando a Igreja canta, exprime-se pelo gregoriano, que Dom Gajard chama de “o canto da Igreja em oração”, ou “oração cantada da Igreja”13.

Por essa razão, não é de se estranhar a beleza desse canto, pois a beleza da própria Igreja só poderia produzir algo belo. Posto que a Igreja é a Esposa de Cristo, sua música é um canto digno tanto de uma tal Esposa como de um tal Esposo. O gregoriano é, aqui embaixo, a antecipação do canto que ouviremos pela eternidade na Jerusalém celeste.

 

(Le Rocher, 54. Tradução: Permanência)

  1. 1. Dom Gajard foi por muito tempo mestre de coro dos monges de Solesmes, e dirigiu algumas gravações de grande reputação.
  2. 2. Dom Joseph Gajard: La vérité du chant grégorien, in Revue grégorienne, 1949.
  3. 3. Cf. P.-D. Delalande, O.P.: La valeur théologique et contemplative du chant grégorien, in Revue grégorienne, 1949.
  4. 4. Dom Joseph Gajard, art. Cit. La vérité du chant grégorien.
  5. 5. A. Guennant foi diretor do Instituto Gregoriano parisiense.
  6. 6. Capítulo XIX. Santo Agostinho já dizia: “Que nosso espírito esteja em conformidade com a nossa voz”.
  7. 7. Encíclica Mediator Dei.
  8. 8. Pio XII, Encíclica Musicae sacrae disciplina.
  9. 9. Pio XI, Constituição apostólica Divini cultus.
  10. 10. Pe. Delalande, O.P., em Initiation théologique (Cerf, 1949).
  11. 11. Dom Froger (monge de Solesmes): Origine, histoire et restitution du chant grégorien, na revista Musique et liturgie, fevereiro de 1951.
  12. 12. Essa idéia foi desenvolvida por Dom Gérard Calvet numa conferência pronunciada no dia 5 de junho de 1971 em Versailles, por ocasião do 6o congresso de Una Voce.
  13. 13. Revue grégorienne, 1949, p. 10.
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