A IGREJA, OPRESSORA DOS ÍNDIOS?
Vimos, nos capítulos precedentes, quão pouco sério era responsabilizar a Igreja pela morte do Império Romano e da cultura antiga, como pela difusão, até nossos dias, do “Mal romano”. Precisamos agora considerar uma acusação que se coloca em exata continuidade com as precedentes e que logrou, ainda mais, instalar-se na opinião, mesmo católica.
Esse novo “crime” da Igreja seria a opressão do primeiro grande povo que a Europa encontrou além de suas margens: os índios da América, pagãos martirizados sob a tirania de típicos católicos romanos. Uma opressão não apenas leiga, de conquistadores ávidos e sanguinários, mas também religiosa, da Igreja. Causam indignação os privilégios concedidos pelos papas à Espanha dos monarcas “Católicos” segundo seu título oficial: a “doação” de terras recém descobertas, e o Padroado transferindo-lhes para os poderes eclesiásticos. Privilégios que tornam efetivamente indissociáveis, de direito como de fato, a conquista e a evangelização, todas duas delegadas pela Igreja.
Abramos duas recentes histórias da Igreja, a propósito de grande qualidade, publicadas em 1978 e 1979, e leiamos (fomos nós que colocamos em evidência a palavra-chave). Na História da Igreja por ela mesma, publicada sob a direção de Jacques Loew e Michel Meslin, lemos na página 338: “Os colonos [espanhóis] estabeleceram sobre as populações indígenas uma escravidão mantida com rudeza”. Observação reforçada e mais precisada na página 354: “Os colonos praticaram freqüentemente a escravidão organizada pelo sistema da “comenda”, repartição arbitrária das terras dos indígenas e suas pessoas”. E, na História vivida do povo cristão, publicada sob a direção de Jean Delumeau, lemos, no tomo II, página 291: “Os índios passaram a pensar que a lei de Nosso Senhor que lhes era pregada era uma lei de escravidão feita para os submeter a esses estrangeiros que lhes roubavam suas terras e sua liberdade”. Observação também reforçada, sob a pena de outro colaborador da obra, na página 313: os Espanhóis “não conseguindo eficazmente reduzir os índios à escravidão [...]”. Assim, para duas grandes publicações de história, dirigidas em nosso país por personalidades notáveis da Igreja e da Universidade, ainda hoje, a realidade da conquista espanhola, incluindo a conquista espiritual, é, na América, fundamentalmente reduzida a essa palavra-chave: escravidão. Uma palavra que surge e ressurge sob as penas como que automaticamente. Evidentemente, as mesmas publicações assinalam — nem sempre — os esforços feitos por certos religiosos, ou pelo papa, ou pelo poder real espanhol, para defender os índios. Mas o fazem como um tipo de epifenômeno, de contra-ponto superficial, para não dizer de álibi. O fundo continua lá, da parte dos católicos transportados para a terra americana: essa escravidão pela qual eles despojaram os índios de suas terras e de sua liberdade, sob o manto do Evangelho.
A isso se soma o que a História Vivida, na página 320 do tomo II, chama de “catolicismo agressivo dos conquistadores”, “agressão cultural” (p. 312 e 319-320) tornada ainda mais terrível para os índios (p. 290) pelas “prisões do tribunal da Inquisição, garantidores da norma religiosa e moral”. Assim, encontram-se confirmadas as acusações dos neo-paganizantes da Escola Nova que, no número de 16 de fevereiro de 1980 da Figaro-Magazine, imputavam a destruição das culturas indígenas às “fogueiras espanholas”.
Ora, nada disso é verdadeiro. A evangelização da América espanhola não foi de forma alguma um empreendimento nacional interessado.
Manifesta-o já o fato de que inúmeros de seus representantes, se eles responderam ao apelo do Padroado espanhol, não são espanhóis. Em toda a primeira leva de evangelizadores da América enviados a partir de 1495 por Isabel a Católica, contam-se dois notáveis franciscanos que seriam hoje franceses flamengos: frei Jean de la Deûle e frei Jean Cousin. Uma das primeiras evangelizações em terras firmes da América (1515) é a dos franciscanos picardos de Rémy de Faulx, na Venezuela. Depois, quatro dos mais importantes dos primeiros evangelizadores do México, veremos, são os franciscanos frei Pierre de Gand, flamengo; frei Arnaud de Bazas, frei Jean Foucher e frei Mathurin Cordier, franceses. No século seguinte, o apóstolo da Califórnia, de Sonora e do Arizona será o jesuíta italiano (do Tirol) Eusebio Kino. Seus sucessores, jesuítas suíços e alemães.
Que pensariam esses homens dos preconceitos nacionalistas e anti-eclesiásticos atualmente derramados sobre sua obra? Deixemos, portanto, os preconceitos e vejamos os fatos.
A “ENCOMIENDA”, SISTEMA TAMBÉM DE PROTEÇÃO
O observador objetivo tem o direito de se espantar que as imputações relativas à escravidão imposta aos índios ainda possam ter curso hoje em dia. Já os especialistas norte-americanos, há meio século, falam de servidão e apenas como resultado ilegal, embora freqüente. Assim, G. M. C. Cutchen Mc Bride, em The Land Systems of Mexico, escreve: “Os titulares de comendadorias chegaram logo a ver, nos territórios que lhes eram atribuídos, sua propriedade pessoal, e, nos camponeses indígenas, seus servos”. Assim, E. N. Simpson, em The Ejido, confirma: “Os titulares das comendadorias esqueceram de seus deveres legais e, em vez de proteger os índios em suas pessoas e propriedades, tomaram gradualmente posse de suas terras e reduziram os indígenas à servidão”.
A servidão (muito menos a escravidão) não era, portanto, como se lê em nossas Histórias recentes, “organizada pelo sistema de comendadoria”, que era, ao contrário, um sistema legal de proteção dos indígenas e também de evangelização”, ao mesmo tempo que um benefício leigo concedido aos conquistadores.
Proteção e evangelização às quais o titular da comendadoria se comprometia, em vista do poder real que lhe concedia seu título, um título pessoal e sempre revogável. O tributo que esse titular recebia dos índios, e que substituía para estes últimos o tributo pré-hispânico, tinha esses ônus em contrapartida, se conferia ao titular a recompensa de seus méritos de conquistador.
DOCUMENTOS IMPRESSIONANTES
Mas, sobretudo, há quarenta anos que, com novas pesquisas em arquivos, a apresentação moderada dos historiadores norte-americanos quanto à encomienda da conquista espanhola, revelou-se, ela mesma, excessiva e inexata. O reconhecido especialista da encomienda, o mexicano Silvio Zavala, estabeleceu, escrevendo em De encomiendas y propiedad territorial, a propósito dos julgamentos norte-americanos que acabamos de citar:
“A encomienda é estudada nessas obras como uma parte da história das haciendas mexicanas [grandes propriedades não da conquista, mas do México moderno]. De onde resulta a crença, difundida entre os sociólogos, juristas, indigenistas e estudantes, de que as encomiendas da conquista foram de natureza territorial, que elas constituíram um desapossamento dos indígenas e prepararam a concentração de terras do século XIX.
“Creio que é conveniente adotar uma atitude de reserva com relação à essa tese, pois as características jurídicas da encomienda indígena, e os ensinamentos que resultam dos documentos que tratam das terras compreendidas nas aldeias das encomiendas, justificam outras conclusões”.
O próprio Hernan Cortés, senhor do marquesado do Valle d’Oaxaca, título mais perfeito que o de titular de comendadoria, apontava, em seu testamento de 1547, que as terras dos índios não lhe pertenciam, e restituiu a estes últimos, com perdas e danos, as terras da vila de Coyoacán que havia doado a um hospital. Outro conquistador célebre, o cronista Bernal Diaz del Castillo, foi encarregado, em 1579, pelos índios de sua comendadoria, de lhes defender na justiça contra uma concessão de suas terras feita abusivamente em benefício de um espanhol. A corte deu razão aos índios e a seu defensor, titular da comendadoria: a concessão de terras (repartimiento ou merced) foi anulada.
Cortés também defendeu na justiça o pedido dos índios de seu marquesado de recuperar as terras onde um espanhol havia estabelecido um moinho de açúcar. Finalmente, em 1539, uma arbitragem decidiu que o moinho de açúcar seria explorado em sociedade pelo espanhol e por Cortés. Em contrapartida da parte de 1/7 que seria reconhecida a Cortés nessa sociedade, este indenizou os índios pelo montante correspondente às terras que lhes haviam sido tomadas. Outra vez, o mesmo Cortés, atacado na justiça por outros índios, quanto a certas terras que ele havia plantado com cana-de-açúcar, milho, etc., reconheceu a propriedade dos índios sobre essas terras e lhes restituiu ou pagou aos índios, ele, senhor-marquês do território, a renda correspondente a seu valor de exploração.
Finalmente, um caso conexo, opondo, após a morte de Cortés, seu filho Martín aos índios, terminou igualmente por uma transação satisfatória para ambos, os índios tendo obtido da audiencia de México o envio, para sindicância local, de um alto magistrado, o Dr. Melgarejo, e foram representados diante deste por um religioso, frei Francisco Lorenzo, seu padre (cura) e seu defensor. Os “serviços” prestados pelos índios a Cortés, em mão-de-obra, lhes foram pagos e seus “direitos de água” foram proporcionais às contribuições para a construção dos aquedutos, respectivamente de Cortés e dos índios, o direito de trânsito concedidos pelos índios sobre suas terras sendo considerado como uma contribuição a essa construção.
Dos documentos referentes a esses casos, e a outros, Silvio Zavala tira as seguintes conclusões:
1. “Os títulos de encomiendas não conferiam nenhum direito [para seu titular] à propriedade de terras. De fato, em vista do pagamento do tributo in natura, certas terras semeadas lhes eram destinadas, sem que o direito de propriedade sobre elas fosse modificado.”.
2. “Os índios possuíam as terras coletiva e individualmente, sem que o senhor ou titular da comendadoria pudesse despojá-los legitimamente. Houve, evidentemente, exemplos de desapossamentos, mas também de prolixas ações judiciárias que as reparavam.”
3. “A defesa da propriedade dos índios coincidia com o interesse do titular da comendadoria e este, de bom grado, reconhecia o direito de propriedade indígena.”
4. “Nas senhoriagens e comendadorias da América, constata-se uma proteção da propriedade dos índios que vai além dos direitos limitados reconhecidos na Europa medieval aos camponeses [e que permaneciam os mesmos na época da conquista americana]”.
Longe de organizar o desapossamento dos índios e de os reduzir à escravidão, o sistema de encomienda marcou, portanto, com relação à Europa, um progresso social, organizando inteligentemente um consenso entre índios e titulares de comendadoria. Sistema de recompensa para os homens da conquista, garantiu também aos índios a proteção de seus direitos, à qual colaboraram conquistadores e religiosos.
UMA CLARA “DEMONSTRAÇÃO GRÁFICA”
Somente no século XIX começará a verdadeira servidão imposta ao povo indígena pelo desapossamento de suas terras, em benefício dos proprietários de haciendas. Mas é a independência dos países da América espanhola que liberará os capitalistas crioulos (ou recentemente imigrados) do antigo controle real metropolitanos, e que o laicismo triunfante (com o auxílio protestante norte-americano) despojará e desmantelará a Igreja inspiradora, apesar de suas fraquezas, da antiga dileção legal com relação aos índios.
Silvio Zavala, ao término da obra citada, resume essa trágica evolução histórica por uma clara “demonstração gráfica”. Essa demonstração permite comparar dois círculos idênticos representando a área territorial de uma aldeia indígena: o primeiro círculo traduz a situação sob o império da encomienda do século XVI; o segundo círculo mostra o que surgiu na hacienda do século XIX.
No tempo da encomienda, a propriedade indígena cobre a quase totalidade do círculo, estando apenas levemente tomada pelo pequeno território, propriedade privada do titular da comendadoria, ou de outros espanhóis, que haviam obtido por um título distinto da encomienda (comprada aos índios ou repartição aos colonos de antigas terras reais indígenas, as terras “de religião” ou “de guerra” que se reservava ao monarca pré-hispânico). No centro do círculo, assim maciçamente dominado pela propriedade indígena, encontra-se a aglomeração da aldeia indígena que sedia as autoridades indígenas: cacique, notáveis, municipalidade. Resumidamente, os índios estão sempre em casa, em suas terras e com suas instituições locais. Os titulares das encomiendas vivem habitualmente na cidade, como veremos no México. Além disso, é formalmente proibido aos espanhóis de se instalarem em uma aldeia indígena.
No tempo da hacienda do século XIX, muda tudo. O centro do círculo se torna a sede da hacienda, dominada pela casa do senhor e a casa de seu intendente. A aglomeração indígena foi lançada para fora do círculo, onde não exerce mais nenhuma função institucional própria. A propriedade do senhor da hacienda cobre todo o círculo, a propriedade indígena tendo desaparecido totalmente. A localização indígena no círculo é representada por apenas algumas faixas de terra concedidas temporariamente aos trabalhadores agrícolas índios para os auxiliar a viver e para os manter a serviço do senhor. Resumidamente, os índios não estão mais em casa; despojados de suas terras e de suas instituições, sé resta deles uma tropa humana liberada à boa vontade do capitalista agrário.
OUTRA APRESENTAÇÃO ERRÔNEA
Porém, pode-se talvez dizer, a situação dos índios na encomienda do século XVI é bela demais para não ser rapidamente degradada, sendo conhecida a feroz cupidez dos conquistadores e do poder colonial espanhol.
E no entanto, a realidade foi mais uma vez totalmente contrária. De um lado, o tributo, pago pelos índios aos titulares da comendadoria, foi taxado pela magistratura das audiencias reais antes do meio do século XVI e viu, assim, seu valor diminuir, para todos os índios, quer fizessem parte de uma comendadoria ou não. Pois esse tributo, continuando o tributo exigido pelos monarcas pré-hispânicos (mas agora com isenções para os “economicamente fracos”), era devido, de fato, ao rei de Espanha. Representava um terço dos ingressos fiscais da Coroa espanhola na América, os dois outros terços sendo produzidos pelas porcentagens reais sobre as atividades exercidas pelos espanhóis nas “Índias”. Onde não havia comendadoria, os índios pagavam o tributo à administração real que empregava um quarto para cobrir as taxas locais do culto.
É, portanto, outra apresentação errônea deixar crer, como freqüentemente se faz (por exemplo, Marianne Mahn-Lot na obra citada), que esse tributo era uma exação escandalosa do sistema da encomienda. Tratava-se simplesmente do imposto pago por todos, como antes da chegada dos espanhóis. Portanto, o rei, apenas às suas custas, havia simplesmente transferido o lucro, nas encomiendas, para seus titulares, em um tipo de ressarcimento com relação às despesas que freqüentemente, como conquistadores, haviam eles mesmos pago pela conquista, despendendo toda sua fortuna pessoal. E ao custo para eles de subvencionar as necessidades do culto, particularmente construindo igrejas.
O controle do bom uso da encomienda pelos religiosos, também quanto a esse tributo, não era, além disso, uma palavra vazia.
Na década de 1550, o franciscano Motolinia podia constatar: “Os titulares de comendadoria da Nova Espanha não ousam de forma alguma ultrapassar a taxação fixada, senão seus confessores se recusam a absolvê-los”. Resumidamente, as encomiendas não despojaram os índios pelo tributo, assim como não os despojaram de suas terras ou destruíram suas instituições locais.
Por outro lado, os “serviços” ou corvéias que os titulares de comendadoria podiam originalmente requerer dos índios em continuação à antiga corvéia indígena, e as terras de propriedade privada que eles podiam deter em suas comendadorias, se viram reduzidos, desde a metade do século XVI, depois oficialmente proibidas. “A faculdade de possuir propriedades privadas nas comendadorias foi limitada na metade do século XVI à criação de certos tipos de bestas e ainda o foi mais geralmente no século XVII”. Isso resulta particularmente, mesmo que não fosse inteiramente aplicada, de uma lei promulgada por Felipe IV, em 31 de março de 1631, que também proibia a imposição de “serviços” aos índios, já proibidos pelas Leis Novas de 1542:
“Ordenamos que nenhum titular de comendadoria possa possuir por si mesmo, ou por pessoa interposta, propriedade no interior do território de sua encomienda e, se possuir, que a quite e venda. Ordenamos, da mesma forma, que nenhum titular de comendadoria possa exigir “serviços” dos índios.”
Essas restrições ou interdições, somadas ao caráter revogável — e freqüentemente revogado — do título de encomienda, para terem lugar particularmente na administração pública dos corregidores reais, torna a situação dos titulares de comendadorias e de suas famílias muito pouco invejável. Esses pretensos opressores eram, na realidade, muito mal protegidos, e a incerteza de sua sorte tinha por conseqüência um rendimento muito ruim nas terras de encomiendas.
É o que constatarem desde 1531, em sua chegada na América, os membros da segunda audiencia de México. Em um relatório ao rei de Espanha, eles notaram que “não haviam encontrado terras cultivadas como deviam ter sido, nas encomiendas, devido ao medo dos titulares de perderem as colheitas e o gado, se seus títulos fossem revogados como era costume fazerem os governadores precedentes”.
Ora, as revogações continuaram em grande medida, para transferir os índios para o controle direto dos corregidores, com as desastrosas conseqüências econômicas previstas. Assim, dois anos mais tarde, em 1533, a municipalidade de México escrevia de sua parte ao rei: “Como aqueles que haviam recebido encomiendas levaram o gado para o território delas, e como os corregidores os expulsaram, os primeiros não tiveram outra solução, não podendo mais alimentar seu gado, senão vendê-lo a baixo preço. Assim, tiveram de deixar essa cidade quinhentos homens e mais [...]. E como os corregidores não criam nenhum gado e este a cada dia se tornou menos numeroso [os índios não o criam], a coisa pública sofre prejuízo”.
Dois anos mais tarde, em 1535, uma cédula real promulgada em Madri constatava que certas famílias de titulares de comendadorias, extintas ou revogadas, “encontravam-se sem saber o que comer”.
DOIS FENÔMENOS HISTÓRICOS FUNDAMENTAIS
Consideramos um pouco a verdadeira sorte dos titulares de comendadorias de índios, pois é de grande importância histórica. Não apenas essa consideração é uma vacina útil contra o prurido das idéias simplistas, mas também permite perceber a causa de dois fenômenos históricos fundamentais: a baixa povoação puramente européia da América espanhola católica, e seu retardo econômico com relação à América anglo-saxônica protestante.
A América espanhola, até o fim de sua dependência de Madri no início do século XIX, não era uma colônia de povoamento, porque a incerteza do ganho financeiro dos colonos, bloqueados pela proteção legal dos índios, era muito grande. Na América anglo-saxônica, protestante, havia, ao contrário, uma quase certeza de ganho dos imigrantes europeus: vimos que, tendo todas as terras do Oeste dos Estados Unidos tendo sido declaradas propriedade federal, bastava ao pioneiro expulsar os índios da terra ocupada e pagar 1 dólar por acre ao Estado, para se tornar legítima e inteiramente proprietário. Assim, segundo o ditado ianque, na América anglo-saxônica “um índio bom é um índio morto”: no imenso continente norte-americano, o índio sobreviveu apenas em doses homeopáticas.
Em compensação, no México e no Peru, os dois vice-reinos espanhóis da conquista, a população é ainda hoje constituída por 90 a 95% de índios e mestiços de índios.
O atraso econômico da antiga América espanhola está ligado à mesma realidade. Passando da encomienda, que só deixava aos europeus uma margem de iniciativa quase nula, para a hacienda de preguiçosa exploração servil, a América espanhola só foi animada, em sua economia rural, pela capacidade indígena. Ora, deve-se observar que o povo indígena, tão tocante quanto seja para um coração cristão e tão rico quanto se mostre em valores desinteressados, encarna o contrário da eficácia econômica. Encontrado pelos conquistadores em estágio neolítico (ignorando a roda, a besta de carga, a abóbada, a moeda e mesmo a verdadeira agricultura), não pôde, em quatrocentos anos, refazer por si mesmo o atraso dos vários milhares em que estava com relação à Europa do século XVI. Os ejidos (terras comunitárias indígenas representando 50% das terras cultiváveis do México de hoje), esses herdeiros das encomiendas da conquista, com a anulação do desapossamento do século XIX, em parte, nos anos de 1910-1940, tiveram um rendimento econômico apenas irrisório, a ponto dos indigenistas mais convencidos começarem a se ressentir com o impasse (inúmeros artigos nesse sentido publicados pela imprensa mexicana em 1980). E importantes populações indígenas, como as de Chiapas, no sul do México, sequer descobriram a roda nem o asno, essa modesta besta de carga utilizada pelos mais pobres em todos os lugares do mundo. Tudo é transportado no dorso dos homens, ou de mulheres e crianças, inclusive esmagadoras cargas de madeira, pedras, grãos ou vasos para os últimos.
UMA POLÍTICA SISTEMÁTICA
Assim, a verdadeira visão da América da conquista espanhola — um protetorado que favorecia, apesar de tudo, aos índios — não é discutível: seus traços essenciais permanecem ainda hoje, até em seus desagradáveis caracteres econômicos, os da mesma América. E o que o historiador americano Lewis Hanke chamou de “luta espanhola pela justiça”, em benefício dos índios, não foi apenas um epifenômeno, como o deixam pensar nossas recentes Histórias da Igreja. Foi uma política sistemática que começou a ser aplicada antes mesmo do testamento de Isabel a Católica (1504) habitualmente citado, e foi o resultado do esforço coletivo de todos os espanhóis responsáveis. Mesmo em anos anteriores a 1500, “ela nasceu da inquietação manifestada pela rainha, pelos poderes reais, pelos homens enviados às novas terras e pelos religiosos evangelizadores. Ela nasceu porque foi desejado sinceramente que, além de todas as limitações humanas, fossem no Novo Mundo justas as leis e morais as ações”.
A escravidão imposta aos índios existiu de maneira oficial, mas, de fato, apenas com Cristóvão Colombo nos tempos iniciais, quando tinha poderes efetivos de vice-rei das terras descobertas, portanto apenas nos primeiros estabelecimentos europeus nas Antilhas, antes de 1500. Pois Colombo — não espanhol, lembremos — “movia-se em uma metalidade plenamente escravagista”. Contra essa escravidão dos índios (Colombo enviou várias centenas de escravos índios para a Espanha a partir de 1496), Isabel a Católica reagiu como havia reagido ao libertar, em 1478, os escravos dos colonos das Canárias. Ela mandou devolver às Antilhas os escravos enviados por Colombo e os libertou, desde sua chegada no local, por seu enviado especial, Francisco de Bobadilla que, além disso, destituiu Colombo e o enviou prisioneiro para a Espanha. Desde então, a política empregada é bem clara: os índios são homens livres, súditos como os outros da Coroa e devendo ser respeitados como tais, tanto em seus bens como em suas pessoas. Felizmente, a Coroa espanhola, além do apoio conferido no caso dos religiosos, dispunha, para fazer respeitar sua vontade, um notável corpo de homens de confiança: os juízes de suas audiencias, instâncias superiores de justiça e de controle administrativo. Na própria Espanha, são freqüentemente vistos defendendo os direitos e os bens dos mais modestos aldeões ou camponeses contra as tentativas de usurpação pelos senhores mais poderosos, próximos da Coroa. Assim, na mesma época, eles desejam condenar o duque de Medina Sidonia, verdadeiro rei da Andaluzia, por queixa de seus camponeses, dos quais ele buscou retirar o gozo de suas terras coletivas. São esses oidores das audiencias ou das chancelarias, cujos nomes são sempre trazidos hoje, como forma de reconhecimento, por ruas de aldeias andaluzas, que vão, salvo algumas exceções, assegurar com rigor, na América, uma semelhante proteção legal dos índios, proteção essa já nas mãos, em contato direto, dos religiosos que muito rapidamente cristianizam os índios.
OS ÍNDIOS “MUITO FAVORECIDOS”
Dessa proteção legal dos índios, prolongamento, portanto, da que havia sido assegurada aos camponeses da Espanha, e dessa afeição dos índios pelos religiosos, são inúmeros os testemunhos, como em tudo, do estado “muito favorecido” dos índios.
Citemos um desses testemunhos, ainda mais incontestável por nos ser dado por um visitante estrangeiro do México, e um protestante, o comerciante inglês Henry Hawks, que passou cinco anos na Nova Espanha e nunca esteve disposto a lisonjear os espanhóis, tendo sido condenado ao banimento, em 1571, pela Inquisição. Em sua Relation écrite sur les instances de Mr. Richard Hakluyt, redigida em seu retorno à Inglaterra em 1572, lê-se: “Os índios reverenciam muito os religiosos, porque, graças a estes e a sua influência, eles se vêem livres da escravidão. [...] [Assim, hoje] é necessário suprir muito os índios, e bem pagá-los, para que trabalhem [...], em grande detrimento dos proprietários de minas, e das partes e direitos reais sobre o produto dessas minas. [...]. Os índios são muito favorecidos pelos tribunais, aos quais apelam seus problemas. Se algum espanhol os ofender ou lhes causar prejuízo, despojando-os de qualquer coisa (como comumente ocorre), e se isso se passar em um lugar em que haja um tribunal, o agressor é castigado como se ele o tivesse feito a outro espanhol.
“Quando um espanhol se vê longe do México ou de outro lugar em que haja um tribunal, ele pensa que poderá fazer ao povo indígena o que bem entender, considerando que está bem longe da instância que poderia reparar seu prejuízo. E, assim, ele obriga o índio a fazer o que lhe manda: se o índio recusa, ele lhe bate ou maltrata a seu bel-prazer. O índio dissimula seu ressentimento até que se apresente a ocasião de se fazer conhecido. Então, levando consigo um de seus vizinhos, vão ao México depor sua queixa, mesmo se forem vinte léguas de caminho até a capital.
“A queixa é admitida sem demora. Mesmo que o espanhol seja um nobre ou um poderoso caballero, é ordenado a comparecer imediatamente, e é punido sobre seus bens e mesmo sobre sua pessoa por prisão, conforme aprouver à justiça.
“Essa é a razão pela qual os índios são súditos tão dóceis: se não fossem assim favorecidos, os espanhóis os exterminariam rapidamente, ou então eles mesmos massacrariam os espanhóis”.
Essa excelente “coisa vista” por uma testemunha livre resume a realidade concreta dos relatos coloniais na América espanhola da conquista, sem omitir suas desagradáveis conseqüências econômicas. Hawks não tem, além disso, ilusões quanto ao antigo poder indígena, e dos próprios índios, assim como com relação aos espanhóis comuns. Ele lembra, de fato, que Moctezuma, o útlimo grande emperador asteca, sedento de ouro, de onde seus “tesouros”, recusava isentar de tributo mesmo os mais pobres de seus súditos, obrigando-os por punição a usar uma roupa de penas cheia de piolhos. Ele nota: “Os índios são grandes ladrões e roubam tudo o que podem, e se vós cairdes em suas mãos, eles vos desnudam inteiramente”.
Quanto ao destino dos índios com a colonização chegada a sua maturidade, esse testemunho contemporâneo do inglês Hawks confirma o do estudo concreto dos arquivos realizado pelo mexicano de hoje Zavala. E todos os dois são confirmados pelos testemunhos de evangelizadores o mais engajados na defesa dos índios em campo, no século XVI. Em 1555, o franciscano Motolinía escreve a Carlos V que a situação dos índios do México se compara favoravelmente à dos camponeses de Castela, e que eles dispõem de meios eficazes de defesa. Em 1563, os dominicanos da Guatemala, antigos companheiros do dominicano Las Casas nesse país, escrevem a este que retornou à Espanha que as encomiendas asseguram aos índios condições de vida satisfatórias.
A OBJEÇÃO LAS CASAS
A esses testemunhos concordantes, pode-se opor o do dominicano citado, Bartolomé de Las Casas, o célebre “protetor dos índios”, que denunciou de maneira indelével a escravidão e os massacres que sofreram, segundo ele, os índios e o caráter opressivo que teve, segundo ele, a encomienda, até chegar a um verdadeiro genocídio do povo indígena.
A objeção é bem vinda. De fato, a opinião foi formada, desde o século XVI, pela denúncia desses pretensos horrores, graças à utilização feita das obras de Las Casas pela propaganda política e religiosa contra a hegemonia espanhola da época, obras às quais as oficinas de propaganda protestantes acrescentaram, desde a mesma época, belas, assim como horríveis, gravuras, particularmente as de De Bry, “armas cínicas de uma guerra psicológica” (Pierre Chaunu). Sendo provavelmente quase as únicas antigas mostrando a conquista da América, essas gravuras foram depois, e são ainda, reproduzidas sem cessar, perpetuando assim o mal-entendido. Um mal-entendido lucrativo a muitas boas consciências nacionais, por exemplo, à boa consciência norte-americana e à boa consciência francesa. Assim, o mesmo Chaunu nota que: “A lenda anti-hispânica, em sua versão americana, desempenha [...] o papel salutar de abscesso de fixação [...]. O pretenso massacre dos índios no século XVI [pelos espanhóis] cobre o massacare objetivo da colonização da fronteira no século XIX [pelos americanos]; a América não ibérica e a Europa do Norte se livram de seu crime contra a outra América e a outra Europa”. Da mesma forma, a boa consciência francesa não cessa de reeditar ou incensar Las Casas, que freqüentemente toma o lugar que poderia ter a denúncia dos crimes coloniais franceses nas Antilhas, na África negra ou na África do Norte, denúncia seguramente mais delicada, mais arriscada.
De fato, conforme já se observa pelo caso de Pierre Chaunu, nenhum historiador que se respeite leva hoje em dia mais a sério as denúncias extremas de Las Casas. Não mais do que fez, na época, uma multidão de confrades religiosos do dominicano em trabalho de campo. Pois a Brevíssima Relação da Destruição das Índias, assim como a História das Índias e outras obras de Las Casas, nos livram, ao lado de gritos de exigência cristã, de enormes exageros polêmicos, de “números incríveis, em todos aspectos falsos”, nota Américo Castro. O medievalista espanhol de renome mundial Ramón Menéndez Pidal se deu ao trabalho, em seus dias de velhice, de tentar desentranhar as causas dessa aberração lascasiana, para chegar à hipótese de um estado paranóico de alucinação do “protetor dos índios”, produzindo nele uma “dupla personalidade”. O editor moderno da História das Índias, o grande erudito muito crítico da colonização espanhola, Juan Pérez de Tudela, confirma-o a sua maneira: ele vê, nessa obra maior do dominicano, a expressão de um “sentimento de autovalorização”, que o leva a se lançar em uma “causa desmedida que pudesse se equiparar à importância” que ele se dava.
O especialista J.-B. Avalle-Arce, recensiando as “hipérboles” do “protetor dos índios”, conclui: a obra de Las Casas “não é histórica”. O mesmo havia sido observado, desde 1927, pelo futuro diretor do Instituto Hispânico da Sorbonne, Robert Ricard. É o mesmo que não cessa de observar a revista especializada em história missionária, Missionalia hispánica, que reúne em sua direção jesuítas, franciscanos, agostinianos, mercedários e dominicanos, ou seja, os religiosos das cinco grandes ordens que participaram da primeira evangelização da América. Para esses especialistas representativos, o tratado equilibrado dos métodos dessa primeira evangelização é o De Procuranda Indorum Salute do jesuíta José de Acosta (1589), não as obras de Las Casas, onde eles vêem apenas “exaltações místicas”.
AS PALAVRAS E OS FATOS
Quem desejasse formar uma opinião pessoal sobre esse assunto, chegaria muito rapidamente à mesma conclusão. A leitura das obras de Las Casas mergulha constantemente o leitor na estupefação, até provocar um acesso de riso.
Assim, quando ele afirma que Alexandre o Grande trouxe ao mundo o mesmo horror, “o mesmo ofício”, que foi o dos espanhóis, segundo ele, “em todas as Índias”, “infestando, escandalizando, matando, roubando, reduzindo ao cativeiro, sujeitando e usurpando os reinos e gentes”. Ou quando denuncia o direito de exploração dado por Carlos V aos banqueiros alemães Welser sobre a selva, então quase vazia, do norte da atual Venezuela, pretendendo, assim, que “em quatro anos, eles puderam roubar o suficiente para comprar toda a Alemanha”. Ou ainda que as civilizações dos povos indígenas “ultrapassavam a Inglaterra, a França e alguns de nossos condados da Espanha”. Ou ainda que os índios “não conheciam sedições, nem tumultos, são desprovidos de rancor, de ódio, de desejo de vingança”, e que, portanto, é preciso lhes dar uma total confiança que deve ser, também totalmente, recusada aos espanhóis e a outros europeus. Afirmações ainda menos convincentes, porque Las Casas não julgou útil aprender as línguas indígenas e só tinha, da realidade profunda das civilizações indígenas, um conhecimento de segunda mão. Contrariamente a muitos outros religiosos que, conhecendo as línguas e a vida indígenas, rejeitam vivamente suas imputações unilaterais, suas visões ingênuas ou suas construções teóricas.
E, se Las Casas é confrontado com os fatos, vêem-se, da mesma forma, suas construções afundar. Os sanguinários índios Lacandons de Chiapas-Guatemala massacram a cristandade idílica que Las Casas aí estabeleceu pouco depois de deixá-la. No Peru, trinta anos mais tarde, os Chunchos, índios sanguinários vindos da Amazônia, atacam os cristãos indígenas dos Andes cuzquenianos; e os próprios missionários, para repelir a invasão, devem se transformar, como na Guatemala, em chefes de guerra. Mais de um século depois, os Apaches atacam os cristãos indígenas do Sonora norte-mexicano e do Arizona. No início do século XIX, “torna-se impossível às missões de funcionar, porque a fronteira [mantida pela cavalaria espanhola] desmoronou. Os ataques apaches varreram a colonização e extinguiram a paz em toda a região. Com a chegada do México à independência, a própria noção de fronteira havia sumido: os desertos do noroeste não entravam nunca nos interesses políticos do México central. Os anglo-americanos que chegam nessas regiões, na metade do século XIX, aí descobrem com espanto as ruínas de uma esplêndida civilização [a das prósperas missões jesuítas, depois franciscanas, de inúmeros, magníficos e alegres monumentos] ”. E ainda mais como os “tumultos”, a “raiva”, a morte, as ruínas eram indígenas, assim como podiam naturalmente sê-lo e freqüentemente o eram. A “esplêndida civilização” era, de fato, das missões coloniais e só pôde florescer sob a proteção de soldados espanhóis, no que Las Casas vê apenas um crime.
UMA EVANGELIZAÇÃO PURAMENTE LASCASIANA
Mais significativo ainda, se é possível, da realidade que não quis ver Las Casas é o caso da Flórida-Geórgia. A Espanha, os católicos, aí se comportam exatamente como o “protetor dos índios” reclama. Não há encomiendas. Não há nenhum escravo indígena, mesmo prisioneiro de guerra, segundo a ordem formal, repetida, de Felipe II. A presença administrativa e militar do colonizador limita-se inicialmente a dois, depois a um único forte na beira do mar, em Santa Elena (logo suprimido) e em San Agustin. E a um painel de sinalização, pintado com as armas do rei da Espanha, em vilas indígenas que desejaram reconhecê-lo e lhe pagar um modesto tributo, freqüentemente reduzido ou suprimido, em toda de sua proteção. No testemunho dos próprios religiosos, e conforme se constata por seus próprios relatórios ao rei de Espanha, o governador Gonzalo Méndez de Canso, no fim do século XVI, é “muito afável, benigno, piedoso e liberal com os índios”.
Os únicos europeus instalados no interior do país são religiosos franciscanos que aí estabeleceram, pacificamente, doctrinas, isto é, paróquias indígenas. O rei de Espanha sustenta, praticamente sem contrapartida, todos os gastos, consideráveis, de manutenção dos fortes e de evangelização pelos religiosos. Estes recebem da administração real subvenções para a construção de conventos e igrejas, para a compra de ornamentos e objetos de culto, para sua manutenção pessoal, suas vestimentas, seus soldos, etc.
As anotações dos conselhos reais ao relatório enviado pelo governador ao rei, em 23 de fevereiro de 1598, mostram com que atenção a monarquia espanhola controla com que tudo, na Flórida-Geórgia, se faça no mais puro espírito evangélico. Lê-se que mesmo os castigos de índios, que se mostram então necessários, devem ser concebidos e executados com grande moderação e justiça: “de modo que os ìndios não se tornem mais rebeldes e escandalizados, mas reduzidos à paz e à obediência e se tornem cristãos”.
Ora, na medida em que essa evangelização permanece assim puramente lascasiana, ela é um fracasso patente. Dez anos depois de seu início, a evangelização teoricamente modelo desmorona; assim como uma tentativa anterior e semelhante feita pelos jesuítas, que viram dez de seus dezesseis missionários serem massacrados na Flórida, de 1566 a 1572, sem nenhum ganho, e a abandonaram; assim como a primeira tentativa feita por um dominicano enviado pelo próprio Las Casas e imediatamente massacrado.
De fato, da mesma forma, em 1597, impulsionados por seu mico mayor (rei), os índios da região georgiana de Gualé massacram os religiosos de suas paróquias, saqueiam suas igrejas e atacam outras aldeias cristãs, que só são salvas pela chegada de patrulhas espanholas. Com a vertigem do sangue de sua terrível tradição parecendo novamente acometer os naturais, todos os religiosos abandonam suas paróquias e se refugiam em San Agustin. A evangelização somente avança e se torna um magnífico sucesso quando o governador vinha, à frente de seus soldados, castigar as aldeias criminosas. Então, revela-se que o castigo do crime, a represália coletiva teoricamente escandalosa (aldeias e colheitas queimadas, mas sem massacre) é o choque que permite aos índios se libertarem de sua tradição de despotismo sanguinário.
Assim, eles são liberados: os chefes das aldeias criminosas chegam a San Agustin para pedir perdão ao governador, que o concede com sua afabilidade costumeira e os livra das cadeias. E um desses chefes monta uma importante operação puramente indígena para tomar a vila fortificada do mico mayor. Ela a toma, mata o rei sanguinário e envia seu escalpo ao governador. Não apenas os religiosos retornam a suas paróquias, mas também a evangelização avança, corre então, como um rastilho de pólvora. E o progresso da colonização com ela. Os índios, em multidão, “vêm de mãos cruzadas oferecer seu país aos religiosos, assim como sua vontade e seus pobres alimentos. E eles acrescentam que desejam ver o rei de Espanha enviar colonos capazes de lhes ensinar a trabalhar sua terra e as outras coisas que lhes convêm”. Esses são os termos do memorial dirigido a Filipe III pelos franciscanos, quinze anos depois da morte de seus confrades.
O que quer que argumente Las Casas, o ato de autoridade espanhol, se não foi de todo, é ordinariamente a prévia necessária à evangelização. Uma prévia ratificada pelos próprios índios que viram bem de onde apenas podia vir sua paz e o progresso, material e espiritual. Pelo caminho de uma nova força, pacífica, de soberania, da qual, quer se queira ou não, eles têm falta e à qual, quer se queira ou não, eles aspiram naturalmente. Tendo sido a tradição sanguinária indígena o que foi, sobretudo como verificada por Las Casas, a tese lascasiana de evangelização “sem rédeas”, sem presença européia, era desarrazoada. O caso da Flórida-Geórgia foi o caso “ordinário”, pois esse é o adjetivo que emprega, no sentido forte, o diretor de Missionalia hipánica, Constantino Bayle, S.J., especialista irrecusável. Onde não havia proteção espanhola direta, escreve ele, a evangelização foi “comumente assinalada pelo sangue dos que tombaram: não houve missão que não contasse com mártires”. Se os espanhóis não interviessem sempre, o sistema lascasiano chegaria ao absurdo: à não evangelização, pela morte “ordinária” dos missionários, à antievangelização, induzindo “ordinariamente” os índios à recair em sua pior tentação: o crime de sangue, dessa vez explicitamente blasfematório. A argumentação, afastando-se cada vez mais da realidade pelo encadeamento das deduções aparentemente lógicas, desembocaria no contrário do que era buscado: na anticaridade absoluta, com relação a todos os interessados.
DE NOVO, A VERDADE DA “ENCOMIENDA”
Além disso, os textos dos Conciles provinciaux ternus à Mexico no século XVI, publicados pelo erudito arcebispo Lorenzana, citam o nome de Las Casas apenas uma vez, de passagem, como bispo durante algum tempo de Chiapas. Todavia, esses textos são consagrados à defesa e à promoção dos índios, realizados inegavelmente por outros bispos e religiosos, em colaboração com as audiencias e os vice-reis. Las Casas denuncia abolutamente a encomienda? É praticamente o único a fazê-lo entre os admiráveis apóstolos do México. As Lois nouvelles, que ele faz adotadar em 1542, têm contra elas “a unanimidade das ordens religiosas do México e a maioria dos religiosos individuais”, conforme mostrou Lewis Hanke. Além disso, deve-se rapidamente mitigar profundamente suas disposições, ou interromper sua aplicação.
Trinta e sete anos mais tarde, um importante documento, as Relações do Yucatan, estabelecidas por ordem de Filipe II para cada aldeia indígena, mostram-nos os titulares das comendadorias, felizmente não suprimidas, feitos, como nota também Silvio Zavala, defensores dos índios, de suas terras e de seu trabalho, contrariamente, em particular, aos métodos muito expeditos de reagrupamento das aldeias indígenas empregados por... certos religiosos. Pois, como atestou Zavala, a defesa da propriedade dos índios coincide naturalmente com o interesse dos titulares da comendadoria. Estes se mostram mesmo conhecedores muito atentos, simpáticos e eruditos das civilizações pré-hispânicas. Estamos, agora, em 1579. Há treze anos que Las Casas morreu e trinta e dois anos que deixou a América definitivamente. Essa América cuja realidade se recusa sempre a entrar em suas categorias.
No Peru, onde Las Casas também só quis ver uma conquista espanhola criminosa, dois dos apóstolos cristãos queridos pelos índios, cujas línguas e vida conheciam maravilhosamente, são um, o neto do conquistador Pizarro, o padre Martin Pizarro, o outro, o filho de outro conquistador e titular modelo da comendadoria, o padre Blas Valera, autor de uma Historia occidentallis, verdadeiro monumento da história indígena do Peru. Um monumento citado e utilizado sem cessar por Garcilaso l’Inca, filho de uma princesa peruana e grande testemunha de seu povo.
O ERRO GRAVE
Da mesma forma se deve recusar esse outro pretenso mérito excepcional de Las Casas, celebrado pelo americano Lewis Hanke: “A insistência de Las Casas sobre o fato de que os índios tinham uma civilização própria, digna de estudo e também de respeito, o destaca de seus contemporâneos”. Os documentos da epóca estão cheios desse estudo e desse respeito pela pena daqueles que Las Casas pretende culpar de crime: conquistadores e seus descendentes, titulares de comendadoria, religiosos em desacordo com as teorias lascasianas, que não são mais respeito, mas adulação cega, não estudo, mas sistema.
Desde 1892, outro anglo-saxão, Alfred P. Maudslay, especialista em antigas civilizações indígenas, havia notado: a imputação feita aos espanhóies de haver desconhecido essa civilização indígena é infundada. “Quem estude com atenção seus escritos, nota ele, encontra sobre esse assunto amplas informações”.
Todos os fatos que acabamos de lembrar mostram que Las Casas, quanto aos fatos, estava errado. Mas seu erro mergulha suas raízes muito além dos fatos. Suas teses foram as do antiimperialismo, como as de muitos de seus sustentadores de ontem e de hoje. Nisso ele podia, e eles podem, ter pouca ou nenhuma razão, como o podem seus adversários, segundo os momentos, as circunstâncias e os graus que fazem com que um Império possa ser mais ou menos negativo e mais ou menos positivo. Mas esse debate não é e não pode ser um debate especificamente cristão. Pode, por si, pretender separar supostos bons cristãos e supostos maus cristãos, pois, não apenas a Igreja não cessou de batizar ou de consagrar conquistadores e imperadores, desde Constantino, Clóvis e Carlos Magno, e até fez “doação” do Novo Mundo aos Reis Católicos, mas o cristianismo não é antiimperialista nem pró-imperialista.
O cristianismo é o Cristo que teve todas as razões, tanto quanto o indígena de um país subjugado por imperialistas, de transmitir uma mensagem antiimperialista. Não o fez, e até recusou-se claramente a dar apoio aos zelotes anti-romanos. Contra os zelotes, disse: “dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. E chamou a si o centurião e o publicano, representantes modelares do Império na força e no tributo.
O erro de Las Casas é grave, em termos cristãos. Recusou dar a César, um César atenciosamente cristão, o que é a César, em nome do que é de Deus. Por via de conseqüência “lógica”, denunciou sistematicamente, chegando freqüentemente aos extremos de injustiça, o centurião, que se chamava conquistador, e o publicano, que se chamava encomendero. Pronunciando antecipadamente e de sua própria autoridade o julgamento último sobre a história, excluiu-os da salvação, quaisquer que fossem seus méritos, com todos aqueles, aí compreendidos inumeráveis e santos religosos, que tiveram a audácia de lhes estender a mão, como o fizeram inumeráveis índios. Zelote tão intratável, quanto freqüentemente cego, Las Casas, como tal, não tem lições de cristianismo para dar. Quando as dá, e são excelentes, é quando são especificamente de Deus, assim como muitos outros religiosos. Assim como a deram, com mérito muito grande, o centurião e o publicano, que foram a dileção do Cristo, os conquistadores e os encomenderos que conseguiram, sem dobrar seu orgulho de justo, estar ao mesmo tempo em César e em Deus.
UMA OBJEÇÃO QUE É CONFIRMAÇÃO
Portanto, o fenômeno Las Casas é positivamente interessante pelo fato de trazer, apesar de tudo, uma confirmação do caráter fundamental e sistemático da política espanhola de proteção dos índios.
Pois, inicialmente, a coroa espanhola, desde o regente Jiménez de Cisneros, em 1516, não se mostra nada rebatida pelas denúncias injustas e forçadas feitas pelo dominicano. E não é tudo: não são objeto de nenhuma censura, mas os monarcas, e seus ministros e conselheiros, com uma extraordinária paciência, o recebem, escutam, reunem juntas para estudar suas críticas e proposições e até para lançar, com base em suas indicações e recomendações, o importante corpo legislativo das Leis Novas.
Ainda mais, são os adversários de Las Casas e de suas idéias que a coroa reduz ao silêncio, como o humanista Juan Ginés de Sepúlveda, padre cuja Apologia antilascasiana, sob Carlos V, não pôde ser publicada na Espanha, em razão do veto dos conselhos reais. Finalmente, pôde aparecer apenas em Roma por um tipo de golpe de Estado do amigo de Sepúlveda, o eminente canonista, futuro arcebispo de Tarragone, Antonio Agustín. Surge, em seguida, sob Filipe II dessa vez, o tratado do jurista Bartolomé Frias de Albornoz, Arte de contratos (1573), que, a partir da experiência mexicana do autor, reduz a nada os pretensos fundamentos da denúncia lascasiana da encomienda cuja liceidade histórica e jurídica, e utilidade social, aí se encontram demonstradas.
Sob Filipe III ainda, no século XVII, os conselhos reais interditam a publicação da Refutação de Las Casas do cronista e capitão Bernardo de Vargas Machuca, que aparecerá pela primeira vez em Paris, no século XIX, antes de ser finalmente reproduzida em uma edição espanhola de 1879. Os conselhos reais deram para essa interdição de publicação uma justificativa muito significativa: “Porque o bispo Don Fray Bartolomé de Las Casas não deve ser contradito, mas comentado e defendido”.
Bem curiosa constância e convicção, admite-se, para os “opressores” dos índios. O Padroado real não cessa, de fato, de tomar muito seriamente os deveres de seu Vicariato católico, até cair no escrúpulo excessivo, o que não impede, evidentemente, as exações particulares e limitadas às quais fizemos alusão em uma nota marginal, mas isso torna muito desigual falar de “genocídio indígena” da parte dos espanhóis — desigual e aberrante. Pois, se genocídio quer dizer massacre de uma raça, a América espanhola é precisamente a única das Américas onde, ainda hoje, a raça indígena e seus mestiços constituem a imensa maioria da população.
Houve, dir-se-ia, regressão geral e maciça da população indígena em seguida à conquista, antes que essa população conhecesse uma nova crença. Mas essa regressão é a conseqüência de um fenômeno puramente natural: o contágio microbiano trazido pelos europeus, que exterminou brutalmente populações não imunizadas. O mesmo fenômeno foi constatado nessas últimas décadas em vários territórios indígenas da América até agora preservadas da implantação européia. Como, até recentemente, na Guiana francesa, onde algumas instalações de europeus no interior provocaram, apenas pelo efeito de brutal contágio microbiano e sem que tivesse havido o menor massacre, a extinção de tribos indígenas da floresta próxima.
OUTRA CONFIRMAÇÃO: A ESCRAVIDÃO DE NEGROS
Sabe-se, além disso, que os espanhóis, não podendo utilizar suficientemente a mão-de-obra indígena muito enfraquecida e sobretudo muito protegida, recorreram, inicialmente aprovados e imitados pelo próprio Las Casas, à importação de escravos negros. Ora, fato interessante, eles se mostram, mesmo aqui, muito moderados: essa outra forma de genocídio foi muito menos sua culpa do que de seus contemporâneos anglo-saxões, portugueses ou franceses, testemunhando sempre a constatação de que a América espanhola permanece majoritariamente indígena, ainda hoje, contrariamente ao sul dos Estados Unidos, ao Brasil ou às Antilhas francesas, onde a implantação negra é considerável, até majoritária.
Testemunhando-se particularmente o caso bem típico da ilha de São Domingo, primeiro estabelecimento espanhol — e pior, Columbino — na América. Ao fim do período colonial (conseqüência da Revolução Francesa), as situações das duas metades dessa ilha, a metade espanhola Santo Domingo e a metade francesa Haiti, são radialmente diferentes quanto à importância da massa de escravos negros que foram para aí transportados. Para, em cada caso, uma população de brancos ou de libertos de 60 a 70.000 almas, a espanhola Santo Domingo conta apenas com 30.000 escravos negros, ao passo que a francesa Haiti-São Domingo conta mais de 465.000.
A conseqüência não se faz esperar: é na colônia francesa que estoura, em 1791, a primeira revolta e tomada de poder por escravos negros da América, não na espanhola Santo Domingo, que os escravos tornados senhores do Haiti deverão conquistar com violência em 1822, antes que ela recupere sua independência em 1844. Além disso, as poucas colônias espanholas onde os escravos negros são numerosos, como Cuba e Porto Rico, dificilmente conhecerão o problema negro (contrariamente à Jamaica inglesa), a mestiçagem sendo aí generalizada, como no Brasil português, e conduzindo rapidamente à assimilação.
Assim, os países colonizadores sob os Padroados católicos, Portugal e Espanha, souberam, como por um movimento natural, mas encontrando sua fonte em sua filiação religiosa direta, escapar às oposições e segregações raciais dos colonizadores leigos (França) ou protestantes (Inglaterra, Estados Unidos). Pois, se a Igreja, em imitação ao Cristo e apóstolos, não condenou formalmente a escravidão, ela sempre fez de modo que, quando sua influência era dominante, ela se desfizesse por si mesma na fraternidade, multirracial se necessária.
UM “LUGAR COMUM” E UM PARADOXO
Falta tratar da imputação de “catolicismo agressivo” e de “agressão cultural” apoiada pela Inquisição, que nossos historiadores recentes da Igreja fizeram à conquista espiritual da América.
Sabe-se que esse tipo de imputação de “aculturação” é o “lugar comum” da nova escola de sociólogos acusadores que tomou um lugar desproporcional em nosso establishment intelectual. Pois, enfim, todas as grandes civilizações da história dos homens foram “aculturações”, provenientes de “agressões”, sobre as quais tornou-se obrigatório derramar inesgotáveis lágrimas. Os egípcios dos faraós “aculturaram” a antiga civilização neolítica do Nilo; eles próprios foram “aculturados” pela civilização helenística, que também “aculturou” os romanos; os Helenos foram “aculturados”, por sua vez, pelos romanos; como nossos pais, os gauleses, que o foram, em seguida, pelos francos, etc. De resto, que é o próprio cristianismo senão uma “agressão cultural” perpetrada inicialmente às expensas da antiga lei judaica, atualmente às expensas de todos os materialismos e liberalismos ambientes?
É evidente que o progresso da humanidade e dos povos, como o de cada homem individual, e como o do cristianismo (veja o “desenvolvimento” cristão) só pode ser feito por “aculturações” sucessivas. Ora, se há um exemplo de “aculturação” vitoriosa, ricamente positiva, respeitando o Testamento original dos “aculturados”, é o da conquista espiritual da América, atualmente latina, singularmente do México.
Mas aqui mantém-se um silêncio sobre a realidade, uma realidade que deveria encher de alegria todos os católicos. Do que foi, e continua, a mais bela civilização indo-cristã, nascida da conquista espiritual da América espanhola, não se encontrará uma palavra que não seja de reserva ou reprovação nas histórias que nos são habitualmente propostas. E é paradoxal que o que nós, católicos, podemos saber hoje devemos às constatações e pesquisas feitas ou financiadas por protestantes e judeus.
Pois, como a atualização de Silvio Zavala sobre as encomiendas é o resultado de uma bolsa de pesquisa oferecida ao historiador mexicano pela fundação judia Guggenheim, de Nova Iorque, a primeira valorização da civilização indo-católica do México é devida ao historiador protestante Arnold Toynbee, e a primeira obra abrangente sobre a arte indo-cristã é, de novo, produto de pesquisas financiadas pela John Simon Guggenheim Foundation, que deve ser agradecida com fervor.
UMA “CONQUISTA” PELOS PRÓPRIOS ÍNDIOS
Inicialmente, houve verdadeiramente “agressão” no estabelecimento espanhol, e cristão, em terras firmes da América? Contrariamente às visões simplistas, esse estabelecimento não foi de fora alguma recebido como uma “agressão” por um grande número de povos indígenas. Nós o vimos, tardiamente, em Sonora-Arizona, assim como na Flórida-Geórgia. Isso também foi verdadeiro no México central, assim como no Peru. E qualquer que tenha sido a energia, o valor militar (às vezes brutal), a inteligência política dos conquistadores, jamais suas tropas esqueléticas de algumas centenas de homens teriam podido vencer de maneira durável potentes impérios, se tivesse havido verdadeiramente “agressão”.
Ao contrário, é patente que os conquistadores foram recebidos, por inúmeros povos indígenas, como a ajuda decisiva que lhes permitiria liberatarem-se da opressão que sofriam por parte desses impérios tirânicos. Uma opressão tanto religiosa, quanto política: no México, eram freqüentemente as “guerras sagradas” que forneciam aos opressores astecas as multidões de homens necessários aos sacrifícios humanos permanentes de sua mitologia, ela mesma tirânica.
Quando Cortés desembarca com sua pequenina tropa na costa de Vera Cruz, é rapidamente acolhido como um aliado pelos Cempoaltecas, provenientes da grande civilização totonaque, a arte mais pura e mais moderna do antigo México (pirâmide de El Tajin). Os guerreiros cempoaltecas foram a maioria do exército de “agressão” que avança em seguida para o coração do México e combatem ao lado dos espanhóis contra os Tlaxcaltecas.
Esses, importante povo, haviam conseguido, sozinhos no México central, conservar sua independência, a despeito das incessantes agressões dos astecas. Ora, no momento de refletir sobre a nova situação criada pela chegada dos espanhóis, eles também se aliam a Cortés e a sua fé. Serão, depois, seus aliados fiéis e, por sua grande massa, assim como por suas iniciativas militares e políticas, os verdadeiros vencedores do império asteca: entrarão ao lado de Cortés no México, por duas vezes permitindo que invista, depois tome. Na própria zona asteca, perto do México, o mais culto dos povos da civilização pré-hispânica, os Texcucans, conta com um importante partido que também apóia o conquistador. Depois, quando Cortés se volta para o sul, com o México tomado, os zapotecas de Oaxaca, também de uma civilização muito antiga e brilhante, acolhem os espanhóis como hóspedes bem-vindos. Antes ou depois, outros povos indígenas os imitam: os otomis, também próximos do México, que foram estudados por Jacques Soustelle; os poderosos Tarascas de Michoacan, etc.
Tanto é assim que toda uma escola de historiadores mexicanos, portanto, fortemente “leigos” e hispanofóbicos de espírito, a escola indigenista, afirma, não sem boas razões, que a conquista foi obra “menos de Cortés que de grupos indígenas, cansados da tirania asteca e desejosos de abandoná-la, que se jogam nos braços dos espanhóis”. Assim, Alfredo Chavero, em sua História da Conquista (México, 1904) e em seus outros trabalhos, escreve:
“Na verdade, não foi um grupo de soldados europeus que fez a conquista, mas os próprios índios”.
UMA MUDANÇA QUE SERIA, TAMBÉM, RELIGIOSA
Ocorre o mesmo no Peru. Pizarro e seus espanhóis vêem rapidamente se aliar a eles e combater a seu lado contra o opressor inca, incarnado, além disso, por um usurpador, Atahuallpa, a impaciente classe de seus escravos, os yana, os aristocratas legitimistas fiéis ao verdadeiro Inca massacrado por Atahuallpa, e povos inteiros recentemente subjugados pelo império de Cuzco: os cañaris, os chachapuyas, os huancas, etc. São os cañaris que permitem aos espanhóis tomar Quito e, quando um novo Inca, Manco II, tenta lançar os espanhóis ao mar, os huancas barram a via do norte e constituem, nota Henri Favre, “a intransponível muralha ao abrigo da qual os espanhóis puderam ficar com toda tranqüilidade”.
Ora, os conquistadores, Cortés como Pizarro, eram os mensageiros declarados de uma nova religião, a qual se aliaram também, logo em seguida, os notáveis de povos importantes, assim como os Tlaxcaltecas. Assim se manifesta, nas alianças maciças aos espanhóis, que a adesão solidária às religiões pré-colombianas havia cessado de ser, para os índios, a referência suprema. Os índios, desde que a presença da força espanhola lhes abria uma alternativa, aceitavam, chamavam por uma mudança, que seria também religiosa.
De resto, as culturas indígenas, com a chegada dos conquistadores, estavam marcadas por uma longa estagnação, que não podia não ser ressentida, por exemplo, no México, onde o maior arqueólogo recente, Alfonso Caso, nota que as idéias e práticas espirituais astecas eram um conjunto “muito mais antigo”, remontando até “as primeiras manifestações das culturas sedentárias na Mesoamérica”.
EM TODO LUGAR ADESÃO MACIÇA E APAIXONADA
Logo, a pretensa “agressão cultural” cristã era, de fato, uma chegada há muito esperada, mesmo se inconsciente. Não apenas por muitos dos notáveis dos povos aliados, que receberam livremente o batismo desde antes da tomada do México ou de Cuzco, mas também, e sobretudo, pelas massas indígenas, desde que teve fim a opressão de suas antigas mitologias guerreiras e puderam acolher as verdades religiosas. É um fato que os antigos cultos inspiravam apenas muito raramente uma resistência combativa. Então, a conquista e a colonização espanholas foram apenas a “rede irregular”, de “malhas finas”, nos intervalos das quais as resistências religiosas combativas puderam encontrar lugar. Da mesma forma, também, a repressão à “idolatria” indígena, viva ao primeiro choque, devido aos sacrifícios humanos, foi, todavia, extremamente moderada em geral, como também o veremos, a foi até abandonada no México a partir dos anos 1550 - 1570, o que manifesta que o partido havia sido ganho muito rapidamente pelo cristianismo indígena, que muito rapidamente a resistência religiosa pré-cristã tinha muito pouca importância. Se os índios permaneceram naturalmente impregnados de sua tradição cultural, eles igualmente se abriram, ativamente, apaixonadamente, à civilização cristã.
Que epopéia foi esse encontro, do qual nossas recentes Histórias da Igreja nada dizem! Em todo lugar, ou quase, a sede indígena de cristianismo se repete. Em todo lugar, ela é das multidões. Em todo lugar, ela verte a prudência que desejavam guardar os religiosos na administração do batismo. Assim se explica que haja em todo lugar uma tal imensidão de batismos de índios, enquanto, como assinala Robert Ricard, mesmo os franciscanos do México, os mais acomodadores, “não administravam jamais o batismo sem instrução preliminar”. Também os dominicanos e agostinianos pretendiam se manter nas regras estreitas dos catecumenatos, sobretudo da Páscoa e Pentecoste, em vigor na Europa. É necessário, quanto a isso, rejeitar absolutamente a idéia segundo a qual os batismos de índios foram batismos em massa, com aspersões. Os índios foram sempre (salvo raríssimas exceções) batizados “um a um”, após controle, para cada um, de seu conhecimento das verdades essenciais da fé. Mesmo que esses “um a um” se seguissem em imensas séries, a tal ponto, dito à época do franciscano Torquemada, que “os padres freqüentemente não podiam levantar o cântaro com que batizavam, tão fatigado estavam seus braços”.
É que se verifica em todo lugar, conforme assinala o especialista franciscano moderno Claudio Ceccherelli, “a afluência tumultuada de índios vindo reclamar o batismo”. Quando, após uma reunião eclesiástica realizada em 1539, os franciscanos do México adotam as restrições dos dominicanos e agostinianos, eles todavia as renunciam, pois “os índios não cessam de importuná-los com súplicas, lágrimas e insistências para que não sejam privados de um tão grande bem, alegando que, para receber o batismo, eles marcharam durante longas jornadas, fizeram grandes sacrifícios e enfrentaram grandes perigos”. Os franciscanos resistem, mas os religiosos de um de seus conventos, o de Quecholac, submetidos a uma pressão particularmente forte, cedem. Então é a debandada, por todo o México: “os índios se apresentam em massas compactas, reclamando a grandes gritos o batismo”. Dominicanos, agostinianos, mercedários, depois jesuítas, devem eles mesmos tornar mais flexível a regulamentação do batismo à européia.
A “HORA DE DEUS”
No Peru, veja-se o que constata o padre jesuíta, Dr. Plaza, “visitador das Índias”, enviado pelo geral da ordem: “nos sermões, os índios acorrem com um tal fervor e um tal concurso que nos enchemos de admiração. Nas manhãs de festas, se houver dois ou três ou quatro sermões em diferentes paróquias, como ocorre, desde que tenham terminado de ouvir o sermão de uma paróquia, eles vão a outra, depois a ainda outra, ou a qualquer outro padre que pregue, ouvir de novo os sermões. À tarde, vão ouvir o sermão que é pregado na igreja principal todos os domingos após o jantar. Depois, quando esse sermão termina, eles se precipitam correndo para a praça principal para aí ouvir um outro sermão que seja pregado por um dos nossos. Terminado esse novo sermão, eles vão a nossa igreja para aprender a doutrina cristã. Esta lhes é ensinada em um desenvolvimento mais longo, por perguntas e respostas. Todos, homens, assim como mulheres, aprendem com grande facilidade e rapidez, em razão da paixão que os anima”. Esse testemunho é datado de Cuzco, anteriormente capital do culto inca, 18 de outubro de 1576.
E vejamos o que constata outro padre jesuíta, Andrés López, no mesmo momento, em um vale rural dos Andes, o de Anta: “Os índios se reunem aos domingos e festas, de manhã e à tarde, de tão bom coração que, nas granjas do vale, não fica um índio que não venha, mesmo de outras aldeias da região, nos importunar para que nós lhes ensinemos [...]. Mesmo os caciques se unem às crianças para aprender o catecismo. Os índios apreciam tanto que toda manhã os velhos o repetem, quatro por quatro ou seis por seis, em seus quipos [auxílios de memória feitos de cordas com nós]”.
Como o dizem, em uma bela fórmula, os franciscanos da Flórida-Geórgia em seu memorial citado de 1612, freqüentemente muito rápido, e quase por toda parte, soa sobre o continente índio a “hora de Deus”, aquela em que “todos os índios desejam ser bons cristãos”.
UMA NOVA ALIANÇA, NA ALEGRIA
Assim, talvez em nenhuma parte como na América indígena, o cristianismo tenha sido tão apaixonadamente acolhido como uma Nova Aliança, fórmula que nós humildemente preferimos ao jargão e ácido “aculturação” dos sociólogos. Nova Aliança que, além disso, não chegou sem ter sido preparada pela melhor das religiões pré-hispânicas: a mensagem do rei Nezahualcóyotl, cântico do século XV asteca da unidade de Deus e da fraqueza humana.
É o que viu bem Arnold Toynbee. Seu conhecimento de história das religiões, estendido aos cinco continentes e informado por milhares de anos, o fez reconhecer em seguida a sua chegada ao México, a civilização indo-católica, que nasceu imediatamente após a “conquista”, como o modelo mundial da fusão feliz de duas civilizações. Em seu livro de síntese, A Religião vista por um historiador, ele nos participa de seu deslumbramento, quando visitou em 1953 as igrejas indígenas das aldeias em torno de Puebla, a terceira cidade do México, a leste do México, fundação ex nihilo dos conquistadores. Pois, diz ele, foi testemunha dos “cuidados zelosos” que aí prodigalizaram sempre os índios às “obras [de arte] magníficas”, “alegres”, de seus ancestrais recentemente convertidos ao cristianismo, ao passo que estes estavam até então “submersos na selvageria sinistra da influência asteca”.
Isso pode ser confirmado por todos aqueles que, como ele, visitaram essas igrejas: suas obras de arte, transbordantes de luz e de alegria, contrariamente à sinistra arte asteca, fornecem, por essa mesma alegria, a prova irrefutável da liberação humana trazida pela “conquista” e evangelização.
UMA “OBRA LUMINOSA”
Como isso foi feito? Certamente não — pode-se duvidar — pela opressão, escravidão, que nos pintam. Graças às pesquisas financiadas pela fundação Guggenheim, os católicos podem finalmente saber como outros católicos puderam chegar a essa vitória, e saber qual foi sua amplitude, a de um enorme testemunho, quase totalmente desconhecido até aqui graças a idéias recebidas que só querem ver índios oprimidos, de cultura pré-hispânica, anticristã.
Após cinco anos de pesquisas realizadas, às custas de mecenas americanos, por um professor da Escola Nacional Mexicana de Conservação, de Restauração e de Museografia, e por seu alunos, publicou-se no México, em 1978, o primeiro estudo do conjunto da Arte indo-cristã: “movimento artístico que é a demonstração irrecusável dessa nova visão e novo coração que adquiriu o índio”.
Desde a primeira metade do século XVI, “o religioso e o índio [em conjunto] criaram um [novo] campo de ação cultural, totalmente ativo. [...]. Entre eles realiza-se uma comunicação intensa, cada um trazendo uma parte de sua própria vida [...], através da edução e da afeição, uma afeição trágica pelo fato de se ver frustada por todos aqueles que foram inimigos dos religiosos e dos índios.
“Nessa arte de simbiose, manifestam-se os antecedentes de duas culturas, a pré-hispânica [...] e a espanhola [...], que se fundiram dando origem a uma obra luminosa, inteiramente nossa [...].
“A arte indo-cristã foi um meio de integração religiosa-cultural do homem [índio] a seu novo meio, a suas idéias, como havia sido a arte greco-romana, a arte românica e a arte gótica”.
Essa arte indo-cristã, em sua escultura, como em sua pintura, é, de fato, autenticamente índia, seus locais sendo “aqueles mesmos onde se celebrava o grande culto pré-hispânico” e “com o artista indígena sendo o autor da maior parte de suas produções”. Os “motivos de ascendência pré-hispânica” aí abundam, dignos de figurarem em um museu ampliado da tradição artística propriamente americana.
Quanto à amplitude dessa arte indo-cristã, ela é, de fato, verdadeiramente o enorme testemunho de que falamos. Desde o século XVI, produziu, apenas no México, mais de cento e vinte grandes monumentos catalogados, compreendendo uma iconografia de antecedência pré-hispânica, e dezenas de milhares de metros quadrados de pintura. Maravilhas abundantes preenchem, assim, o campo e as cidades em torno do México, Cuernavaca, Tlaxcala, Puebla, Pachuca, Oaxaca, etc., por uma superfície igual à da França, para falar apenas do México.
Além disso, não se trata de fogo de palha, de decorações como a do imenso e magnífico Santo Domingo de Oaxaca, mostrando que essa arte continuou a brotar nos séculos XVII e XVIII, onde se estenderá mais e mais por toda a América latina. E o que restou hoje: esse monumento saqueado, assim como muitos outros, pelo vandalismo leigo dos últimos cento e cinqüenta anos (que fez uma estrebaria e destruiu seus retábulos), vê agora sua decoração restaurada, muitas vezes refeita, na mesma floração.
Quanto à qualidade da arte indo-cristã, ela freqüentemente atinge os mais altos níveis, seja a arte popular, seja a arte propriamente dita, seja de conjunto decorativo. O que há de mais vitorioso como conjunto decorativo do que a igreja da cidade de Acatepc, próximo a Puebla, inteiramente recoberta no exterior por cerâmicas pintadas e historiadas, em uma arquitetura de volutas e pilastras especialmente desenhadas para lhes dar seu pleno efeito, e inteiramente pintada e dourada no interior por esculturas de baixo e alto relevo? O que há de mais digno da verdadeira arte que as pinturas com que em 1562 o pintor indígena Juan Gersón cobriu as abóbadas da igreja de Tecamachalco, na mesma região, particularmente sua tão bem composta, desenhada e colorida “Visão de Deus e dos vinte e quatro anciãos”? E o que há de mais belo e acabado que esses inumeráveis portais de igreja esculpidos — como na cidade de Tulpetlac, no Estado do México — que fariam a alegria da Europa em muitas regiões menos ricas em arquitetura da Renascença ou do Barroco? Um Barroco que, aqui, dá sistematicamente por função da sua ornamentação a das nervuras na arte gótica: “dirigir a vista para o céu”, como nota o autor do guia de Santo Domingo de Oaxaca.
IDADES DO OURO
É emocionante hoje, em um ou outro dos monumentos dessa arte indo-cristã, encontrar esses dois protagonistas: o índio e o religioso. Assim, ao mesmo tempo que índios (que aqui se mostram absolutamente em casa, como também em todos os edifícios cristãos, mesmo os mais majestosos), aqui se vêem os trajes brancos dos dominicanos, em Santo Domingo de Oaxaca ou na antiga catedral de Bartolomé de Las Casas, em San Cristóbal do Chiapas.
Esses encontros nos lembram que os religiosos não foram simplesmente promotores da arte indo-cristã e da proteção do conjunto do povo indígena: também tiveram impressionantes iniciativas particulares de proteção absoluta dos índios, em verdadeiros pequenos Estados indígenas exclusivamente submetidos por eles à lei do Cristo.
Assim, Bartolomé de Las Casas — o religioso sendo muito mais convincente que o polemista — em seu bispado de Chiapas e sobretudo na “Terra de guerra” próxima, recusando qualquer intrusão do espanhol que possa ser opressiva, criou um pequeno Estado puramente indo-religioso, a Verapaz, a Verdadeira Paz, integralmente a serviço dos índios. Vinte e cinco anos após a partida de Las Casas, nos anos 1570, não se contavam, além do bispo, mais quarenta espanhóis, conforme nota o viajante inglês John Chilton. E o nome permaneceu em duas províncias da atual Guatemala: a Alta Verapaz e a Baja Verapaz.
Próximo do México mesmo, no Michoacan que se estende para o oeste, uma semelhante terra de “idade do ouro” para os índios lhes foi oferecida pelo primeiro arcebispo do México, o franciscano Juan de Zumárraga, e pelo bispo de Michoacan, um antigo magistrado, Vasco de Quiroga. Lá os religiosos empreenderam a tradução em ações da Utopia do grande humanista católico Thomas More e a volta dos índios “à pureza incorrupta da Idade do Ouro”. Vêem-se ainda as ruínas das colônias ou hospitais que religiosos e índios aí fundaram e aí fizeram funcionar em espírito absolutamente comunitário, cada um, por sua vez, assumindo a carga dos serviços necessários, e isso para uma “população considerável”.
No mesmo momento, graças ao apoio do vice-rei Mendoza, os dominicanos também fizeram no atual Estado de Oaxaca, no sudeste do México, uma terra reservada aos índios e seus evangelizadores, uma terra coberta de monumentos indo-cristãos, como a obra-prima de Santo Domingo que evocamos.
Mais tarde, à imagem de suas famosas “reduções”, essas repúblicas cristãs independentes de índios guaranis do Paraguai, os jesuítas também fizeram entidades puramente indo-cristãs de suas missões do norte do México (atuais Sonora, Arizona e Califórnia). Lá foram ilustres os padres Salvatierra e Kino que, conforme dissemos, também preenchem essas vastas amplidões de tocantes e alegres monumentos da arte indo-cristã. Assim, assinalada em nota marginal, a graciosa missão de San Javier del Bac, próxima a Tucson (Arizona), sempre querida dos índios, onde, mais uma vez, é impossível ver o testemunho de uma “agressão cultural”.
UMA FLORAÇÃO DE ESCOLAS
Talvez se pretenda ver mais claramente essa “agressão” em iniciativas dos religiosos não mais globalmente sociais, mas culturais. Por exemplo, em suas duas notáveis realizações: o colégio superior humanista de Santa Cruz de Tlatelolco, onde Zumárraga, a partir de 1536, forma uma muito brilhante elite intelectual indo-cristã; a escola de técnica e de arte onde outro franciscano, Pierre de Gand, em San José de Mexico, se faz “mestre e industrioso instrutor” de construtores e decoradores índios. Essa escola não acolhe menos de mil jovens de dia e provavelmente outros tantos adultos em seus cursos noturnos.
Mas não! Citando essas realizações ao mesmo tempo que as precedentes, não se fala mais de “agressão cultural”. Basta minimizá-las: elas são, nos dizem, “espetaculares, mas sempre isoladas” (Histoire vécue du peuple chrétien, tomo II, p. 281).
Essa imputação de isolamento é tão infundada quanto as outras: a escola de Pierre de Gand evidentemente não teria bastado para formar todos os construtores da arte indo-cristã.
Cada convento tinha sua escola, mesmo uma dupla escola, considerável; assim como era considerável o próprio número de conventos, desde o século XVI, que eram mais de trezentos apenas no México. Um externato para os meninos do povo comum, recebidos diariamente no externato, e um internato para os filhos dos principais índios. “Há tantos índios ensinados, escreve em cerca de 1540 o franciscano Motolinía, que em certos mosteiros há trezentos, quatrocentos, seiscentos e até mil alunos”. Semelhantes números às vezes valem apenas para os internos, afirma cinqüenta anos mais tarde o franciscano Jerónimo de Mendieta: “As crianças assim reunidas viviam [nos internatos] a seiscentos, oitocentos ou mil, com anciãos as guardando, dando-lhes de comer o que lhes traziam suas mães, ocupando-se de sua roupa e de outras coisas de que tivessem necessidade”. A existência dessas importantes escolas conventuais é confirmada pelo arcebispo Zumárraga, em suas cartas, e por outro cronista religioso, Juan de Torquemada. Este último, como seu confrade Diego Valadés, confirma também que os muros dessas escolas eram decorados com pinturas indo-cristãs do Cristo, da Virgem, etc., que ainda se vêem em certos mosteiros sobreviventes.
Nesses internatos, os índios recebiam uma educação primorosa. Aprendiam em sua língua a doutrina cristã, a música, a escritura, a “gramática” (o primeiro curso desta em língua indígena foi dado pelo sábio franciscano francês Arnaud de Bazas), a retórica, a geometria, a aritmética e a astronomia. Alguns jovens índios se tornaram notáveis compositores de músicas polifônicas, aí compreendidas missas inteiras, tocadas pelas orquestras de seus camaradas; fonte das missas indígenas ou crioulas (mestiças) de nossos atuais cassetes magnetofônicos. Outros formaram verdadeiras oficinas de calígrafos e iluminadores, como os autores do manuscrito em língua indígena do Contemptus mundi, que Mendieta importou da Espanha em 1570. Muitas escolas, particularmente em torno de Puebla, ensinavam também as “artes mecânicas”, os ofícios, particularmente os ofícios de arte, agricultura, arboricultura, criação de gado, irrigação, adução de água, etc. Os estudos duravam pelo menos três anos em um internato com jornadas seguidas conforme o ritmo monástico mais fechado.
O mesmo ocorreu com os dominicanos, assim como com os franciscanos, os agostinianos e também os jesuítas. Desde do século XVI, o convento dominicano de San Pablo d’Oaxaca foi um centro educacional, como será em seguida seu sucessor Santo Domingo, de onde sairão os fundadores da universidade da cidade. Lá, como em muitos outros lugares, o convento escola se dividia em um hospital, com farmácia gratuita para os pobres, além disso, alimentando quotidianamente um grande número de indigentes.
A HONRA DE TODO UM POVO CATÓLICO
E nós conhecemos pelo menos uma outra importante escola de técnica e de arte que acolhia os índios: aquela que chegou a ser chamada de a “Atenas da Nova Espanha”, aberta pelos religiosos agostinianos em Tiripitío, no Michoacan, nos anos 1540. Conhecemos também dois outros colégios superiores: o de São João de Latrão, no México, e o de São Nicolau, fundados em 1540 em Pátzcuaro e transferido em 1580 para Valladolid (Morelia).
É necessário render-se às evidências: a proteção e a promoção dos índios, por parte dos espanhóis responsáveis, não são iniciativas isoladas nem, por outro lado, puramente religiosas. São um conjunto em que todas as instituições do Padroado têm sua parte. Vasco de Quiroga, criador dos hospitais de Michoacan, vem da magistratura: era um dos oidores da audiencia do México. O próprio Las Casas é um antigo colono. E quando um religioso se porta mal com relação aos índios, como Juan de Torquemada, acusado de haver feito açoitar até sangrar um de seus pintores indígenas, recusando a remunerá-los, é a justiça do vice-rei que o processou, por queixa da vítima.
Do estatuto das terras à proteção judiciária das pessoas e dos bens, à promoção cultural e religiosa, a nobre e cristã dileção com relação aos índios é a honra de todo um povo católico, inicialmente (mas não apenas) do povo espanhol, em todas suas elites. Essa honra lhe deve ser prestada.
COMO NÓS: APAGAR UM ENSINAMENTO DE MORTE
Mas e as “fogueiras espanholas”? Mas e a Inquisição? Objetarão enfim. Essa Inquisição, que os neo-paganistas da Nouvelle Ecole nos deixam ouvir no Figaro-Magazine, que não permite nunca aos católicos de se indignarem com os “sacrifícios humanos praticados em massa” pelos astecas, pois “os conquistadores cristãos levaram consigo” seu aparelho sanguinário. E que ela cometeu o crime de destruir as antigas culturas indígenas.
Houve, de fato, algumas queimas de arquivos astecas ou maias realizadas por religiosos. Muito menos numerosas do que se diz. O auto-de-fé por Zumárraga dos arquivos astecas de Texcoco, afirmado pelo historiador americano do século XIX Prescott, é, por exemplo, apenas uma lenda: “um fantasma que se desfaz ao primeiro golpe da crítica”, conforme estabeleceu o historiador mexicano, portanto amigo de Prescott, Joaquin García Icazbalceta. Um fantasma tanto mais evanescente que Zumárraga, já fundador do colégio superior de Tlatelolco, e também fundador da primeira cadeira de nahua, a língua cultural asteca, lecionada na universidade do México, que abriu suas portas em 1552.
Em compensação, a atitude muito repressiva dos religiosos com relação à “idolatria” maia, no Yucatan, é um fato verificado. Mas é perfeitamente compreensível e está longe de ser grosseiramente obscurantista.
Pois, inicialmente, esses religiosos tinham diante dos olhos os insuportáveis espólios de morte deixados pela civilização maia, sob influência tolteca. Como a mastaba de crânios, a grande mesa de sacrifícios humanos por esquartejamento, um templo sobre pirâmide abrigando outros sacrifícios sanguinários, um grande poço destinado a sacríficios humanos por afogamento, tudo isso para falar apenas do sítio de Chichen Itza que qualquer um pode visitar hoje, e que, na época, devia ainda trazer inúmeras marcas dos rios de sangue que aí escoaram. Os religiosos não destruíram essa civilização maia já extinta, engolida pelo mato, ou a selva de Palenque, e abandonada pela maior parte dos índios locais. Da mesma foram que nossa legislação atual se ocupa legitimamente de impedir o proselitismo da morte do defunto racismo nazista, os religiosos julgaram seu dever, legitimamente, apagar o ensinamento de morte deixado pela mitologia tirânica defunta. Mas apenas isso.
AS PRINCIPAIS FONTES “INDIGENISTAS”
Pois, em seguida, esses religiosos — como Diego de Landa do auto-de-fé de Mani, próximo a Chichen Itza — se aplicaram em suas Relações em nos transmitir o que havia sido, por outro lado, a grandeza da civilização maia. Como se eles tivessem desejado, em seus livros, “restituir uma parte do que havia sido queimado”, essa parte de onde nossos arqueólogos tanto sorvem, às vezes sem dizer, seus conhecimentos do Yucatan pré-colombiano, que informa também a massa de monumentos e de esculturas deixadas no lugar pelos mesmos religiosos.
O mesmo ocorre na zona asteca: as principais fontes “indigenistas”, catalogadas pelos historiadores mexicanos de hoje, têm por autores religiosos da conquista ou seus alunos índios, como Ixtlilxóchitl. Assim é a História das Coisas da Nova Espanha do franciscano Sahagún, que nos transmite em espanhol e em nahuatl, ramo propriamente asteca da língua nahua, a vida, a religião, a história, a medicina, a ciência, as artes, os hinos e os discursos dos antigos mexicanos. Monumental coleção de doze volumes ilustrados, em cores, pelos artistas índios do colégio franscicano de Tlatelolco, essa obra é a verdadeira enciclopédia da cultura asteca. Assim também a História das Índias desse outro franciscano, Motolinía, apóstolo desde 1524 inteiramente entregue a esses gentios, que é a fonte do tema do “bom selvagem”, como também de todas as outras crônicas do antigo México.
A INQUISIÇÃO CONFIANTE
Além disso, os religiosos que foram os autores dos autos-de-fé de arquivos sanguinários, no Yucatan ou na zona asteca, não pertenciam à Inquisição. Pois esta não foi de forma alguma “trazida com eles pelos conquistadores cristãos”: ela só se estabelece no México (e no Peru) meio século depois da conquista, bem depois dos autos-de-fé, em 1571. E, como assinalaremos em nosso capítulo consagrado à Inquisição espanhola, esta, muito mais liberal do que se diz, recusará toda repressão das culturas pré-hispânicas. Concretamente, ela recusará toda perseguição contra os índios por idolatria ou superstição. Tanto mais facilmente que, em 1575, por cédula de Filipe II, os índios foram formalmente excluídos de sua competência.
As histórias da Igreja que citamos afirmam, portanto, erroneamente que a Inquisição reforçou a “agressão cultural” contra os índios. Se a Inquisição reforçou qualquer coisa é, pela confiança que deu aos índios, essa nobre e cristã dileção por eles que foi o caráter de todas as instituições espanholas do Padroado.
Os índios conservaram naturalmente, em seu cristianismo, sua identidade cultural, seu Testamento, que influenciou seus ritos e práticas. É isso que a Inquisição e Filipe II haviam desejado respeitar: não houve, graças a eles, na América, o desagradável caso semelhante ao dos ritos chineses que Roma havia proscrito. E os índios mereceram essa confiança. Ao fim do século XVI, um religioso que vimos muito próximo deles, o padre Jerónimo de Mendieta, redigindo a História Eclesiástica das Índias, constata: “não se manifestaram heresias entre os índios. Se foram produzidas, penso que seriam devidas ao mau conhecimento”.
Ainda hoje, o catolicismo índio se mostra impressionante no sentido do sagrado e no dom de si, essas essências do cristianismo em perigo de se apagar em nossa Europa. Nunca produziu heresias, o que não é certo no caso do cristianismo europeu.
Em seus ritos freqüentemente emocionantes, em seus acentos, por outro lado variáveis segundo os povos, devemos ver, com um olho escandalizado e irônico, apenas “superstições” como o faz uma recente história da Igreja? Não temos nós na Europa nossos próprios acentos, igualmente variáveis segundo os povos, segundo nossas heranças culturais muitas vezes “supersticiosas”? E estamos tão ricos de ritos emocionantes animando toda a vida, todas as gerações, toda a comunidade, que possamos com justiça rejeitar, de algumas fórmulas pinçadas, aqueles que celebram os índios? Nosso desdém com relação a isso, trazidos a todas as “religiões populares”, não seriam, dessa vez, de nossa parte, a verdadeiras “agressão cultural” que estamos tão prontos a imputar aos outros? Uma verdadeira tentativa, dessa vez, de “processo de aculturação” para empregar o jargão dos sociólogos?
Chegamos assim ao maior dos paradoxos revelados neste capítulo: recusamos ao catolicismo indígena a confiança que lhes deram aqueles que chamamos de “opressores”: a Inquisição e Filipe II. A competência que eles se recusaram sobre a alma indígena, nós nos atribuímos. Os processos de idolatria e superstições que eles não iniciaram, nos iniciamos. E somos nós, fazendo isso, que nos permitimos desaprovar nos espanhóis, na América, o “espírito de cruzada” e a “cristianização autoritária” . Como se pode depreender disso, nossa lucidez está atrasada com relação à deles de vários séculos! Pois, a propósito da América latina, a dita lucidez nos faz escrever hoje esta frase sob qualquer aspecto incrível: “Ela [a América latina de nossa segunda metade do século XX] revelou surpresas, demonstrando que a religião pode ser tanto um elemento de integração, quanto de alienação”.
ELES SE EVANGELIZARAM POR SI MESMOS
Nossa ignorância e nossa cegueira são estonteantes. Se o catolicismo foi para os índios “elemento de integração”, se a Inquisição e Filipe II confiaram neles, é porque houve uma razão. Uma razão emocionante, que não deixa certamente de explicar também esse pequeno fato que agora veremos: a Virgem fez pelos índios o que ela não fez por nenhum outro povo.
Essa razão é que, muito rapidamente, não houve nenhuma “cristianização autoritária”. Os índios, com rigor, muito freqüentemente se evangelizaram a si mesmos. E de que maneira impressionante, confirmando de novo, em um relâmpago de pura espontaneidade, a liberação que lhes trouxe o cristianismo. Com o mesmo frescor e no mesmo alegre dom de si que fez por toda parte despontar a arte indo-cristã. Como compreendeu, com um golpe de vista, Arnold Toynbee.
Escutemos o som maravilhosamente franciscano, apostólico, das palavras que se seguem, escritas por duas testemunhas diretas, a cinqüenta anos de distância. Uma testemunha não espanhola e uma testemunha espanhola. Em 1558, Pierre de Gand escreve a Filipe II para dar contas do que se passava nas escolas dos mosteiros que acolhiam por toda parte centenas de jovens índios, à noite, após Completas. Eis: “Às oito horas, os jovens índios ensaiavam a pregação para ver qual seria o mais capaz de chegar a pregar nas cidades [...]; e toda semana os mais hábeis e os mais iluminados nas coisas de Deus estudavam o que deviam pregar e ensinar nas cidades aos domingos ou nas festas de obrigação; aos sábados, seus camaradas os enviavam, dois a dois, para pregar”. Ao fim do século XVI, Jerónimo de Mendieta completa o quadro nos acompanhando nas cidades e nos povoados para assistir às pregações desses jovens apóstolos índios.
Eis: “Não apenas eles dizem o que os religiosos lhes haviam ensinado, mas acrescentam ainda muito mais, refutando com vivas razões que haviam elaborado, dizendo sua reprovação dos erros, ritos e idolatrias de seus parentes, declarando-lhes sua fé em um só Deus e lhes mostrando como eles haviam cometido grandes erros e cegueiras que lhes haviam feito tomar por deuses os demônios inimigos da linhagem humana”.
Assim, os jovens anjos de olhos alegres não povoaram apenas com inumeráveis esculturas e pinturas as igrejas de arte indo-cristã. Eles percorreram, em carne e osso, os caminhos e sendas do país indígena, todos os domingos. Uns eram apenas a imagem, a razão, os outros, anjos indígenas mensageiros do Deus cristão.
POR TODA PARTE ANJOS INDÍGENAS, JOVENS E VELHOS
Anjos indígenas no Peru ex-inca, assim como no México ex-asteca ou maia. Pois no Peru ocorre o mesmo que no México. Em seu “Estado Geral da Companhia de Jesus no Peru no ano de 1576”, o padre José de Acosta escreve: “Os jovens rapazes índios, que são tão vivos e hábeis, sabem o catecismo breve e o catecismo desenvolvido em sua língua. E eles vão ensinar a pé [de aldeia em aldeia] aos velhos. Eles aprenderam numerosos cânticos, tão bem em espanhol, quanto em sua língua, que eles amam muito, sendo naturalmente inclinados ao canto. Eles os cantam de noite e de dia, nas casas e nas ruas. Ao vê-los fazendo isso, homens e mulheres fazem o mesmo”. O que confirma o frei Bartolomé de Santiago, filho de um colono (que se fará ele mesmo jesuíta) e de uma índia: “Nós ensinamos aos jovens rapazes a doutrina cristã, e os rapazes voltam para ensinar aos outros nas cidades”. Uma processão de índios do Peru nos é assim apresentada pelo padre Acosta: “Cada grupo de quinze ou vinte índios era acompanhado por dois jovens rapazes que recitavam [as questões] do catecismo em sua língua. Os grupos de adultos respondiam com tal ordem e silêncio que fiquei admirado com isso, sendo isso em uma multidão inumerável. Chegados à praça onde se encontra nossa igreja, os jovens rapazes cantaram cânticos em sua língua, para extremo prazer dos índios que lhes são muito afeiçoados”.
Mas não há apenas jovens índios a fazer a evangelização. Por toda parte, o clero, em número muitas vezes insuficiente, é muito rapidamente cercado de catequistas, pregadores, cantores, sacristãos que são índios adultos. O agostiniano Juan de Grijalva observa nas célebres colônias ou hospitais estabelecidos desde antes de 1550 pelo bispo Vasco de Quiroga no Michoacan mexicano: os índios “uns aprendiam a doutrina, outros a ensinavam”. Sempre no México, o cura de Tizayucán relata, em 1569: “Tenho em cada aldeia ou domínio quatro ou cinco índios cantores, dentre os mais hábeis, que sabem batizar em caso de necessidade, quando qualquer criatura se encontra em perigo. Para ensinar o catecismo, tenho oito ou dez índios cantores que o ensinam a alta voz ao povo reunido no pátio-esplanada da igreja. Tenho também treze ou catorze índios cantores que ajudam a celebrar a missa aos domingos e nas festas, com oito ou dez sacristãos que ensinam a doutrina às crianças nos dias de trabalho, sempre no pátio-esplanada da igreja”. Ainda no México, em Santisbebán (Pánuco), o cura relata: “Antes da missa, os índios das aldeias se reunem no pátio-esplanada da igreja, onde dois índios lhes ensinam a Ave Maria, o Pater Noster, o Credo, o Salve Regina, em latim, e os mandamentos de Deus, artigos da fé e obras de misericórdia, em sua língua”.
A TERRA INDÍGENA POR ELA MESMA
O que se traduz ainda em uma realidade que salta aos olhos como a arte indo-cristã: esses pátios-esplanadas, onde os índios instruídos evangelizavam diante das igrejas, dobram muitas dessas igrejas em toda América latina, manifestando, assim, que a evangelização foi, mais maciçamente que a do padre europeu em sua igreja, a dos índios por eles mesmos sob seu céu de sempre. Essas esplanadas são o testemunho da sacralização cristã da terra indígena por ela mesma, ao ponto de freqüentemente, em um de seus ângulos, eles possuírem de alguma forma sua própria igreja, remontando muitas vezes aos primeiros tempos da Conquista: a capilla abierta, capela aberta sobre os horizontes indígenas, de onde os evangelizadores indígenas ensinavam seus irmãos.
Os mesmos índios instruídos visitam, então, por toda parte os locais ou granjas afastadas para aí pregar e ensinar. Em Tucumán, na Argentina, na encomienda de Hernán Mejía Mirabal, os índios das cidades são catequizados por índios “yanaconas” instruídos, que dão seus cursos duas vezes ao dia, “um de manhã e um a noite”. Da mesma forma, no Peru e em outros países da América do Sul, funciona uma instituição de evangelizadores ambulantes: a dos menestréis cristãos indígenas que vão às cidades e povoados dirigir as orações e os cantos, acompanhando-os com a harpa. Trata-se de cegos “hábeis” que alimentam as comunidades cristãs. Há, dessa forma, muito rapidamente, todo um folclore cristão autenticamente indígena. Uma cristandade propriamente indígena, que dará logo origem a numerosas confrarias propriamente indígenas.
Muito antes do fim do século XVI, o nono e último rei indígena do Michoacan, no México, se fez jesuíta. Morreu mártir da caridade em 1576, no decorrer de uma epidemia de peste.
UMA BELA LIÇÃO DE HISTÓRIA
Tudo isso nos oferece uma bela lição de história: desconfiemos de nossos preconceitos: eles não nos dão verdadeiramente um papel bonito.
O retrato-expresso de um personagem particularmente “arriscado” nos levará à verdade complexa, mas muito estimável, que acabamos de reviver. O retrato do primeiro inquisidor do Peru no século XVI. Era um religioso dominicano, como Las Casas. E foi ele mesmo que, em Sevilha, mestre em teologia, já bispo, consagrou bispo seu confrade Las Casas. Primeiro bispo de Cartagena das “Índias”, havia fundado um colégio para os índios. Primeiro bispo, depois primeiro arcebispo de Lima, sustentara vigorosamente esse outro grande “protetor dos índios”, canonizado, enquanto Las Casas não o foi: São Louis Bertrand, também dominicano. No Peru, havia reunido dois concílios provinciais, em 1551 e 1567, capitais na história da evangelização indígena. E, em decorrência de trágicos sobressaltos originados das encarniçadas lutas entre conquistadores e entre estes e o poder central, devia assumir de fato as pesadas responsabilidades do vice-reino, estando compreendidos o comando dos exércitos para fazer face a uma revolta de espanhóis.
Era de família nobre e rica, parente do cardeal García de Loaisa, arcebispo de Sevilha (e, portanto, “Patriarca das Índias”), presidente do Conselho das Índias (o governo central da América espanhola) e inquisidor geral de Espanha. Parente também, em todo caso compatriota íntimo (nasceu em Trujillo, como Pizarro, e era de uma família de Talavera), de uma multidão de conquistadores do Peru, particularmente dos “Talaverianos”, uns duros e cúpidos, outros modelos de sabedoria. Desses conquistadores, ele era “a alma [...], a cabeça e o guida” (Juan Pérez de Tudela).
Quando os jesuítas fundaram uma cadeira de quichua em seu colégio San Pablo de Lima, ele ordenou a todos os seus curas e padres estudarem a língua indígena. Em 1562, quando lhe foi perguntado se podia pregar aos índios as indulgências pagantes da cruzada (cruzada contra o Turco ameaçador), ele recusou, como seus confrades mexicanos: o tesouro das indulgências, disse ele, só podia ser oferecido a esses pobres gratuitamente, por suas obras e orações.
Ele, que havia aceitado como um dever suplementar do cargo de inquisidor do Peru, fundou em 1549 um hospital. E, embora instalado em um miserável reduto, curava ele mesmo os índios a quem esse hospital havia por ele sido reservado.
Assim foi Don Fray Jerónimo de Loaisa, em que se resumem, contra os preconceitos, o risco e a nobreza de uma época da história da Igreja.
Uma nobreza que fez do Peru, após sua morte em 1575, um pomar de santidade, mais fecundo, por exemplo, que a França da mesma época. Com o coração, somando-se a São Louis Bertrand na orla sul-caribenha, então dependente de Lima, o novo arcebispo dessa cidade, também inquisidor e também grande amigo dos índios: São Turíbio. Um modelo dos prelados da Reforma católica, visitador heróico de sua diocese e fundador do primeiro seminário da América. Também Santa Rosa de Lima, doce flor mística de um despojamento indígena desabrochado sobre a terra dos conquistadores: Rosa, terciária, dominicana, que Clemente X dará como patrona da América.
No mesmo momento, o México espanhol e índio celebra já há meio século, com fervor, o culto da patrona suprema da América, Nossa Senhora de Guadalupe, um culto que ganhará toda a América latina, espanhola ou portuguesa, como se vê hoje, a ponto de fazer convergir para sua basílica próxima do México, em 1979, não menos de vinte milhões de peregrinos, ultrapassando assim o irradiação de Lourdes ou de Fátima.
É importante pararmos um pouco nesse culto totalmente católico de Nossa Senhora de Guadalupe. Sua realidade histórica e religiosa, sua irradiação conferem, de fato, a verdadeira refutação das idéias falsas, que circulam por toda parte, sobre a conquista espiritual da América.
Pois é falso que a Virgem de Guadalupe foi “o avatar moderno da Tonantzin asteca de Tepeyacac, deusa ao mesmo tempo terrestre e lunar” anteriormente celebrada no mesmo lugar, como afirma Jacques Soustelle (L”Univers des Aztèques, p. 66). Ou que a “piedosa lenda” de Guadalupe tenha lugar entre as metamorfoses tardias das antigas crenças indígenas no seio da espiritualidade do México colonial”, como pretende confirmar na monografia universitária recente do culto de Guadalupe, o neo-paganista secretário da Sociedade de Americanistas, Jacques Lafaye (Quetzalcoatl et Guadalupe, p. 11). Ou ainda que a história de Nossa Senhora de Guadalupe seja “exemplar em muitos aspectos”, porque a superposição de seu culto a uma peregrinação pré-hispânica, onde se reverenciava a deusa Cihuacoalt-Tonantzin, criou “uma confusão e uma ambigüidade que o tempo não dissipou inteiramente”, como avança, inspirada pela monografia precedente, a Histoire vécue du peuple chrétien (tomo II, p. 287).
A VERDADE POR NOSSA SENHORA DE GUADALUPE
De fato, a “deslumbrante imagem” (preciosa imagen), dada pela Virgem, em 1531, ao pobre índio Juan Diego no frágil tecido de agave de sua tilma (capa), não deixa lugar para nenhuma “confusão” ou “ambigüidade”. Não é, de forma alguma, uma “metamorfose tardia das antigas crenças indígenas”. É o oposto mesmo de um “avatar moderno da Tonantzin asteca”.
Inicialmente, é uma pura Imaculada Conceição segundo a tradição gráfica católica, não podendo de forma alguma ser confundida com a imagem monstruosa da deusa asteca evocada, que foi reencontrada em 1790 no centro da cidade do México. O desenho desssa Inmaculada não tem o menor antecedente na iconografia asteca, como as esculturas e manuscritos pré-hispânicos nos mostram superabundantemente. É, portanto, uma inovação absoluta com relação às “antigas crenças indígenas”. Sua visão é exclusivamente a da mãe de Deus reverenciada de toda antigüidade apenas pelos cristãos. E seu corpo é o da Virgem Maria grávida do Filho de Deus, o que é, de fato, a imagem do próprio conjunto do mistério cristão, não de alguma “mariolatria” superficial.
O único sinal de seu dom ao México é, acrescentado antigamente à imagem miraculosa inicial conforme mostrou a análise infravermelha, o pequeno desenho da flor de quatro pétalas em torno de um círculo central, que aparece no vestido da Inmaculada grávida, numa localização correspondente em seu ventre ao do Menino. Esse hieróglifo asteca, representando o Quinto Sol nascido até então pelos sacrifícios humanos, traz aqui a homenagem da antiga mitologia sacrificial à Incarnação redentora. É adesão, abolição, expressa com uma extraordinária economia de meios. Aos índios que vêm orar para Nossa Senhora de Guadalupe era oferecido apenas esse tênue símbolo de confluência, inteiramente dominado pela sedução da pura afirmação marial inicial.
Em seguida, a mensagem de Nossa Senhora de Guadalupe é, desde a origem, a da Virgem Maria; e pura e simplesmente, por ela, a do “verdadeiro Deus”. No Nican Mopohua, manuscrito nahuatl que apresenta desde a metade do século XVI o relato da aparição, a Virgem diz a Juan Diego que ela desejava que ele construísse sobre o lugar uma igreja (como ela dirá em Lourdes), mas para a glória de seu Filho: “Lá eu O mostrarei, eu O exaltarei, eu O darei aos homens”.
Não há mais nenhum astequismo nas menções que nos foram conservadas das primeiras manifestações do culto devotado à Nossa Senhora de Guadalupe em seguida. Desde 1537, um certo Bartolomé López, habitante da longínqua cidade de Colima, fundada próximo do Pacífico pelos colonos do México, diz em seu testamento: “Peço que se celebrem na casa de Nossa Senhora de Guadalupe cem missas para o repouso de minha alma”. E, em 1563, o cacique índio da próxima Teotihuacán também traz de maneira similar em seu testamento: “Mando que se dêem quatro pesos de esmola a Nossa Senhora de Guadalupe, para que o padre que reside nessa igreja reze missas para mim”.
UMA IRRADIAÇÃO MIRACULOSA
Assim se confirma, pela própria Nossa Senhora de Guadalupe e por seu culto, a verdade profundamente católica, desde a origem, do cristianismo indígena que querem nos fazer crer que está submerso em “superstições mágicas” de origem mitológica pré-colombiana, a ponto de ser apenas um tipo de “utilização” paganista irrepreensível. De resto, como o culto de Nossa Senhora de Guadalupe, se houve essa marca astequista que nos dizem, teria inflamado os espanhóis da colônia desde do século XVI, como o testemunha o inglês Miles Philips nos anos 1570; depois inflamado as multidões do restante da América Latina que o espaço, assim como o tempo, separam absolutamente da mitologia asteca?
Todos nossos leitores que puderem ler espanhol esclarecerão sua religião — é o caso de dizer — sobre esse grande caso de Nossa Senhora de Guadalupe, reportando-se à obra de Fidel de Jesús Chauvet, historiador franciscano: El Culto Guadalupano (O Culto Guadalupano), publicada no México em 1978. Ainda hoje, multidões indígenas que se apertam no átrio da basílica de Guadalupe e nela cantam a “perfeita e sempre Virgem Maria, mãe do verdadeiro Deus”. E o arquiteto não crente, autor do Museu Nacional Mexicano de Antropologia, dedicado prioritariamente às culturas asteca e maia, depois autor da atual basílica de Guadalupe, testemunhou ele mesmo a irradiação miraculosa dispensada pela “imagem”: em 1976, esse Pedro Ramírez, até então laicista paganizante, após ter estudado a “imagem de perto” converteu-se ao catolicismo.
CONCLUSÃO
Em breve, a história da conquista cristã da América deve ser libertada — esse dever sendo naturalmente primeiro dos católicos — da “lenda que, até hoje, enegreceu com sua fuligem a figura dos conquistadores”, para retomar a fórmula do bem pouco suspeito de hispanismo conformista Américo Castro.
A conquista foi, de fato, muito próxima, na ordem leiga e na ordem espiritual, do “mais nobre tipo de cruzada humana, universal e generosa que jamais existiu”, como a vê, com algum excesso de lirismo, o recente mestre da historiografia mexicana José Vasconcelos. E é incontestável, como nota em 1974 esse outro mestre da historiografia mexicana, Octavio Paz, que “depois da segunda metade do século XVI até o fim do século XVIII, a Nova Espanha foi uma sociedade estável, pacífica e próspera”.
O preço foi seguramente o sufocamento da “selvageria sinistra de influência asteca”, para ficarmos no México e para tomar os termos de Arnold Toynbee. Em seu julgamento, a recompensa foram as “obras magníficas, alegres” da arte indo-cristão, esse testemunho até aqui desconhecido. A conquista, além das adesões imediatas aos conquistadores de numerosos povos indígenas, foi, portanto, uma libertação e uma libertação cristã, consciente e apaixonada, como o vimos. Os neo-paganizantes sabem muito bem, embora pouco digam. Jacques Soustelle que, na revista Évasion mexicaines 1980 (p. 10), escreve a propósito dos astecas e de seus maciços sacrifícios humanos: “Pode-se imaginar onde isso os teriam conduzido se os espanhóis não tivessem chegado [...]. A hecatombe era de tal ordem que teria acabado por ameaçar o equilíbrio demográfico, e eles teriam, sem dúvida, tido de cessar o holocausto para não desaparecerem”.
A única questão verdadeira que se pode levantar sobre a conquista é esta: os espanhóis do Padroado, particularmente a Igreja da Espanha, não protegeram demais os índios? De fato, o respeito de sua propriedade das terras e de suas instituições locais, que começa desde as encomiendas, e se completou com a supressão progressiva dessas, chegou ao fim da época colonial ao retorno dos índios a si mesmos. E esse retorno os mantém freqüentemente sob o domínio de suas piores tradições econômicas, sociais e religiosas, ao mesmo tempo que os separa de todas as incitações de progresso.
É isso que nota, no início do século XIX, no Michoacan mexicano, o bispo liberal e “filósofo” Abad y Queipo. “Sua separação, escreve ele, privou os índios das luzes e dos auxílios que teriam podido receber da comunicação e da colaboração com as outras classes da sociedade colonial. Isolados por sua língua e por seu governo [próprio] o mais inútil e tirânico, eles se perpetuaram em seus costumes, usos, superstições grosseiras que mantiveram misteriosamente, em cada cidade, oito ou dez velhos índios vivendo na ociosidade às custas do suor dos outros, e os dominando pelo mais duro dos despotismos”. Assim, os defensores da encomienda, como meio de comunicação e de promoção tiveram razão. Assim, aqueles religiosos encarniçados demais na repressão das tradições “idólatras” estiveram menos errados do que se vai arrepender-se. Assim, os juízes desdenhosos do catolicismo indígena deveriam se dizer que, em condições tão desfavoráveis (bem pouco aquelas de uma “cristianização autoritária” à qual, além disso, a Inquisição soube se recusar), é de todo admirável que esse catolicismo tenha sabido persistir, e se desenvolver, como se oferece hoje a nós.
Se a irradiação vinda da miraculosa Imagem de Guadalupe, reverenciada no local em 1979 por João Paulo II, certamente atinge muitos, o Padroado, cuja Virgem de Guadalupe foi ela mesma a patrona, pode apresentar diante da história um balanço poderosamente positivo. A conquista da América terminou, cada dia recomeçado, sobre a justiça, a caridade, a santidade e o fervor; na liberdade indígena que, apenas, foi talvez excessiva.
De resto e em definitivo, se essa liberdade indígena sobreviveu, em sua condição mais fundamental que é a da sobrevivência física das multidões indígenas, é à Igreja que isso se deve. Se, por impossível, a Espanha (com Portugal) tivesse passado à Reforma, teria se tornado puritana e teria aplicado, portanto, os mesmos princípios que os puritanos da América do Norte (o “índio era Satã”), um imenso genocídio teria riscado do mapa-mundi a totalidade dos povos indígenas. Os historiadores não teriam tido de se dar ao trabalho de erigir interpretações desobrigantes da encomienda, da evangelização ou da Imagem de Guadalupe. Bastar-lhes-ia, como aos sociólogos, armarem-se da máquina fotográfica do turista ingênuo. Teriam podido, assim, ao acaso de microscópicas “reservas indígenas” pontilhadas de longe em longe do México à Terra do Fogo, fixar sobre a película o pobre rebanho de um quarteirão de sobreviventes testemunhas, um quarteirão so typical. Las Casas teria tido razão: seus “números incríveis” teriam, enfim, se tornado a realidade.
De fato, desde antes de 1500 com Isabela a Católica, desde 1537 com Paulo III, a bela fraternidade multirracial de nosso mundo do século XX foi uma modernidade da Igreja, durante muito tempo exclusiva.
Capítulo do livro “Église au risque de l´histoire”, de Jean Dumont”
Traduzido por Joel Tang para Editora Permanência.