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Category: Alexandre BastosConteúdo sindicalizado

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Leão XIII e o Comunismo

Alexandre Bastos

Intra muros

Uma antiga tradição diz que São Pedro, ao deixar Roma para fugir das perseguições promovidas por Nero, viu Nosso Senhor andando em sentido contrário, com uma cruz nas costas. Quo vadis, Domine? (Aonde vais, Senhor?), perguntou o primeiro dos papas. “Vou a Roma para ser novamente crucificado”, respondeu Jesus. Com esta resposta, não apenas indicou a Pedro o que devia fazer naquele momento, mas estabeleceu um critério para todos os papas futuros: “Vá a Roma para ser crucificado”. A loucura da cruz — para empregar os termos do Apóstolo — é a medida de todos os pontificados.

Na história da Igreja, muitos papas cumpriram fielmente este ideal, a começar por São Pedro, que voltou a Roma para ser literalmente crucificado. Vieram em seguida os santos Lino, Anacleto, Clemente, Calixto, Ponciano e uma longa lista de papas que morreram por Cristo. Nos tempos modernos, surgidos sob o estandarte da liberdade, Pio VI morreu sequestrado pelos revolucionários e Pio IX bebeu um cálice amargo antes de terminar seus dias prisioneiro no Vaticano. Pas de liberté pour les ennemis de la liberté!

Quando Leão XIII recebeu a Tríplice Coroa, a maçonaria, que é a igreja da Revolução, ganhara a adesão dos Estados modernos e os erros do socialismo e do liberalismo justificavam a guerra à Igreja: queriam expulsá-la da vida pública e subordiná-la aos detentores do poder. De um ponto de vista temporal, a situação era desesperada: os Estados Pontifícios haviam sido invadidos, os bens da Igreja, espoliados, e já não havia os recursos financeiros que o Patrimônio de São Pedro proporcionava a toda a Igreja.

Nenhum papa viveu tão longamente a dolorosa situação de prisioneiro como Leão XIII. Nos vinte e cinco anos do seu pontificado, jamais pôde deixar o Vaticano, e até mesmo a bênção Urbi et Orbi era dita internamente, desde uma janela que dava para os jardins — único lugar em que o pontífice ainda podia abençoar o mundo livremente. A cruz do seu pontificado será, pois, a tentativa de restaurar, para si mesmo e para toda a Igreja, a liberdade perdida.

Mas não se deve pensar que fosse desprovido de consolações: era um papa de enorme vida interior. O cardeal Luigi Lambruschini, que conheceu o jovem Joaquim Pecci nos seus tempos de estudante, dizia que ele se parecia com um anjo, e Santa Teresinha do Menino Jesus, que o viu celebrar a Santa Missa numa peregrinação a Roma, elogiou a “sua ardente piedade, digna do Vigário de Jesus Cristo”.

Ora, a menina que tinha pressa de ser santa, relata em suas memórias o seu encontro com Leão XIII no Vaticano:

“Um instante depois, eu estava aos pés do Santo Padre. Tendo eu beijado seus pés, ele me apresentou a mão. Em vez de beijá-la, pus as minhas e, levantando para o rosto dele meus olhos banhados em lágrimas, exclamei: "Santíssimo Padre, tenho um grande favor para pedir-vos!..." Então, o Soberano Pontífice" inclinou a cabeça de maneira que meu rosto quase encostou no dele e vi seus olhos pretos e profundos fixarem-se sobre mim e parecer penetrar-me até o fundo da alma. "Santíssimo Padre", disse, "em honra do vosso jubileu, permiti que eu entre no Carmelo aos 15 anos!..."

A impressão deste encontro foi tal, que ela se esqueceu de ir embora: “A bondade do Santo Padre me animava e eu queria falar mais, mas os dois guardas tocaram-me polidamente para fazer-me levantar”.

 

Já está pronto, moço?

Em março de 1810, na pequenina cidade do Carpineto romano, a poucos quilômetros de Roma, nascia o sexto filho do Conde Ludovico Pecci e da Condessa Ana, o pequeno Vincenzo Gioacchino Raffaele Luigi Pecci Prosperi Buzzi. Os pais vislumbravam um grande futuro para o seu mais novo filho. “Quero fazer dele um general”, disse o conde. “Fará dele um papa”, respondeu a mãe.

Desde a primeira infância, Nino, como era chamado, dava provas de um gênio agudo e de uma vontade insaciável de saber. “Quero aprender a ler e escrever como o sábio de Aquino”, dizia o pequeno. Sua trajetória acadêmica foi espetacular. Iniciou os estudos aos oito anos de idade, mas, aos doze, já compunha versos em latim, hábito que manterá até o último dia de sua vida. No Colégio dos Jesuítas de Viterbo, era insuperável em oratória e retórica, e ganhou muitos prêmios pelo seu desempenho em matemática, química, filosofia e teologia. Amante da poesia, seus livros preferidos eram a Divina Comédia, que sabia recitar de cor do primeiro ao último verso, e a Eneida.

Ele continuou seus estudos em Roma, onde descobriu e aprendeu a amar a doutrina de Santo Tomás de Aquino, a quem chamava “o Arquimandrita dos teólogos” 1. Por aquele tempo, reinava o ecletismo nas escolas e seminários, que já foram comparados a uma “loja de argumentos”. Não que se ensinassem erros, como viria a acontecer com a crise modernista, mas já não se ensinava um sistema único, forte e coerente para enfrentar os diversos sistemas filosóficos surgidos desde Descartes. Mais tarde, o Papa Leão XIII trabalhará com afinco para corrigir esta situação, que transmite aos alunos “uma filosofia nada firme, estável e forte como as de antigamente, mas sim fraca e vacilante. E se, por acaso, ela alguma vez não se encontra à altura dos golpes de seus adversários, deveria reconhecer ser ela mesma a culpada por este estado de coisas.”

Estudava da manhã até a noite, apaixonadamente. Um colega de escola o descreveu assim: “Durante os seus estudos em Roma, ele não conhecia companhias nem diversões. Sua mesa era o seu mundo, a investigação científica, seu paraíso”. Aos 22 anos, Joaquim Pecci tornou-se doutor em teologia, mas, para não interromper seus estudos, ingressou na Academia dos Nobres Eclesiásticos. Desejava aperfeiçoar a sua teologia, desejava instruir-se no Direito Civil e Canônico, desejava estudar. Todo este esforço faria com que o ilustre filho de Carpineto se tornasse um dos homens mais brilhantes de seu tempo. Não foi por outra razão que o historiador de filosofia Etienne Gilson escreveu: “Leão XIII entrou na história da Igreja como o maior filósofo cristão do século XIX, e um dos maiores de todos os tempos” — o que não é dizer pouco.

Por aquele tempo, surgiu a questão da vocação religiosa. “Já está pronto, moço?”, perguntou-lhe, certa feita, o Cardeal Sala, amigo da família e seu protetor. O estudante não conseguia decidir-se entre o sacerdócio e a política, que será sempre seu calcanhar de Aquiles. Embora profundamente devoto, a piedade paterna, o desejo de tornar ilustre o nome de sua família, fazia com que adiasse indefinidamente a tomada de ordens. Foi preciso que a Providência destravasse de modo particularmente doloroso as molas de heroísmo escondidas no coração do rapaz.

No ano de 1837, logo após perder o pai, Joaquim Pecci caiu gravemente enfermo durante uma epidemia de cólera. Contavam-se numerosas vítimas nas ruas de Roma, e o moço não duvidava de que seria uma delas. Porém, graças a vigorosos tratamentos médicos, recuperou a saúde. Ato contínuo, decidiu ajudar os padres nos cuidados com os doentes e, sem ser médico ou enfermeiro, passava os dias nas cabeceiras dos moribundos. “Se hei de ser contado entre as vítimas”, escreveu então, “curvo minha cabeça em submissão aos desígnios do Altíssimo, a quem já consagrei minha vida em expiação dos meus pecados. Aconteça o que acontecer, meu coração está perfeitamente tranquilo”.  

A carreira política já não fazia o menor sentido para ele e, no mês de dezembro daquele ano, recebeu as três ordens maiores.

 

Do sacerdócio ao Conclave

À grande capacidade intelectual de que era dotado, Joaquim Pecci unia uma vontade de ferro. Foi esta a razão de o Papa Gregório XVI o ter nomeado tão jovem como delegado apostólico da cidade de Benevento, no Reino de Nápoles. Os habitantes daquele lugar sofriam, por um lado, uma bandidagem cada vez mais ousada e, por outro, a extorsão dos que lhes cobravam por proteção. Como num filme Western, o futuro papa fez prender os bandidos e salvou a cidade em tempo recorde.

Aos 31 anos foi nomeado para um cargo político, tornando-se núncio apostólico junto à corte de Bruxelas. Seu desempenho foi decepcionante. Após apoiar o episcopado belga de cariz liberal contra as políticas do Rei Leopoldo I, foi formalmente repreendido pelo Cardeal Luigi Lambruschini, que dizia “esperar que doravante saiba corresponder melhor à confiança de que é depositário”. Sua experiência na Bélgica durou pouco: voltou à Itália em 1846, ano da eleição de Pio IX.

Por um período de 32 anos, ou quase todo o reinado do Papa da Imaculada, Joaquim Pecci ficou “esquecido” na pequena diocese de Perúgia, na região da Umbria. Embora haja quem atribua ao Cardeal Giacomo Antonelli, Secretário de Estado de Pio IX, a responsabilidade pelo exílio de Pecci, é fato que o papa então reinante não nutria grande simpatia pelo seu futuro sucessor.

Naqueles anos, contudo, algo de realmente importante estava em curso: a restauração do tomismo, promovida em Itália pelos padres da Civiltà Cattolica, Matteo Liberatori, Sordi e Taparelli, mas com repercussões em toda a Europa. O bispo de Perúgia, entusiasmado pelo autor da Suma Teológica desde a mocidade, como vimos, não poderia ficar alheio ao movimento. Assim, reformou todo o currículo do seminário local a fim de conformá-lo à doutrina do Aquinate e fundou uma Accademia di San Tommaso d’Aquino, com o objetivo de refutar os erros do tempo.

Mesmo distante da Cúria romana, Dom Joaquim Pecci conseguiu destacar-se em meio ao episcopado italiano, de modo que, quando chegou a Roma em 1877, nomeado Cardeal Camerlengo, já era apontado como um papabile.

No início de fevereiro de 1878, Pecci foi chamado às pressas. Conforme os ritos, entrou vestido de púrpura nos aposentos em que o papa era velado pelos penitentes de São Pedro. Ajoelhou-se então para entoar o De Profundis, retirou-lhe a coberta do rosto e, com um martelo de prata, tocou-lhe três vezes na face, chamando-o pelo nome de batismo: “Giovanni!”, “dormisne?” (dormes?). Encerrado o ritual, o futuro papa declarou que Pio IX estava morto.

 

“Viva papa Leone!”

Poucos dias depois, numa sala escondida do mundo, encerrou-se em apenas dois dias o primeiro conclave realizado após a ocupação de Roma. Os cardeais aproximaram-se do homem que já não era um seu igual, e usava na cabeça uma mitra ornada de diamantes e, no dedo, o anel do pescador. O novo papa, sentando-se no trono de Pedro aos 67 anos de idade, gemia: “Sou idoso e fraco, não posso carregar este fardo. O que me espera é a morte e não o pontificado!”. Seu papado, no entanto, seria um dos mais longevos da história, estendendo-se por 25 anos.

Saltavam aos olhos as diferenças entre o novo pontífice e seu predecessor. Pio IX era um homem de aspecto majestoso e temperamento ardente, enquanto Leão XIII, muito magro, muito pálido, parecia um asceta. Pio IX era um orador, sentia-se à vontade em meio a multidões e falava muito espontaneamente. Leão XIII era um escritor, amava a solidão e, perfeccionista, revisava até o último momento os seus belos e profundos escritos. Pio IX era homem de ação: na juventude, quisera fazer-se missionário nas Américas. Leão XIII era um intelectual e uma alma profundamente política.

Nesta última frase encerram-se dois aspectos marcantes do seu pontificado. O primeiro, sublime e inteiramente bem-sucedido, é assinalado pelo seu Magistério, que, continuando e elaborando a obra de seus predecessores, causou forte admiração no mundo católico. O segundo aspecto expressa-se pela sua política, que rompe com a de Pio IX com resultados desastrosos. 

Esse primeiro aspecto nunca foi melhor traduzido que pelo epíteto Il Papa Caesareo, que o povo romano lhe atribuiu. O termo Caesareo aqui não guarda relação direta com os imperadores da antigüidade, mas significava o mesmo que sublime. E realmente o foi: as cerimônias em São Pedro nunca foram tão requintadas; não dispensava os mais rigorosos protocolos e as pompas; e para locomover-se sua preferência recaía na Sedia Gestatória. Todo esse aparato não poderia ser mais conveniente, após terem espoliado o Papado da soberania temporal. Contudo, este papa nunca foi mais sublime do que em seu Magistério, que fez Roma resplandecer como a verdadeira lux mundi num século culpado de racionalismo.

Um dos seus primeiro atos como papa foi reorganizar a biblioteca e os arquivos do Vaticano, abrindo-os aos estudiosos e dotando a sua estrutura com um corpo de lingüistas, arqueólogos, numismatas, orientalistas, paleógrafos, enfim, uma verdadeira elite de homens eminentes nos estudos históricos. Enganar-se-ia, porém, quem julgasse tratar-se de mero beletrismo. Não! A sua intenção era combater os erros modernos, transformar Roma numa trincheira intelectual contra as doutrinas nefastas do racionalismo e do naturalismo — tão combatidas pelos seus predecessores — e seus dois rebentos: o liberalismo e o socialismo.

É nesta linha que devemos compreender a sua ação pela restauração do tomismo, “um dos principais títulos de glória de Leão XIII”, segundo dele escreveu São Pio X. Como papa, fundou uma segunda Academia Santo Tomás de Aquino (1880), reeditou as suas obras completas (é a chamada edição leonina), proclamou-o patrono das escolas católicas (1880) e nomeou ainda, para todas as escolas e universidades romanas, professores tomistas. Leão XIII convidará Louis Billot para vir lecionar na Gregoriana e, pouco depois, o Padre Sertillanges começará a lecionar em Paris. Mas a obra decisiva para a restauração do tomismo foi a grande e eruditíssima Encíclica Aeterni Patris, que suscitou uma tempestade de protestos na imprensa contrária à Igreja. Nela, Leão XIII faz o elogio de Santo Tomás e assinala a preferência da Igreja pela doutrina do grande santo:

“Entre todos os doutores escolásticos, porém, brilha, com uma luz sem igual, o príncipe e mestre de todos, Tomás de Aquino, o qual, como observa o Cardeal Caetano, ‘por ter venerado profundamente os santos doutores que o precederam, herdou, de certo modo, a inteligência de todos’. Tomás coligiu suas doutrinas, como membros dispersos de um mesmo corpo; reuniu-as, classificou-as com admirável ordem, e de tal modo as enriqueceu, que tem sido considerado, com muita razão, como defensor especial e honra da Igreja. De espírito dócil e penetrante, de fácil e segura memória, de perfeita pureza de costumes, levado unicamente pelo amor da verdade, prenhe de ciência divina e humana, justamente comparado com o sol, aqueceu a terra com a irradiação de suas virtudes e encheu-a com o resplendor de sua doutrina.” (Aeterni Patris)

O combate do pontífice traduziu-se numa sucessão de encíclicas admiráveis: foram 64 em 25 anos de Pontificado, número superior à soma do que terão produzido seu predecessor e seu sucessor2. Mas não é o aspecto material —seja a quantidade de documentos, seja a perfeição literária — o que mais nos impressiona, e sim a profundidade da doutrina e o rigor da exposição.

Muito industrioso, Leão XIII não se poupava absolutamente — trabalhava por até 16 horas seguidas — assim como não poupava os seus assessores mais próximos. Conta-se que, muitas vezes, ele os “trancava” o dia inteiro na sua biblioteca particular, fazendo-os pesquisar algum ponto de doutrina ou aprimorar a redação de algum documento. Poderíamos aplicar ao próprio papa o que ele escreveu da Igreja: “Inimiga nata da inércia e da preguiça, deseja grandemente que o exercício e a cultura façam o gênio do homem dar frutos abundantes” 3.

As encíclicas não eram traduzidas, mas redigidas diretamente em latim pelo papa — diz-se que, desde Urbano VIII, nenhum pontífice manejou com tanto esmero a língua da Igreja. Revisor incansável, levantava-se à noite para corrigir uma pontuação ou trocar uma palavra. E depois de tudo ter sido exaustivamente meditado, revisado e ponderado, trancava o documento acabado numa gaveta e esperava: patiens quia aeternus (paciente porque é eterno). O resultado, para além da renovação tomista, foram os monumentos que inauguraram a doutrina social da Igreja, condenaram o comunismo, o liberalismo, a escravidão, o americanismo, a maçonaria e tantos outros erros e males.

A profecia de São Malaquias atribui ao glorioso Pio IX um título bastante conveniente, Crux de cruce. Realmente, foi um papa cumulado singularmente de tribulações, e chegou a ser chamado, ainda em vida, de “o Papa da Cruz”. Não é menos apropriado o nome atribuído a Leão XIII: Lumen in Caelo, luz no céu.

 

AS RUÍNAS DO SOCIALISMO

Temos um especial interesse em nos debruçar sobre o magistério de Leão XIII, em ouvir atentamente as lições que, com tanta ciência, ele próprio quis nos transmitir, pois nas suas encíclicas encontramos remédio para muitos dos males que atormentam o triste e confuso mundo moderno.

Trataremos aqui apenas da sua doutrina sobre o comunismo e o socialismo, tal como exposta em Quod Apostolici Muneris, deixando para outra oportunidade os demais aspectos da doutrina e da política deste grande pontífice.

 

Vigilância dos papas

Leão XIII é freqüentemente maltratado pelos comentadores, que mudam-lhe as feições a ponto de torná-lo irreconhecível. Chamam-no democrata, coisa que nunca foi; liberal, quando é um dos principais autores da doutrina anti-liberal da Igreja; socializante, mas talvez seja o papa mais violentamente anti-comunista que jamais se sentou na Cátedra de Pedro.

Há uma história na origem deste último equívoco. Nos tempos que antecederam imediatamente a publicação da sua Rerum Novarum, havia de um lado um grupo de católicos que, reunidos na Bélgica em torno de Charles Périn e, na França, em torno de numerosos escritores, destacava-se pelo valente combate contra o socialismo, mas a custo de abraçar em maior ou menor medida as idéias liberais. De outro lado, havia um grupo minoritário reunido em torno de Dom Gaspard Mermillod, chamado “União de Friburgo”, que buscava em Santo Tomás os alicerces para uma doutrina social. Leão XIII favoreceu este último grupo, e os católicos liberais começaram imediatamente a acusar ao papa e a sua doutrina social de “socializante”. Anos após sua morte, intelectuais deram seqüência às acusações e, por sua vez, os progressistas adoraram: seqüestraram Leão XIII, reivindicaram-no como se fosse um dos seus.

Ao se falar em comunismo, é preciso elogiar a vigilância da Igreja e, em especial, dos Papas do século XIX. Pio IX foi o primeiro a condenar repetidamente o comunismo, verberando-o, entre outros documentos, no Syllabus e na Quanta Cura de 1864, documento munido de todas as notas da infalibilidade. Note-se que, na ocasião, Karl Marx ainda era vivo, e não tinha cinqüenta anos sequer. Nas biografias consagradas ao Papa da Imaculada, lê-se que certa feita alguém lhe disse temer pelo desenvolvimento do comunismo na Inglaterra. Pio IX respondeu não acreditar que o comunismo despontaria lá, e sim no Leste. Foi o que de fato aconteceu, com a União Soviética.

Leão XIII foi ainda mais combativo. O papa inquietava-se tremendamente com o comunismo e socialismo, e guardou suas mais violentas palavras para condená-los. Em 1849 — O Manifesto Comunista acabara de ser publicado — o então Cardeal Pecci, bispo de Perúgia, numa pastoral redigida por ele, declarou estar disposto a arriscar a própria vida em defesa do direito de propriedade:

“Mas como, no século em que estamos, ataca-se com particular violência a unidade e a absoluta necessidade da Fé, a autoridade dos poderes legítimos e o direito de propriedade adquirido com justiça, queremos solenemente professar estas verdades e, quanto de nós depender, defendê-las com o risco da nossa própria vida.” (o destaque é nosso)

E por aqui já se vê que a condenação ao Comunismo por Leão XIII é de natureza muito mais profunda do que tudo o que fazem atualmente as nossas direitas. Ele não o condenou pelo rastro de sangue que o comunismo certamente produziu, pelos seus cem milhões de mortos, pela razão de que, no século XIX, a trajetória de crimes comunistas mal começara. Antes, Leão XIII condenou de modo implacável o socialismo e o comunismo pelo fato de estas ideologias perseguirem um fim mau em si mesmo. Por essa razão, e com compreensão e presciência admiráveis, já estavam elas inapelavelmente condenadas antes de reduzirem populações inteiras à miséria, antes de produzirem os mais graves crimes dos tempos modernos. Não foi por outra razão que outro papa haveria de fulminar a seita declarando que o comunismo é intrinsecamente perverso (Pio XI - Divini Redemptoris).

Para demonstrar a largueza de visão de Leão XIII, cito uma passagem quase profética da Rerum Novarum (1891) — a tal encíclica socializante — em que o Papa indica inequivocamente que a implantação do socialismo engendraria, além da perturbação de toda a sociedade, a escravidão e a miséria (grifos meus):

Mas, além da injustiça do seu sistema, vêem-se bem todas as suas funestas conseqüências, a perturbação em todas as classes da sociedade, uma odiosa e insuportável servidão para todos os cidadãos, porta aberta a todas as invejas, a todos os descontentamentos, a todas as discórdias; o talento e a habilidade privados dos seus estímulos, e, como conseqüência necessária, as riquezas estancadas na sua fonte; enfim, em lugar dessa igualdade tão sonhada, a igualdade na nudez, na indigência e na miséria.

Ora, não há nada de equivalente no tratamento dispensado ao capitalismo. Que se aponte uma menção sequer a ele no Syllabus de Pio IX. Não há! A Doutrina Social da Igreja não vai no sentido de uma condenação in toto do capitalismo, e é essa a razão de uma frase menos conhecida de Pio XI sobre ele, capaz por si só de resolver muitos equívocos: “É evidente que ele não é condenável de per si” (Quadragesimo Anno).

Mas nada seria capaz de provar melhor a intransigente oposição leonina ao socialismo e ao comunismo do que a encíclica Quod Apostolici Muneris, publicada nos primeiros meses de seu Pontificado. Eis aqui algo realmente digno de nota: eleito papa, Leão XIII não viu nada melhor a fazer nos primeiros meses do seu pontificado do que condenar de modo solene e cabal o comunismo e o socialismo. Insisto: a sua condenação ao comunismo, reiterada em dezenas de documentos posteriores do seu pontificado, não apenas antecede as suas condenações ao liberalismo e à maçonaria, mas até mesmo a promoção do tomismo.

 

As três ruínas

A encíclica abre com um discurso duríssimo:

“Obedecendo ao dever do Nosso cargo apostólico, não deixamos (...) de apontar esta peste mortal que se introduz como a Serpente por entre as articulações mais íntimas dos membros da sociedade humana, e a coloca num perigo extremo (...).

“Vós compreendereis facilmente que Nos referimos a essa seita de homens que, debaixo de nomes diversos e quase bárbaros, se chamam socialistas, comunistas ou niilistas, e que, espalhados sobre toda a superfície da terra (...) se esforçam por levar a cabo o desígnio (...) de destruir os alicerces da sociedade civil. É a eles, certamente, que se referem as sagradas letras quando dizem: ‘Eles mancham a carne, desprezam o poder e blasfemam da majestade’ (Jd 1,8).”

Sim, essa seita de “homens pérfidos” quer levar à ruína três ordens distintas da sociedade civil: a política, a economia e a organização social. E intentam contra elas, sempre segundo o papa, do seguinte modo:

  • Arruína a ordem política semeando a revolta “por meio de uma nuvem de jornais” contra as autoridades legítimas e mesmo contra os “próprios chefes das nações”;
  • Arruína a ordem econômica ao combaterem “o direito de propriedade, sancionado pela lei natural”;
  •  Arruína a ordem social ao se insurgirem contra o laço sagrado do matrimônio, princípio e base da sociedade, e pregarem o igualitarismo, ou seja, a “igualdade absoluta de todos os homens, no que diz respeito aos direitos e deveres”.

Este último ponto, sobre o igualitarismo, pede uma explicação. Há certamente uma igualdade de natureza entre os homens, pois possuímos todos a mesma natureza humana, assim como existe uma igualdade de destinação, pois somos todos chamados “à mesma e eminente dignidade de filhos de Deus”. Porém, é igualmente verdadeiro que, como ensina o papa, “a desigualdade de direitos e de poder provém do próprio Autor da natureza”. Ora, assim como Deus quis que houvesse distinção e subordinação até mesmo entre os anjos do céu, ou nas diferentes partes do corpo humano, assim também a sociedade foi estabelecida com várias ordens distintas em dignidades, direitos e poderes, “a fim de que a sociedade fosse, como a Igreja, um só corpo, compreendendo um grande número de membros, uns mais nobres que os outros, mas todos reciprocamente necessários e preocupados com o bem comum”.

Aqui convém citar um belo trecho de Gustavo Corção, onde o grande escritor desenvolve com poesia a nossa radical oposição ao igualitarismo:

“A sociedade de nossos sonhos terá a medida de sua perfeição na riqueza das diferenciações enquadradas na mais forte e vitoriosa unidade moral. O mundo que nós desejamos não é o pesadelo de uniformidade desejado pelos marxistas. Ao contrário, é um mundo de diferenças exaltadas, em que a criança seja plenamente infantil, o homem plenamente varonil, e a mulher plenamente mulheril. O mundo que nós desejamos restaurar é, em poucas palavras, aquele em que a natureza das coisas seja esplendidamente afirmada, e em que tudo se valorize pelo que tem de genuíno. O pão será pão e não pedra. O leite será leite, e não um equívoco líquido esbranquiçado. A poesia será poesia, e não um pretexto de andar na vida sem regras morais. E tudo o mais será assim, verídico e autêntico.4

 

Do Liberalismo ao socialismo

A origem de tais doutrinas socialistas e comunistas não é outra que o naturalismo e o racionalismo, propugnado pelos filósofos iluministas do século XVIII. Pois foi recusando de antemão a revelação divina e toda a ordem sobrenatural que franquearam as portas a todos os delírios da razão. Daí também se originaram os Estados modernos, constituídos “sem fazer caso algum de Deus, nem da ordem por ele estabelecida”.

Em outra encíclica, Leão XIII apontara a mesma origem, a mesma paternidade para o liberalismo: “E, com efeito, o que são os partidários do naturalismo e do racionalismo em filosofia, os fautores do liberalismo o são na ordem moral e civil” 5. Donde resulta o estreito parentesco entre tais doutrinas, que desempenharão cada qual um papel na história: o liberalismo vem primeiro e, afastando de Deus as sociedades, prepara-as para a mais perversa das tiranias, o socialismo. Este parece ser o pensamento de Leão XIII:

“Daquela heresia [i. é, o protestantismo] nasceram no século passado uma filosofia falsa, o chamado direito novo, a soberania popular e uma descontrolada licença, que muitos consideram como a única liberdade. Daqui chegou-se a esses erros recentes que se chamam comunismo, socialismo e niilismo, peste vergonhosa e ameaça de morte para a sociedade civil” (Diuturnum Illud).

Compreende-se que não é possível combater eficazmente o socialismo a partir do liberalismo: seria como tentar esfriar uma chaleira sem tirá-la do fogo. Escreveu Gustavo Corção:

“Qualquer estudioso, que digo? qualquer distraído, se ainda souber ver alguma coisa, sabe que o liberalismo amolecedor, sendo uma perversão que relativiza a Verdade e o Bem em favor de uma categoria definida pela indefinição, só pode entregar o homem a suas fraquezas internas e a seus inimigos externos. A penetração do socialismo e do comunismo nos meios católicos seria impraticável sem a penetração do liberalismo (...)

“O liberalismo corre atrás do comunismo como a matéria corre atrás da forma, ou como, segundo Aristóteles, corre a fêmea atrás do macho. O mole ceticismo liberal tem a nostalgia das definições, tem a nostalgia dos dogmas, sem os quais a alma humana não respira. Se os não quer divinos, amolda-os com o barro humano, se não os suporta revelados por Deus, fabrica-os. Não podendo, na religião deles, voltar ao cristianismo, o liberalismo sonha amores com o comunismo, e tem desejo de se sentir coberto por algo que seja duro e definido.” 6

Ainda nesse ponto, escreveu Dom Marcel Lefebvre: “Guardemos então esta inegável verdade histórica e filosófica: o liberalismo leva, por inclinação natural, ao totalitarismo e à revolução comunista.” 7  E São Pio X escreveu sobre “os princípios subversivos do liberalismo e dos seus dignos filhos, o socialismo e a anarquia”.

É fácil ver como o liberalismo prepara a sociedade para as três ruínas apontadas na encíclica. Na ordem política, ao negar que seja Deus a origem e a fonte da autoridade política, subtrai desta última todo seu vigor e lhe atribui o mais débil dos fundamentos, a soberania popular. A liberdade de imprensa e de ensino coloca nas mãos dos maiores inimigos da sociedade, os comunistas, os instrumentos de que tanto precisavam para levar adiante os seus planos funestos. Na ordem econômica, se o Catolicismo defende a propriedade privada como um direito natural, se proíbe, com o décimo mandamento, a mera cobiça dos bens alheios, o liberalismo, ao fundar a propriedade privada no Estado, tido como a expressão da vontade geral, estatiza toda a propriedade no seu princípio mesmo. Na ordem social, o liberalismo promove o igualitarismo e destrói o mais doce dos cativeiros, a sociedade doméstica, ao erigir a liberdade como valor supremo. Assim, começa por reduzir o matrimônio a mero contrato civil, para em seguida instituir o divórcio e, finalmente, abrir as portas para toda sorte de perversões.

 

Se os mortos não ressuscitam...

Voltemos à Encíclica. O papa prossegue sua lúcida exposição e, depois de segregar as origens da pérfida filosofia comunista, analisa o componente psicológico, ou a motivação por trás daqueles que a abraçam: e aqui entramos num problema de importância capital. Ora, se não há Revelação, se não há sobrenatural, também não haverá céu nem vida eterna. Toda a felicidade estará circunscrita aos limites da vida presente, e terá de ser realizada aqui e agora. É como dizia o Apóstolo (1Cor 15, 32): se os mortos não ressuscitam, então “comamos e bebamos porque amanhã morreremos”. O problema pessoal da miséria reclama uma solução espiritual. Na ausência dela, o homem torna-se vítima de toda espécie de rancor, e já não haverá nada que impeça os desvalidos do mundo, que são sempre maioria, de se coligirem para avançar sobre os bens dos ricos. É o que ensina o papa: “não é para admirar que os homens de ínfima condição, cansados da pobreza de suas casas ou pequenas oficinas, tenham inveja de se elevarem até aos palácios e à fortuna dos ricos; não é para admirar que já não haja tranqüilidade na vida pública e particular, e que o gênero humano já tenha chegado quase à borda do abismo.”

A força do socialismo está na impossibilidade de uma sociedade descristianizada encontrar uma solução para o problema pessoal da pobreza. E se alguns economistas louvam a livre iniciativa, atribuindo-lhe o poder de extirpar a miséria, outros dão de ombros e declaram com cinismo que “no longo prazo, todos estaremos mortos”, antes de comunizar um pouco mais os bens de todos.

Continua o papa: “os sectários do socialismo, apresentando o direito de propriedade como uma invenção humana que repugna à igualdade natural dos homens, e reclamando o comunismo dos bens, declaram que é impossível suportar com paciência a pobreza e que as propriedades e regalias dos ricos podem ser violadas impunemente.” A solução para esse mal não poderá ser encontrada longe da Igreja, e terá de passar pela reconversão dos povos. É de espantar que, estando nossa Mãe e Mestra muda, as idéias socialistas não parem de crescer, mesmo após a queda do muro de Berlim? Citemos a Encíclica:

“E quando reconhecerem que, para afastar esta peste do socialismo, a Igreja possui uma força como nunca tiveram nem as leis humanas, nem as repressões dos magistrados, nem as armas dos soldados, tratarão de restituir logo à Igreja condição e liberdade tais, que possa exercer esta força tão salutar para o bem comum de toda a sociedade humana.”

Mas as classes operárias não seriam induzidas a abraçar os erros nefandos do socialismo, se não houvesse uma organização que se encarregasse de doutriná-las e de excitar os rancores: esse é o papel da maçonaria e demais associações secretas. Por isso recorda o Papa as numerosas advertências dos seus predecessores contra elas, advertências que jamais foram levadas em consideração. E afirma que tudo teria se passado de modo diferente, se tivessem agido de outro modo.

E conclui ordenando aos bispos combater o socialismo: “É necessário, além disto, que trabalheis para que os filhos da Igreja Católica não ousem, seja debaixo de que pretexto for, filiar-se na seita abominável, nem favorecê-la.” Infelizmente, aqui também podemos dizer que, se essas advertências tivessem sido levadas em consideração, tudo teria se dado de modo diferente!

***

Pode-se compreender que alguém insuficientemente familiarizado com a doutrina da Igreja, ao ver a defesa de governos e idéias esquerdistas pela Conferência episcopal brasileira, venha a julgar que tudo isso guarde alguma relação com a doutrina santíssima da Igreja. Isso é evidentemente falso. O que ocorreu dentro da Igreja, na esteira da reviravolta antropocêntrica promovida pelo Segundo Concílio do Vaticano, foi uma terrível demissão do episcopado. Narra Corção:

“... desde o princípio deste século o surgimento dos socialismos e dos humanismos em meios cristãos tomou dimensões de intolerável insolência; mas ainda em 1936, o cardeal primaz da Espanha, no seu histórico apelo lançado ao mundo católico, teve o apoio de todos os bispos do mundo, e assim promoveu a mais numerosa unanimidade da hierarquia católica jamais registrada.

“Ora, menos do que trinta anos depois (trinta anos, um sopro!), nós, isto é, os mesmos espectadores da unanimidade de ontem viram, durante o Concílio, um espetáculo aterrador. Relendo um livro que fez sucesso na época, O Reno se lança no Tibre, ou o mais recente e importante Un Évêque Parle, de Dom Lefebvre, vemos que somente depois de uma árdua campanha puderam uns poucos bispos obter a assinatura de uma exígua minoria para a confirmação das condenações anteriormente formuladas por tantos papas (...)”8

Ora, depois de declarar que “... o Concílio dirige agora a atenção de todos [...] para algumas necessidades mais urgentes do nosso tempo, que profundamente afetam a humanidade (...)”9, o Vaticano II recusou-se vergonhosamente, escandalosamente, a renovar as condenações ao mais grave flagelo dos tempos modernos. Eis o contraste: o que Leão XIII fez quando o comunismo estava longe de possuir a organização doutrinal e prática que mais tarde viria a ter, o Concílio não fez quando já tinha meio mundo devorado. Esta omissão foi na verdade o resultado de uma tratativa, o chamado Acordo de Metz, como hoje se sabe10.

  1. 1. Na Divina Comédia (Paraíso, canto XI, verso 99), São Francisco de Assis é chamado de “Arquimandrita”, uma palavra composta de dois radicais gregos que, combinados, significam “o primeiro dentre os pastores”.
  2. 2. Com efeito, Pio IX publicou 43 Encíclicas e São Pio X, 15.
  3. 3. Immortale Dei
  4. 4. Gustavo Corção, Teologia da História, Ed. Permanência, 2015.
  5. 5. Encíclica Libertas Praestantissimum - grifos meus.
  6. 6. Idem, pág. 48.
  7. 7. Dom Marcel Lefebvre, Do Liberalismo à Apostasia, pág. 31. Editora Permanência, 1991.
  8. 8. Gustavo Corção, Uma Teologia da História, págs 49-50. Editora Permanência, Niterói, 2015.
  9. 9. Gaudium et Spes
  10. 10. A esse respeito, ver L’Accord de Metz, ou pourquoi notre Mère fut muette, Jean Madiran, Via Romana, 2006.

Reflexos de Fátima

Alexandre Bastos

 

“Senhor Padre, a Santíssima Virgem está muito triste, por ninguém fazer caso da Sua Mensagem, nem os bons nem os maus; os bons, porque continuam no seu caminho de bondade, mas sem fazer caso desta Mensagem; os maus, porque, não vendo que o castigo de Deus já paira sobre eles por causa dos seus pecados, continuam também no seu caminho de maldade, sem fazer caso desta Mensagem. Mas creia-me, senhor Padre, Deus vai castigar o mundo, e vai castigá-lo de uma maneira tremenda. O castigo do Céu está iminente.”

Entrevista com Pe. Fuentes (Dezembro de 1957)

 

 

PRIMEIRA PARTE: “A TREZE DE MAIO NA COVA DA IRIA...”

Quem parte de Lisboa rumo à Serra do Aire, encontra a pitoresca aldeia de Aljustrel, que há um século contava exatas vinte e seis casinhas. O seu relativo isolamento poupara a aldeia da laicização promovida pela recente República liberal. Por todo o país, padres eram presos, igrejas eram fechadas e religiosos deportados. “A perseguição não assolava Fátima tão fortemente, talvez porque a distância da capital nos fazia passar quase despercebidos”, escreveria Lúcia.

Apesar da austeridade em que viviam, que parece excessiva à moleza do nosso tempo, não eram exatamente pobres para os padrões da região: os pais da Lúcia tinham um patrimônio modesto, formado por terras e um pequeno rebanho. A proximidade das casas do vilarejo explica um pouco a amizade entre as famílias dos pastorinhos, estreitada ainda mais pelo parentesco: Ti Olímpia (1864-1956), mãe de Francisco e Jacinta, era a cunhada da mãe da Lúcia, até casar-se em segundas núpcias com Manuel Pedro Marto (1873-1957), conhecido como “o homem mais sério do lugar”. 

Apesar de muito sisudo, Ti Marto foi seguramente o mais simpático dos coadjuvantes da história de Fátima. Ex-soldado, de porte ereto e olhar arguto, acreditou desde a primeira hora na veracidade dos fatos: “mentir, ai Jesus, os cachopos foram sempre tão contrários a isto”. Nós o vemos tomar o partido dos pastorinhos em todas as oportunidades e desde o começo.

Ele sempre teve grande simpatia pela sobrinha. Ao reencontrá-la em Maio de 1946, quando a Irmã Lúcia retornou ao lugar para identificar os locais das aparições do Anjo, travou com ela este simpático diálogo:

– Que bela cachopa tu estás!... Tu sim, que valeu a pena vires a este mundo! Lembras-te da minha Jacinta e do meu Francisco?

– Então, Tio, não me hei-de lembrar?!

– Se fossem vivos seriam como tu!...

– Seriam como eu!... Seriam melhores do que eu! Nosso Senhor desta vez enganou-se: devia ter deixado cá um deles, e deixou-me a mim!... 1

Era o exato oposto da mãe da Lúcia, Ti Maria Rosa, uma camponesa severa e corpulenta que não concebia que a filha pudesse estar a dizer a verdade. Para obrigá-la a desmentir-se, como dizia, não hesitava injuriá-la, castigá-la, cobri-la de pancadas com o cabo da vassoura. Algumas irmãs da Lúcia, sentindo-se abrigadas pelas opiniões da mãe, uniam-se a ela, debochando e rindo.

Um diálogo travado então com um tipo que insultava a pastorinha é revelador dos seus sentimentos:

– Então, ti Maria Rosa, que me diz das visões da sua filha?

– Não sei – respondeu. – Parece-me que não passa duma intrujona que traz meio mundo enganado.

– Não diga isso muito alto; senão, alguém é capaz de matá-la. Parece que há por aí quem Ihe tem boa vontade.

– Ah! Não me importa, contanto que a obriguem a confessar a verdade! Eu é que hei-de dizer sempre a verdade, seja contra meus filhos, seja contra quem for, nem que seja contra mim 2

Nosso Senhor, contudo, dobraria essa resistência da mãe da Lúcia do modo mais admirável, pois, no grande Milagre do Sol, de 13 de outubro de 1917, aquela que mais duvidou, pôde assistir a tudo ajoelhada ao lado da filha. 

Não devemos fazer uma opinião demasiado severa a respeito dos seus parentes, que formavam uma família simples e dedicada ao trabalho. A mãe de Lúcia era uma mulher de extrema honestidade e piedade, “uma santa”, no dizer do pároco de Fátima. Mãe de sete filhos, unia aos seus muitos afazeres domésticos o encargo de enfermeira de Aljustrel, e não havia ninguém que caísse doente, sem que ela largasse tudo para acorrer ao enfermo. Mesmo quando veio a gripe espanhola, apesar do risco real de contágio, não mudou em nada sua rotina, cuidando dos doentes como se fossem seus filhos. “O importante”, dizia a boa senhora, “é fazer o bem, ajudar os outros para que Deus também nos ajude”. Gabava-se de nunca ter perdido uma Missa, mesmo quando amamentava, e de já ter caminhado certa vez dez quilômetros para assistir a um ofício. “A grande virtude da minha mãe”, dirá Lúcia, “repousa sobre a rocha da lei de Deus e de sua Igreja”. 

Quanto ao seu marido, Antônio dos Santos, pequeno agricultor e criador de ovelhas, conhecido pelo apelido de “abóbora”, nunca deixou que mendigo algum passasse por sua residência sem receber esmola, e tinha em casa uma porção de carne sempre pronta para o caso de algum necessitado aparecer. Muito amigo e próximo da filha, foi ele quem a ensinou a chamar a lua de “candeia de Nossa Senhora”, e as estrelas de “candeias dos anjos”. “Exemplos admiráveis de família cristã”, descreveria Lúcia. 

 

Os pastorinhos

Foi nesse ambiente de Fé que cresceram os pastorinhos de Fátima, Lúcia, Francisco e Jacinta, que tinham, no momento das aparições da Santíssima Virgem, respectivamente 10, 9 e 7 anos. Suas personalidades, tão distintas, seriam marcadas de forma definitiva pelos acontecimentos.

Francisco Marto foi o consolador de Nosso Senhor, tão ofendido pelos nossos pecados. Muito manso e introspectivo, era essencialmente um contemplativo. “O desejo do Céu e a contemplação das coisas divinas”, escreveu o Pe. João de Marchi, “enchiam a transbordar o coraçãozito do Francisco”, a ponto de torná-lo estranho às coisas do mundo. Quando alguma criança roubava nas brincadeiras, dizia com indiferença: “Pensas que ganhaste tu? Pois sim! A mim isso não me importa”. Repetia o mesmo ainda quando outras crianças más apanhavam suas coisas, embora fosse suficientemente robusto para retomá-las à força. “Parece-me que, se houvesse crescido, o seu principal defeito seria o de não-te-rales”, declararia mais tarde a sua prima.

Mas este desapego, diga-se, nunca se traduzia em respeito humano. Certa vez, ele se deparou com uma pobre mulher que fingia benzer terços e objetos religiosos, e que o convidou a ajudá-la. Francisco respondeu com severidade: – Eu não posso benzer e vossemecê também não! São só os Senhores Padres.

Outra vez, a sua mãe, a sra. Olímpia, disse-lhe para aproveitar a ausência da madrinha para levar as ovelhas a pastorear na sua propriedade. Francisco retrucou: – Ah, isso é que eu não faço! – ganhou logo uma bofetada pela resposta. O menino respondeu sem alterar a voz: – Então, é a minha mãe que me está a ensinar a roubar? – Quando Lúcia, depois das aparições, cedendo a rogos de familiares e vizinhos, aceitou participar da organização de uma festança, o menino interpelou-a: – E tu voltas a essas cozinhadas e brincadeiras?

A sua irmã, Jacinta Marto foi, segundo a sentença da Irmã Lúcia, “aquela a quem a Santíssima Virgem comunicou maior abundância de graça, conhecimento de Deus e da virtude”. Dizia-se que só se assemelhava ao Francisco pelos mesmos olhos castanho-escuros e os traços bem-feitos. Muito expansiva e sensível, a voluntariosa Jacinta era alegre como um passarinho. Sua espiritualidade era apostólica e, sobretudo após a visão do inferno, terá como missão a conversão dos pecadores: Da mihi animas, tolle coetera, poderia ser seu lema. Não media esforços para convertê-los, e jejuava e vigiava e fazia mortificações dignas de um cartuxo, a tal ponto que escreveu Garrigou-Lagrange: “Jacinta é uma das almas mais generosas do século XX”. Dentre os inúmeros sacrifícios que fez, impressiona a resignação e o abandono com que se submeteu a uma dolorosa cirurgia no final da sua vida, como veremos. 

A mãe da Lúcia era a catequista de Aljustrel, e antes da primeira comunhão da filha, ensinou-lhe o que pedir ao receber Jesus no coração: “Sobretudo, pede a Nosso Senhor que te faça uma santa”. “Essas palavras”, dirá mais tarde a Lúcia, “se me gravaram tão indeléveis no coração, que foram as primeiras que disse a Nosso Senhor logo que o recebi”. Santa Lúcia de Fátima, santa pela obediência heróica, pela obscuridade e paciência da sua vida escondida – foi ela que ouviu primeiro de Nossa Senhora que iria para o Céu. Sua missão foi resumida por Jacinta pouco antes desta última ir para o hospital: “Tu ficas cá para dizeres que Deus quer estabelecer no mundo a devoção do Imaculado Coração de Maria. (...) que o Coração de Jesus quer que, a seu lado, se venere o Coração Imaculado de Maria”. Este será sempre seu ideal, e as aparições posteriores em Pontevedra (1925-26) e Tuy (1929) têm implicações consideráveis para nossas vidas.

 

1915 - O prelúdio

Ao completar sete anos, a mãe de Lúcia decidiu que era chegado o momento de a menina começar a trabalhar e a incumbiu da guarda das ovelhas da família. Antônio dos Santos e as demais filhas protestaram, julgando-a muito pequena para a tarefa. Mas Maria Rosa não era do mesmo sentimento: “É como todas”, disse, pondo fim à questão.

A nova responsabilidade não desagradava a Lúcia, que se sentia “uma menina grande”. Foi assim que, no dia combinado, partiu junto com três moças da aldeia vizinha, Maria Rosa, Maria Justino e Teresa Matias, que se ofereceram para acompanhá-la. O destino escolhido para as pastagens era um vale mais ermo conhecido pelo nome de Cova da Iria, aonde chegavam atravessando hortas e pomares. Costumavam passar ali boa parte do dia, quando não rumavam mais para o sul, para brincar num lugar chamado Valinhos, onde eram abundantes o capim para as ovelhas e a sombra para descansarem. Desse lugar, podia-se subir ao Cabeço, uma elevação mais escarpada, cercada por tojos e rosmaninhos, de onde se avistava uma espécie de gruta a que chamavam Loca do Cabeço.

Certo dia, por volta de uma da tarde, começaram a rezar o terço e uma delas chamou a atenção das demais para uma figura suspensa no ar, sobre o arvoredo – era a primeira de três manifestações que veria naquele ano com aquelas moças. A figura parecia-lhes uma estátua de neve atravessada pelos raios do sol, mas nunca disse palavra. 

– Que é aquilo? – perguntaram-se as companheiras, meio assustadas.

– Não sei!

Lúcia guardou silêncio sobre o que vira, mas as moças trataram de espalhar o acontecido por toda a aldeia. A mãe de Lúcia, desgostosa, perguntou à filha:

– Ouve lá: dizem que viste para aí não sei o quê. O que é que tu viste?

– Não sei! – respondeu Lúcia.

E como não sabia explicar-se, acrescentou:

– Parecia uma pessoa embrulhada num lençol. Não se lhe conheciam olhos nem mãos.

– Tolices de crianças! – sentenciou Ti Maria Rosa. 

 

1916 - As aparições do anjo

Havia algo de misterioso na forte amizade que Jacinta sentia pela prima: “Não sei por quê, a Jacinta, com seu irmãozinho Francisco, tinham por mim uma predileção especial e buscavam-me, quase sempre, para brincar”, escreveu Lúcia. De modo que, quando souberam que a prima começaria a pastorear, e não poderia portanto tornar a brincar com eles, correram inconformados a pedir à mãe autorização para acompanhá-la, mas isso lhes foi negado. Nesse tempo, portanto, Lúcia só os encontrava à noitinha, quando retornava do pasto.

Contudo, aos dois pequenitos custava-lhes conformar-se com a ausência da sua antiga companheira. Por isso, renovavam continuamente as instâncias junto de sua mãe, para que pudessem guardar o seu rebanho. Ti Olímpia, talvez para ver-se livre de tanta insistência, acabou consentindo, e foi assim que, no ano de 1916, Lúcia já não pastoreava com as antigas companheiras, mas com os primos.

Jacinta por vezes metia-se no meio do rebanho:

– Jacinta – perguntava-lhe Lúcia – para que vais aí, no meio das ovelhas?

– Para fazer como Nosso Senhor, que, naquele santinho que me deram, também está assim, no meio de muitas e com uma ao colo.

Foi nesse ano de 1916, espaçado pelas estações do ano (primavera, verão e outono), que Lúcia tornou a ver o anjo, que dessa vez comunica-se com ela. É pouco o que diz, mas que profundidade!

A primeira aparição ocorreu na Loca do Cabeço. O anjo disse-lhes: “Não temais! Sou o Anjo da Paz. Orai comigo”. É digno de nota que o anjo tenha se apresentado assim, pois Portugal acabara de entrar oficialmente na Grande Guerra e o país, governado pelos maçons, vivia intensa perseguição religiosa.

O Anjo da Paz prostrou-se e ensinou aos pastorinhos uma oração que consiste, na primeira parte, num ato de fé, esperança e caridade (“Meu Deus! Eu creio, adoro, espero e amo-vos”), e, na segunda, num ato de reparação (“Peço-vos perdão para os que não crêem, não adoram, não esperam e não vos amam”).

– Orai assim. Os Corações de Jesus e Maria estão atentos à voz das vossas súplicas.

Dito isso, desapareceu, deixando os pastorinhos a tal ponto subjugados e imersos no sobrenatural, que mal conseguiam falar: “A presença de Deus sentia-se tão intensa e íntima que nem mesmo entre nós nos atrevíamos a falar” 3, escreveu Lúcia.

Note-se que o anjo refere-se aos “Corações de Jesus e Maria”. Será assim nas três aparições, mas sempre obedecendo a uma gradação: aqui alude aos “Corações de Jesus e Maria”; na segunda aparição falará dos “Corações Santíssimos de Jesus e Maria” e, na terceira, do “Santíssimo Coração [de Jesus] e do Coração Imaculado de Maria”. Essa gradação tem um valor pedagógico e aponta para aquilo que escreveu o Cardeal Cerejeira: “Fátima será para o culto do Coração Imaculado de Maria o que foi Paray-le-Monial para o culto do Coração de Jesus. Fátima, de certo modo, é a continuação, ou melhor, a conclusão de Paray-le-Monial: Fátima reúne estes dois Corações que Deus mesmo uniu na obra divina da Redenção.” 

A segunda aparição do anjo ocorreu no verão do mesmo ano. Por conta do calor, as crianças fizeram a sesta em casa e foram brincar no poço do Arneiro, uns 50 metros da casa da Lúcia. Foi aí que o anjo lhes apareceu:

– Que fazeis? Orai, orai muito. Os Corações Santíssimos de Jesus e Maria têm sobre vós desígnios de misericórdia. Oferecei constantemente, ao Altíssimo, orações e sacrifícios.

– Como nos havemos de sacrificar? – perguntou Lúcia.

– De tudo o que puderdes, oferecei um sacrifício em ato de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores. Atraí, assim, sobre a vossa Pátria, a paz. Eu sou o Anjo da sua guarda, o Anjo de Portugal. Sobretudo, aceitai e suportai com submissão o sofrimento que o Senhor vos envia.

Nota-se outra gradação pedagógica na fala do anjo. Na primeira aparição, pediu um ato de reparação, nesta pede sacrifícios. 

A terceira aparição do anjo ocorreu no outono. Foi aqui que ele deu a comunhão aos pastorinhos. Antes, porém, ensinou aos pastorinhos uma oração de reparação a Nosso Senhor:

– Santíssima Trindade, Pai, Filho, Espírito Santo, adoro-Vos profundamente e ofereço-Vos o preciosíssimo Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Jesus Cristo, presente em todos os sacrários da terra, em reparação dos ultrajes, sacrilégios e indiferenças com que Ele mesmo é ofendido. E pelos méritos infinitos do Seu Santíssimo Coração e do Coração Imaculado de Maria, peço-Vos a conversão dos pobres pecadores.

O anjo deu a comunhão aos serranitos pronunciando as palavras:

– Tomai e bebei o Corpo e Sangue de Jesus Cristo, horrivelmente ultrajado pelos homens ingratos. Reparai os seus crimes e consolai o vosso Deus.

Repetiu ainda mais uma vez a oração acima, e desapareceu.

Mais tarde, Lúcia seria interrogada pelo Bispo de Viseu, D. José Pedro da Silva:

– Quando a Irmã comungou da mão do Anjo, sentiu na boca o contacto físico das Sagradas Espécies, tal como hoje quando comunga?

– Sim.

– Lembra-se de ter engolido a Sagrada Hóstia?

– Sim.

Eis aqui uma primeira prova de que, em Fátima, não se tratava de umas “visões imaginativas”, como quiseram alguns. Há outras provas. Por exemplo, quando os pastorinhos viam Nossa Senhora, por vezes baixavam os olhos, o que logo chamou a atenção de alguns. Eles explicaram que a luz da Virgem, de tão forte, cegava.

 

1917 - As aparições de Nossa Senhora

Em Maio de 1917 começaram as aparições de Nossa Senhora. Assim como o anjo, ela era toda de luz, e brilhava mais do que o sol, “luz sobre luz”, esclareceria a Lúcia. A Virgem aparecia-lhes de pé sobre a copa duma carrasqueira, árvore de folhas brilhosas e cheias de espinhos, com cerca de um metro de altura. Os pastorinhos ficavam bem próximos, dentro da luz que dela emanava. Embora tudo nela exprimisse a paz celestial, o seu olhar era triste – ela não sorriu nenhuma vez em todas as aparições – embora tomado de solicitude maternal; sua voz era fina, doce e melodiosa. Quanto às crianças, havia uma curiosa gradação: Francisco apenas via; Jacinta, via e ouvia; Lúcia, via, ouvia e falava com a Virgem4. As aparições duravam alguns minutos, menos do que o tempo de se rezar um terço. 

As crianças estavam a brincar antes da primeira aparição; construíam uma casinha com pequenas pedras, quando, subitamente, relampeou e elas, temendo chuva, resolveram voltar para casa. Novo relampear e, um pouco mais adiante, deram com a Virgem.

– Não tenhais medo. Eu não vos faço mal.

– De onde é Vossemecê? – perguntou-lhe a Lúcia.

– Sou do Céu.

Aqui, observa um autor, nota-se a precisão e a beleza da resposta de Nossa Senhora. Ela não diz que “veio” do Céu, como talvez responderia algum outro santo. Ela diz, ao contrário, “Sou do Céu” – isso é mais exato, pois trata-se da Imaculada Conceição, onde o pecado jamais teve morada, nem por um instante sequer.

 – E que é que Vossemecê me quer?

Nossa Senhora então pede que voltem para lá no dia 13 durante seis meses seguidos, que no final dirá quem é e o que quer. E afirma que virá ainda uma sétima vez.

Segue o diálogo conhecido. Lúcia quer saber se vai para o Céu. “Sim, vais”. Resposta que lhe encheu de uma alegria indescritível. E a Jacinta? “Também”. O Francisco? “Também, mas tem que rezar muitos terços.”5

– A Maria das Neves já está no Céu?

– Sim, está.

– E a Amélia?

– Estará no purgatório até o fim do mundo.

Ao ler isso, nossa atenção se volta naturalmente para o triste fim da Amélia – moça que morrera poucos meses antes e que, segundo os pesquisadores, pecava contra a pureza. Mas é preciso reconhecer que a sorte de Maria das Neves é muito consoladora: Ela está no Céu! Não foi nenhuma grande santa, nenhuma grande penitente, apenas uma boa católica – e está no Céu.

– Quereis oferecer-vos a Deus para suportar todos os sofrimentos que Ele quiser enviar-vos, em ato de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores?

– Sim, queremos – respondeu a Lúcia em nome dos três.

Desde aquele momento, comenta o Pe. João de Marchi, os três pastorinhos começaram a ser heróis.

– Ides, pois, ter muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso conforto.

Em seguida, Nossa Senhora comunicou-lhe uma misteriosa luz, que era Deus. Finalmente, despediu-se com as palavras:

 – Rezem o terço todos os dias 6, para alcançarem a paz para o mundo e o fim da guerra.

Nossa Senhora se foi. Voltou as costas para os pastorinhos e foi-se embora em direção ao nascente, desaparecendo pouco a pouco. 

Os serranitos ficaram novamente imersos no sobrenatural, porém, desta vez, não sentiam o aniquilamento físico que a aparição do anjo lhes causava. Ao contrário, sentiam-se exultantes, eufóricos, e não lhes foi difícil contar imediatamente ao Francisco o que ouviram. Este, cruzando as mãos sobre o peito, exclamou contente:

 – Ó minha Nossa Senhora, terços rezo todos quantos Vós quiserdes. – Deve ter cumprido muito bem a exigência que lhe fora feita, porque já na segunda aparição Nossa Senhora lhe promete levar logo para o Céu, como veremos.

Passaram assim o resto da tarde, saboreando tudo que lhes acontecera, recordando a beleza da branca Senhora que se dignara aparecer-lhes:

– Ai, que Senhora tão bonita! – exclamava a Jacinta, para daqui a pouco tornar a exclamar:

– Ai, que bonita Senhora! – suspirava de novo a Jacinta, o rosto iluminado de alegria.

– Estou mesmo a ver – dizia Lúcia – ainda vais a dizer a alguém.

– Não, digo, não –  respondia Jacinta –  está descansada.

Eles voltaram a Aljustrel, Jacinta sempre repetindo “Ai, tão bonita!”. Lúcia, antes de despedir-se da prima, ainda chamou-a uma vez: 

– Psiu!… mesmo com a mãe.

– Pois sim! – assegurava-a novamente a Jacinta.

O Sr. Marto e a Sra. Olímpia ainda não haviam voltado do mercado, aonde foram comprar  uma porca para a engorda. A Jacinta os esperava inquieta. Mal os viu, saiu correndo toda alvoroçada ao encontro deles para publicar a sua alegria: 

– Ó mãe, vi hoje Nossa Senhora na Cova da Iria.

Certa de que era alguma brincadeira de criança, a mãe fez pouco caso: “És bem doidinha!” – disse, e foi direto para os seus afazeres. Isso se passou à porta de casa. Eles entraram e a Jacinta lhe disse:

– Minha mãe, vou rezar o terço com o Francisco, que foi o que Nossa Senhora mandou que nós fizéssemos. – E lá se foram rezar.

Na hora do jantar, contudo, junto à lareira, na presença de toda a família e também do pai da Lúcia, que lá estava por acaso, a mãe perguntou à filha:

– Ó, Jacinta, conta lá como foi isso de Nossa Senhora na Cova da Iria.

Era tudo o que Jacinta queria ouvir! A menina começou a falar com entusiasmo:

– Era uma Senhora tão linda, tão bonita!… Tinha um vestido branco, e um cordão de ouro ao pescoço até ao peito… Ai, que bonito!… Tinha as mãos juntas, assim – e a pequena levantava-se do banquinho, juntava as mãos à altura do peito para imitar a visão.

– Entre os dedos tinha as contas. Ai, que lindo tercinho ela tinha… todo de ouro, brilhante, como as estrelas da noite, e um crucifixo que luzia… que luzia… Ai, que linda Senhora!… Falou muito com a Lúcia, mas nunca falou comigo, nem com o Francisco… Eu ouvia tudo o que elas diziam… Ó mãe, é preciso rezar o terço todos os dias… A Senhora disse isso à Lúcia. E disse também que nos levava os três para o Céu, a Lúcia, o Francisco e mais eu… E mais outras coisas disse que eu não sei mas que a Lúcia sabe… Quando Ela entrou pelo Céu dentro, parece que as portas se fecharam com tanta pressa que até os pés iam ficando de fora entalados… Era tão lindo o Céu… Havia lá tantas rosas albardeiras! 7

Os adultos perguntaram ao Francisco se isso tudo era verdade. Ele confirmou a história e a notícia rapidamente se espalhou. O calvário de Lúcia apenas começava.

 

A segunda aparição (13 de junho de 1917)

A segunda aparição ocorreu no dia 13 de junho, na mesma hora e local. O rumor fez com que umas cinqüenta pessoas estivessem presentes na Cova da Iria. Eles não viram nem ouviram Nossa Senhora, mas notaram uns fenômenos estranhos no momento da aparição: os galhos da azinheira se vergaram repentinamente sob o peso de algo que não percebiam. Alguns puderam ouvir algo que não distinguiam, mas que se assemelhava a um zumbido de abelha. Foi suficiente para que retornassem entusiasmados com o pouco que viram, e dessem publicidade ainda maior aos fatos.

Nesta ocasião, Nossa Senhora pediu aos pastorinhos que voltassem no mês seguinte, rezassem o terço e aprendessem a ler. Disse que os primos iriam logo para o Céu, mas não a Lúcia, que haveria de ficar aqui para propagar a devoção ao seu Imaculado Coração, e acrescentou: A quem a abraçar, prometo a salvação”. Palavras importantes que deveriam ficar gravadas em nossos corações.

– Fico cá sozinha? – perguntou Lúcia.

– Não, filha. E tu sofres muito? – respondeu Nossa Senhora, para concluir com palavras que, segundo o sentimento de Lúcia, não se destinavam apenas a ela. – Não desanimes. Eu nunca te deixarei. O meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá até Deus 8

Finalmente, Nossa Senhora abriu as mãos, comunicando o reflexo de uma luz imensa na qual os pastorinhos puderam ver o Imaculado Coração de Maria cravejado de espinhos. Anos depois, interrogada por Dom José Pedro da Silva:

– Poderá, de algum modo, descrever a luz que Nossa Senhora lhe “meteu no peito”?

– Não posso: porque não conheço palavras que a descrevam.

Uma observação interessante foi feita pelo Pe. Chautard. A representação clássica do Coração doloroso de Maria apresenta-o traspassado por uma espada: é nova a imagem do seu coração coroado de espinhos. Indica talvez que a dor que Nossa Senhora mais ressente é a recusa do reinado social de Cristo, inagurado pelo Liberalismo, após a Revolução em França, e que culminaria naquele mesmo ano no Comunismo, com a Revolução bolchevique.

 

O segredo (13 de julho de 1917)

A terceira aparição é a mais importante, pois foi a do grande segredo. Costuma-se falar em Terceiro Segredo de Fátima, mas trata-se na verdade de um único segredo em três partes, comunicado de uma só vez neste dia. Segundo o Irmão François de Marie des Anges, as três partes do Segredo referem-se: a primeira às almas; a segunda às nações; a terceira, à Igreja.

As semanas que precederam o grande dia 13 de julho foram particularmente sofridas para Lúcia, pois sua mãe redobrara os esforços para fazer com que a filha “se desmentisse”, levando-a para tanto até o pároco de Fátima.

 – Não me rales mais! Agora diz ao Senhor Prior que mentiste, para que ele possa, no domingo, dizer na Igreja que foi mentira e assim acabar tudo. Isto tem lá jeito! Toda a gente a correr para a Cova de Iria, a rezar diante duma carrasqueira!

O padre recebeu-a com muita amabilidade e, após interrogar a menina, encerrou dizendo:

 – Não me parece uma revelação do Céu. Quando se dão estas coisas, por ordinário, Nosso Senhor manda essas almas a quem se comunica, dar conta do que se passa a seus confessores ou párocos e esta, ao contrário, retrai-se quanto pode. Isto também pode ser um engano do demônio. Vamos a ver.

Influenciada pela dupla autoridade do pároco e da mãe, e percebendo que sua vida virara ao avesso desde o início das aparições, Lúcia concluiu que talvez estivesse mesmo sendo vítima de um engano diabólico e decidiu não tornar à Cova da Iria. 

Contudo, no dia 13 de julho, ao aproximar-se a hora em que deveria partir, sentiu-se impelida por algo que não lhe era fácil resistir, e pôs-se a caminho, passando antes pela casa dos seus tios a ver se Francisco e Jacinta ainda estavam lá. Encontrou-os chorando.

– Então vocês não vão? – perguntou-lhes

– Sem ti não nos atrevemos a ir. Anda, vem.

Os três pastorinhos partiram contentes rumo à Cova da Iria, e corriam tanto, que a gente pedia que reduzissem o passo.

Apesar do sol escaldante, havia cerca de 4 mil pessoas ao redor da azinheira. Dessa feita Ti Marto resolveu ir e ficou rente à sua Jacinta. Na sua linguagem simples, narrou o que viu:

“A Lúcia, ajoelhada um pouco mais à frente, passava as contas e todos respondiam em voz alta. Acabado o terço, levanta-se tão rápida que aquilo não era força dela. Olha assim para o nascente e grita: ‘Fechem os chapéus, fechem os chapéus, que já aí vem Nossa Senhora’. Eu, por mais que olhasse, nada via. Começando então a afirmar-me, vi assim a modo uma nuvenzinha acinzentada que pairava sobre a azinheira. O sol enturviscou-se e começou a correr uma aragem tão fresquinha que consolava. Nem parecia estarmos no pino do Verão. O povo estava mudo que até metia impressão. E então comecei a ouvir um rumor, uma zoada, assim a modo como um moscardo dentro dum cântaro vazio. Mas de palavras, nada!” 9

Ao ver Nossa Senhora, Lúcia entrou em êxtase e emudeceu. Jacinta despertou-a: 

– Anda, fala-Lhe, que Nossa Senhora já está a falar.

– Vossemecê o que me quer? – perguntou Lúcia.

Os presentes não ouviam as respostas. As crianças, inteiramente alheias à multidão silenciosa que as rodeava, adquiriam nesses momentos um não-sei-quê de angelical, os rostos cresciam em alvura e ganhavam uma beleza que não é deste mundo. Crisparam-se subitamente os pastorinhos de horror, e puseram-se a gritar: 

– Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora!

Era o início do grande Segredo. A Virgem mostrou-lhes o inferno, e os três viram um mar de fogo onde flutuavam sem peso nem equilíbrio os condenados ao lado de demônios de formas horríveis e asquerosas, como animais desconhecidos. “Creio que teríamos morrido de susto e pavor”, escreveu a Lúcia. Os pastorinhos não viram o inferno como que ao longe, mas desde muito perto; podiam ouvir a grita e o desespero dos condenados. Muitos anos mais tarde, quando alguém perguntava a Irmã Lúcia sobre o que viu nesse dia, a sua fisionomia imediatamente exprimira tamanho horror, que não era preciso mais nada para que o interlocutor acreditasse na realidade da visão.

Também a Jacinta ficaria profundamente marcada com o que viu. Desde esse dia, costumava dizer:

 – O inferno!, o inferno!, que pena eu tenho das almas que vão para o inferno! E as pessoas lá vivas a arder como a lenha no fogo!

Outras vezes dizia:

 – Francisco, Francisco, vocês estão a rezar comigo? É preciso rezar muito, para livrar as almas do inferno. Vão para lá tantas!, tantas!

Ora, nesse mesmo dia, após a espantosa visão, Nossa Senhora falou aos pastorinhos:

– Vistes o inferno, para onde vão as almas dos pobres pecadores. Para as salvar, Deus quer estabelecer no mundo a devoção a meu Imaculado Coração. Se fizerem o que eu disser, salvar-se-ão muitas almas e terão paz. A guerra vai acabar, mas se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra pior. Quando virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre10. Para a impedir virei pedir a consagração da Rússia a meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja; os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas; por fim, o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz. Em Portugal conservar-se-á sempre o dogma da Fé, etc. 11

 

A quarta aparição  (19 de agosto de 1917)

A quarta aparição foi precedida de grandes provações: os três foram seqüestrados pelo Administrador de Ourém, Artur Oliveira Santos, um maçom apelidado de “latoeiro”, que os levou para a Administração e os lançou na prisão para forçá-los a revelar o Segredo. Os demais presos diziam-lhes:

– Mas vocês, digam ao Senhor Administrador lá esse segredo. Que Ihes importa que essa Senhora não queira?

– Isso não! – respondia a Jacinta com vivacidade. – Antes quero morrer.

Quando a Jacinta chorava na prisão com pena de não tornar a ver a mãe, Francisco a consolava:

– A mãe, se a não tornarmos a ver, paciência, oferecemos pela conversão dos pecadores. O pior é se Nossa Senhora não volta mais! Isso é o que mais me custa! Mas também o ofereço pelos pecadores.

O Administrador trouxe um médico para examiná-los, na esperança de obter um diagnóstico que os declarasse desequilibrados, mas em vão. No dia seguinte, conduziu-os novamente para sua própria casa, onde, numa tentativa final, ameaçou de morte um a um, dizendo que os havia de queimar em óleo fervente. Todos resistiram bravamente e ao latoeiro só restou soltá-los.

No dia 13 de agosto, estando os pastorinhos presos, dez a vinte mil pessoas foram à Cova da Iria e, na hora prevista, novos fenômenos ocorreram: deu-se uma queda impressionante da luminosidade e umas nuvenzinhas se formaram perto da Carrasqueira e se ergueram por uns 6 metros até se desfazerem. O povo percebeu que havia ali qualquer coisa de sobrenatural, e voltou-se furioso contra o Administrador que seqüestrara os pastorinhos, e mesmo contra o Sr. Prior, que julgavam ser seu cúmplice. Tudo terminaria mal, não fosse pela intervenção de Ti Marto: “Sosseguem, rapazes! Não façam mal a ninguém. Quem merece castigo recebe-lo-á. Tudo isso é por desígnio do Alto.” 

Para provar sua inocência, o pároco de Fátima escreveu um texto sobre os fatos e o fez publicar em diversos jornais de Lisboa, dando aos acontecimentos uma repercussão em escala nacional.

A quarta aparição da Virgem, contudo, ocorreu no dia 19 de agosto nos Valinhos. Depois da aparição, os pastorinhos colheram uns raminhos da azinheira que tocaram nos vestidos da nívea Senhora, e correram muito depressa a levá-los para casa. A Jacinta mesma os mostrou para a mãe da Lúcia:

– Olhe, tia, Nossa Senhora colocou um pé neste raminho e outro neste.

– Dá-me cá! Deixa ver!

A Jacinta deu-lho e Ti Maria Rosa levou-o ao nariz.

– Mas a que cheira isto? – e continuava a cheirar. – Não é perfume… não é incenso… sabonete… cheiro de rosa também não é, nem de nada que eu conheça… Mas é um cheiro bom!12

Depois desse dia, apesar de sempre continuar a duvidar das aparições, proibiu as filhas de debocharem da Lúcia. 

 

A quinta aparição

A mais breve das aparições ocorreu no dia 13 de setembro de 1917, quando estiveram presentes em torno de 25 mil pessoas. O Pe. Manuel Nunes Formigão partiu numa charrete com um grupo de peregrinos da Benedita, ansiosos para ver os fenômenos que se produziam todo dia 13 na Cova da Iria:

“À hora aprazada subimos para o carro e partimos. Durante a jornada comovi-me imenso e por mais duma vez me assomaram as lágrimas aos olhos ao constatar a Fé e a piedade ardente de tantos milhares de romeiros.

“Os caminhos e atalhos iam cheios de gente. Não havia carreiro, por mais pequeno que fosse, que não trouxesse pessoas à estrada. Era uma peregrinação verdadeiramente digna deste nome, cuja vista, só por si, fazia chorar de comoção. Nunca me fora dado presenciar em toda a minha vida uma tão grande e tão empolgante manifestação de Fé. Não se via nem se ouvia coisa alguma que traduzisse o mais imperceptível sentimento de leviandade ou mesmo um propósito de divertimento inocente.”

Passaram em Aljustrel tão logo chegaram para fotografar e conversar com os videntes:

“Foi essa a cena que mais me impressionou. Fiquei positivamente encantado. Aquela simplicidade angélica e aquela absoluta despreocupação, que elas manifestavam, não pode mentir. Não têm o acanhamento próprio das crianças rudes dos campos e das serras na presença de pessoas desconhecidas. Tanto se lhes dá falar com uma pessoa estranha como com muitas. As respostas que dão são sempre as mesmas. Parecem adultos na maneira de se exprimir.”

Outro sacerdote presente na hora da aparição de setembro foi o Cônego José Galamba de Oliveira, que chegou a Fátima acompanhado de um grupo de seminaristas:

“Não dei por nada junto do local mas, após a aparição, não posso indicar o momento preciso, olho para o Céu, talvez porque alguém a isso me convidasse, e vejo à distância aparente de um metro do Sol um como globo luminoso que em breve começou a descer em direção ao poente e, da linha do horizonte, voltou a subir de novo em direção ao Sol.

“Apoderou-se de nós uma justificada comoção. Rezávamos de rijo a pedir não sei o quê. Todos os presentes puderam ver o mesmo globo à exceção de um meu condiscípulo, hoje sacerdote também, natural de Torres Novas. Tomei-o pelo braço para lhe mostrar mas nessa altura perdi o dito globo de vista sem que ele lograsse notá-lo, o que o levou a dizer entre lágrimas: ‘Por que será que eu não vejo? Quem sabe se estou em pecado mortal?’

“Antes ou depois, mas decerto no mesmo dia, começamos eu e outros, não sei se todos os presentes, a ver uma queda como de pétalas de rosas ou flores de neve que vinham do alto e desapareciam um pouco acima das nossas cabeças, sem que as pudéssemos tocar.

“Eu não vi mais nada. Mas isso bastou para nos encher de consolação e partimos com a certeza íntima, uma como intuição, de que estava ali o dedo de Deus.”

Nossa Senhora pediu mais uma vez o terço diário e prometeu fazer um milagre, para que todos pudessem crer, no dia 13 de Outubro.

 

O grande milagre

“O clero do lugar e das redondezas mantém uma atitude de prudente reserva, ao menos na aparência, em relação aos fatos. É o costume da Igreja. Ela proclama abertamente que, em tais circunstâncias, é lícito duvidar. Mas, secretamente, rejubila-se com a grande afluência de peregrinos, que desde o mês de maio aumentou cada vez mais.

“Existem até pessoas que sonham com uma igreja grande e magnífica, sempre cheia; nas proximidades, hotéis, esplendidamente instalados com os mais requintados confortos modernos; lojas imensas, perfeitamente apetrechadas com mil e um objetos de piedade e lembranças de Nossa Senhora de Fátima; estradas de ferro que conduzam convenientemente os peregrinos até ao futuro santuário milagroso, em vez desses ônibus que são um desrespeito à massa dos fiéis e dos curiosos…” 13

Essas linhas odiosas, anteriores aos acontecimentos do 13 de outubro, foram escritas pelo jornalista Avelino de Almeida, um maçom de quatro costados, para o jornal “O Século”, principal diário português. 

Sem acreditar na realidade dos fenômenos, foi como jornalista que se uniu aos milhares de peregrinos que se dirigiam então a Fátima para presenciar um milagre com dia, local e hora marcados para acontecer. Calcula-se em torno de 70 mil o número dos que foram à Cova da Iria, sem se importar com a chuva torrencial que então caía. 

Em Aljustrel, a tensão chegou ao cúmulo. “Tinha-se espalhado o boato que as autoridades haviam decidido fazer explodir uma bomba junto de nós, no momento da aparição”, recorda a Ir. Lúcia. Sua família temia pelo que lhes poderia suceder se não houvesse o tal milagre, e assim, às vésperas do dia, Ti Maria Rosa procurou a filha: 

– Ó, Lúcia, é melhor irmo-nos confessar. Dizem que havemos de morrer amanhã na Cova da Iria… Se a Senhora não faz o milagre, o povo mata-nos. Portanto é melhor que nos confessemos, a fim de estarmos preparados para a morte.

A filha não demonstrava medo algum: 

– Se a mãe quer confessar-se, eu vou também; mas não por esse motivo. Não tenho medo de que nos matem. Estou certíssima que a Senhora há-de fazer amanhã tudo o que prometeu 14.

Um vizinho procurou o pai do Francisco e da Jacinta:

 – Ó, tio Marto, é melhor não ir... Porque poderia calhar ser maltratado. Os pequenos, não; são crianças e ninguém lhes vai fazer mal. Mas você é que está em risco de ser enxovalhado.

O caminho até a Cova da Iria estava apinhado de gente, e não foi sem dificuldade que os pequenos venceram a distância que separava a sua casa materna da Cova da Iria. Lúcia vinha de mãos dadas com o pai, mas a mãe também a acompanhava: “Se a minha filha vai morrer, quero morrer ao seu lado!”, declarou.

Entre os circunstantes, percebiam-se alguns homens armados com varapaus que pareciam inclinados a iniciar uma confusão na primeira oportunidade. Muitos havia que lá foram movidos tão-somente pela curiosidade, como era o caso do Sr. Alfredo da Silva Santos, que poucos dias antes ouvira de um amigo numa cafeteria em Lisboa: 

– Lá em casa, depois de amanhã, vai tudo a Fátima. Parece que tem havido por ali qualquer coisa de extraordinário e está tudo cheio de curiosidade de ver o que há ao certo. 

– Pois também vou! – respondeu. O relato do que viu, como veremos adiante, é espetacular. 

Apesar da chuva, toda a multidão rezava o terço, estando os serranitos ajoelhados diante da azinheira. Por volta das doze horas, houve um princípio de confusão: um padre aproximou-se impaciente dos pequenos e começou a empurrá-los, querendo enxotá-los para longe: “Fora com tudo isto! É tudo uma ilusão!” Lúcia, quase a chorar, recusou-se a sair: “Veio das outras vezes e agora também há de vir!”. Murmúrios e queixas se ouviam, quando finalmente a Lúcia gritou: “Já vi o relâmpago”.

Naquele momento exato, a chuva cessou. O rosto da pequena transformou-se, adquirindo uma beleza indizível. Ela sorria enquanto, de uma ponta a outra do vale, reinava o silêncio mais absoluto:

– Que é que Vossemecê me quer? 

– Quero dizer-te que façam aqui uma capela em Minha honra, que sou a Senhora do Rosário, que continuem sempre a rezar o terço todos os dias. A guerra vai acabar e os militares voltarão em breve para suas casas.

– Eu tinha muitas coisas para Lhe pedir: se curava uns doentes e se convertia uns pecadores, etc.

– Uns, sim; outros, não. É preciso que se emendem, que peçam perdão dos seus pecados.

E tomando um aspecto mais triste, Nossa Senhora encerrou as aparições na Cova da Iria com esta palavra que é como que um resumo de toda a mensagem de Fátima:

– Não ofendam mais a Deus Nosso Senhor, que já está muito ofendido.

Abrindo as mãos, fê-las refletir no sol. A Lúcia, levada por um movimento interior, gritou a todos que olhassem para o sol. Deu-se então o grande milagre:

“Não posso então explicar o que se deu”, narrou o Sr. Alfredo da Silva Santos, que veio de Lisboa. “O sol começou a bailar e a certa altura pareceu deslocar-se do firmamento e, em rodas de fogo, precipitar-se sobre nós. Minha mulher – estávamos casados havia pouco – desmaiou e eu não tive coragem para a amparar. Foi o meu cunhado João Vassalo que a susteve nos braços. Caí de joelhos esquecido de tudo. E quando me levantei não sei o que disse; acho que me pus a gritar como os outros.” 15

Aos olhos da multidão, o sol adquiriu movimentos nunca antes vistos. Primeiro, deixou-se ver por longos minutos sem queimar a vista. Em seguida, descreveu no firmamento uma tripla dança, rodopiando ao redor do próprio eixo como um pneu de bicicleta e bailando para lá e para cá. Finalmente, o momento mais assustador: o sol se desprendeu do céu ameaçando cair sobre o povo aterrorizado:

“A gente gritava: ‘Ai, Jesus, que aqui morremos todos!, Ai Jesus, que aqui morremos todos!…’

“Outros bradavam: ‘Nossa Senhora nos valha!’, e rezavam o ato de contrição.

“Houve até uma senhora que fez confissão geral e dizia em altas vozes: ‘Eu fiz isto, aquilo e aqueloutro!’”

O fenômeno foi testemunhado não apenas pelas multidões em Fátima, mas mesmo em outras aldeias, como São Pedro de Muel (40 km de distância), ou Alburitel (18 km). O Padre Inácio Lourenço relata o que viu nesse dia:

«Tinha apenas 9 anos e freqüentava a escola de primeiras letras da minha aldeia (18 ou 19 quilômetros da Fátima).

…Era meio-dia mais ou menos quando fomos sobressaltados pelos gritos e exclamações de alguns homens e mulheres que passavam na rua diante da nossa escola. A professora, muito boa e piedosa, mas facilmente impressionável e excessivamente tímida, foi a primeira a correr para a rua, sem poder impedir que todas as crianças corressem atrás dela.

Na rua o povo chorava e gritava, apontando para o sol, sem atender às perguntas que, aflitíssima, lhe fazia a nossa professora.

Era o grande Milagre, que se via distintissimamente do alto do monte, onde fica situada a minha terra: era o Milagre do sol com todos os seus fenômenos extraordinários.

Sinto-me incapaz de o descrever, como o vi e senti então. Eu olhava fixamente para o sol, e parecia-me pálido, de modo que não cegava os olhos; era como um globo de neve a rodar sobre si mesmo.

Depois, de repente, pareceu que baixava em ziguezague, ameaçando cair sobre a terra. Aterrado, corri a meter-me no meio da gente. Todos choravam, aguardando de um instante para o outro o fim do mundo.

Junto de nós estava um incrédulo, sem religião, que tinha passado a manhã a mofar dos simplórios que faziam toda aquela caminhada a Fátima para irem ver uma rapariga. Olhei para ele: estava como paralisado, assombrado, com os olhos fitos no sol. Depois vi-o tremer dos pés à cabeça e, levantando as mãos ao Céu, caiu de joelhos na lama, gritando: “Nossa Senhora! Nossa Senhora!”» 16

Quando o sol retornou ao seu lugar, e todos perceberam que não havia perigo, foi uma ação de graças coletiva: – Milagre! Milagre! Bendita seja Nossa Senhora!

Conversões espantosas ocorreram, como a do jovem rico que fora com a mãe. Ela, voltando para o carro onde o deixara, perguntou-lhe:

– Meu filho, ainda duvidas da existência de Deus? 

– Não, minha mãe – respondeu-lhe o jovem com os olhos marejados de lágrimas. – Não, agora é impossível.

Um sujeito de barbas brancas, de Santarém, apostrofava contra os ateus: – Há ou não há sobrenatural? E a Lúcia, que subira nos ombros de um jovem advogado que viera lhe ajudar a deixar a Cova da Iria, gritava para o povo, como um pregador numa cátedra: – Penitência! Penitência! Nossa Senhora quer que façam penitência. Se fizerem, a guerra acabará! – Sua atitude enérgica, seu entusiasmo de fogo, calavam fundo. Era como se ouvissem a voz inspirada de um profeta.

Ao fim, enquanto o povo deixava o local cantando o Salve Rainha, via-se aqui e ali, largados pelo caminho, alguns livre-pensadores, confusos, embrutecidos.

E o que escreveu o jornalista Avelino de Almeida, cujas linhas desrespeitosas lemos acima? Após o fenômeno, publicou em “O Século”:

“Aos olhos deslumbrados daquele povo, cuja atitude nos transporta aos tempos bíblicos e que, pálido de assombro, com a cabeça descoberta, encara o azul, o sol tremeu, o sol teve nunca vistos movimentos bruscos, fora de todas as leis cósmicas – o sol bailou, segundo a típica expressão dos camponeses.”

Não foi o único jornal a relatar os acontecimentos. Lemos em “O Dia” as seguintes linhas, publicadas em 19 de Outubro de 1917:

“…o sol prateado, envolvido na mesma leveza cinzenta de gaze, viu-se rodar e girar em volta do círculo das nuvens afastadas! Foi um grito só em todas as bocas; caíram de joelhos na terra encharcada os milhares de criaturas de Deus que a fé levantava até ao Céu!”

O célebre Dr. Almeida Garrett, catedrático e escritor, esteve presente no dia e deixou narrado o que viu:

“Maravilhoso é que, durante longo tempo, se pudesse fixar o astro, labareda de luz e brasa de calor, sem uma dor nos olhos, sem um deslumbramento na retina que cegasse. Este fenômeno, com duas breves interrupções, em que o sol bravio arremessou os seus raios mais coruscantes e refulgentes, e que obrigaram a desviar o olhar, devia ter durado cerca de dez minutos. Este disco tinha a vertigem do movimento. Não era a cintilação de um astro em plena vida. Girava sobre si mesmo numa velocidade arrebatada.

“De repente ouve-se um clamor, como que um grito de angústia de todo aquele povo. O sol, conservando a celeridade da sua rotação, destaca-se do firmamento e, sangüíneo, avança sobre a terra, ameaçando esmagar-nos com o peso da sua ígnea e ingente mó. São segundos de impressão terrífica.”

 

SEGUNDA PARTE: “Deus quer estabelecer no mundo a devoção a meu Imaculado Coração…”

Depois dos prodígios tão admiráveis do dia 13 de outubro, quando toda a gente vira o sol bailar, suporíamos que Fátima ganharia o mundo, que o clero haveria de aderir em peso e aprovaria apressado o culto de Nossa Senhora do Rosário de Fátima. Mas, não foi assim: o selo oficial de aprovação do clero a Fátima teria de esperar ainda treze anos. 

No ínterim, o governo maçônico fez de tudo para impedir aquilo que chamavam de “reação jesuíta” e denegrir o “fanatismo obscurantista”, que supunham tramado pelos curas para derrubar a República. O clero, por sua vez, não saía de sua prudente indiferença: o pároco de Fátima mesmo não cedia aos que pediam sua aprovação para a construção de uma capelinha no local das aparições, declarando não “querer se meter com estas coisas”; e quando a capelinha foi finalmente construída, por iniciativa exclusiva dos fiéis, nenhum padre quis benzê-la. Em Lisboa, num Congresso Católico, um conferencista referiu-se à Jacinta, que acabara de falecer, como uma vidente, o que suscitou uma gargalhada geral, a que se associou Sua Eminência o Cardeal Patriarca de Lisboa, Dom Antônio Mendes Belo. Mesmo a família de Lúcia, que num primeiro momento constatara aliviada o milagre do sol, retornava pouco a pouco à sua descrença e hostilidade inicial. “Ocorreu-me pensar que tudo estava terminado. Senti uma amargura profunda de ver que a Santíssima Virgem não seria jamais venerada lá, como havia pedido. Pensava freqüentemente nisso. Esta idéia não me saía do espírito e me afligia”, escreveria Lúcia.

Aparentemente, era preciso mais do que um baile solar para Fátima conquistar a Igreja. 

 

Morte do Francisco 

Nos fins de 1918, um surto de gripe pneumônica chegava a Portugal. Na Serra do Aire, os sinos da igreja repicavam diariamente dando notícia de mais algum vizinho que partia – eram tantos os óbitos que, em algumas aldeias portuguesas, o dobre de finados foi proibido para evitar o pânico.

Francisco adoeceu primeiro, e o seu estado era grave.

– Se Nossa Senhora te curar – dizia-lhe a madrinha – prometo oferecer-Lhe o teu peso em trigo.

– Não vale a pena. Nossa Senhora não lhe fará essa graça – respondeu o Francisco, com um sorriso angélico. E a todos que lhe asseveravam que haveria de melhorar, respondia com ar misterioso: não.

A doença progredia e o pequeno ardia em febre. O desfecho parecia iminente.

– Ô, pai, queria receber o Pai do Céu, antes de morrer.

– Já vou tratar disso – respondeu o bom homem, e partiu a toda pressa a chamar o padre.

O sacerdote ouviu-lhe a confissão. Quis saber se era verdade que tinha visto Nossa Senhora, e o pequeno respondeu que sim. No dia seguinte, Francisco fez sua primeira e última comunhão. 

– Olhe, mãe, que luz tão linda ali, junto da porta! – Foram estas as suas últimas palavras. Francisco sorriu, dum sorriso angélico. “O Céu aproximava-se”, e o menino voou “nos braços da Mãe celeste”17.

 

Morte da Jacinta

A morte da Jacinta, cercada de tantos pormenores tocantes, aponta para a mão da Virgem Maria a guiar os últimos dias do seu anjinho na terra. Ela contou à Lúcia que a Bela Senhora lhe tornara a aparecer para comunicar novas cruzes, disse que iria para dois hospitais e depois morreria sozinha: 

– Ô, minha Mãezinha do Céu, então eu hei de morrer sozinha? – lamentava-se Jacinta.

– Que te importa morrer sozinha, se Nossa Senhora te vem buscar? – animava-a Lúcia.

– É verdade, não me importa nada. Mas não sei como é: às vezes não me lembro que Ela me vai a buscar, só me lembro que morro sem tu estares ao pé de mim.

– Coragem, então, Jacinta. A ti já te falta pouco para ires para o Céu, mas a mim!

– Coitadinha! Não chores… Lá hei-de pedir muito e muito por ti… Tu ficas… mas é Nossa Senhora que quer assim. 

Abriu-se um abcesso no lado esquerdo, o pus escorria, o peito alagava-se e ela não conseguia dormir. Os tratamentos que Jacinta recebera ao longo de dois meses no hospital de Vila Nova de Ourém revelaram-se inúteis, e a morte era iminente. Os pais não cogitavam enviar a menina para a capital, não só porque lá os custos do tratamento seriam elevados demais, mas por acreditarem que era tudo inútil. Mas não foi isso o que a Providência estabelecera.

Por aquele tempo, apareceu em Aljustrel um senhor acompanhado da esposa; tratava-se de um médico de Lisboa. O casal vinha de adquirir um carro, e decidira que a primeira viagem com o veículo seria para a Cova da Iria. De passagem por Santarém, cumprimentaram o Rev. Dr. Formigão, que se dispôs a acompanhá-los, e foi assim que chegaram à casa da família Marto. Ao ver o triste estado em que a Jacinta se encontrava, o médico não sossegou até convencer a família a levá-la para a capital, onde seria tratada pelos melhores pediatras portugueses.

O pai foi comunicar sua decisão à filha, que respondeu:

— Ó, meu pai ! (...) Se eu for para Lisboa, o pai pode dizer-me adeus.

Ela não tardou a partir. Suas últimas palavras de despedida para Lúcia são comoventes:

— Nunca mais nos tornaremos a ver!… Reza muito por mim até que eu vá para o Céu; depois lá eu peço muito por ti. Não digas nunca o segredo a ninguém, ainda que te matem. Ama muito a Jesus e ao Imaculado Coração de Maria e faz muitos sacrifícios pelos pecadores.

Chegando a Lisboa, a pequena hospedou-se provisoriamente no Orfanato Nossa Senhora dos Milagres, situado na Rua da Estrela, enquanto aguardava o internamento no Hospital D. Estefânia. Sua mãe não pôde ficar com ela, pois seus outros filhos seguiam doentes, e Jacinta ficou sozinha.

Contudo, longe de ser um lugar lúgubre e triste, o Orfanato lhe dava grandes alegrias, pois a Santa Missa era celebrada diariamente numa capela contígua, o que permitia à serranita, levada ao colo pela Madre Superiora, comungar diariamente. Passava todo o tempo que lhe permitiam rezando e meditando na capelinha — rezava sentada, pois já não conseguia ajoelhar-se. 

No orfanato moravam vinte e cinco crianças, mantidas à custa de esmolas. Jacinta dava-se bem com todas, mas preferia uma em especial, que regulava em idade com ela. Costumava-lhe fazer breves pregações. A madre superiora, sempre atenta a tudo o que se passava, ouvia às ocultas a conversa da pastorinha:

— Não deves mentir, nem faltar nunca à verdade — dizia-lhe. — Não deves ser preguiçosa; deves ser muito obediente e suportar tudo por amor de Nosso Senhor com paciência, se queres ir para o Céu.

Madre Maria da Purificação Godinho era o nome da superiora — uma religiosa franciscana que se vestia com trajes seculares, pois as leis da República proibiam o hábito religioso. Todas as crianças, porém, costumavam chamá-la de madrinha, costume que Jacinta logo adotou. A sua nova madrinha narra admirada a sabedoria precoce da criança, como prova de que algo verdadeiramente sobrenatural tocava a pequenita. Eis algumas sentenças que a superiora compilou da boca da menina, e que denotam uma espiritualidade profunda:

Se os homens soubessem o que é a eternidade, faziam tudo para mudar de vida.

Os homens perdem-se, porque não pensam na morte de Nosso Senhor e não fazem penitência.

A confissão é um Sacramento de misericórdia. Por isso é preciso aproximarem-se do confessionário com confiança e alegria. Sem confissão não há salvação.

Os médicos não têm luz para curar os doentes, porque não têm amor a Deus.

Quem foi que te ensinou estas coisas? Perguntou-lhe a Madre Godinho.

— Foi Nossa Senhora: mas algumas penso-as eu. Gosto muito de pensar.

A serranita parecia possuir ainda o dom da profecia. Certa vez, sua mãe foi visitá-la no orfanato. Madre Godinho perguntou então a ti Olímpia:

— Gostava que tuas filhas Florinda e Teresa seguissem vida religiosa?

— Deus me livre! — respondeu a boa mulher.

Momentos depois a Jacinta, que não tinha ouvido a conversa da mãe com a Superiora, disse muito séria a esta última:

— Nossa Senhora gostava muito que minhas irmãs se fizessem freiras. Minha mãe não quer, mas por isso Nossa Senhora não tardará a levá-las para o Céu.

Assim foi: as duas meninas morreram pouco depois da Jacinta. Florinda tinha sete anos e Teresa, dezesseis.

Quando finalmente ingressou no hospital Dona Estefânia, de Lisboa, ninguém sabia que se tratava de uma das videntes de Fátima. As enfermeiras relataram que, à primeira vista, parecia uma criança igual às outras, mas não tardariam a perceber que havia qualquer coisa de muito especial naquela menina: “Esta menina era muito diferente das outras. Muito paciente… uma santinha! Jamais nós a ouvimos chorar, jamais nós a vimos aborrecer-se”. Jacinta foi operada no dia 10 de fevereiro, e o cirurgião, o Dr. Castro Freire, que também ignorava tratar-se da pastorinha de Fátima, testemunhou a paciência heróica da serranita, que não pôde ser cloroformizada por sua extrema fraqueza. Diz ele: “Para a abertura de uma fístula, a anestesia local está longe de suprimir todas as dores… as únicas palavras que a ouvi pronunciar durante a operação foram ‘Ai! Jesus! Ai! Meu Deus!’”. Na cirurgia, foram-lhe tiradas duas costelas do lado esquerdo, deixando uma abertura do tamanho de um punho.

Passada a operação, a Jacinta melhorava dia após dia. Contudo, no dia 20 de fevereiro, a menina pediu pelo Prior da freguesia, querendo confessar-se e receber os últimos sacramentos, dizendo que havia de morrer em breve. O padre, vendo-a tão bem, não entendeu o pedido e recusou. Jacinta ainda insistiu, mas sem sucesso. Horas mais tarde, morreu sozinha, como Nossa Senhora disse que morreria.

O cadáver da santinha foi levado provisoriamente para a Igreja dos Anjos, em Lisboa. Imediatamente, iniciou-se uma verdadeira romaria de fiéis que levavam terços e imagens para tocar nos vestidos da pastorinha. Passados três dias e meio do falecimento, a face da Jacinta conservava uma cor viva e corada, e o corpo exalava um perfume delicado, semelhante a um ramalhete de flores, coisa que não se poderia explicar naturalmente e que causou grande impressão na agência funerária. 

A família recebeu com grande emoção o comboio que chegava com o corpo da serranita. O pai da Jacinta narrou o episódio:

“Quando cheguei à Vila e vi aquele grupo de pessoas em volta do caixãozinho da minha filha… desatei a chorar como uma criança. Fiquei esgotado. Nunca chorei tanto!..

Nada te valeu! Nada te aproveitou!…

Foste aqui dois meses e depois foste para Lisboa…

E lá morreste sozinha!…”

Anos mais tarde, em 1935, o Sr. Bispo de Leiria decidiu trasladar os restos mortais da pequena vidente para um jazigo novo localizado no cemitério de Fátima. Antes da partida, porém, o caixão de chumbo foi aberto e, para surpresa de todos os presentes, o rosto da criança apresentava-se incorrupto.

 

Lúcia parte para as Dorotéias

Francisco e Jacinta já haviam morrido quando S.Ex.a Rev.ma D. José Alves Coreia da Silva tomou posse da Diocese de Leiria 18. Um dos primeiros cuidados do novo bispo foi tirar Lúcia do local das aparições e mandá-la para um colégio distante — idéia que o Pe. Formigão acalentava desde o término das aparições. 

— Tu não dizes nada a ninguém para onde vais.

— Sim, Senhor Bispo — respondeu a pequena.

— No Colégio para onde vais não dizes quem és.

— Sim, Senhor Bispo.

— Nem dizes mais nada sobre as Aparições de Fátima.

— Sim, Senhor Bispo.

Esse procedimento não era sem razão: a menina expunha-se à graves perigos ficando em Fátima, tanto de ordem espiritual como físicos. Por aquele tempo, o clero mantinha certa distância dos acontecimentos, e Lúcia viu-se colocada no centro das atenções, alvo de incessantes interrogatórios e da adulação dos peregrinos. Por outro lado, não se deve diminuir o risco real de vida: a perseguição religiosa era intensa e fazia pouco que Sidónio Pais fora assassinado em Lisboa. A própria Lúcia sofrera ameaça de morte no ano de 192019.

Era preciso partir. Assim, por determinação do bispo, a pequenita deixou sua aldeia natal de madrugada rumo à cidade do Porto, sem se despedir de ninguém, nem informar aonde ia. A instrução era não retornar a Fátima, nem se corresponder com ninguém da aldeia.

Para uma menina que pouco se afastara de casa, a partida era dilacerante:

“Para onde o Sr. Bispo me quer levar, não sei como será, é com a condição de não voltar mais a casa, por isso não voltarei mais a ver a família, nem estes lugares benditos! Cova da Iria, Loca do Cabeço, Valinhos, Poço do Arneiro, a Igreja onde fica o meu Jesus Escondido e onde tantas graças tenho recebido! O sorriso da minha primeira Comunhão! Vila Nova de Ourém, onde fica a Jacinta, o cemitério onde ficam os restos mortais de meu querido pai e Francisco! Nunca mais voltar a pisar esta terra abençoada, para ir, sabe Deus para onde! Sem nem sequer poder escrever diretamente a minha Mãe! Impossível, não vou!”

Mas a menina de quatorze anos obedeceu, e partiu levando sobre os ombros a dura missão de espalhar a devoção ao Imaculado Coração de Maria. Antes de subir no trem, na estação de Leiria, despediu-se comovida da mãe, que, sempre torturada pela dúvida, disse-lhe: “Vai, filha, que, se é verdade que viste Nossa Senhora, ela te guardará, mas se mentiste, então vais ser uma desgraçada.”20

 

Como Fátima conquistou a Igreja

Por todo o período que se sucedeu à série de aparições da Cova da Iria, o governo republicano português protagonizou uma verdadeira ópera bufa buscando impedir a repercussão dos acontecimentos. Não que suas intenções não fossem realmente hostis, mas eram acometidos de uma singular incompetência sempre que se lançavam contra Fátima.

O governo ordenou que a azinheira onde a Virgem aparecera fosse arrancada e arrastada a reboque de um carro pelas ruas da cidade, contando que este ultraje afastaria definitivamente o povo da nova devoção — foram pela noite e arrancaram… a árvore errada! Em seguida, foi a vez de uns livre-pensadores fazerem um comício contra as “fantochadas de Fátima” na saída da Missa paroquial. Chegado o dia, não encontram ninguém por lá — o Pároco havia transferido a Missa daquele dia para a Capela de Nossa Senhora de Urtiga. Para impedir as procissões, o governo lançava mão da Guarda Municipal e fechava nos dias 13 o trânsito para Fátima21. — Tudo inútil! O povo desvia caminho e chegava ao local das aparições atravessando as fazendas. 

Os guardas mesmos irritavam-se com as ordens que recebiam. Um deles declarou: 

— Se o senhor soubesse o que me custa estar aqui!… Cumpro ordens e cumpro-as à risca, mas creia que, cá por dentro, tudo isto me revolta. Eu sou religioso, senhor, e não compreendo que utilidade haja em estar a proibir essa pobre gente de ir rezar lá abaixo!… Isto até dá vontade de chorar!… Tenho uma irmã que foi a Senhora de Fátima que lhe salvou a vida22.

Não é tudo: em 1922, na ânsia de pôr um fim ao culto de Fátima, os maçons puseram bombas na capelinha das aparições bem como na azinheira — novo fiasco! A dinamite posta na azinheira não explodiu, e as demais apenas derrubaram o telhado da minúscula capelinha. O bispo de Leiria proibiu que fosse restaurada, pois raciocinava como Gamaliel: “se esta idéia ou esta obra vem dos homens, ela mesma se desfará; mas, se vem de Deus, não a podereis desfazer” (At 5, 38-39)

Enquanto tudo isso ocorria, de um extremo a outro de Portugal, desde as margens do Douro aos campos férteis do Algarve, almas atribuladas continuavam a vir a Fátima em busca de socorro para as suas angústias, remédio para as suas dores, lenitivo para os seus males. No ano mesmo do malogrado atentado ao santuário, quarenta mil peregrinos estiveram em Fátima. Dois anos depois, em 1924, o número aumentara para duzentos mil peregrinos — três vezes mais do que no milagre do Sol. Parecia que cada vez vinha mais gente, todos movidos pelas numerosas graças e milagres alcançados pela intercessão de Nossa Senhora do Rosário de Fátima.

Maria da Capelinha narra que, por esse tempo, eram muitos os que vinham apenas para agradecer. Uma vez, viu um homem de Torres Novas chorando diante da azinheira. Havia muitos anos que tinha uma ferida na perna que deitava pus, e parecia não ter cura. Sua esposa veio de Fátima com um punhado de terra e, misturando a terra com água, pediu-lhe que a deixasse lavar a sua perna com aquela lama. O homem, que não tinha crença alguma, retrucou que sua perna precisava de asseio, não de sujeira. A mulher insistiu e terminou por dobrar a resistência do marido. Durante nove dias, lavou sua perna com aquela lama e, a cada dia, parecia-lhe que a ferida ficava menor. No nono dia estava perfeitamente curado. Converteu-se e partiu logo para a Cova da Iria — caminhando com os próprios pés, como fazia questão de dizer. Outra vez foi um tuberculoso de Tomar, também descrente. A mulher lhe fez beber um chá com a terra da Cova da Iria. Contrariado, ele bebeu, e curou-se inexplicavelmente. 

O Pe. Formigão, assíduo nas peregrinações populares, foi mais de uma vez testemunha de curas espantosas. Uma senhora de nome Helena Violeta, de Foz do Douro, paralítica das mãos e membros inferiores, foi a Fátima. Carregada então por religiosos servitas até a Imagem de Nossa Senhora, sentiu-se subitamente curada. Soltou-se dos braços dos religiosos e ajoelhou em fervorosa ação de graças à Virgem. Em seguida, tomada de alegria e exultação, pôs-se à correr em direção à capela das missas, para adorar e agradecer a sua cura a Jesus Sacramentado. 

“Não foi a Igreja que impôs Fátima à fé popular; foi Fátima que se impôs à Igreja”, declarou o Cardeal Cerejeira, patriarca de Lisboa. O que ocorreu após as aparições da Cova da Iria foi um milagre de Fé! Em face de tantas conversões, e do espetáculo edificante de tantos devotos que acorriam à Fátima, o clero começou a aderir. Já no ano de 1926, o Núncio Apostólico veio visitar o Mosteiro da Batalha e, por curiosidade, quis ir ao local das aparições. A impressão que lhe causou foi tamanha, que três meses depois, em 21 de Janeiro de 1927, Roma concedia a Fátima o privilégio da Missa Votiva. A partir daí, os bispos portugueses começaram, um a um, a visitar a Cova da Iria e, em 1930, finalmente, o bispo de Fátima-Leiria declarou como dignas de crédito as visões dos pastorinhos e permitiu oficialmente o culto de Nossa Senhora de Fátima.

 

A renovação de Portugal

Os acontecimentos da Cova da Iria ultrapassaram a piedade individual e adquiriram uma repercussão profunda no tecido social do país: “Quem tivesse fechado os olhos há vinte e cinco anos e os abrisse agora já não reconheceria Portugal, tão vasta foi a transformação operada pelo fator modesto e invisível da aparição da Santíssima Virgem em Fátima. De fato, Nossa Senhora quer salvar Portugal”, declararam os bispos portugueses numa Pastoral Coletiva.

O renascimento católico que se seguiu aos acontecimentos de 1917 foi espantoso. As vocações dispararam: quase quadruplicou o número de religiosos num período de dez anos, enquanto os seminários encheram-se. Na diocese de Portalegre, por exemplo, havia 18 seminaristas em 1917; anos depois, em 1933, o número aumentou para 201. Na pequena diocese de Leiria, o seminário estava fechado nos tempos das aparições: dez anos mais tarde fora reaberto e contavam-se 75 seminaristas. No bastião católico do norte, o que ocorreu foi uma explosão de vitalidade: só em Braga o número alcançou 478 seminaristas. Ao lado de tudo isso, a imprensa e o rádio católico desenvolviam-se, bem como os retiros e outras obras de apostolado. 

A romaria a Fátima era cada vez mais concorrida: em 1937, o número de peregrinos na primeira grande peregrinação nacional chegou a meio milhão. O escritor William Thomas Walsh narrou o que viu:

“Entre as estrofes, elevavam-se súplicas individuais e esperanças incontidas, às vezes entremeadas de soluços comovedores: ‘Senhor, nós Vos adoramos!’, ‘Senhos, nós Vos amamos!’, ‘Jesus, tende piedade de nós!’, ‘Senhor, se quiseres, podes curar-me!’ Sim, essas vozes pareciam pertencer a outros tempos mais sinceros e mais ardorosos que o nosso. Pareciam vir das planícies de Esdrelon, das muralhas de Jericó e de Constantinopla, dos campos de Túnis, como pulsações da fé e da dignidade humana, irrompendo através da mediocridade e do nivelamento rasteiro da idade da máquina.” 23

Essa renovação espiritual repercutiu politicamente com a subida pacífica ao poder de um grande líder, António de Oliveira Salazar, que conduziu um programa verdadeiramente católico e contra-revolucionário. Adversário encarniçado do socialismo e do liberalismo, Salazar combatia tudo o que militava contra a família, e contribuiu para fazer do seu país, tido como o mais instável e caótico da Europa, no mais estável de todos — note-se que, entre 1910 e 1926, quarenta e cinco governos haviam se alternado, e o país via-se afundado em dívidas com uma inflação descontrolada. Com Salazar, Portugal viveu em paz, e foi preservado tanto do contágio comunista, que levou a vizinha Espanha a uma terrível guerra civil, como dos horrores da Segunda Guerra Mundial 24. Os estrangeiros que chegavam da Itália, Inglaterra ou França no início dos anos 40, não acreditavam no que viam: enquanto o continente vivia o horror, e boa parte da população viril era ceifada, nas cidades portuguesas a rotina seguia tão inalterada como antes. "O que teve lugar em Portugal proclama o milagre”, declarou o Cardeal Cerejeira, “e prefigura o que o Imaculado Coração de Maria preparou para o mundo”. 

 

Vilar, Porto (1921-1925)

Num subúrbio do Porto, ao lado de uma fábrica, ficava o Instituto Arcediago van Zeller, colégio destinado à educação de moças e administrado pelas senhoras dorotéias. A Ordem de Santa Dorotéia fora fundada em 1834 por Santa Paula Frassinetti (1809-1882) e aprovada por Pio IX, em 1863. Contando com doze estabelecimentos em Portugal, a ordem estava solidamente estabelecida quando sobreveio a revolução de 1910. A partir de então, perseguidas e maltratadas pelos republicanos, as irmãs foram impedidas de usar os hábitos religiosos e viram a maior parte dos seus estabelecimentos ser fechada pelo novo governo. 

Um dos poucos remanescentes era o Colégio do Vilar, cuja superiora chamava-se Madre Maria das Dores Magalhães. Pouco simpática às aparições de Fátima — que ainda não haviam sido aprovadas por aquele tempo — chegou a pedir a Dom José que a dispensasse da obrigação de receber a vidente, pois temia que contaminasse as outras com os modos rudes da gente do campo. “Sim, é uma simples — respondeu-lhe o bispo — mas não creio que vá achá-la simplória. E desejo que a pequena fique aí por uns tempos.”

A primeira impressão que Lúcia causou não foi exatamente favorável, e a madre superiora julgou que seus temores se mostrariam justificados. O confessor do Instituto, Pe. Manuel Pereira Lopes, mudou o nome da menina e tratou de lhe passar severas recomendações: 

— A menina agora muda de nome. A Senhora Diretora tem gosto que fique com o seu, por isso fica a chamar-se Maria das Dores. Se lhe perguntarem de que terra é, diz apenas que é de perto de Lisboa e nada mais. Não fale de Fátima, nem da sua família, nada.

Apesar da tristeza inicial, em que tudo parecia “uma sepultura em vida”, como ela mesma escreveu, a nova vida não iria desagradá-la de todo, sobretudo por ter-se livrado do interrogatório incessante dos curiosos. A rotina era rígida e bem diferente da que levava em Aljustrel: 5:30 despertar; 6:00 meditação; 6:30 missa e comunhão; 7:30 arrumação do dormitório; 7:45 café da manhã; 8:00 aulas e trabalho; 12:00 visita ao Santíssimo Sacramento; 12:15 almoço; 12:45 recreação; 13:30 aulas e trabalho; 16:30 lanche e recreação; 17:00 estudo e trabalho; 19:00 terço; 19:30 jantar; 20:00 recreação; 20:30 oração da noite e dormir. A Lúcia dormia num dormitório coletivo, mas isso não lhe impediria de manter suas práticas de mortificação, como a corda que trazia à cinta desde os tempos de pastorinha. 

Pouco a pouco, a menina perdia seus modos rudes, tornava-se uma boa aluna e conquistava a todos. Eis como a madre superiora a descreveu numa carta ao bispo de Leiria:

“Ao que pese minha total falta de crédito às aparições, observei que não era uma moça comum. Muitas vezes, as irmãs vinham dizer-me que Lúcia tinha qualquer coisa de extraordinário com Nossa Senhora, pois, quando falava dela, era sempre diferente das outras e percebia-se que possuía um amor extraordinário pela Santíssima Virgem. Suas companheiras do Asilo costumavam dizer que não havia quem a igualasse nas bonitas histórias que costumava contar durante o recreio”.

Sim, como em Aljustrel, onde Ti Maria Rosa exclamava “Não sei que atrativo possas ter; as crianças correm para junto de ti como se fossem para uma festa!” 25, Lúcia atraía para junto de si as moças do Asilo do Vilar que se encantavam com sua personalidade e suas histórias. Contudo, jamais falava sobre os acontecimentos que vivera em Fátima. Quanto a isso, nem uma palavra. Sua obediência era heróica: apesar de ter visto Deus Nosso Senhor e a Santíssima Virgem com os próprios olhos, e de tudo isto explodir em seu coração, a moça jamais tocou no assunto para as demais moças do Instituto. Mesmo com a mãe, que a visitou duas vezes, nunca falou a respeito. 

“Quanto à obediência”, continua a Madre superiora, “ela sempre se distinguia, pois fazia tudo muito bem, sem torcer o nariz, sempre de bom coração. Várias vezes, suas companheiras me disseram que Lúcia costumava escolher para si o trabalho menos agradável, deixando os melhores às demais. E fazia tudo com uma simplicidade encantadora.”

O silêncio a respeito das aparições era tão absoluto, que Madre Magalhães veio a supor que a menina havia se esquecido de todo do ocorrido. Para investigar, perguntou-lhe: 

— Lembras do que se passou em Fátima, entre Nossa Senhora e tu? 

A menina baixou os olhos e, ruborizada, respondeu simplesmente: 

— Se me lembro? Penso nisso a todo tempo. 

 

Pontevedra (10/1925-7/1926) - A devoção reparadora dos cinco primeiro sábados

O seu fervor deixava entrever uma vocação. “Suas companheiras dizem amiúde que não há menina mais piedosa e que a capela era onde mais se regozijava, tamanha era sua piedade. Lá, nunca a víamos sentada, mas longe do assento, com as mãos postas sobre o banco. Esta era a sua atitude, que encantava”, escreveu a Madre superiora. E, segundo uma companheira de colégio: “Observá-la na capela, era observar um anjo!“.

Quando a Lúcia procurou-a querendo entrar em religião, a madre pediu que esperasse, e passou-se um ano. Completos dezoito anos, porém, sua superiora interrogou-a se ainda pensava tornar-se religiosa. “Eu desejo, eu quero!”, explodiu a Lúcia. A menina queria entrar no Carmelo de Lisieux, como sua querida Santa Teresinha, mas a madre dissuadiu-a. “Não tens bastante saúde para tais austeridades, filha”. Na sua humildade, Lúcia aceitou esse conselho como se fosse a palavra mesma de Deus e, depois de refletir um pouco, pediu que fosse aceita na própria instituição das Irmãs de Santa Dorotéia, o que alegrou bastante a madre superiora e o bispo de Leiria, Dom José. 

Assim, tomou o trem e cruzou a fronteira de Espanha em outubro de 1925, para o Convento de Tuy, antiga cidade da Galícia, onde as dorotéias portuguesas exiladas estabeleceram seu noviciado poucos anos antes. Tão logo chegou, a Madre provincial conduziu-a à Capela e lhe pediu consagrar-se inteiramente a Nosso Senhor: “Meu Jesus! Eu me abandono toda a Vós. Minha Mãe do Céu, cuidai de mim”. O período de postulado, contudo, Lúcia o faria numa outra casa das dorotéias, na cidade de Pontevedra, distante três horas de carro, para onde seguiu dois dias depois.

A velha casa de Pontevedra não era a mais apropriada às exigências da sua vocação, pois, por também servir de internato a barulhentas crianças, não encontrava nela o recolhimento que desejava. Se isso a consternava tremendamente, era ocasião de oferecer novos e dolorosos sacrifícios a Nosso Senhor. Por aquele tempo, escreveu então ao seu confessor, o Pe. Pereira Lopes: “Estou feliz e não quero outra coisa senão tonar-me uma santa para maior honra e glória de Deus, para obter a salvação dos pobres pecadores e em reparação dos meus pecados”. 

A correspondência entre a superiora do instituto e o bispo de Leiria, Dom José, mostra que a postulante já tinha fama de santidade: 

“Quanto a mim, considero uma graça tê-la aqui por estes cinco meses de preparação, e conto mesmo que, por meio dela, Nossa Senhora concederá bênçãos especiais para esta casa. E para ser bem franca com Vossa Excelência, devo confessar que eu mesma já recebi grandes graças! 

“(...) Rogai a Nosso Senhor para que eu aprenda com ela a ser boa, para que ao menos na minha velhice eu seja aquilo que já deveria ser, depois de tanto tempo de vida religiosa. Por vezes, envergonho-me ao lado dela.”26

Foi na noite de 10 de dezembro de 1925 que a Santíssima Virgem dignou-se visitar mais uma vez a sua protegida, imersa então num mar de angústias. O quarto alumiou-se de repente e Lúcia viu-se diante da Virgem. Esta pousou docemente sua mão maternal no seu ombro, como que para encorajá-la, ao passo que mostrava o coração cravejado de espinhos na outra mão. O Menino Jesus, que a acompanhava, disse-lhe:

– Tem pena do Coração de tua SS. Mãe que está coberto de espinhos que os homens ingratos a todos os momentos Lhe cravam sem haver quem faça um acto de reparação para os tirar.

Eis aqui, nas palavras de Nosso Senhor, o fim desta devoção: reparar pelos pecados e consolar Nossa Senhora. A comunhão deve ser feita com o propósito de desagravar o Imaculado Coração de Maria27. Sem esta intenção, insiste o irmão Marie des Anges, todo o resto perde valor.

A Santíssima Virgem, por sua vez, falou:

– Olha, minha filha, o Meu Coração cercado de espinhos que os homens ingratos a todos os momentos Me cravam, com blasfêmias e ingratidões. Tu, ao menos, vê de Me consolar e diz que todos aqueles que durante 5 meses, ao 1.° sábado, se confessarem, recebendo a Sagrada Comunhão, rezarem um Terço e Me fizerem 15 minutos de companhia, meditando nos 15 mistérios do Rosário, com o fim de Me desagravar, Eu prometo assistir-lhes, na hora da morte, com todas as graças necessárias para a salvação dessas almas.

Refletindo sobre o que viu, escreveu a Lúcia:

“Depois desta graça, como poderia me subtrair do mais pequeno sacrifício que Deus quisesse me pedir? Para consolar o Coração da minha querida Mãe do Céu, ficava contente em beber até a última gota do cálice mais amargo.

“Quereria sofrer todos os martírios para reparar o Coração Imaculado de Maria, minha querida Mãe, e um por um tirar-lhe todos os espinhos que o dilaceram, mas compreendi que estes espinhos são o símbolo dos numerosos pecados que vão contra o Filho, trespassando o Coração da Mãe. Sim, porque por eles, muitos outros filhos se perdem eternamente.” 28

É espantoso pensar o quanto nos é prometido com a devoção reparadora dos cinco primeiros sábados. A parte que nos cabe, porém, não poderia ser mais modesta – dir-se-ia que em tempos tão ingratos, o Céu reduziu suas exigências ao mínimo. Cinco sábados, poucas horas se somarmos tudo, em troca da promessa sem igual de não sermos reprovados. Uma devoção para tempos de apostasia. 

No entanto, é preciso dizer que costumamos considerar a devoção reparadora desde a ótica dos benefícios prometidos, e esquecemos que se trata de um pedido de Nossa Senhora: “virei pedir a consagração da Rússia a Meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados”, foram as suas palavras. Quem sabe não foi pela negligência em se atender a este pedido que a Rússia jamais foi consagrada ao Imaculado Coração? Nesse sentido, o Cardeal Alfredo Schuster comparava essa devoção a uma grande cruzada, e dizia que o que foi Lepanto contra o crescente deveria ser Fátima contra a foice e o martelo.

Apesar de não ter sido expressamente dito nas comunicações de Nossa Senhora, está no espírito de Fátima que esta devoção seja utilizada em prol da salvação dos nossos amigos e familiares – assim compreendia a Irmã Lúcia, que fazia todo mês a comunhão reparadora. Ela escreveu a propósito desta devoção: “Os Santíssimos Corações de Jesus e Maria amam e desejam este culto, porque se servem dele para atrair as almas, e é este todo o seu desejo: Salvar almas, muitas almas, todas as almas.”

Infelizmente, a Devoção reparadora dos primeiros sábados jamais recebeu um ato oficial de aprovação ou incentivo, quer da hierarquia portuguesa 29, quer de Roma. Há pior: a própria vidente viria a ser proibida de falar a respeito durante os pontificados de João XXIII e de Paulo VI 30

 

Tuy – A consagração da Rússia

Em 1926, a Irmã Maria das Dores foi abruptamente transferida para o noviciado de Tuy, após externar mais uma vez o desejo de fazer-se carmelita. Não era sem rigores a vida das irmãs – todas lançavam mão regularmente de uma dura rotina de cilícios e flagelos 31 – mas isso não era suficiente para a vidente de Fátima, que aspirava pelo perfeito recolhimento e obscuridade da vida de clausura. Dom José, bispo de Leiria, e a superiora das dorotéias não concordaram com seus anseios e a religiosa aquiesceu, pensando “Vontade de Deus, tu és o meu Paraíso!”

O Pe. Formigão, que a visitou por esse tempo, escreveu numa carta a seu respeito:

“A pequena continua a mesma, como tu a conheceste. Ela tem uma simplicidade e uma humildade admirável. Que piedade profunda, tão admirável e tão alegre! Que espírito extraordinário de obediência! Que amor do sacrifício e da mortificação!”

Atribuem-se milagres a ela durante esse período. Por exemplo, a cura de uma criança de três anos, de nome Teresinha do Menino Jesus, filha de um cônsul português, que sofria fortemente por conta de dois tumores. A intervenção cirúrgica não lhe servira de nada, e os pais angustiavam-se tremendamente. Lúcia tomou conhecimento da grave doença da criança e procurou os pais para dizer-lhes que não deviam se afligir, pois Teresinha ficaria boa. “Foi neste momento”, escreveu o pai, “que se deu um fenômeno inexplicável para nós. Durante a noite, e contrariamente ao que previa o doutor, tudo desapareceu: a febre, o tumor, o inchaço da perna. Quando nós vimos nossa filha pela manhã, tão desfigurada e tomada de febre poucas horas antes, e agora sem traços do mal que durante três meses a atormentou, ficamos verdadeiramente estupefatos! Teresinha ria e queria ir no chão”. O médico não ficou menos surpreso e declarou que não havia explicação natural para o fato.

No entanto, o grande favor do Céu que obteve em Tuy, e que marcaria definitivamente não apenas a sua própria vida, mas todo o nosso século, foi a Teofania do dia 13 de junho de 1929. Neste dia, dirigiu-se para a capela para fazer sozinha a hora santa. Estava tudo escuro, exceto pela luz de uma lamparina. De repente, contudo, toda a Capela iluminou-se com uma luz sobrenatural, e sobre o Altar apareceu uma Cruz que se erguia até o teto. Irmã Lúcia viu então a Santíssima Trindade, recebendo luzes que, conforme disse, não lhe era permitido revelar. Nosso Senhor pendia na cruz, tendo por cima uma pomba a representar o Espírito Santo e Deus Pai. Sangue pingava das faces do Crucificado e duma ferida do seu peito numa hóstia, e desta para um cálice. No lado direito, Nossa Senhora com seu Imaculado Coração cravejado de espinhos e ardendo num fogo, do outro lado, umas letras grandes que diziam “Graça e Misericórdia”. Nossa Senhora disse-lhe em seguida:

– É chegado o momento em que Deus pede ao Santo Padre que faça, em união com todos os Bispos do Mundo, a Consagração da Rússia ao Meu Imaculado Coração, prometendo salvá-la por este meio. São tantas as almas que a Justiça de Deus condena por pecados contra Mim cometidos, que venho pedir reparação: sacrifica-te por esta intenção e ora.

Aqui também se trata de um pedido de reparação: este é um dos sentidos profundos da Consagração da Rússia. Como escreveu a irmã ao seu confessor, o Padre Gonçalves; “Se não me engano, o bom Deus promete pôr fim à perseguição na Rússia, se o Santo Padre se dignar fazer, e ordenar aos bispos do mundo católico igualmente de fazerem um ato solene e público de reparação e de consagração aos Santíssimos Corações de Jesus e de Maria (…)”. 

Como escreveu um autor, a tomada de um país pelo comunismo é comparável à possessão de um demônio sobre um corpo. A Rússia foi desde o início o instrumento de Satanás para o castigo do triste século XX: Já em 1918, a Igreja foi praticamente declarada ilegal. No mesmo ano, surgiam os primeiros campos de concentração e tinha início a deskulakização. Escreveu Pio XI sobre a Rússia:

“A recrudescência e a publicidade oficial de tantas blasfêmias e impiedades requerem a mais universal e solene das reparações. Durante as últimas festas de Natal, não apenas muitas centenas de igrejas foram fechadas, inúmeros ícones foram queimados, mas os trabalhadores e estudantes foram todos obrigados a trabalhar; os domingos foram suprimidos, e chegou-se a obrigar os trabalhadores das usinas, homens e mulheres, a assinar uma declaração formal de apostasia e de ódio contra Deus, sob pena de serem privados de suas cartas de pão, vestuário e alojamento, sem as quais todo habitante dessa nação infeliz é reduzido a morrer de fome, miséria e frio.” 32

A promessa relacionada à Consagração da Rússia seria meramente a do fim da União Soviética? O Pe. Alonso, maior estudioso de Fátima, explica: “É preciso afirmar que Lúcia sempre julgou que esta conversão não se resume ao retorno do povo russo à religião ortodoxa, com a rejeição do marxismo ateu dos soviéticos. Antes, refere-se pura, simples e totalmente à conversão total da Russia à única verdadeira Igreja de Cristo, que é a Igreja Católica.” 33

Por que a necessidade de uma consagração? Ou, por outra, por que o bom Deus não converte a Rússia sem o concurso dos homens? Eis o que explicou Lúcia:

“(...) intimamente tenho falado a nosso Senhor do assunto e há pouco perguntava-Lhe por que não convertia a Rússia sem que Sua Santidade fizesse essa consagração.

– Porque quero que toda a minha Igreja reconheça essa consagração como um triunfo do Coração Imaculado de Maria, para depois estender o seu culto, e pôr ao lado da devoção do meu Divino Coração, a devoção desse Imaculado Coração.”

Assim como fizera com os cinco sábados, propondo um meio fácil para a salvação das almas, Nosso Senhor depositou nas mãos de seu Vigário o poder de repelir o grande flagelo do nosso tempo, mas, infelizmente!, nenhum papa desde Pio XI valeu-se dele: a Rússia nunca foi consagrada solenemente em união com todos os bispos do mundo 34. Por essa razão, ela não se converteu, nem o Imaculado Coração de Maria foi exaltado.

Irmã Lúcia adoeceu no ano de 1930 e, para repousar, foi enviada por suas superioras a uma pequena cidade marítima nas proximidades, de nome Rianjo. Foi provavelmente numa capela dedicada a Nossa Senhora, que ouviu esta terrível reprimenda do Céu: “Faça saber aos meus ministros que, dado que seguem o exemplo do rei de França retardando a execução do meu pedido, eles o seguirão no infortúnio. Jamais será tarde demais para recorrer a Jesus e a Maria.” 35

A verdade é que naquele mesmo ano, como nota o Irmão François de Marie des Anges, os castigos começam a ocorrer. Na Espanha, a revolução anti-monárquica levou a maçonaria ao poder, fazendo com que a lepra bolchevique se alastrasse pela Península Ibérica. Não passariam cinco anos até o terrorismo vermelho começar a destruir igrejas e conventos na Espanha, enquanto manifestantes desfraldavam bandeiras vermelhas nas ruas, aos gritos de Viva Rusia! 

Foi ainda naquele período que Moscou começou a instruir os partidos comunistas a infiltrarem os seminários católicos, a fim de minar a Igreja desde dentro. 

 

O Terceiro Segredo

Nos anos 30, a verdadeira identidade da Irmã Maria das Dores não era segredo para mais ninguém, e o Convento de Tuy começou a ser muito requisitado por devotos e curiosos. Para cúmulo, as superioras muitas vezes aquiesciam aos visitantes e faziam com que Lúcia fosse aqui ou ali apenas para exibi-la. Por essas razões, o desejo de se retirar para trás das grades do carmelo tornou-se dominante, mas ainda não seria dessa vez que a religiosa subiria esta montanha santa, pois, movidos talvez pelo desejo muito humano de ter no seu instituto a vidente de Fátima, suas superioras não acediam às suas aspirações. À Lúcia restava o consolo da sabedoria de Santa Gemma Galgani: “um pouco mais de morte para ti mesma, e teus problemas não serão nada”. 

Escreveu então:

“Ofereci-me, desejando ser aceite, para, enquanto que o Senhor me não abre as portas do Claustro, ir a terras africanas, ao lado dos Missionários, levar às almas o Amor que abrasa, a Esperança que fortifica, a Fé que guia e eleva da terra ao Céu! Ir com a Divina Pastora, conduzir as ovelhas às pastagens verdejantes, onde correm as águas cristalinas da eterna fonte.”

É admirável como algumas passagens do seu diário remetem-nos as mais belas páginas de Santa Teresinha:

“Mas não me explico, como sinto em mim aspirações tão opostas! Contente voaria pelos sertões da África, em conquista das almas dos meus queridos Irmãos distantes, e chego até a invejar os que têm essa sorte. Feliz me imolaria nos hospitais junto dos membros doloridos de Cristo, para, com os meus serviços, lhes prestar toda a classe de alívios. Mais feliz ainda me enterraria nas leprosarias, colhendo os gemidos da Humanidade em decadência, oferecendo-os a Deus como vítimas expiatórias pelos pecados do mundo.

“Gostaria de adquirir todas as ciências para transmiti-las às almas como reflexo da eterna Sabedoria, fonte donde emana toda a luz da inteligência e ciência adquirida, e poder assim elevá-las do rasto da terra, à luz do sobrenatural! Mas pobrezinha de mim que nada sou e nada tenho! Levanto-me do próprio nada e, na união da minha alma com Cristo, encontro tudo, porque é das profundezas da abjeção que Deus me eleva às alturas do sobrenatural, é pela humildade que se desce ao fundo do Oceano, é aí que se encontra a Luz, a força, a alegria e onde Deus concede a graça de atingir o cume do Amor! Daí o meu ardente desejo de imolar-me a sós com Ele no silêncio dum claustro, onde possa dar-Lhe tudo numa união mais perfeita, num encontro mais íntimo pela Igreja minha Mãe e pelas almas dos meus queridos Irmãos.” 36

No ano de 1943, Lúcia foi acometida de grave pleurisia: escarrava sangue, assim como a santa de Lisieux, e a febre não lhe deixava. O risco de morte era grande:

“Escrevo na cama, onde estou já há 17 dias com febre bastante alta… Talvez que tudo isto seja o princípio do fim, e estou contente”, escreveu então a Dom José, bispo de Leiria. “É bem que, à maneira que a minha missão na terra vai acabando, o bom Deus me vá preparando os caminhos para o Céu.” 

O Cônego Galamba, no entanto, desejoso de conhecer e fazer conhecer a mensagem de Fátima, inquietava-se, temendo que a vidente viesse a morrer sem nunca revelar a parte final do Segredo. Por isso, renovou suas instâncias para que o bispo a fizesse escrever, e assim, no dia 15 de setembro de 1943, Dom José sugeriu à vidente que, se quisesse, colocasse por escrito a terceira parte do segredo. A vidente respondeu que, para fazê-lo, precisaria receber do bispo uma ordem formal, pois não tinha recebido ainda “autorização de Nosso Senhor” para revelá-lo.

Como persistisse uma infecção purulenta na sua perna, Irmã Lúcia teve de ser hospitalizada e submetida a uma cirurgia. Temendo que, sob a medicação, fizesse alguma indiscrição a respeito do Segredo, pediu para não receber anestesia geral mas os médicos não concordaram. A operação transcorreu bem e não demorou para a vidente retornar a Tuy. Escrevia então no seu diário:

“Se o Bom Deus não tiver algo a mais a me pedir ou se não agravar a doença que me enviou, dentro em pouco poderei começar a trabalhar. Mas que Ele faça o que quiser. Não Lhe peço nem a saúde, nem a doença, nem a vida, nem a morte. Que me envie o que mais Lhe agradar!”

Em novembro de 1943, a religiosa finalmente recebeu de Dom José Correia da Silva uma ordem formal para redigir o terceiro segredo. Mas algo estranho se passou. Muito embora não sentisse nenhuma dificuldade para escrever sobre qualquer assunto, por mais que tentasse registrar o Segredo, nada saia do papel. “Ainda não escrevi o que V.Exª.Rev.ma me mandou: já o intentei cinco vezes e não fui capaz”, escreveu então a Dom José; “não sei o que é, no momento de pousar a pena no papel, põe-se-me a mão a tremer e não sou capaz de escrever letra alguma: parece-me que não é nervoso natural, porque no mesmo instante passo a escrever outra coisa diferente e tenho a mão firme”. Concluiu: “Mas, quem sabe, será o demônio que me queira impedir este ato de obediência?”

Passaram-se semanas nessa agonia. Até que uma tarde, estando a sós na capela durante uma visita ao Santíssimo, o rosto mergulhado entre as mãos, sentiu que lhe tocava o ombro a mão amiga da Rainha do Céu:

Não temas, quis Deus provar a tua obediência, Fé e humildade. Está em paz e escreve o que mandam, não porém o que te é dado entender do seu significado. Depois de escrito, fecha-o e lacra-o e escreve por fora, que só pode ser aberto em 1960, pelo Sr. Cardeal Patriarca de Lisboa ou pelo Sr. Bispo de Leiria.

Continua a Lúcia descrevendo o que sentiu:

“Senti o espírito inundado por um mistério de luz que é Deus e Nele vi e ouvi, A ponta da lança como chama que se desprende, toca o eixo da terra, Ela estremece: montanhas, cidades, vilas e aldeias com os seus moradores são sepultados. O mar, os rios e as nuvens saem dos seus limites, transbordam, inundam e arrastam consigo num redemoinho, moradias e gente em número que não se pode contar, é a purificação do mundo pelo pecado em que se mergulha. O ódio, a ambição provocam a guerra destruidora! Depois senti no palpitar acelerado do coração e no meu espírito o eco duma voz suave que dizia: No tempo, uma só Fé, um só Batismo, uma só Igreja, Santa, Católica, Apostólica. Na eternidade, o Céu! Esta palavra Céu encheu a minha alma de paz e felicidade, de tal forma que quase sem me dar conta, fiquei repetindo por muito tempo: O Céu! O Céu! Apenas passou a maior força do sobrenatural, fui escrever e fi-lo sem dificuldade, no dia 3 de janeiro de 1944, de joelhos, apoiada sobre a cama que me serviu de mesa.” 37

O escrito foi entregue ao Bispo devidamente envelopado. Este, temeroso com a alta responsabilidade que lhe incumbia, não queria lê-lo, o que levou a irmã fazê-lo prometer que abriria o envelope antes de 1960 ou assim que ela morresse, o que ocorresse primeiro. 

Por que o ano de 1960? O Cardeal Silvio Oddi, outrora Prefeito da Congregação para o Clero, tratou da questão:

“Que ocorreu em 1960 que poderíamos relacionar com o Segredo de Fátima? O evento mais importante foi sem dúvida o início da fase preparatória do Segundo Concílio Vaticano. Assim, eu não me surpreenderia se o Segredo guardasse alguma relação com a convocação do Vaticano II… Não me surpreenderia se o Terceiro Segredo fizesse alusão a tempos obscuros para a Igreja, graves confusões e apostasias perturbadoras dentro do próprio Catolicismo… Se considerarmos a grave crise por que temos passado desde o Concílio, os sinais de que esta profecia foi cumprida não parecem faltar…”

Diz ainda o mesmo cardeal que o Segredo não tem nada a ver com Gorbatchev: “a Santíssima Virgem nos alertou sobre a apostasia na Igreja”. 

Essa também é a opinião do Cardeal Mario Luigi Ciappi, teólogo da Casa Pontifícia, que escreveu: “No terceiro segredo se prevê, entre outras coisas, que a grande apostasia na Igreja começará do seu ponto mais alto”.

Também parece ser este o pensamento do Cardeal Alfredo Ottaviani, que leu o Segredo e foi a Portugal entrevistar a Irmã Lúcia: “Eu tive a graça e o dom de ler o texto do terceiro segredo. [...] Posso lhes dizer apenas isto: que virão tempos muito difíceis para a Igreja e que é preciso muita oração para que a apostasia não seja grande demais”.

O texto então tem relação com o Concílio? O jornalista Antonio Socci relata que João XXIII encontrou-se nos primeiros meses do seu pontificado com o Cardeal Fernando Cento, antigo núncio em Portugal, e tratou-se da leitura do Segredo: 

“... João XIII disse: ‘Não, espere’. Primeiro, ele queria anunciar a convocação do Concílio Vaticano II, quase como se quisesse colocar perante o Céu um fait accompli (…)

“João XXIII inquietava-se e quis adiar a leitura do Segredo obstinadamente, para o caso de ele conter algo que desaconselhasse este anúncio. Evidentemente, Roncalli quis tomar esta enorme decisão para a Igreja sem ser ‘influenciado’ pela Mãe do Bom Conselho, sem ser iluminado pela Rainha dos Apóstolos, sem ser assistido pela Mãe de Deus, pela Mãe da Divina Graça, pelo Auxílio dos Cristãos. Assim, depois que o anúncio foi feito, depois que a sua própria vontade foi realizada, João XXIII consentiu: agora que tudo já foi decidido, podemos ver o que a Senhora de Fátima disse.”38

Era então grande a expectativa do mundo católico, pois aproximava-se a data prevista para a revelação do segredo. Os bispos italianos vinham de consagrar solenemente o seu país ao Imaculado Coração de Maria e a devoção à Nossa Senhora do Rosário de Fátima ganhava o mundo. Acompanhado do seu confessor e de um tradutor de português, o papa leu o Segredo com desgosto: “isto não se refere ao meu pontificado”, resmungou. Pouco depois, por meio de um comunicado do Vaticano, foi anunciado que o Segredo não seria revelado, pois “[a Igreja] não deseja tomar a responsabilidade de garantir a veracidade das palavras que os três pastorinhos disseram ter ouvido da Virgem Maria” 39. Todo esse episódio serviu para lançar o descrédito nas aparições de Fátima. Em Portugal, o Cardeal Cerejeira, autoridade maior da hierarquia católica portuguesa, ficou sabendo de tudo pelos jornais, como se fosse um fiel qualquer. 

Anos antes, porém, o Cardeal Eugenio Paccelli havia compreendido a gravidade do que estava em jogo: 

“Suponha que o Comunismo foi somente o mais visível dos instrumentos de subversão usados contra as tradições da Revelação Divina. As mensagens da Santíssima Virgem à Lúcia de Fátima preocupam-me. Esta persistência de Maria sobre os perigos que ameaçam a Igreja é um aviso do Céu contra o suicídio de alterar a Fé na Sua liturgia, na Sua teologia e na Sua alma. Ouço à minha volta inovadores que querem desmantelar a Capela-Mor, destruir a chama universal da Igreja, rejeitar os Seus ornamentos e fazê-La ter remorsos do Seu passado histórico. Chegará um dia em que o Mundo civilizado negará o seu Deus, em que a Igreja duvidará como Pedro duvidou. Ela será tentada a acreditar que o homem se tornou Deus. Nas nossas igrejas, os Cristãos procurarão em vão a lamparina vermelha onde Deus os espera. Como Maria Madalena, chorando perante o túmulo vazio, perguntarão: – Para onde O levaram?”

 

O silêncio

Em março de 1948, Irmã Lúcia finalmente foi recebida no Carmelo de Coimbra – percebendo que o recurso aos seus superiores era inútil, teve de escrever uma carta ao próprio papa pedindo autorização para transferir-se, procedimento esse que lhe foi causa de grandes angústias. Ela chegou no mosteiro às cinco da manhã, e entrou “como os israelitas, muito cedinho antes do nascer do sol, para colher o maná no deserto”. A comunidade recebeu-a em absoluto silêncio. Uma a uma, as irmãs abraçaram-na com um amável sorriso, e seguiram para o coro: “Como é doce, sobretudo nestes dias, a solidão, o recolhimento, e o silêncio aos pés do Sacrário! Mistério admirável, diante do qual se esquecem todos os sofrimentos, todas as penas, todas as amarguras, porque nada há que se possa comparar às penas e dores do nosso Deus!”, escreveu a nova flos carmeli. 

Acompanhada da prioresa, uma espanhola de nome Madre Maria do Carmo, a Irmã Maria Lúcia de Jesus e do Coração Imaculado (este foi o nome que tomou ao receber o santo hábito) conheceu a sua célula, na qual uma grande cruz vazia dominava a parede branca:

– Sabes por que esta Cruz está aí na parede sem o Cristo?

E sem que a nova carmelita tivesse tempo de responder, completou:

– É para que te crucifiques nela.

*

Iniciava um longo período de reclusão de que pouca notícia temos. A vidente que se afastara do contato externo pela reclusão do carmelo, foi “desligada” por uma imposição romana em 1959. Não apenas estava proibida de falar do conteúdo do Segredo, como não poderia receber ninguém sem licença de Roma – nem mesmo o Cônego Galamba ou o Padre Aparício, seu antigo confessor, poderão falar com ela – apenas seus familiares estavam excetuados. Enquanto isso, sem que pudesse se defender, uma campanha de difamação era desferida contra as aparições por padres modernistas em periódicos tão importantes quanto o Civiltá Cattòlica.

Até hoje, dezessete anos após a publicação do Terceiro Segredo, seguem proibidas a publicação da entrevista da vidente com o Pe. Joseph Schweigl, bem como a obra monumental do Padre Alonso, maior especialista em Fátima. Seguem inéditas as cartas da vidente aos papas, os quatro volumes dos seus diários bem como um livro redigido por Lúcia no ano de 1955 e remetido à Santa Sé. O que querem nos ocultar?

Um livro posteriormente publicado, chamado Apelos da Mensagem de Fátima40, foi minuciosamente “revisado” por Roma, e há uma razoável dúvida a respeito da autenticidade de diversos escritos e declarações que lhe foram atribuídas no final de sua vida. 

Por essas razões, a sua entrevista com o Pe. Fuentes, de 1957, é considerada por alguns como a última sem restrições da vidente de Fátima, e seu testamento. Os trechos seguintes são dela:

 

"Senhor Padre, o que falta para 1960? E o que sucederá então? Será uma coisa muito triste para todos, e não uma coisa alegre, se, antes, o mundo não fizer oração e penitência. Não posso detalhar mais, uma vez que é ainda um segredo. Segundo a vontade da Santíssima Virgem, só o Santo Padre e o Bispo de Fátima têm permissão para conhecer o Segredo, mas resolveram não o conhecer para não serem influenciados. Esta é a terceira parte da Mensagem de Nossa Senhora, que ficará em segredo até 1960 (...)

"Senhor Padre, o demônio está travando uma batalha decisiva contra a Santíssima Virgem. E como o demônio sabe o que é que mais ofende a Deus e o que, em menos tempo, lhe fará ganhar um maior número de almas, trata de ganhar para si as almas consagradas a Deus, pois que desta maneira o demônio deixa também as almas dos fiéis desamparadas pelos seus chefes, e mais facilmente se apodera delas.

(...)

"Senhor Padre, eis por que a minha missão não é indicar ao mundo os castigos materiais que certamente virão se antes o mundo não rezar e se sacrificar. Não! A minha missão é indicar a todos o perigo iminente em que estamos de perder as nossas almas para toda a eternidade, se nos obstinarmos no pecado.

(...)

"Senhor Padre, não devemos esperar que venha de Roma, da parte do Santo Padre, um apelo ao mundo para que faça penitência. Nem devemos esperar que esse apelo à penitência venha dos nossos Bispos, nas nossas Dioceses, nem das congregações religiosas. Não! Nosso Senhor já usou muitas vezes destes meios, e o mundo não prestou atenção. Eis por que, agora, é necessário que cada um de nós comece a reformar-se espiritualmente. Cada pessoa deve não só salvar a sua alma como também ajudar a salvar todas as almas que Deus colocou no seu caminho."

 

 

ANEXO

(Terceira Parte do Segredo, tal como publicada em 26 de Junho de 2000)

 

“Depois das duas partes que já expus, vimos ao lado esquerdo de Nossa Senhora um pouco mais alto um Anjo com uma espada de fogo em a mão esquerda; ao cintilar, despedia chamas que parecia iam incendiar o mundo; mas apagavam-se com o contacto do brilho que da mão direita expedia Nossa Senhora ao seu encontro: O Anjo apontando com a mão direita para a terra, com voz forte disse: Penitência, Penitência, Penitência! E vimos n’uma luz imensa que é Deus: “algo semelhante a como se vêem as pessoas n’um espelho quando lhe passam por diante” um Bispo vestido de Branco “tivemos o pressentimento de que era o Santo Padre”. Vários outros Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas subir uma escabrosa montanha, no cimo da qual estava uma grande Cruz de troncos toscos como se fôra de sobreiro com a casca; o Santo Padre, antes de chegar aí, atravessou uma grande cidade meia em ruínas, e meio trémulo com andar vacilante, acabrunhado de dor e pena, ia orando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho; chegado ao cimo do monte, prostrado de joelhos aos pés da grande Cruz foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam vários tiros e setas, e assim mesmo foram morrendo uns trás outros os Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas e várias pessoas seculares, cavalheiros e senhoras de várias classes e posições. Sob os dois braços da Cruz estavam dois Anjos cada um com um regador de cristal em a mão, neles recolhiam o sangue dos Mártires e com ele regavam as almas que se aproximavam de Deus.”

(Revista Permanência 288)

  1. 1. Francisco de Fátima, Fernando Leite S. J., p. 11.
  2. 2. Memórias de Fátima, 2a. Memória, p. 88.
  3. 3. Memórias da Irmã Lúcia, 4a. memória, p. 169.
  4. 4. Podemos nos indagar se essa misteriosa gradação não corresponderia à vocação particular de cada um. Francisco, o contemplativo, via apenas; Jacinta além de ver, ouviu do anjo e, depois, da Virgem o apelo de reparação para a conversão dos pecadores; e Lúcia, que falava, terá a missão de comunicar ao mundo os pedidos do Céu e pregar a devoção ao Imaculado Coração de Maria.
  5. 5. Daí em diante, o terço seria o companheiro inseparável de Francisco. “O meu irmão Francisco era inocente e piedoso”, falou João Marto, irmão do pastorinho de Fátima, “Diz a Lúcia que rezava muitos terços enquanto andava com o gado no monte. Isso não posso afirmar porque não vi. O que posso garantir é que em casa só queria rezar terços. Até digo com vergonha que fugia dele para me ver livre de tanto terço! À noite não nos largava enquanto o não rezássemos”.
  6. 6. O Irmão François de Marie des Anges faz uma observação importante: em algumas versões lê-se que Nossa Senhora pediu para se rezar o Rosário; outras dizem que foi o terço. Qual a verdade? Ora, anos mais tarde, Lúcia entrará num convento na Espanha, país em que se utiliza a palavra Rosario indiscriminadamente para significar tanto o terço como o Rosário propriamente dito. Essa é a origem da confusão. Lúcia esclarecerá posteriormente que Nossa Senhora se referia ao Terço.
  7. 7. Era uma Senhora mais brilhante que o Sol, Pe. João de Marchi, Editora Missões Consolata, Fátima, p. 49.
  8. 8. “Creio que esta promessa não é para mim só, mas para todas as almas que queiram se refugiar no Coração da nossa Mãe do Céu e se deixar conduzir pelos caminhos traçados por ela. Parece-me que estas também são as intenções do Coração Imaculado de Maria: fazer brilhar nas almas sempre mais este raio de luz, mostrar-lhes sempre mais este porto de salvação, sempre prestes a acolher todos os náufragos deste mundo.” (Carta de 14 de abril de 1945.) Citado em Soeur Lucie, confidente du Coeur Immaculé de Marie, Ir. François Marie des Anges, CRC.
  9. 9. Era uma Senhora mais brilhante que o Sol, Pe. João de Marchi, Editora Missões Consolata, Fátima, p. 80.
  10. 10. A “luz desconhecida” ocorreu na noite de 25 para 26 de janeiro de 1938, quando uma aurora boreal de amplitude extraordinária foi vista na Europa (da Noruega a Portugal), mas também no Norte da África, Canadá, América e México. Irmã Lúcia, que contemplava o céu com as irmãs do convento, sabia que essa era a luz que Nossa Senhora mencionara anos antes. – É impressionante constatar que, anos depois, num dia 25 de janeiro, aniversário do “grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o mundo”, foi anunciado o Concílio Vaticano II.
  11. 11. Memórias da Irmã Lúcia, 4a. memória, p. 178.
  12. 12. Era uma Senhora mais brilhante que o Sol, Pe. João de Marchi, cap. XVIII, p. 115.
  13. 13. Nossa Senhora de Fátima, William Thomas Walsh, Ed. Quadrante, p. 161.
  14. 14. Era uma Senhora mais brilhante que o Sol, Pe. João de Marchi, cap. XXIII, p. 156.
  15. 15. Ibidem, p. 175.
  16. 16. Era uma Senhora mais brilhante que o Sol, Pe. João de Marchi, p. 176.
  17. 17. Memórias da Irmã Lúcia, 4a. memória, p. 164.
  18. 18. A diocese fora restaurada dois anos antes por um breve de Bento XV. Até então, Fátima estava na dependência do patriarcado de Lisboa. Quanto ao bispo, diga-se que nos tempos da revolução de 1910, foi preso cinco vezes e torturado pelos republicanos – na prisão, viu-se obrigado a passar noite e dia com os pés imersos em água gelada – resultando em dificuldades de locomoção.
  19. 19. “Dois militares escoltavam-na em direção a Aljustrel, porém, ao ver um terreno com umas covas abertas, um disse ao outro: – Aqui estão covas abertas. Com uma das nossas espadas cortamos-lhe a cabeça e aqui a deixamos, já enterrada. Assim acabamos com isto duma vez para sempre.” (Memórias da Irmã Lúcia, 2a. Memória,  p. 107.)
  20. 20. Um caminho sob o olhar de Maria, Carmelo de Coimbra, Edições Carmelo, 2013, p. 124.
  21. 21. Um telegrama da época, redigido por José Dantas Baracho, Governador Civil, dava instruções muito claras:

    “Administrador do Concelho de V. N. de Ourém;

    “Conforme combinação ontem aqui... se proibirá qualquer manifestação religiosa, que será impedida aí, para o que se reforça posto no local, para onde foi numerosa força armada.”

  22. 22. Era uma Senhora mais brilhante que o Sol, Pe. João de Marchi, p. 295.
  23. 23. Nossa Senhora de Fátima, William Thomas Walsh, Quadrante, São Paulo, 2015, p. 240.
  24. 24. Em 1945, a vidente de Fátima escreveu ao bispo de Leiria: “O bom Deus quer que os senhores bispos, nos poucos dias que antecedem as eleições, falem ao povo, por meio do clero e da imprensa, para dizer que Salazar é a pessoa escolhida para continuar a governar a nossa pátria, que é a ele que serão concedidas luz e graça para conduzir nosso povo pelos caminhos da paz e da prosperidade”. E, em 1958, escreveu: “Não podeis imaginar como sofri por nosso tão digno Salazar da ingratidão de tanta gente que não quer ver tudo o que lhe devemos!”. Citado em Soeur Lucie, Confidente du Coeur Immaculé de Marie, Ir. François Marie des Anges, CRC, pp. 360-361.
  25. 25. Memórias da Irmã Lúcia, 2a memória, p. 117.
  26. 26. Soeur Lucie, Confidente du Coeur Immaculé de Marie, Ir. François Marie des Anges, CRC, p. 175.
  27. 27. Numa aparição posterior, narrada pela vidente, a necessidade desta intenção particular fica clara. Grifos meus: “ [A Lúcia] Apresentou a Jesus a dificuldade que tinham algumas almas em se confessar ao sábado e pediu para ser válida a confissão de 8 dias. Jesus respondeu:

    – Sim, pode ser de muitos mais ainda, contanto que, quando Me receberem, estejam em graça e que tenham a intenção de desagravar o Imaculado Coração de Maria.

    Ela perguntou:

    – Meu Jesus, as que se esquecerem de formar essa intenção?

    Jesus respondeu: – Podem formá-la na outra confissão seguinte, aproveitando a primeira ocasião que tiverem de se confessar” (Memórias, p. 194)

  28. 28. Um caminho sob o olhar de Maria, Carmelo de Coimbra, Edições Carmelo, 2013, pp. 170-171.
  29. 29. O bispo de Leiria, Dom José Alves Correia da Silva, muito embora se mostrasse favorável à devoção, a recomendasse em sermões e aprovasse a sua propagação em Portugal, não chegou a recomendá-la oficialmente.
  30. 30. Por aquele tempo, relata o Irmão François Marie des Anges, uma religiosa, estranhando que Lúcia não mencionasse mais na sua correspondência a prática dos cinco primeiros sábados, escreveu-lhe perguntando a razão deste procedimento. Recebeu do Carmelo de Coimbra uma carta protocolar datilografada com os seguintes dizeres: “A Irmã Maria Lúcia de Jesus e do Coração Imaculado recebeu sua carta e reza nas vossas intenções. Quanto à questão: Por que ela não recomendou precedentemente a devoção dos primeiros sábados? Porque é preciso esperar pela autorização eclesiástica”. Soeur Lucie, Confidente du Coeur Immaculé de Marie, Ir. François Marie des Anges, CRC, p. 374.
  31. 31. A esses rigores, Lúcia somava, entre outros, a corda que trazia amarrada à cintura e abstinência de água três dias por semana. Quanto às práticas de piedade, além dos exercícios regulares da comunidade, Lúcia rezava diariamente o rosário e fazia a Via Sacra. Às quintas, fazia a hora santa, das 23h00 às 24h00
  32. 32. Fatima, joie intime, événement mondial, Irmão François de Marie des Anges, CRC, p. 211.
  33. 33. The Fourth secret of Fatima, Antonio Socci, Loreto Publications, 2006, p. 118.
  34. 34. Remetemos o leitor interessado numa análise detalhada sobre este ponto ao artigo Os papas e a consagração da Rússia, Dominicus, Revista Permanência 264. [Também publicado no nosso site: http://permanencia.org.br/drupal/node/5224 ]
  35. 35. Estas palavras de Nosso Senhor são misteriosas. Como é sabido, Santa Margarida Maria escreveu em 17 de junho de 1689 ao rei de França pedindo a consagração da França ao Sagrado Coração de Jesus. Luís XIV desprezou o pedido do Céu e, exatos 100 anos depois, ocorreu a sangrenta Revolução Francesa e o rei foi decapitado. Assim, as palavras de Nosso Senhor em Rianjo parecem indicar que o não cumprimento dos seus pedidos resultará numa terrível efusão de sangue. O Céu pediu reparação e propôs um meio fácil, mas a rejeição dos meios propostos terá de ser compensada de modo cruento. Esta é apenas uma interpretação, mas podemos corroborá-la com outros escritos da Irmã Lúcia, como a carta que escreveu em 1943 para Dom Garcia y Garcia, Arcebispo de Valladolid, a respeito da situação da Espanha: “Eu Lhe pedi instantemente que usasse de misericórdia para remediar os males da Espanha… mas Ele me respondeu que, se sua justiça não fosse apaziguada pelos meios que pedia, ela o seria pelo sangue dos mártires” (grifos meus). Tudo isso remete à visão do Terceiro Segredo, tal como publicada no ano 2000. Outra carta da Irmã Lúcia, escrita durante o início da Segunda Guerra Mundial ao Pe. Gonçalves, também vai neste sentido: “Deus quer que o momento da consagração da Rússia chegue bem rápido… Se este ato pelo qual a paz nos será concedida não se der, a guerra somente terminará quando o sangue derramado pelos mártires for suficiente para aplacar a justiça divina.
  36. 36. Um caminho sob o olhar de Maria, Carmelo de Coimbra, Edições Carmelo, 2013, p. 282.
  37. 37. Um caminho sob o olhar de Maria, Carmelo de Coimbra, Edições Carmelo, 2013, p. 267.
  38. 38. The forth secret of Fatima, Antonio Socci, p. 195.
  39. 39. Note-se que, na visão publicada no ano 2000, não há referência a palavras ditas pela Virgem Maria. Este é apenas um dos pontos que nos fazem suspeitar que o Segredo não foi integralmente revelado por Roma no ano 2000. Há outros argumentos neste mesmo sentido. Por exemplo, sabe-se que, em setembro de 1952, Pio XII enviou o Pe. Joseph Schweigl para entrevistar a irmã Lúcia a propósito do Terceiro Segredo. De regresso, afirmou: “Não posso revelar nada do que aprendi em Fátima acerca do Terceiro Segredo, mas posso dizer que ele possui duas partes. Uma diz respeito ao papa, a outra, logicamente, embora não possa dizer nada, teria de ser a continuação das palavras, ‘em Portugal o dogma da Fé será sempre preservado’”. Ora, a visão publicada no ano 2000 não contém a continuação destas palavras de Nossa Senhora.
  40. 40. O título original do livro era “A transmissão da mensagem de Nossa Senhora”. Antes de ser publicado, o texto foi todo revisado e corrigido “sob a autoridade direta de João Paulo II”, como explicou o Pe. Luis Kondor ao Irmão François Marie des Anges. Foram incluídas diversas citações de Encíclicas de Paulo VI e João Paulo II que não constavam dos originais, foram suprimidas diversas passagens, outras foram reescritas, além de alterada a ordem dos capítulos. O livro não faz menção à devoção dos cinco sábados, pois a vidente estava proibida de falar do assunto.