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Um único holocausto agradável a Deus

Os dias vão passando e já avançamos mar adentro nas águas da Santa Quaresma. Mesmo se muitos ainda não se dispuseram a incluir no seu dia a dia alguma mortificação, lembranças efêmeras da vida mortificada dos primeiros cristãos, outros já começam a tirar proveito espiritual e material pelos pequenos sacrifícios oferecidos generosamente diante do altar. Durante quatro semanas a Igreja nos convida a esvaziarmos nosso coração dos apegos à nossa vontade própria, às amarras múltiplas que nos prendem a esta vida, de modo a deixar espaço ao que vem pela frente. Se é verdade que o nosso sacrifício é tão fraco e pequeno, por outro lado, o Tempo da Paixão nos estabelece diante da Cruz do nosso Salvador. Ali então, se tivermos sido generosos nas quatro primeiras semanas, descobriremos maravilhados tantos reflexos luminosos do Sacrifício de Nosso Senhor Jesus Cristo. E esta palavra - Sacrifício - soará em nossos ouvidos e vibrará em nosso peito no seu significado profundo: Sacrum facere - fazer o sagrado. Em outras palavras, realizar os atos próprios daquilo que se oferece a Deus e que é aceito como agradável pelo Pai. De fato, o Pai enviou o seu próprio Filho, Deus de Deus, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não criado, com esta missão específica. Qual? Alguns dirão que Cristo veio ao mundo para pregar o Evangelho; outros que veio ensinar aos homens o caminho da paz. E têm razão. Mas nem a pregação do Evangelho nem a paz que lhe segue podem manifestar o fundo da missão do Messias. Ele veio para oferecer um único Sacrifício agradável ao Pai. Dirão então: quer dizer que aquela religião revelada outrora aos Patriarcas, pregada pelos Profetas e vivida com tanta dificuldade pelo Povo Eleito, na qual se encontravam tantos sacrifícios rituais, não foram agradáveis ao Pai?

Ouçamos o que o próprio Deus nos revelou pela boca do Rei Profeta: "Porque, se quisesseis um sacrifício eu o teria oferecido; mas Vós não vos comprazeis com holocaustos" (Salmo 50). É claro que fora o próprio Deus quem revelara aos hebreus a prática dos sacrifícios e holocaustos, dando aos seus filhos os motivos para isso. Através dos sacrifícios, eles uniam quatro atos agradáveis a Deus:

o louvor, pois que ofereciam algo a Deus enquanto Ser Supremo;

o pedido, que permitia aos homens esperar a ajuda divina para suas necessidades espirituais e temporais;

o perdão dos pecados, visto que o sacrifício devia representar o estado arrependido dos corações e, consequentemente, aplacar a ira divina;

e a ação de graças, como forma de agradecer a Deus por todos os seus benefícios.

Ocorre que os homens, inclinados às suas concupiscências, largavam de lado esses fins do sacrifício e iam tornando a prática da religião um conjunto de atos jurídicos, de regras materiais, já afastadas do verdadeiro amor de Deus. O próprio rei Davi exprime isso no versículo seguinte do mesmo salmo: "O sacrifício digno de Deus é um espírito compungido; não desprezarás, ó Deus, um coração contrito e humilhado".

Infelizmente essa fraqueza da humana condição é conhecida de nós mesmos: basta olhar com honestidade para os nossos atos para reconhece-lo. O que diremos então? De nada serviram os sacrifícios da Antiga Lei? Longe disso. Se é verdade que, ritualmente falando, eles não produziam a graça santificante, no entanto, individualmente eles foram ocasião de verdadeiras graças sobrenaturais aos homens espirituais, aos santos profetas e a tantos outros. Ademais, aqueles sacrifícios eram figurativos do único e verdadeiro sacrifício agradável a Deus: o do seu Filho único, morrendo na Cruz.

São Paulo não deixa de advertir aos hebreus que a doutrina sobre o Cristo Sacerdote e sobre o seu único sacrifício é elevada e exige do fiel já ter perseverado na vida de oração e de estudo das Escrituras. Não são os rudimentos, mas as coisas mais elevadas da doutrina. (cf. Ep. aos Hebreus, V) E como o Apóstolo se dirige aos Hebreus convertidos ao Cristianismo, adverte-os sobre o perigo de cairem na apostasia diante da elevação do seu ensinamento e reza para que aqueles seus filhos perseverem na fé. (Ep. aos Hebreus, cap. VI) E que doutrina! Deixo aos leitores buscarem no próprio texto da Epístola a descrição precisa, minuciosa, dessa lindíssima doutrina sobre o Sacerdócio de Cristo. (Ep. Hebreus, cap. V a VII)

Em seguida, o Apóstolo vai mostrar a grandeza do Sacrifício redentor se comparado ao sacrifício da Antiga Lei. Vamos ao texto:

"O ponto capital de tudo o que acabamos de dizer é isso: Temos um pontífice tal, que está sentado nos céus à direita do trono da grandeza divina, ministro do santuário e do verdadeiro tabernáculo erigido pelo Senhor e não pelo homem." (Hebreus, VIII, 1-2)

A idéia principal de S. Paulo é mostrar que o sacerdócio de Cristo e o Sacrifício próprio desse sacerdócio não é deste mundo. Se fosse um sacerdócio humano, como o da Antiga Lei, diz o Apóstolo, Cristo nem sacerdote seria, pois não era da tribo de Levi, mas sim da tribo real de Judá, da casa do rei Davi. (cap. VIII, 4). E ele conclui dizendo:

"Mas Cristo recebeu um ministério tanto mais elevado quanto é mediador de melhor aliança, a qual foi estabelecida sobre melhores promessas. Pois se aquela primeira aliança tivesse sido sem defeito, não se procuraria uma segunda. (Hebreus, VIII, 6-7)

É no profeta Jeremias que São Paulo vai apoiar esta afirmação. Ele cita a passagem indicando que se trata de uma repreensão de Deus a seu povo:

"Eis virão dias, diz o Senhor, em que eu contrairei com a casa de Israel e com a casa de Judá uma nova aliança, não como a aliança que fiz com seus pais no dia em que lhes peguei pela mão para os tirar da terra do Egito; visto que eles não perseveraram na minha aliança... (Jeremias 31, 31-34).

Duas coisas são importantes nessa profecia, confirmada por São Paulo: a nova aliança é uma mudança total da relação entre Deus e os homens. Ela será uma aliança interior, não marcada pelos ritos exteriores, mas sobretudo pela transformação das almas. Deus irá gravar sua Lei não mais sobre a pedra, mas sobre os corações. Se Deus já tinha se mostrado como a mãe do povo de Israel, ao tomá-lo pela mão, agora ele estará dentro dos corações, mudando o espírito da aliança e tornando-a eficaz pela vida interior, pela graça santificante. Em segundo lugar, São Paulo mostra que a vinda da Nova Aliança torna a antiga caduca. Já não faz mais sentido o antigo sacrifício, múltiplo, carnal, humano, quando o modelo de todo sacrifício já se realizou, quando o Messias já se ofereceu em oblação para a santificação e para a salvação dos homens.

"(no primeiro testamento) se ofereciam dons e sacrifícios que não podiam tornar perfeito segundo a consciência, o sacrificante, consistindo somente em comidas e bebidas e em diversas abluções e determinações carnais, impostas até o fim do tempo da reforma.

Mas Cristo, vindo como pontífice dos bens futuros, passando pelo meio de um tabernáculo mais excelente e perfeito, não feito por mão de homem, isto é, não desta criação, e não com sangue de bodes ou dos bezerros, mas com seu próprio sangue, entrou uma só vez no Santo dos Santos, depois de ter adquirido uma redenção eterna." (Hebreus, IX, 9-12)

Eis que a doutrina santa, revelada, luminosa, do santo Apóstolo vem esclarecer para nós o Tempo da Paixão, vem elevar nossas almas para que não deixemos passar um só minuto desses dias santificados sem estarmos concentrados na Cruz do nosso Deus, do nosso Redentor. Só ela nos trouxe a salvação; só ela é sinal eficaz de uma Aliança verdadeira que nos liga para sempre com o Messias, anunciado com tanta precisão pelos profetas, realizado com toda perfeição pela vida, pela morte e pela ressurreição de Jesus Cristo. Ouçamos ainda São Paulo:

"Ele é o mediador do Novo Testamento a fim de que, intervindo a sua morte para o perdão daquelas prevaricações que havia sob o primeiro testamento, os chamados recebam a herança eterna que lhes foi prometida. Porque onde há um testamento, é necessário que intervenha a morte do testador... Efetivamente, Moisés tomou o sangue dos bezerros e dos bodes... dizendo: este é o sangue do testamento que Deus ordenou para vós... Era pois, necessário que as figuras das coisas celestiais fossem purificadas com tais coisas, mas que as mesmas coisas celestiais o fossem por meio de vítimas melhores do que estas. Porque Jesus não entrou num santuário feito por mão de homem, figura do verdadeiro, mas entrou no mesmo céu, para se apresentar agora diante de Deus por nós. E não entrou para se oferecer muitas vezes a si mesmo, como o Pontífice entra todos os anos no Santo dos Santos, com sangue alheio; ... mas apareceu uma só vez no fim dos séculos para destruir o pecado com o sacrifício de si mesmo... E a segunda vez aparecerá não por causa do pecado, mas para a salvação daqueles que o esperam.

É assim que Jesus Cristo restabelece a ordem do culto a Deus, oferecendo ao Pai o único holocausto eficaz para a remissão dos pecados. Não somente seu Sacrifício contém de modo perfeito os quatro fins que vimos acima, como o realiza efetivamente nas almas, através dos Sacramentos por Ele institiuidos. É assim que S. Paulo completa o pensamento dessa revelação divina:

"Por isso, Jesus Cristo entrando no mundo diz: Não quisestes hóstia nem oblação, mas me formaste um corpo; os holocaustos pelo pecado não te agradam. Então eu disse: Eis-me que venho segundo está escrito de mim na testada do Livro, para fazer, ó Deus, a tua vontade... Tira o primeiro para estabelecer o segundo. Por esta vontade somos santificados mediante a oblação do Corpo de Jesus Cristo feita uma só vez." (Hebreus, X, 5-10)

É neste espírito que entramos no Tempo da Paixão, meditando no único sacrifício, holocausto verdadeiro e eficaz que nos traz a salvação. Se, por um lado, nossa mortificação quaresmal é aflitiva, custando muitas vezes um esforço verdadeiro, por outro lado, é com a alma jubilosa que cantamos com a Igreja:

Vexilla Regis pródeunt: fulget Crucis mysterium

Quo carne carnis Conditor, suspensus est patibulo

Avança o estandarte do Rei, brilha o mistério da Cruz; O criador da carne, pela carne foi suspenso na Cruz

 E Isaías fará eco "descrevendo a Paixão do Cristo com toda a evidência do Evangelho" (S. Agostinho):

"Eis que o meu Servo procederá com inteligência, será exaltado e elevado e chegará ao cúmulo da glória.

Assim como pasmaram muitos à vista de ti, assim será sem glória o seu aspecto entre os homens, e a sua figura desprezível entre os filhos dos homens...

Quem deu crédito ao que nós ouvimos? E a quem foi revelado o braço do Senhor? E ele subirá como um arbusto diante dele, e como raiz que sai de uma terra sequiosa; ele não tem beleza nem formosura e vimo-lo, mas não se parecia com o que era, e por isso não fizemos caso dele. Ele era desprezado e o último dos homens, um homem de dores e experimentado nos sofrimentos... Verdadeiramente ele foi o que tomou sobre si as nossas fraquezas e ele mesmo carregou com as nossas dores; e nós o reputamos como um leproso e como um  homem ferido por Deus e humilhado. Mas foi ferido por causa das nossas iniquidades e foi despedaçado por causa dos nossos crimes; o castigo que nos devia trazer a paz caiu sobre ele e nós fomos sarados com as suas chagas."

Respiro. Tomemos fôlego depois dessa descrição impressionante do Servo de Deus, como Isaías o revela. Eu nem escrevo a referência do capítulo, pois retomo de onde paramos, já agora tratando do sacrifício redentor:

"Foi oferecido em sacrifício porque ele mesmo quis, e não abriu a sua boca; como uma ovelha que é levada ao matadouro e como um cordeiro diante do que o tosquia, guardou silêncio e não abriu sequer a sua boca. Ele foi tirado pela angústia e pelo juízo. Quem contará a sua geração? Porque ele foi cortado da terra dos viventes; eu o feri por causa da maldade do meu povo. E o Senhor lhe dará os ímpios em recompensa da sua sepultura, e o rico em recompensa da sua morte; porque ele não cometeu iniquidade nem nunca se achou dolo em sua boca.

E o Senhor quis consumi-lo com sofrimentos mas quando tiver oferecido sua vida pelo pecado, verá uma descendência perdurável e a vontade do Senhor prosperará nas suas mãos." (Isaías, LII, 13-15 e LIII)

 

Eis como nos é descrito o Cristo padecente que no 1º Domingo da Paixão estará coberto por detrás do pano roxo. Crescerá em nossas almas o desejo de vê-lo, de contemplar este rosto nosso conhecido que nos traz a lembrança de um Reino maravilhoso da graça, que nos faz recordar verdades sopradas em nossos corações quando, ainda infantes, chorávamos das águas geladas numa pia batismal. E então, nesses dias santificados da Semana Santa, nos será descoberta a Cruz redentora, o único Holocausto digno do Pai, que lhe foi oferecido uma única vez e que se renova todos os dias nos nossos altares. Lugares altos, lugares santos, pedra ungida do Cristo, do Óleo santo, para nos consagrar a Deus para todo o sempre. "Terribilis est locum istum", gritou Jacó quando acordou do sonho em que viu o Cristo figurado na famosa Escada: "Terrível é este lugar; aqui se acha a casa de Deus e a porta do céu". E neste Altar sagrado da Cruz é oferecido o Sangue do Filho de Deus, para a redenção dos homens. Neste Altar sagrado, pedra das nossas igrejas, é oferecido este mesmo Holocausto que nos restaura a vida, que nos alegra o coração e nos abre as portas do Céu.

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