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A Igreja e os índios

A IGREJA, OPRESSORA DOS ÍNDIOS?
 
Vimos, nos capítulos precedentes, quão pouco sério era responsabilizar a Igreja pela morte do Império Romano e da cultura antiga, como pela difusão, até nossos dias, do “Mal romano”. Precisamos agora considerar uma acusação que se coloca em exata continuidade com as precedentes e que logrou, ainda mais, instalar-se na opinião, mesmo católica.

Esse novo “crime” da Igreja seria a opressão do primeiro grande povo que a Europa encontrou além de suas margens: os índios da América, pagãos martirizados sob a tirania de típicos católicos romanos. Uma opressão não apenas leiga, de conquistadores ávidos e sanguinários, mas também religiosa, da Igreja. Causam indignação os privilégios concedidos pelos papas à Espanha dos monarcas “Católicos” segundo seu título oficial: a “doação” de terras recém descobertas, e o Padroado1 transferindo-lhes para os poderes eclesiásticos. Privilégios que tornam efetivamente indissociáveis, de direito como de fato, a conquista e a evangelização, todas duas delegadas pela Igreja.
 
Abramos duas recentes histórias da Igreja, a propósito de grande qualidade, publicadas em 1978 e 1979, e leiamos (fomos nós que colocamos em evidência a palavra-chave). Na História da Igreja por ela mesma, publicada sob a direção de Jacques Loew e Michel Meslin2, lemos na página 338: “Os colonos [espanhóis] estabeleceram sobre as populações indígenas uma escravidão mantida com rudeza”. Observação reforçada e mais precisada na página 354: “Os colonos praticaram freqüentemente a escravidão organizada pelo sistema da “comenda”, repartição arbitrária das terras dos indígenas e suas pessoas”. E, na História vivida do povo cristão, publicada sob a direção de Jean Delumeau3, lemos, no tomo II, página 291: “Os índios passaram a pensar que a lei de Nosso Senhor que lhes era pregada era uma lei de escravidão feita para os submeter a esses estrangeiros que lhes roubavam suas terras e sua liberdade”. Observação também reforçada, sob a pena de outro colaborador da obra, na página 313: os Espanhóis “não conseguindo eficazmente reduzir os índios à escravidão [...]”. Assim, para duas grandes publicações de história, dirigidas em nosso país por personalidades notáveis da Igreja e da Universidade, ainda hoje, a realidade da conquista espanhola, incluindo a conquista espiritual, é, na América, fundamentalmente reduzida a essa palavra-chave: escravidão. Uma palavra que surge e ressurge sob as penas como que automaticamente. Evidentemente, as mesmas publicações assinalam — nem sempre — os esforços feitos por certos religiosos, ou pelo papa, ou pelo poder real espanhol, para defender os índios. Mas o fazem como um tipo de epifenômeno, de contra-ponto superficial, para não dizer de álibi. O fundo continua lá, da parte dos católicos transportados para a terra americana: essa escravidão pela qual eles despojaram os índios de suas terras e de sua liberdade, sob o manto do Evangelho.
 
A isso se soma o que a História Vivida, na página 320 do tomo II, chama de “catolicismo agressivo dos conquistadores”, “agressão cultural” (p. 312 e 319-320) tornada ainda mais terrível para os índios (p. 290) pelas “prisões do tribunal da Inquisição, garantidores da norma religiosa e moral”. Assim, encontram-se confirmadas as acusações dos neo-paganizantes da Escola Nova que, no número de 16 de fevereiro de 1980 da Figaro-Magazine, imputavam a destruição das culturas indígenas às “fogueiras espanholas”.
 
Ora, nada disso é verdadeiro. A evangelização da América espanhola não foi de forma alguma um empreendimento nacional interessado.
 
Manifesta-o já o fato de que inúmeros de seus representantes, se eles responderam ao apelo do Padroado espanhol, não são espanhóis. Em toda a primeira leva de evangelizadores da América enviados a partir de 1495 por Isabel a Católica, contam-se dois notáveis franciscanos que seriam hoje franceses flamengos: frei Jean de la Deûle e frei Jean Cousin. Uma das primeiras evangelizações em terras firmes da América (1515) é a dos franciscanos picardos de Rémy de Faulx, na Venezuela. Depois, quatro dos mais importantes dos primeiros evangelizadores do México, veremos, são os franciscanos frei Pierre de Gand, flamengo; frei Arnaud de Bazas, frei Jean Foucher e frei Mathurin Cordier, franceses. No século seguinte, o apóstolo da Califórnia, de Sonora e do Arizona será o jesuíta italiano (do Tirol) Eusebio Kino. Seus sucessores, jesuítas suíços e alemães.
 
Que pensariam esses homens dos preconceitos nacionalistas e anti-eclesiásticos atualmente derramados sobre sua obra? Deixemos, portanto, os preconceitos e vejamos os fatos.
 
A “ENCOMIENDA”, SISTEMA TAMBÉM DE PROTEÇÃO
 
O observador objetivo tem o direito de se espantar que as imputações relativas à escravidão imposta aos índios ainda possam ter curso hoje em dia. Já os especialistas norte-americanos, há meio século, falam de servidão e apenas como resultado ilegal, embora freqüente. Assim, G. M. C. Cutchen Mc Bride, em The Land Systems of Mexico, escreve: “Os titulares de comendadorias4 chegaram logo a ver, nos territórios que lhes eram atribuídos, sua propriedade pessoal, e, nos camponeses indígenas, seus servos5”. Assim, E. N. Simpson, em The Ejido, confirma: “Os titulares das comendadorias esqueceram de seus deveres legais e, em vez de proteger os índios em suas pessoas e propriedades, tomaram gradualmente posse de suas terras e reduziram os indígenas à servidão6”.
 
A servidão (muito menos a escravidão) não era, portanto, como se lê em nossas Histórias recentes, “organizada pelo sistema de comendadoria”, que era, ao contrário, um sistema legal de proteção dos indígenas e também de evangelização7”, ao mesmo tempo que um benefício leigo concedido aos conquistadores.
 
Proteção e evangelização às quais o titular da comendadoria se comprometia, em vista do poder real que lhe concedia seu título, um título pessoal e sempre revogável8. O tributo que esse titular recebia dos índios, e que substituía para estes últimos o tributo pré-hispânico, tinha esses ônus em contrapartida, se conferia ao titular a recompensa de seus méritos de conquistador.
 
DOCUMENTOS IMPRESSIONANTES
 
Mas, sobretudo, há quarenta anos que, com novas pesquisas em arquivos, a apresentação moderada dos historiadores norte-americanos quanto à encomienda da conquista espanhola, revelou-se, ela mesma, excessiva e inexata. O reconhecido especialista da encomienda, o mexicano Silvio Zavala9, estabeleceu, escrevendo em De encomiendas y propiedad territorial, a propósito dos julgamentos norte-americanos que acabamos de citar:
 
“A encomienda é estudada nessas obras como uma parte da história das haciendas mexicanas [grandes propriedades não da conquista, mas do México moderno]. De onde resulta a crença, difundida entre os sociólogos, juristas, indigenistas e estudantes, de que as encomiendas da conquista foram de natureza territorial, que elas constituíram um desapossamento dos indígenas e prepararam a concentração de terras do século XIX.
 
“Creio que é conveniente adotar uma atitude de reserva com relação à essa tese, pois as características jurídicas da encomienda indígena, e os ensinamentos que resultam dos documentos que tratam das terras compreendidas nas aldeias das encomiendas, justificam outras conclusões10”.
 
O próprio Hernan Cortés, senhor do marquesado do Valle d’Oaxaca, título mais perfeito que o de titular de comendadoria, apontava, em seu testamento de 1547, que as terras dos índios não lhe pertenciam, e restituiu a estes últimos, com perdas e danos, as terras da vila de Coyoacán que havia doado a um hospital. Outro conquistador célebre, o cronista Bernal Diaz del Castillo, foi encarregado, em 1579, pelos índios de sua comendadoria, de lhes defender na justiça contra uma concessão de suas terras feita abusivamente em benefício de um espanhol. A corte deu razão aos índios e a seu defensor, titular da comendadoria: a concessão de terras (repartimiento ou merced) foi anulada.
 
Cortés também defendeu na justiça o pedido dos índios de seu marquesado de recuperar as terras onde um espanhol havia estabelecido um moinho de açúcar. Finalmente, em 1539, uma arbitragem decidiu que o moinho de açúcar seria explorado em sociedade pelo espanhol e por Cortés. Em contrapartida da parte de 1/7 que seria reconhecida a Cortés nessa sociedade, este indenizou os índios pelo montante correspondente às terras que lhes haviam sido tomadas. Outra vez, o mesmo Cortés, atacado na justiça por outros índios, quanto a certas terras que ele havia plantado com cana-de-açúcar, milho, etc., reconheceu a propriedade dos índios sobre essas terras e lhes restituiu ou pagou aos índios, ele, senhor-marquês do território, a renda correspondente a seu valor de exploração.
 
Finalmente, um caso conexo, opondo, após a morte de Cortés11, seu filho Martín aos índios, terminou igualmente por uma transação satisfatória para ambos, os índios tendo obtido da audiencia de México o envio, para sindicância local, de um alto magistrado, o Dr. Melgarejo, e foram representados diante deste por um religioso, frei Francisco Lorenzo, seu padre (cura) e seu defensor. Os “serviços” prestados pelos índios a Cortés, em mão-de-obra, lhes foram pagos e seus “direitos de água” foram proporcionais às contribuições para a construção dos aquedutos, respectivamente de Cortés e dos índios, o direito de trânsito concedidos pelos índios sobre suas terras sendo considerado como uma contribuição a essa construção.
 
Dos documentos referentes a esses casos, e a outros, Silvio Zavala tira as seguintes conclusões:
 
1. “Os títulos de encomiendas não conferiam nenhum direito [para seu titular] à propriedade de terras. De fato, em vista do pagamento do tributo in natura, certas terras semeadas lhes eram destinadas, sem que o direito de propriedade sobre elas fosse modificado.”.
 
2. “Os índios possuíam as terras coletiva e individualmente, sem que o senhor ou titular da comendadoria pudesse despojá-los legitimamente. Houve, evidentemente, exemplos de desapossamentos, mas também de prolixas ações judiciárias que as reparavam.
 
3. “A defesa da propriedade dos índios coincidia com o interesse do titular da comendadoria e este, de bom grado, reconhecia o direito de propriedade indígena.”
 
4. “Nas senhoriagens e comendadorias da América, constata-se uma proteção da propriedade dos índios que vai além dos direitos limitados reconhecidos na Europa medieval aos camponeses [e que permaneciam os mesmos na época da conquista americana]”.
 
Longe de organizar o desapossamento12  dos índios e de os reduzir à escravidão, o sistema de encomienda marcou, portanto, com relação à Europa, um progresso social, organizando inteligentemente um consenso entre índios e titulares de comendadoria. Sistema de recompensa para os homens da conquista, garantiu também aos índios a proteção de seus direitos, à qual colaboraram conquistadores e religiosos.
 
UMA CLARA “DEMONSTRAÇÃO GRÁFICA”
Somente no século XIX começará a verdadeira servidão imposta ao povo indígena pelo desapossamento de suas terras, em benefício dos proprietários de haciendas. Mas é a independência dos países da América espanhola que liberará os capitalistas crioulos (ou recentemente imigrados) do antigo controle real metropolitanos, e que o laicismo triunfante (com o auxílio protestante norte-americano) despojará e desmantelará a Igreja inspiradora13, apesar de suas fraquezas, da antiga dileção legal com relação aos índios.
 
Silvio Zavala, ao término da obra citada, resume essa trágica evolução histórica por uma clara “demonstração gráfica”. Essa demonstração permite comparar dois círculos idênticos representando a área territorial de uma aldeia indígena: o primeiro círculo traduz a situação sob o império da encomienda do século XVI; o segundo círculo mostra o que surgiu na hacienda do século XIX.
 
No tempo da encomienda, a propriedade indígena cobre a quase totalidade do círculo, estando apenas levemente tomada pelo pequeno território, propriedade privada do titular da comendadoria, ou de outros espanhóis, que haviam obtido por um título distinto da encomienda (comprada aos índios ou repartição aos colonos de antigas terras reais indígenas, as terras “de religião” ou “de guerra” que se reservava ao monarca pré-hispânico). No centro do círculo, assim maciçamente dominado pela propriedade indígena, encontra-se a aglomeração da aldeia indígena que sedia as autoridades indígenas: cacique, notáveis, municipalidade. Resumidamente, os índios estão sempre em casa, em suas terras e com suas instituições locais. Os titulares das encomiendas vivem habitualmente na cidade, como veremos no México. Além disso, é formalmente proibido aos espanhóis de se instalarem em uma aldeia indígena.
 
No tempo da hacienda do século XIX, muda tudo. O centro do círculo se torna a sede da hacienda, dominada pela casa do senhor e a casa de seu intendente. A aglomeração indígena foi lançada para fora do círculo, onde não exerce mais nenhuma função institucional própria. A propriedade do senhor da hacienda cobre todo o círculo, a propriedade indígena tendo desaparecido totalmente. A localização indígena no círculo é representada por apenas algumas faixas de terra concedidas temporariamente aos trabalhadores agrícolas índios para os auxiliar a viver e para os manter a serviço do senhor. Resumidamente, os índios não estão mais em casa; despojados de suas terras e de suas instituições, sé resta deles uma tropa humana liberada à boa vontade do capitalista agrário.
 
OUTRA APRESENTAÇÃO ERRÔNEA
 
Porém, pode-se talvez dizer, a situação dos índios na encomienda do século XVI é bela demais para não ser rapidamente degradada, sendo conhecida a feroz cupidez dos conquistadores e do poder colonial espanhol.
 
E no entanto, a realidade foi mais uma vez totalmente contrária. De um lado, o tributo, pago pelos índios aos titulares da comendadoria, foi taxado pela magistratura das audiencias reais antes do meio do século XVI e viu, assim, seu valor diminuir, para todos os índios, quer fizessem parte de uma comendadoria ou não14. Pois esse tributo, continuando o tributo exigido pelos monarcas pré-hispânicos (mas agora com isenções15 para os “economicamente fracos”), era devido, de fato, ao rei de Espanha. Representava um terço dos ingressos fiscais da Coroa espanhola na América, os dois outros terços sendo produzidos pelas porcentagens reais sobre as atividades exercidas pelos espanhóis nas “Índias”. Onde não havia comendadoria, os índios pagavam o tributo à administração real que empregava um quarto para cobrir as taxas locais do culto16.
 
É, portanto, outra apresentação errônea deixar crer, como freqüentemente se faz (por exemplo, Marianne Mahn-Lot na obra citada), que esse tributo era uma exação escandalosa do sistema da encomienda. Tratava-se simplesmente do imposto pago por todos, como antes da chegada dos espanhóis. Portanto, o rei, apenas às suas custas, havia simplesmente transferido o lucro, nas encomiendas, para seus titulares, em um tipo de ressarcimento com relação às despesas que freqüentemente, como conquistadores, haviam eles mesmos pago pela conquista, despendendo toda sua fortuna pessoal. E ao custo para eles de subvencionar as necessidades do culto, particularmente construindo igrejas.
 
O controle do bom uso da encomienda pelos religiosos, também quanto a esse tributo, não era, além disso, uma palavra vazia.
 
Na década de 1550, o franciscano Motolinia podia constatar: “Os titulares de comendadoria da Nova Espanha não ousam de forma alguma ultrapassar a taxação fixada, senão seus confessores se recusam a absolvê-los”. Resumidamente, as encomiendas não despojaram os índios pelo tributo, assim como não os despojaram de suas terras ou destruíram suas instituições locais.
 
Por outro lado, os “serviços” ou corvéias17 que os titulares de comendadoria podiam originalmente requerer dos índios em continuação à antiga corvéia indígena, e as terras de propriedade privada que eles podiam deter em suas comendadorias, se viram reduzidos, desde a metade do século XVI, depois oficialmente proibidas. “A faculdade de possuir propriedades privadas nas comendadorias foi limitada na metade do século XVI à criação de certos tipos de bestas e ainda o foi mais geralmente no século XVII18”. Isso resulta particularmente, mesmo que não fosse inteiramente aplicada, de uma lei promulgada por Felipe IV, em 31 de março de 1631, que também proibia a imposição de “serviços” aos índios, já proibidos pelas Leis Novas de 1542:
 
Ordenamos que nenhum titular de comendadoria possa possuir por si mesmo, ou por pessoa interposta, propriedade no interior do território de sua encomienda e, se possuir, que a quite e venda. Ordenamos, da mesma forma, que nenhum titular de comendadoria possa exigir “serviços” dos índios.
 
Essas restrições ou interdições, somadas ao caráter revogável — e freqüentemente revogado — do título de encomienda, para terem lugar particularmente na administração pública dos corregidores reais, torna a situação dos titulares de comendadorias e de suas famílias muito pouco invejável. Esses pretensos opressores eram, na realidade, muito mal protegidos, e a incerteza de sua sorte19 tinha por conseqüência um rendimento muito ruim nas terras de encomiendas.
 
É o que constatarem desde 1531, em sua chegada na América, os membros da segunda audiencia de México. Em um relatório ao rei de Espanha, eles notaram que “não haviam encontrado terras cultivadas como deviam ter sido, nas encomiendas, devido ao medo dos titulares de perderem as colheitas e o gado, se seus títulos fossem revogados como era costume fazerem os governadores precedentes20”.
 
Ora, as revogações continuaram em grande medida, para transferir os índios para o controle direto dos corregidores, com as desastrosas conseqüências econômicas previstas. Assim, dois anos mais tarde, em 1533, a municipalidade de México escrevia de sua parte ao rei: “Como aqueles que haviam recebido encomiendas levaram o gado para o território delas, e como os corregidores os expulsaram, os primeiros não tiveram outra solução, não podendo mais alimentar seu gado, senão vendê-lo a baixo preço. Assim, tiveram de deixar essa cidade quinhentos homens e mais [...]. E como os corregidores não criam nenhum gado e este a cada dia se tornou menos numeroso [os índios não o criam], a coisa pública sofre prejuízo21”.
 
Dois anos mais tarde, em 1535, uma cédula real promulgada em Madri constatava que certas famílias de titulares de comendadorias, extintas ou revogadas, “encontravam-se sem saber o que comer22”.
 
DOIS FENÔMENOS HISTÓRICOS FUNDAMENTAIS
 
Consideramos um pouco a verdadeira sorte dos titulares de comendadorias de índios, pois é de grande importância histórica. Não apenas essa consideração é uma vacina útil contra o prurido das idéias simplistas, mas também permite perceber a causa de dois fenômenos históricos fundamentais: a baixa povoação puramente européia da América espanhola católica, e seu retardo econômico com relação à América anglo-saxônica protestante.
 
A América espanhola, até o fim de sua dependência de Madri no início do século XIX, não era uma colônia de povoamento23, porque a incerteza do ganho financeiro dos colonos, bloqueados pela proteção legal dos índios, era muito grande. Na América anglo-saxônica, protestante, havia, ao contrário, uma quase certeza de ganho dos imigrantes europeus: vimos que, tendo todas as terras do Oeste dos Estados Unidos tendo sido declaradas propriedade federal, bastava ao pioneiro expulsar os índios da terra ocupada e pagar 1 dólar por acre ao Estado, para se tornar legítima e inteiramente proprietário. Assim, segundo o ditado ianque, na América anglo-saxônica “um índio bom é um índio morto”: no imenso continente norte-americano, o índio sobreviveu apenas em doses homeopáticas.
 
Em compensação, no México e no Peru, os dois vice-reinos espanhóis da conquista, a população é ainda hoje constituída por 90 a 95% de índios e mestiços de índios.
 
O atraso econômico da antiga América espanhola está ligado à mesma realidade. Passando da encomienda, que só deixava aos europeus uma margem de iniciativa quase nula, para a hacienda de preguiçosa exploração servil, a América espanhola só foi animada, em sua economia rural, pela capacidade indígena. Ora, deve-se observar que o povo indígena, tão tocante quanto seja para um coração cristão e tão rico quanto se mostre em valores desinteressados, encarna o contrário da eficácia econômica. Encontrado pelos conquistadores em estágio neolítico (ignorando a roda, a besta de carga, a abóbada, a moeda e mesmo a verdadeira agricultura), não pôde, em quatrocentos anos, refazer por si mesmo o atraso dos vários milhares em que estava com relação à Europa do século XVI. Os ejidos (terras comunitárias indígenas representando 50% das terras cultiváveis do México de hoje), esses herdeiros das encomiendas da conquista, com a anulação do desapossamento do século XIX, em parte, nos anos de 1910-1940, tiveram um rendimento econômico apenas irrisório24, a ponto dos indigenistas mais convencidos começarem a se ressentir com o impasse (inúmeros artigos nesse sentido publicados pela imprensa mexicana em 1980). E importantes populações indígenas, como as de Chiapas, no sul do México, sequer descobriram a roda nem o asno, essa modesta besta de carga utilizada pelos mais pobres em todos os lugares do mundo. Tudo é transportado no dorso dos homens, ou de mulheres e crianças, inclusive esmagadoras cargas de madeira, pedras, grãos ou vasos para os últimos.
 
UMA POLÍTICA SISTEMÁTICA
 
Assim, a verdadeira visão da América da conquista espanhola — um protetorado25 que favorecia, apesar de tudo, aos índios — não é discutível: seus traços essenciais permanecem ainda hoje, até em seus desagradáveis caracteres econômicos, os da mesma América. E o que o historiador americano Lewis Hanke chamou de “luta espanhola pela justiça”, em benefício dos índios, não foi apenas um epifenômeno, como o deixam pensar nossas recentes Histórias da Igreja. Foi uma política sistemática que começou a ser aplicada antes mesmo do testamento de Isabel a Católica (1504) 26 habitualmente citado, e foi o resultado do esforço coletivo de todos os espanhóis responsáveis. Mesmo em anos anteriores a 1500, “ela nasceu da inquietação manifestada pela rainha, pelos poderes reais, pelos homens enviados às novas terras e pelos religiosos evangelizadores. Ela nasceu porque foi desejado sinceramente que, além de todas as limitações humanas, fossem no Novo Mundo justas as leis e morais as ações27”.
 
A escravidão imposta aos índios existiu de maneira oficial, mas, de fato, apenas com Cristóvão Colombo nos tempos iniciais, quando tinha poderes efetivos de vice-rei das terras descobertas, portanto apenas nos primeiros estabelecimentos europeus nas Antilhas, antes de 1500. Pois Colombo — não espanhol, lembremos — “movia-se em uma metalidade plenamente escravagista28”. Contra essa escravidão dos índios (Colombo enviou várias centenas de escravos índios para a Espanha a partir de 1496), Isabel a Católica reagiu como havia reagido ao libertar, em 1478, os escravos dos colonos das Canárias. Ela mandou devolver às Antilhas os escravos enviados por Colombo e os libertou, desde sua chegada no local, por seu enviado especial, Francisco de Bobadilla que, além disso, destituiu Colombo e o enviou prisioneiro para a Espanha. Desde então, a política empregada é bem clara: os índios são homens livres, súditos como os outros da Coroa e devendo ser respeitados como tais, tanto em seus bens como em suas pessoas29. Felizmente, a Coroa espanhola, além do apoio conferido no caso dos religiosos, dispunha, para fazer respeitar sua vontade, um notável corpo de homens de confiança: os juízes de suas audiencias, instâncias superiores de justiça e de controle administrativo. Na própria Espanha, são freqüentemente vistos defendendo os direitos e os bens dos mais modestos aldeões ou camponeses contra as tentativas de usurpação pelos senhores mais poderosos, próximos da Coroa. Assim, na mesma época, eles desejam condenar o duque de Medina Sidonia, verdadeiro rei da Andaluzia, por queixa de seus camponeses, dos quais ele buscou retirar o gozo de suas terras coletivas. São esses oidores das audiencias ou das chancelarias, cujos nomes são sempre trazidos hoje, como forma de reconhecimento, por ruas de aldeias andaluzas30, que vão, salvo algumas exceções, assegurar com rigor, na América, uma semelhante proteção legal dos índios31, proteção essa já nas mãos, em contato direto, dos religiosos que muito rapidamente cristianizam os índios.
 
OS ÍNDIOS “MUITO FAVORECIDOS”
 
Dessa proteção legal dos índios, prolongamento, portanto, da que havia sido assegurada aos camponeses da Espanha, e dessa afeição dos índios pelos religiosos, são inúmeros os testemunhos, como em tudo, do estado “muito favorecido32” dos índios.
 
Citemos um desses testemunhos, ainda mais incontestável por nos ser dado por um visitante estrangeiro do México, e um protestante, o comerciante inglês Henry Hawks, que passou cinco anos na Nova Espanha e nunca esteve disposto a lisonjear os espanhóis, tendo sido condenado ao banimento, em 1571, pela Inquisição. Em sua Relation écrite sur les instances de Mr. Richard Hakluyt, redigida em seu retorno à Inglaterra em 1572, lê-se: “Os índios reverenciam muito os religiosos, porque, graças a estes e a sua influência, eles se vêem livres da escravidão. [...] [Assim, hoje] é necessário suprir muito os índios, e bem pagá-los, para que trabalhem [...], em grande detrimento dos proprietários de minas, e das partes e direitos reais sobre o produto dessas minas. [...]. Os índios são muito favorecidos pelos tribunais, aos quais apelam seus problemas. Se algum espanhol os ofender ou lhes causar prejuízo, despojando-os de qualquer coisa (como comumente ocorre), e se isso se passar em um lugar em que haja um tribunal, o agressor é castigado como se ele o tivesse feito a outro espanhol.
 
“Quando um espanhol se vê longe do México ou de outro lugar em que haja um tribunal, ele pensa que poderá fazer ao povo indígena o que bem entender, considerando que está bem longe da instância que poderia reparar seu prejuízo. E, assim, ele obriga o índio a fazer o que lhe manda: se o índio recusa, ele lhe bate ou maltrata a seu bel-prazer. O índio dissimula seu ressentimento até que se apresente a ocasião de se fazer conhecido. Então, levando consigo um de seus vizinhos, vão ao México depor sua queixa, mesmo se forem vinte léguas de caminho até a capital.
 
“A queixa é admitida sem demora. Mesmo que o espanhol seja um nobre ou um poderoso caballero, é ordenado a comparecer imediatamente, e é punido sobre seus bens e mesmo sobre sua pessoa por prisão, conforme aprouver à justiça.
 
“Essa é a razão pela qual os índios são súditos tão dóceis: se não fossem assim favorecidos, os espanhóis os exterminariam rapidamente, ou então eles mesmos massacrariam os espanhóis33”.
 
Essa excelente “coisa vista” por uma testemunha livre resume a realidade concreta dos relatos coloniais na América espanhola da conquista, sem omitir suas desagradáveis conseqüências econômicas. Hawks não tem, além disso, ilusões quanto ao antigo poder indígena34, e dos próprios índios, assim como com relação aos espanhóis comuns. Ele lembra, de fato, que Moctezuma, o útlimo grande emperador asteca, sedento de ouro, de onde seus “tesouros”, recusava isentar de tributo mesmo os mais pobres de seus súditos, obrigando-os por punição a usar uma roupa de penas cheia de piolhos. Ele nota: “Os índios são grandes ladrões e roubam tudo o que podem, e se vós cairdes em suas mãos, eles vos desnudam inteiramente”.
 
Quanto ao destino dos índios com a colonização chegada a sua maturidade, esse testemunho contemporâneo do inglês Hawks confirma o do estudo concreto dos arquivos realizado pelo mexicano de hoje Zavala. E todos os dois são confirmados pelos testemunhos de evangelizadores o mais engajados na defesa dos índios em campo, no século XVI. Em 1555, o franciscano Motolinía escreve a Carlos V que a situação dos índios do México se compara favoravelmente à dos camponeses de Castela, e que eles dispõem de meios eficazes de defesa. Em 1563, os dominicanos da Guatemala, antigos companheiros do dominicano Las Casas nesse país, escrevem a este que retornou à Espanha que as encomiendas asseguram aos índios condições de vida satisfatórias.
 
A OBJEÇÃO LAS CASAS
 
A esses testemunhos concordantes, pode-se opor o do dominicano citado, Bartolomé de Las Casas, o célebre “protetor dos índios”, que denunciou de maneira indelével a escravidão e os massacres que sofreram, segundo ele, os índios e o caráter opressivo que teve, segundo ele, a encomienda, até chegar a um verdadeiro genocídio do povo indígena35.
 
A objeção é bem vinda. De fato, a opinião foi formada, desde o século XVI, pela denúncia desses pretensos horrores, graças à utilização feita das obras de Las Casas pela propaganda política e religiosa contra a hegemonia espanhola da época, obras às quais as oficinas de propaganda protestantes acrescentaram, desde a mesma época, belas, assim como horríveis, gravuras, particularmente as de De Bry, “armas cínicas de uma guerra psicológica” (Pierre Chaunu). Sendo provavelmente quase as únicas antigas mostrando a conquista da América, essas gravuras foram depois, e são ainda, reproduzidas sem cessar, perpetuando assim o mal-entendido. Um mal-entendido lucrativo a muitas boas consciências nacionais, por exemplo, à boa consciência norte-americana e à boa consciência francesa. Assim, o mesmo Chaunu nota que: “A lenda anti-hispânica, em sua versão americana, desempenha [...] o papel salutar de abscesso de fixação [...]. O pretenso massacre dos índios no século XVI [pelos espanhóis] cobre o massacare objetivo da colonização da fronteira no século XIX [pelos americanos]; a América não ibérica e a Europa do Norte se livram de seu crime contra a outra América e a outra Europa36”. Da mesma forma, a boa consciência francesa não cessa de reeditar ou incensar Las Casas, que freqüentemente toma o lugar que poderia ter a denúncia dos crimes coloniais franceses nas Antilhas, na África negra ou na África do Norte, denúncia seguramente mais delicada, mais arriscada.
 
De fato, conforme já se observa pelo caso de Pierre Chaunu, nenhum historiador que se respeite leva hoje em dia mais a sério as denúncias extremas de Las Casas. Não mais do que fez, na época, uma multidão de confrades religiosos do dominicano em trabalho de campo. Pois a Brevíssima Relação da Destruição das Índias, assim como a História das Índias e outras obras de Las Casas, nos livram, ao lado de gritos de exigência cristã, de enormes exageros polêmicos, de “números incríveis37, em todos aspectos falsos38”, nota Américo Castro39. O medievalista espanhol de renome mundial Ramón Menéndez Pidal se deu ao trabalho, em seus dias de velhice, de tentar desentranhar as causas dessa aberração lascasiana, para chegar à hipótese de um estado paranóico de alucinação do “protetor dos índios”, produzindo nele uma “dupla personalidade”. O editor moderno da História das Índias, o grande erudito muito crítico da colonização espanhola, Juan Pérez de Tudela, confirma-o a sua maneira: ele vê, nessa obra maior do dominicano, a expressão de um “sentimento de autovalorização40”, que o leva a se lançar em uma “causa desmedida que pudesse se equiparar à importância41” que ele se dava.
 
O especialista J.-B. Avalle-Arce, recensiando as “hipérboles” do “protetor dos índios”, conclui: a obra de Las Casas “não é histórica42”. O mesmo havia sido observado, desde 1927, pelo futuro diretor do Instituto Hispânico da Sorbonne, Robert Ricard43. É o mesmo que não cessa de observar a revista especializada em história missionária, Missionalia hispánica, que reúne em sua direção jesuítas, franciscanos, agostinianos, mercedários e dominicanos, ou seja, os religiosos das cinco grandes ordens que participaram da primeira evangelização da América. Para esses especialistas representativos, o tratado equilibrado dos métodos dessa primeira evangelização é o De Procuranda Indorum Salute do jesuíta José de Acosta (1589), não as obras de Las Casas, onde eles vêem apenas “exaltações místicas44”.
 
AS PALAVRAS E OS FATOS
 
Quem desejasse formar uma opinião pessoal sobre esse assunto, chegaria muito rapidamente à mesma conclusão. A leitura das obras de Las Casas mergulha constantemente o leitor na estupefação, até provocar um acesso de riso.
 
Assim, quando ele afirma que Alexandre o Grande trouxe ao mundo o mesmo horror, “o mesmo ofício”, que foi o dos espanhóis, segundo ele, “em todas as Índias”, “infestando, escandalizando, matando, roubando, reduzindo ao cativeiro, sujeitando e usurpando os reinos e gentes”. Ou quando denuncia o direito de exploração dado por Carlos V aos banqueiros alemães Welser sobre a selva, então quase vazia, do norte da atual Venezuela, pretendendo, assim, que “em quatro anos, eles puderam roubar o suficiente para comprar toda a Alemanha”. Ou ainda que as civilizações dos povos indígenas “ultrapassavam a Inglaterra, a França e alguns de nossos condados da Espanha”. Ou ainda que os índios “não conheciam sedições, nem tumultos, são desprovidos de rancor, de ódio, de desejo de vingança”, e que, portanto, é preciso lhes dar uma total confiança que deve ser, também totalmente, recusada aos espanhóis e a outros europeus. Afirmações ainda menos convincentes, porque Las Casas não julgou útil aprender as línguas indígenas e só tinha, da realidade profunda das civilizações indígenas, um conhecimento de segunda mão. Contrariamente a muitos outros religiosos que, conhecendo as línguas45 e a vida indígenas, rejeitam vivamente suas imputações unilaterais, suas visões ingênuas ou suas construções teóricas.
 
E, se Las Casas é confrontado com os fatos, vêem-se, da mesma forma, suas construções afundar. Os sanguinários índios Lacandons de Chiapas-Guatemala massacram a cristandade idílica que Las Casas aí estabeleceu pouco depois de deixá-la. No Peru, trinta anos mais tarde, os Chunchos, índios sanguinários vindos da Amazônia, atacam os cristãos indígenas dos Andes cuzquenianos; e os próprios missionários, para repelir a invasão, devem se transformar, como na Guatemala, em chefes de guerra. Mais de um século depois, os Apaches atacam os cristãos indígenas do Sonora norte-mexicano e do Arizona46. No início do século XIX, “torna-se impossível às missões de funcionar, porque a fronteira [mantida pela cavalaria espanhola] desmoronou. Os ataques apaches varreram a colonização e extinguiram a paz em toda a região. Com a chegada do México à independência, a própria noção de fronteira havia sumido: os desertos do noroeste não entravam nunca nos interesses políticos do México central. Os anglo-americanos que chegam nessas regiões, na metade do século XIX, aí descobrem com espanto as ruínas de uma esplêndida civilização [a das prósperas missões jesuítas, depois franciscanas, de inúmeros, magníficos e alegres monumentos] 47”. E ainda mais como os “tumultos”, a “raiva”, a morte, as ruínas eram indígenas, assim como podiam naturalmente sê-lo e freqüentemente o eram. A “esplêndida civilização” era, de fato, das missões coloniais e só pôde florescer sob a proteção de soldados espanhóis, no que Las Casas vê apenas um crime.
 
UMA EVANGELIZAÇÃO PURAMENTE LASCASIANA
 
Mais significativo ainda, se é possível, da realidade que não quis ver Las Casas é o caso da Flórida-Geórgia. A Espanha, os católicos, aí se comportam exatamente como o “protetor dos índios” reclama. Não há encomiendas. Não há nenhum escravo indígena, mesmo prisioneiro de guerra, segundo a ordem formal, repetida, de Felipe II. A presença administrativa e militar do colonizador limita-se inicialmente a dois, depois a um único forte na beira do mar, em Santa Elena (logo suprimido) e em San Agustin. E a um painel de sinalização, pintado com as armas do rei da Espanha, em vilas indígenas que desejaram reconhecê-lo e lhe pagar um modesto tributo, freqüentemente reduzido ou suprimido, em toda de sua proteção. No testemunho dos próprios religiosos, e conforme se constata por seus próprios relatórios ao rei de Espanha, o governador Gonzalo Méndez de Canso, no fim do século XVI, é “muito afável, benigno, piedoso e liberal com os índios”.
 
Os únicos europeus instalados no interior do país são religiosos franciscanos que aí estabeleceram, pacificamente, doctrinas, isto é, paróquias indígenas. O rei de Espanha sustenta, praticamente sem contrapartida, todos os gastos, consideráveis, de manutenção dos fortes e de evangelização pelos religiosos. Estes recebem da administração real subvenções para a construção de conventos e igrejas, para a compra de ornamentos e objetos de culto, para sua manutenção pessoal, suas vestimentas, seus soldos, etc.
 
As anotações dos conselhos reais ao relatório enviado pelo governador ao rei, em 23 de fevereiro de 1598, mostram com que atenção a monarquia espanhola controla com que tudo, na Flórida-Geórgia, se faça no mais puro espírito evangélico. Lê-se que mesmo os castigos de índios, que se mostram então necessários, devem ser concebidos e executados com grande moderação e justiça: “de modo que os ìndios não se tornem mais rebeldes e escandalizados, mas reduzidos à paz e à obediência e se tornem cristãos”.
 
Ora, na medida em que essa evangelização permanece assim puramente lascasiana48, ela é um fracasso patente. Dez anos depois de seu início, a evangelização teoricamente modelo desmorona; assim como uma tentativa anterior e semelhante feita pelos jesuítas, que viram dez de seus dezesseis missionários serem massacrados na Flórida, de 1566 a 1572, sem nenhum ganho, e a abandonaram49; assim como a primeira tentativa feita por um dominicano enviado pelo próprio Las Casas e imediatamente massacrado.
 
De fato, da mesma forma, em 1597, impulsionados por seu mico mayor (rei), os índios da região georgiana de Gualé massacram os religiosos de suas paróquias, saqueiam suas igrejas e atacam outras aldeias cristãs, que só são salvas pela chegada de patrulhas espanholas. Com a vertigem do sangue de sua terrível tradição parecendo novamente acometer os naturais, todos os religiosos abandonam suas paróquias e se refugiam em San Agustin. A evangelização somente avança e se torna um magnífico sucesso quando o governador vinha, à frente de seus soldados, castigar as aldeias criminosas. Então, revela-se que o castigo do crime, a represália coletiva teoricamente escandalosa (aldeias e colheitas queimadas, mas sem massacre) é o choque que permite aos índios se libertarem de sua tradição de despotismo sanguinário.
 
Assim, eles são liberados: os chefes das aldeias criminosas chegam a San Agustin para pedir perdão ao governador, que o concede com sua afabilidade costumeira e os livra das cadeias. E um desses chefes monta uma importante operação puramente indígena para tomar a vila fortificada do mico mayor. Ela a toma, mata o rei sanguinário e envia seu escalpo ao governador. Não apenas os religiosos retornam a suas paróquias, mas também a evangelização avança, corre então, como um rastilho de pólvora. E o progresso da colonização com ela. Os índios, em multidão, “vêm de mãos cruzadas oferecer seu país aos religiosos, assim como sua vontade e seus pobres alimentos. E eles acrescentam que desejam ver o rei de Espanha enviar colonos capazes de lhes ensinar a trabalhar sua terra e as outras coisas que lhes convêm”. Esses são os termos do memorial50 dirigido a Filipe III pelos franciscanos, quinze anos depois da morte de seus confrades.
 
O que quer que argumente Las Casas, o ato de autoridade espanhol, se não foi de todo, é ordinariamente a prévia necessária à evangelização. Uma prévia ratificada pelos próprios índios que viram bem de onde apenas podia vir sua paz e o progresso, material e espiritual. Pelo caminho de uma nova força, pacífica, de soberania, da qual, quer se queira ou não, eles têm falta e à qual, quer se queira ou não, eles aspiram naturalmente. Tendo sido a tradição sanguinária indígena o que foi, sobretudo como verificada por Las Casas, a tese lascasiana de evangelização “sem rédeas”, sem presença européia, era desarrazoada. O caso da Flórida-Geórgia foi o caso “ordinário”, pois esse é o adjetivo que emprega, no sentido forte, o diretor de Missionalia hipánica, Constantino Bayle, S.J., especialista irrecusável. Onde não havia proteção espanhola direta, escreve ele, a evangelização foi “comumente assinalada pelo sangue dos que tombaram: não houve missão que não contasse com mártires51”. Se os espanhóis não interviessem sempre, o sistema lascasiano chegaria ao absurdo: à não evangelização, pela morte “ordinária” dos missionários, à antievangelização, induzindo “ordinariamente” os índios à recair em sua pior tentação: o crime de sangue, dessa vez explicitamente blasfematório. A argumentação, afastando-se cada vez mais da realidade pelo encadeamento das deduções aparentemente lógicas, desembocaria no contrário do que era buscado: na anticaridade absoluta, com relação a todos os interessados.
 
DE NOVO, A VERDADE DA “ENCOMIENDA”
 
Além disso, os textos dos Conciles provinciaux ternus à Mexico no século XVI, publicados pelo erudito arcebispo Lorenzana, citam o nome de Las Casas apenas uma vez, de passagem, como bispo durante algum tempo de Chiapas. Todavia, esses textos são consagrados à defesa e à promoção dos índios52, realizados inegavelmente por outros bispos e religiosos, em colaboração com as audiencias e os vice-reis. Las Casas denuncia abolutamente a encomienda? É praticamente o único a fazê-lo entre os admiráveis apóstolos do México. As Lois nouvelles, que ele faz adotadar em 1542, têm contra elas “a unanimidade das ordens religiosas do México e a maioria dos religiosos individuais”, conforme mostrou Lewis Hanke53. Além disso, deve-se rapidamente mitigar profundamente suas disposições, ou interromper sua aplicação.
 
Trinta e sete anos mais tarde, um importante documento, as Relações do Yucatan54, estabelecidas por ordem de Filipe II para cada aldeia indígena, mostram-nos os titulares das comendadorias, felizmente não suprimidas, feitos, como nota também Silvio Zavala, defensores dos índios, de suas terras e de seu trabalho, contrariamente, em particular, aos métodos muito expeditos de reagrupamento das aldeias indígenas empregados por... certos religiosos. Pois, como atestou Zavala, a defesa da propriedade dos índios coincide naturalmente com o interesse dos titulares da comendadoria. Estes se mostram mesmo conhecedores muito atentos, simpáticos e eruditos das civilizações pré-hispânicas. Estamos, agora, em 1579. Há treze anos que Las Casas morreu e trinta e dois anos que deixou a América definitivamente. Essa América cuja realidade se recusa sempre a entrar em suas categorias.
 
No Peru, onde Las Casas também só quis ver uma conquista espanhola criminosa, dois dos apóstolos cristãos queridos pelos índios, cujas línguas e vida conheciam maravilhosamente, são um, o neto do conquistador Pizarro, o padre Martin Pizarro55, o outro, o filho de outro conquistador e titular modelo da comendadoria, o padre Blas Valera, autor de uma Historia occidentallis, verdadeiro monumento da história indígena do Peru. Um monumento citado e utilizado sem cessar por Garcilaso l’Inca, filho de uma princesa peruana e grande testemunha de seu povo.
 
O ERRO GRAVE
 
Da mesma forma se deve recusar esse outro pretenso mérito excepcional de Las Casas, celebrado pelo americano Lewis Hanke: “A insistência de Las Casas sobre o fato de que os índios tinham uma civilização própria, digna de estudo e também de respeito, o destaca de seus contemporâneos56”. Os documentos da epóca estão cheios desse estudo e desse respeito pela pena daqueles que Las Casas pretende culpar de crime: conquistadores e seus descendentes, titulares de comendadoria, religiosos em desacordo com as teorias lascasianas, que não são mais respeito, mas adulação cega, não estudo, mas sistema.
 
Desde 1892, outro anglo-saxão, Alfred P. Maudslay, especialista em antigas civilizações indígenas, havia notado: a imputação feita aos espanhóies de haver desconhecido essa civilização indígena é infundada. “Quem estude com atenção seus escritos, nota ele, encontra sobre esse assunto amplas informações57”.
 
Todos os fatos que acabamos de lembrar mostram que Las Casas, quanto aos fatos, estava errado. Mas seu erro mergulha suas raízes muito além dos fatos. Suas teses foram as do antiimperialismo, como as de muitos de seus sustentadores de ontem e de hoje. Nisso ele podia, e eles podem, ter pouca ou nenhuma razão, como o podem seus adversários, segundo os momentos, as circunstâncias e os graus que fazem com que um Império possa ser mais ou menos negativo e mais ou menos positivo. Mas esse debate não é e não pode ser um debate especificamente cristão. Pode, por si, pretender separar supostos bons cristãos e supostos maus cristãos, pois, não apenas a Igreja não cessou de batizar ou de consagrar conquistadores e imperadores, desde Constantino, Clóvis e Carlos Magno, e até fez “doação” do Novo Mundo aos Reis Católicos, mas o cristianismo não é antiimperialista nem pró-imperialista.
 
O cristianismo é o Cristo que teve todas as razões, tanto quanto o indígena de um país subjugado por imperialistas, de transmitir uma mensagem antiimperialista. Não o fez, e até recusou-se claramente a dar apoio aos zelotes anti-romanos. Contra os zelotes, disse: “dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. E chamou a si o centurião e o publicano, representantes modelares do Império na força e no tributo.
 
O erro de Las Casas é grave, em termos cristãos. Recusou dar a César, um César atenciosamente cristão, o que é a César, em nome do que é de Deus. Por via de conseqüência “lógica”, denunciou sistematicamente, chegando freqüentemente aos extremos de injustiça, o centurião, que se chamava conquistador, e o publicano, que se chamava encomendero. Pronunciando antecipadamente e de sua própria autoridade o julgamento último sobre a história, excluiu-os da salvação, quaisquer que fossem seus méritos, com todos aqueles, aí compreendidos inumeráveis e santos religosos, que tiveram a audácia de lhes estender a mão, como o fizeram inumeráveis índios. Zelote tão intratável, quanto freqüentemente cego, Las Casas, como tal, não tem lições de cristianismo para dar. Quando as dá, e são excelentes, é quando são especificamente de Deus, assim como muitos outros religiosos. Assim como a deram, com mérito muito grande, o centurião e o publicano, que foram a dileção do Cristo, os conquistadores e os encomenderos que conseguiram, sem dobrar seu orgulho de justo, estar ao mesmo tempo em César e em Deus.
 
UMA OBJEÇÃO QUE É CONFIRMAÇÃO
 
Portanto, o fenômeno Las Casas é positivamente interessante pelo fato de trazer, apesar de tudo, uma confirmação do caráter fundamental e sistemático da política espanhola de proteção dos índios.
 
Pois, inicialmente, a coroa espanhola, desde o regente Jiménez de Cisneros, em 1516, não se mostra nada rebatida pelas denúncias injustas e forçadas feitas pelo dominicano. E não é tudo: não são objeto de nenhuma censura, mas os monarcas, e seus ministros e conselheiros, com uma extraordinária paciência, o recebem, escutam, reunem juntas para estudar suas críticas e proposições e até para lançar, com base em suas indicações e recomendações, o importante corpo legislativo das Leis Novas.
 
Ainda mais, são os adversários de Las Casas e de suas idéias que a coroa reduz ao silêncio, como o humanista Juan Ginés de Sepúlveda, padre cuja Apologia antilascasiana, sob Carlos V, não pôde ser publicada na Espanha, em razão do veto dos conselhos reais. Finalmente, pôde aparecer apenas em Roma por um tipo de golpe de Estado do amigo de Sepúlveda, o eminente canonista, futuro arcebispo de Tarragone, Antonio Agustín58. Surge, em seguida, sob Filipe II dessa vez, o tratado do jurista Bartolomé Frias de Albornoz, Arte de contratos (1573), que, a partir da experiência mexicana do autor, reduz a nada os pretensos fundamentos da denúncia lascasiana da encomienda cuja liceidade histórica e jurídica, e utilidade social, aí se encontram demonstradas59.
 
Sob Filipe III ainda, no século XVII, os conselhos reais interditam a publicação da Refutação de Las Casas do cronista e capitão Bernardo de Vargas Machuca, que aparecerá pela primeira vez em Paris, no século XIX, antes de ser finalmente reproduzida em uma edição espanhola de 1879. Os conselhos reais deram para essa interdição de publicação uma justificativa muito significativa:  “Porque o bispo Don Fray Bartolomé de Las Casas não deve ser contradito, mas comentado e defendido60”.
 
Bem curiosa constância61 e convicção, admite-se, para os “opressores” dos índios. O Padroado real não cessa, de fato, de tomar muito seriamente os deveres de seu Vicariato católico, até cair no escrúpulo excessivo, o que não impede, evidentemente, as exações particulares e limitadas62 às quais fizemos alusão em uma nota marginal, mas isso torna muito desigual falar de “genocídio indígena” da parte dos espanhóis — desigual e aberrante. Pois, se genocídio quer dizer massacre de uma raça, a América espanhola é precisamente a única das Américas onde, ainda hoje, a raça indígena e seus mestiços constituem a imensa maioria da população.
 
Houve, dir-se-ia, regressão geral e maciça da população indígena em seguida à conquista, antes que essa população conhecesse uma nova crença. Mas essa regressão é a conseqüência de um fenômeno puramente natural: o contágio microbiano63  trazido pelos europeus, que exterminou brutalmente populações não imunizadas. O mesmo fenômeno foi constatado nessas últimas décadas em vários territórios indígenas da América até agora preservadas da implantação européia. Como, até recentemente, na Guiana francesa, onde algumas instalações de europeus no interior provocaram, apenas pelo efeito de brutal contágio microbiano e sem que tivesse havido o menor massacre, a extinção de tribos indígenas da floresta próxima.
 
OUTRA CONFIRMAÇÃO: A ESCRAVIDÃO DE NEGROS
 
Sabe-se, além disso, que os espanhóis, não podendo utilizar suficientemente a mão-de-obra indígena muito enfraquecida e sobretudo muito protegida, recorreram, inicialmente aprovados e imitados pelo próprio Las Casas, à importação de escravos negros. Ora, fato interessante, eles se mostram, mesmo aqui, muito moderados: essa outra forma de genocídio foi muito menos sua culpa do que de seus contemporâneos anglo-saxões, portugueses ou franceses, testemunhando sempre a constatação de que a América espanhola permanece majoritariamente indígena, ainda hoje, contrariamente ao sul dos Estados Unidos, ao Brasil ou às Antilhas francesas, onde a implantação negra64 é considerável, até majoritária.
 
Testemunhando-se particularmente o caso bem típico da ilha de São Domingo, primeiro estabelecimento espanhol — e pior, Columbino — na América. Ao fim do período colonial (conseqüência da Revolução Francesa), as situações das duas metades dessa ilha, a metade espanhola Santo Domingo e a metade francesa Haiti, são radialmente diferentes quanto à importância da massa de escravos negros que foram para aí transportados. Para, em cada caso, uma população de brancos ou de libertos de 60 a 70.000 almas, a espanhola Santo Domingo conta apenas com 30.000 escravos negros, ao passo que a francesa Haiti-São Domingo conta mais de 465.000.
 
A conseqüência não se faz esperar: é na colônia francesa que estoura, em 1791, a primeira revolta e tomada de poder por escravos negros da América, não na espanhola Santo Domingo, que os escravos tornados senhores do Haiti deverão conquistar com violência em 1822, antes que ela recupere sua independência em 1844. Além disso, as poucas colônias espanholas onde os escravos negros são numerosos, como Cuba e Porto Rico, dificilmente conhecerão o problema negro (contrariamente à Jamaica inglesa), a mestiçagem sendo aí generalizada, como no Brasil português, e conduzindo rapidamente à assimilação.
 
Assim, os países colonizadores sob os Padroados católicos, Portugal e Espanha, souberam, como por um movimento natural, mas encontrando sua fonte em sua filiação religiosa direta, escapar às oposições e segregações raciais dos colonizadores leigos (França) 65 ou protestantes (Inglaterra, Estados Unidos). Pois, se a Igreja, em imitação ao Cristo e apóstolos, não condenou formalmente a escravidão, ela sempre fez de modo que, quando sua influência era dominante, ela se desfizesse por si mesma na fraternidade, multirracial se necessária.
 
UM “LUGAR COMUM” E UM PARADOXO
 
Falta tratar da imputação de “catolicismo agressivo” e de “agressão cultural” apoiada pela Inquisição, que nossos historiadores recentes da Igreja fizeram à conquista espiritual da América.
 
Sabe-se que esse tipo de imputação de “aculturação” é o “lugar comum” da nova escola de sociólogos acusadores que tomou um lugar desproporcional em nosso establishment intelectual. Pois, enfim, todas as grandes civilizações da história dos homens foram “aculturações”, provenientes de “agressões”, sobre as quais tornou-se obrigatório derramar inesgotáveis lágrimas. Os egípcios dos faraós “aculturaram” a antiga civilização neolítica do Nilo; eles próprios foram “aculturados” pela civilização helenística, que também “aculturou” os romanos; os Helenos foram “aculturados”, por sua vez, pelos romanos; como nossos pais, os gauleses, que o foram, em seguida, pelos francos, etc. De resto, que é o próprio cristianismo senão uma “agressão cultural” perpetrada inicialmente às expensas da antiga lei judaica, atualmente às expensas de todos os materialismos e liberalismos ambientes?
 
É evidente que o progresso da humanidade e dos povos, como o de cada homem individual, e como o do cristianismo (veja o “desenvolvimento” cristão) só pode ser feito por “aculturações” sucessivas. Ora, se há um exemplo de “aculturação” vitoriosa, ricamente positiva, respeitando o Testamento original dos “aculturados”, é o da conquista espiritual da América, atualmente latina, singularmente do México.
Mas aqui mantém-se um silêncio sobre a realidade, uma realidade que deveria encher de alegria todos os católicos. Do que foi, e continua, a mais bela civilização indo-cristã, nascida da conquista espiritual da América espanhola, não se encontrará uma palavra que não seja de reserva ou reprovação nas histórias que nos são habitualmente propostas. E é paradoxal que o que nós, católicos, podemos saber hoje devemos às constatações e pesquisas feitas ou financiadas por protestantes e judeus.
 
Pois, como a atualização de Silvio Zavala sobre as encomiendas é o resultado de uma bolsa de pesquisa oferecida ao historiador mexicano pela fundação judia Guggenheim, de Nova Iorque, a primeira valorização da civilização indo-católica do México é devida ao historiador protestante Arnold Toynbee, e a primeira obra abrangente sobre a arte indo-cristã é, de novo, produto de pesquisas financiadas pela John Simon Guggenheim Foundation, que deve ser agradecida com fervor.
 
UMA “CONQUISTA” PELOS PRÓPRIOS ÍNDIOS
 
Inicialmente, houve verdadeiramente “agressão” no estabelecimento espanhol, e cristão, em terras firmes da América? Contrariamente às visões simplistas, esse estabelecimento não foi de fora alguma recebido como uma “agressão” por um grande número de povos indígenas. Nós o vimos, tardiamente, em Sonora-Arizona, assim como na Flórida-Geórgia. Isso também foi verdadeiro no México central, assim como no Peru. E qualquer que tenha sido a energia, o valor militar (às vezes brutal), a inteligência política dos conquistadores66, jamais suas tropas esqueléticas de algumas centenas de homens teriam podido vencer de maneira durável potentes impérios, se tivesse havido verdadeiramente “agressão”.
 
Ao contrário, é patente que os conquistadores foram recebidos, por inúmeros povos indígenas, como a ajuda decisiva que lhes permitiria liberatarem-se da opressão que sofriam por parte desses impérios tirânicos. Uma opressão tanto religiosa, quanto política: no México, eram freqüentemente as “guerras sagradas” que forneciam aos opressores astecas as multidões de homens necessários aos sacrifícios humanos permanentes de sua mitologia, ela mesma tirânica.
 
Quando Cortés desembarca com sua pequenina tropa na costa de Vera Cruz, é rapidamente acolhido como um aliado pelos Cempoaltecas, provenientes da grande civilização totonaque, a arte mais pura e mais moderna do antigo México (pirâmide de El Tajin). Os guerreiros cempoaltecas foram a maioria do exército de “agressão” que avança em seguida para o coração do México e combatem ao lado dos espanhóis contra os Tlaxcaltecas.
 
Esses, importante povo, haviam conseguido, sozinhos no México central, conservar sua independência, a despeito das incessantes agressões dos astecas. Ora, no momento de refletir sobre a nova situação criada pela chegada dos espanhóis, eles também se aliam a Cortés e a sua fé. Serão, depois, seus aliados fiéis67 e, por sua grande massa, assim como por suas iniciativas militares e políticas, os verdadeiros vencedores68 do império asteca: entrarão ao lado de Cortés no México, por duas vezes permitindo que invista, depois tome. Na própria zona asteca, perto do México, o mais culto dos povos da civilização pré-hispânica, os Texcucans, conta com um importante partido que também apóia o conquistador. Depois, quando Cortés se volta para o sul, com o México tomado, os zapotecas de Oaxaca, também de uma civilização muito antiga e brilhante, acolhem os espanhóis como hóspedes bem-vindos. Antes ou depois, outros povos indígenas os imitam: os otomis, também próximos do México, que foram estudados por Jacques Soustelle; os poderosos Tarascas de Michoacan, etc.
 
Tanto é assim que toda uma escola de historiadores mexicanos, portanto, fortemente “leigos” e hispanofóbicos de espírito, a escola indigenista, afirma, não sem boas razões, que a conquista foi obra “menos de Cortés que de grupos indígenas, cansados da tirania asteca e desejosos de abandoná-la, que se jogam nos braços dos espanhóis69”. Assim, Alfredo Chavero, em sua História da Conquista (México, 1904) e em seus outros trabalhos, escreve:
 
 “Na verdade, não foi um grupo de soldados europeus que fez a conquista, mas os próprios índios”.
 
UMA MUDANÇA QUE SERIA, TAMBÉM, RELIGIOSA
 
Ocorre o mesmo no Peru. Pizarro e seus espanhóis vêem rapidamente se aliar a eles e combater a seu lado contra o opressor inca, incarnado, além disso, por um usurpador70, Atahuallpa, a impaciente classe de seus escravos, os yana, os aristocratas legitimistas fiéis ao verdadeiro Inca massacrado por Atahuallpa, e povos inteiros recentemente subjugados pelo império de Cuzco: os cañaris, os chachapuyas, os huancas, etc. São os cañaris que permitem aos espanhóis tomar Quito e, quando um novo Inca, Manco II, tenta lançar os espanhóis ao mar, os huancas barram a via do norte e constituem, nota Henri Favre, “a intransponível muralha ao abrigo da qual os espanhóis puderam ficar com toda tranqüilidade71”.
 
Ora, os conquistadores, Cortés como Pizarro, eram os mensageiros declarados de uma nova religião, a qual se aliaram também, logo em seguida, os notáveis de povos importantes, assim como os Tlaxcaltecas. Assim se manifesta, nas alianças maciças aos espanhóis, que a adesão solidária às religiões pré-colombianas havia cessado de ser, para os índios, a referência suprema. Os índios, desde que a presença da força espanhola lhes abria uma alternativa, aceitavam, chamavam por uma mudança, que seria também religiosa.
 
De resto, as culturas indígenas, com a chegada dos conquistadores, estavam marcadas por uma longa estagnação, que não podia não ser ressentida, por exemplo, no México, onde o maior arqueólogo recente, Alfonso Caso, nota que as idéias e práticas espirituais astecas eram um conjunto “muito mais antigo”, remontando até “as primeiras manifestações das culturas sedentárias na Mesoamérica72”.
 
EM TODO LUGAR ADESÃO MACIÇA E APAIXONADA
 
Logo, a pretensa “agressão cultural” cristã era, de fato, uma chegada há muito esperada, mesmo se inconsciente. Não apenas por muitos dos notáveis dos povos aliados, que receberam livremente o batismo desde antes da tomada do México ou de Cuzco, mas também, e sobretudo, pelas massas indígenas, desde que teve fim a opressão de suas antigas mitologias guerreiras e puderam acolher as verdades religiosas. É um fato que os antigos cultos inspiravam apenas muito raramente uma resistência combativa. Então, a conquista e a colonização espanholas foram apenas a “rede irregular”, de “malhas finas”, nos intervalos das quais as resistências religiosas combativas puderam encontrar lugar. Da mesma forma, também, a repressão à “idolatria” indígena, viva ao primeiro choque, devido aos sacrifícios humanos, foi, todavia, extremamente moderada em geral, como também o veremos, a foi até abandonada no México a partir dos anos 1550 - 1570, o que manifesta que o partido havia sido ganho muito rapidamente pelo cristianismo indígena, que muito rapidamente a resistência religiosa pré-cristã tinha muito pouca importância. Se os índios permaneceram naturalmente impregnados de sua tradição cultural, eles igualmente se abriram, ativamente, apaixonadamente, à civilização cristã.
 
Que epopéia foi esse encontro, do qual nossas recentes Histórias da Igreja nada dizem! Em todo lugar, ou quase, a sede indígena de cristianismo se repete. Em todo lugar, ela é das multidões. Em todo lugar, ela verte a prudência que desejavam guardar os religiosos na administração do batismo. Assim se explica que haja em todo lugar uma tal imensidão de batismos de índios, enquanto, como assinala Robert Ricard, mesmo os franciscanos do México, os mais acomodadores, “não administravam jamais o batismo sem instrução preliminar”. Também os dominicanos e agostinianos pretendiam se manter nas regras estreitas dos catecumenatos, sobretudo da Páscoa e Pentecoste, em vigor na Europa. É necessário, quanto a isso, rejeitar absolutamente a idéia segundo a qual os batismos de índios foram batismos em massa, com aspersões. Os índios foram sempre (salvo raríssimas exceções) batizados “um a um”, após controle, para cada um, de seu conhecimento das verdades essenciais da fé. Mesmo que esses “um a um” 73  se seguissem em imensas séries, a tal ponto, dito à época do franciscano Torquemada, que “os padres freqüentemente não podiam levantar o cântaro com que batizavam, tão fatigado estavam seus braços”.
 
É que se verifica em todo lugar, conforme assinala o especialista franciscano moderno Claudio Ceccherelli, “a afluência tumultuada de índios vindo reclamar o batismo”. Quando, após uma reunião eclesiástica realizada em 1539, os franciscanos do México adotam as restrições dos dominicanos e agostinianos, eles todavia as renunciam, pois “os índios não cessam de importuná-los com súplicas, lágrimas e insistências para que não sejam privados de um tão grande bem, alegando que, para receber o batismo, eles marcharam durante longas jornadas, fizeram grandes sacrifícios e enfrentaram grandes perigos”. Os franciscanos resistem, mas os religiosos de um de seus conventos, o de Quecholac, submetidos a uma pressão particularmente forte, cedem. Então é a debandada, por todo o México: “os índios se apresentam em massas compactas, reclamando a grandes gritos o batismo”. Dominicanos, agostinianos, mercedários, depois jesuítas, devem eles mesmos tornar mais flexível a regulamentação do batismo à européia.
 
A “HORA DE DEUS”
 
No Peru, veja-se o que constata o padre jesuíta, Dr. Plaza, “visitador das Índias”, enviado pelo geral da ordem: “nos sermões, os índios acorrem com um tal fervor e um tal concurso que nos enchemos de admiração. Nas manhãs de festas, se houver dois ou três ou quatro sermões em diferentes paróquias, como ocorre, desde que tenham terminado de ouvir o sermão de uma paróquia, eles vão a outra, depois a ainda outra, ou a qualquer outro padre que pregue, ouvir de novo os sermões. À tarde, vão ouvir o sermão que é pregado na igreja principal todos os domingos após o jantar. Depois, quando esse sermão termina, eles se precipitam correndo para a praça principal para aí ouvir um outro sermão que seja pregado por um dos nossos. Terminado esse novo sermão, eles vão a nossa igreja para aprender a doutrina cristã. Esta lhes é ensinada em um desenvolvimento mais longo, por perguntas e respostas. Todos, homens, assim como mulheres, aprendem com grande facilidade e rapidez, em razão da paixão que os anima”. Esse testemunho74 é datado de Cuzco, anteriormente capital do culto inca, 18 de outubro de 1576.
 
E vejamos o que constata outro padre jesuíta, Andrés López, no mesmo momento, em um vale rural dos Andes, o de Anta: “Os índios se reunem aos domingos e festas, de manhã e à tarde, de tão bom coração que, nas granjas do vale, não fica um índio que não venha, mesmo de outras aldeias da região, nos importunar para que nós lhes ensinemos [...]. Mesmo os caciques se unem às crianças para aprender o catecismo. Os índios apreciam tanto que toda manhã os velhos o repetem, quatro por quatro ou seis por seis, em seus quipos [auxílios de memória feitos de cordas com nós]”.
 
Como o dizem, em uma bela fórmula, os franciscanos da Flórida-Geórgia em seu memorial citado de 1612, freqüentemente muito rápido, e quase por toda parte, soa sobre o continente índio a “hora de Deus”, aquela em que “todos os índios desejam ser bons cristãos”.
 
UMA NOVA ALIANÇA, NA ALEGRIA
 
Assim, talvez em nenhuma parte como na América indígena, o cristianismo tenha sido tão apaixonadamente acolhido como uma Nova Aliança, fórmula que nós humildemente preferimos ao jargão e ácido “aculturação” dos sociólogos. Nova Aliança que, além disso, não chegou sem ter sido preparada pela melhor das religiões pré-hispânicas: a mensagem do rei Nezahualcóyotl, cântico do século XV asteca da unidade de Deus e da fraqueza humana.
 
É o que viu bem Arnold Toynbee. Seu conhecimento de história das religiões, estendido aos cinco continentes e informado por milhares de anos, o fez reconhecer em seguida a sua chegada ao México, a civilização indo-católica, que nasceu imediatamente após a “conquista”, como o modelo mundial da fusão feliz de duas civilizações. Em seu livro de síntese, A Religião vista por um historiador, ele nos participa de seu deslumbramento, quando visitou em 1953 as igrejas indígenas das aldeias em torno de Puebla, a terceira cidade do México, a leste do México, fundação ex nihilo dos conquistadores. Pois, diz ele, foi testemunha dos “cuidados zelosos” que aí prodigalizaram sempre os índios às “obras [de arte] magníficas”, “alegres”, de seus ancestrais recentemente convertidos ao cristianismo, ao passo que estes estavam até então “submersos na selvageria sinistra da influência asteca75”.
 
Isso pode ser confirmado por todos aqueles que, como ele, visitaram essas igrejas: suas obras de arte, transbordantes de luz e de alegria, contrariamente à sinistra arte asteca, fornecem, por essa mesma alegria, a prova irrefutável da liberação humana trazida pela “conquista” e evangelização.
 
UMA “OBRA LUMINOSA”
 
Como isso foi feito? Certamente não — pode-se duvidar — pela opressão, escravidão, que nos pintam. Graças às pesquisas financiadas pela fundação Guggenheim, os católicos podem finalmente saber como outros católicos puderam chegar a essa vitória, e saber qual foi sua amplitude, a de um enorme testemunho, quase totalmente desconhecido até aqui graças a idéias recebidas que só querem ver índios oprimidos, de cultura pré-hispânica, anticristã.
 
Após cinco anos de pesquisas76 realizadas, às custas de mecenas americanos, por um professor da Escola Nacional Mexicana de Conservação, de Restauração e de Museografia, e por seu alunos, publicou-se no México, em 1978, o primeiro estudo do conjunto da Arte indo-cristã: “movimento artístico que é a demonstração irrecusável dessa nova visão e novo coração que adquiriu o índio77”.
 
Desde a primeira metade do século XVI, “o religioso e o índio [em conjunto] criaram um [novo] campo de ação cultural, totalmente ativo. [...]. Entre eles realiza-se uma comunicação intensa, cada um trazendo uma parte de sua própria vida [...], através da edução e da afeição, uma afeição trágica pelo fato de se ver frustada por todos aqueles que foram inimigos dos religiosos e dos índios.
 
“Nessa arte de simbiose, manifestam-se os antecedentes de duas culturas, a pré-hispânica [...] e a espanhola [...], que se fundiram dando origem a uma obra luminosa, inteiramente nossa [...].
 
“A arte indo-cristã foi um meio de integração religiosa-cultural do homem [índio] a seu novo meio, a suas idéias, como havia sido a arte greco-romana, a arte românica e a arte gótica78”.
 
Essa arte indo-cristã, em sua escultura, como em sua pintura, é, de fato, autenticamente índia, seus locais sendo “aqueles mesmos onde se celebrava o grande culto pré-hispânico79” e “com o artista indígena sendo o autor da maior parte de suas produções80”. Os “motivos de ascendência pré-hispânica81” aí abundam, dignos de figurarem em um museu ampliado da tradição artística propriamente americana.
 
Quanto à amplitude dessa arte indo-cristã, ela é, de fato, verdadeiramente o enorme testemunho de que falamos. Desde o século XVI, produziu, apenas no México, mais de cento e vinte grandes monumentos catalogados, compreendendo uma iconografia de antecedência pré-hispânica, e dezenas de milhares de metros quadrados de pintura. Maravilhas abundantes preenchem, assim, o campo e as cidades em torno do México, Cuernavaca, Tlaxcala, Puebla, Pachuca, Oaxaca, etc., por uma superfície igual à da França, para falar apenas do México.
 
Além disso, não se trata de fogo de palha, de decorações como a do imenso e magnífico Santo Domingo de Oaxaca, mostrando que essa arte continuou a brotar nos séculos XVII e XVIII, onde se estenderá mais e mais por toda a América latina. E o que restou hoje: esse monumento saqueado, assim como muitos outros, pelo vandalismo leigo dos últimos cento e cinqüenta anos (que fez uma estrebaria e destruiu seus retábulos), vê agora sua decoração restaurada, muitas vezes refeita, na mesma floração.
 
Quanto à qualidade da arte indo-cristã, ela freqüentemente atinge os mais altos níveis, seja a arte popular, seja a arte propriamente dita, seja de conjunto decorativo. O que há de mais vitorioso como conjunto decorativo do que a igreja da cidade de Acatepc, próximo a Puebla, inteiramente recoberta no exterior por cerâmicas pintadas e historiadas, em uma arquitetura de volutas e pilastras especialmente desenhadas para lhes dar seu pleno efeito, e inteiramente pintada e dourada no interior por esculturas de baixo e alto relevo? O que há de mais digno da verdadeira arte que as pinturas com que em 1562 o pintor indígena Juan Gersón cobriu as abóbadas da igreja de Tecamachalco, na mesma região, particularmente sua tão bem composta, desenhada e colorida “Visão de Deus e dos vinte e quatro anciãos”? E o que há de mais belo e acabado que esses inumeráveis portais de igreja esculpidos — como na cidade de Tulpetlac, no Estado do México — que fariam a alegria da Europa em muitas regiões menos ricas82 em arquitetura da Renascença ou do Barroco? Um Barroco que, aqui, dá sistematicamente por função da sua ornamentação a das nervuras na arte gótica: “dirigir a vista para o céu”, como nota o autor do guia de Santo Domingo de Oaxaca.
 
IDADES DO OURO
 
É emocionante hoje, em um ou outro dos monumentos dessa arte indo-cristã, encontrar esses dois protagonistas: o índio e o religioso. Assim, ao mesmo tempo que índios (que aqui se mostram absolutamente em casa, como também em todos os edifícios cristãos, mesmo os mais majestosos), aqui se vêem os trajes brancos dos dominicanos, em Santo Domingo de Oaxaca ou na antiga catedral de Bartolomé de Las Casas, em San Cristóbal do Chiapas.
 
Esses encontros nos lembram que os religiosos não foram simplesmente promotores da arte indo-cristã e da proteção do conjunto do povo indígena: também tiveram impressionantes iniciativas particulares de proteção absoluta dos índios, em verdadeiros pequenos Estados indígenas exclusivamente submetidos por eles à lei do Cristo.
 
Assim, Bartolomé de Las Casas — o religioso sendo muito mais convincente que o polemista — em seu bispado de Chiapas e sobretudo na “Terra de guerra” próxima, recusando qualquer intrusão do espanhol que possa ser opressiva, criou um pequeno Estado puramente indo-religioso, a Verapaz, a Verdadeira Paz, integralmente a serviço dos índios. Vinte e cinco anos após a partida de Las Casas, nos anos 1570, não se contavam, além do bispo, mais quarenta espanhóis, conforme nota o viajante inglês John Chilton. E o nome permaneceu em duas províncias da atual Guatemala: a Alta Verapaz e a Baja Verapaz.
 
Próximo do México mesmo, no Michoacan que se estende para o oeste, uma semelhante terra de “idade do ouro” para os índios lhes foi oferecida pelo primeiro arcebispo do México, o franciscano Juan de Zumárraga, e pelo bispo de Michoacan, um antigo magistrado, Vasco de Quiroga. Lá os religiosos empreenderam a tradução em ações da Utopia do grande humanista católico Thomas More e a volta dos índios “à pureza incorrupta da Idade do Ouro83”. Vêem-se ainda as ruínas das colônias ou hospitais que religiosos e índios aí fundaram e aí fizeram funcionar em espírito absolutamente comunitário, cada um, por sua vez, assumindo a carga dos serviços necessários, e isso para uma “população considerável”.
 
No mesmo momento, graças ao apoio do vice-rei Mendoza, os dominicanos também fizeram no atual Estado de Oaxaca, no sudeste do México, uma terra reservada aos índios e seus evangelizadores, uma terra coberta de monumentos indo-cristãos, como a obra-prima de Santo Domingo que evocamos.
 
Mais tarde, à imagem de suas famosas “reduções”, essas repúblicas cristãs independentes de índios guaranis do Paraguai, os jesuítas também fizeram entidades puramente indo-cristãs de suas missões do norte do México (atuais Sonora, Arizona e Califórnia). Lá foram ilustres os padres Salvatierra e Kino que, conforme dissemos, também preenchem essas vastas amplidões de tocantes e alegres monumentos da arte indo-cristã. Assim, assinalada em nota marginal, a graciosa missão de San Javier del Bac, próxima a Tucson (Arizona), sempre querida dos índios, onde, mais uma vez, é impossível ver o testemunho de uma “agressão cultural”.
 
UMA FLORAÇÃO DE ESCOLAS
 
Talvez se pretenda ver mais claramente essa “agressão” em iniciativas dos religiosos não mais globalmente sociais, mas culturais. Por exemplo, em suas duas notáveis realizações: o colégio superior humanista de Santa Cruz de Tlatelolco, onde Zumárraga, a partir de 1536, forma uma muito brilhante elite intelectual indo-cristã84; a escola de técnica e de arte onde outro franciscano, Pierre de Gand, em San José de Mexico, se faz “mestre e industrioso instrutor” de construtores e decoradores índios. Essa escola não acolhe menos de mil jovens de dia e provavelmente outros tantos adultos em seus cursos noturnos.
 
Mas não! Citando essas realizações ao mesmo tempo que as precedentes, não se fala mais de “agressão cultural”. Basta minimizá-las: elas são, nos dizem, “espetaculares, mas sempre isoladas” (Histoire vécue du peuple chrétien, tomo II, p. 281).
 
Essa imputação de isolamento é tão infundada quanto as outras: a escola de Pierre de Gand evidentemente não teria bastado para formar todos os construtores da arte indo-cristã.
 
Cada convento tinha sua escola, mesmo uma dupla escola, considerável; assim como era considerável o próprio número de conventos, desde o século XVI, que eram mais de trezentos apenas no México. Um externato para os meninos do povo comum, recebidos diariamente no externato, e um internato para os filhos dos principais índios. “Há tantos índios ensinados, escreve em cerca de 1540 o franciscano Motolinía, que em certos mosteiros há trezentos, quatrocentos, seiscentos e até mil alunos85”. Semelhantes números às vezes valem apenas para os internos, afirma cinqüenta anos mais tarde o franciscano Jerónimo de Mendieta: “As crianças assim reunidas viviam [nos internatos] a seiscentos, oitocentos ou mil, com anciãos as guardando, dando-lhes de comer o que lhes traziam suas mães, ocupando-se de sua roupa e de outras coisas de que tivessem necessidade86”. A existência dessas importantes escolas conventuais é confirmada pelo arcebispo Zumárraga, em suas cartas, e por outro cronista religioso, Juan de Torquemada. Este último, como seu confrade Diego Valadés, confirma também que os muros dessas escolas eram decorados com pinturas indo-cristãs do Cristo, da Virgem, etc., que ainda se vêem em certos mosteiros sobreviventes.
 
Nesses internatos87, os índios recebiam uma educação primorosa. Aprendiam em sua língua a doutrina cristã, a música, a escritura, a “gramática” (o primeiro curso desta em língua indígena foi dado pelo sábio franciscano francês Arnaud de Bazas), a retórica, a geometria, a aritmética e a astronomia. Alguns jovens índios se tornaram notáveis compositores de músicas polifônicas, aí compreendidas missas inteiras, tocadas pelas orquestras de seus camaradas; fonte das missas indígenas ou crioulas (mestiças) de nossos atuais cassetes magnetofônicos. Outros formaram verdadeiras oficinas de calígrafos e iluminadores, como os autores do manuscrito em língua indígena do Contemptus mundi, que Mendieta importou da Espanha em 1570. Muitas escolas, particularmente em torno de Puebla, ensinavam também as “artes mecânicas”, os ofícios, particularmente os ofícios de arte, agricultura, arboricultura, criação de gado, irrigação, adução de água, etc. Os estudos duravam pelo menos três anos em um internato com jornadas seguidas conforme o ritmo monástico mais fechado.
O mesmo ocorreu com os dominicanos, assim como com os franciscanos, os agostinianos e também os jesuítas. Desde do século XVI, o convento dominicano de San Pablo d’Oaxaca foi um centro educacional, como será em seguida seu sucessor Santo Domingo, de onde sairão os fundadores da universidade da cidade. Lá, como em muitos outros lugares, o convento escola se dividia em um hospital, com farmácia gratuita para os pobres, além disso, alimentando quotidianamente um grande número de indigentes.
 
A HONRA DE TODO UM POVO CATÓLICO
 
E nós conhecemos pelo menos uma outra importante escola de técnica e de arte88 que acolhia os índios: aquela que chegou a ser chamada de a “Atenas da Nova Espanha”, aberta pelos religiosos agostinianos em Tiripitío, no Michoacan, nos anos 154089. Conhecemos também dois outros colégios superiores: o de São João de Latrão, no México, e o de São Nicolau, fundados em 1540 em Pátzcuaro e transferido em 1580 para Valladolid (Morelia).
 
É necessário render-se às evidências: a proteção e a promoção dos índios, por parte dos espanhóis responsáveis, não são iniciativas isoladas nem, por outro lado, puramente religiosas. São um conjunto em que todas as instituições do Padroado têm sua parte. Vasco de Quiroga, criador dos hospitais de Michoacan, vem da magistratura: era um dos oidores da audiencia do México. O próprio Las Casas é um antigo colono. E quando um religioso se porta mal com relação aos índios, como Juan de Torquemada, acusado de haver feito açoitar até sangrar um de seus pintores indígenas, recusando a remunerá-los90, é a justiça do vice-rei que o processou, por queixa da vítima91.
 
Do estatuto das terras à proteção judiciária das pessoas e dos bens, à promoção cultural e religiosa, a nobre e cristã dileção com relação aos índios é a honra de todo um povo católico, inicialmente (mas não apenas) do povo espanhol, em todas suas elites. Essa honra lhe deve ser prestada.
 
COMO NÓS: APAGAR UM ENSINAMENTO DE MORTE
 
Mas e as “fogueiras espanholas”? Mas e a Inquisição? Objetarão enfim. Essa Inquisição, que os neo-paganistas da Nouvelle Ecole nos deixam ouvir no Figaro-Magazine92, que não permite nunca aos católicos de se indignarem com os “sacrifícios humanos praticados em massa” pelos astecas, pois “os conquistadores cristãos levaram consigo” seu aparelho sanguinário. E que ela cometeu o crime de destruir as antigas culturas indígenas.
 
Houve, de fato, algumas queimas de arquivos astecas ou maias realizadas por religiosos. Muito menos numerosas do que se diz. O auto-de-fé por Zumárraga dos arquivos astecas de Texcoco, afirmado pelo historiador americano do século XIX Prescott, é, por exemplo, apenas uma lenda: “um fantasma que se desfaz ao primeiro golpe da crítica”, conforme estabeleceu o historiador mexicano, portanto amigo de Prescott, Joaquin García Icazbalceta93. Um fantasma tanto mais evanescente que Zumárraga, já fundador do colégio superior de Tlatelolco, e também fundador da primeira cadeira de nahua, a língua cultural asteca, lecionada na universidade do México, que abriu suas portas em 1552.
 
Em compensação, a atitude muito repressiva dos religiosos com relação à “idolatria” maia, no Yucatan, é um fato verificado. Mas é perfeitamente compreensível e está longe de ser grosseiramente obscurantista.
 
Pois, inicialmente, esses religiosos tinham diante dos olhos os insuportáveis espólios de morte deixados pela civilização maia, sob influência tolteca. Como a mastaba de crânios, a grande mesa de sacrifícios humanos por esquartejamento, um templo sobre pirâmide abrigando outros sacrifícios sanguinários, um grande poço destinado a sacríficios humanos por afogamento, tudo isso para falar apenas do sítio de Chichen Itza que qualquer um pode visitar hoje, e que, na época, devia ainda trazer inúmeras marcas dos rios de sangue que aí escoaram. Os religiosos não destruíram essa civilização maia já extinta94, engolida pelo mato, ou a selva de Palenque, e abandonada pela maior parte dos índios locais. Da mesma foram que nossa legislação atual se ocupa legitimamente de impedir o proselitismo da morte do defunto racismo nazista, os religiosos julgaram seu dever, legitimamente95, apagar o ensinamento de morte deixado pela mitologia tirânica defunta. Mas apenas isso.
 
AS PRINCIPAIS FONTES “INDIGENISTAS”
 
Pois, em seguida, esses religiosos — como Diego de Landa do auto-de-fé de Mani, próximo a Chichen Itza — se aplicaram em suas Relações em nos transmitir o que havia sido, por outro lado, a grandeza da civilização maia. Como se eles tivessem desejado, em seus livros, “restituir uma parte do que havia sido queimado96”, essa parte de onde nossos arqueólogos tanto sorvem, às vezes sem dizer, seus conhecimentos do Yucatan pré-colombiano, que informa também a massa de monumentos e de esculturas deixadas no lugar pelos mesmos religiosos.
 
O mesmo ocorre na zona asteca: as principais fontes “indigenistas”, catalogadas pelos historiadores mexicanos de hoje, têm por autores religiosos da conquista ou seus alunos índios, como Ixtlilxóchitl. Assim é a História das Coisas da Nova Espanha do franciscano Sahagún, que nos transmite em espanhol e em nahuatl, ramo propriamente asteca da língua nahua, a vida, a religião, a história, a medicina, a ciência, as artes, os hinos e os discursos dos antigos mexicanos. Monumental coleção de doze volumes ilustrados, em cores, pelos artistas índios do colégio franscicano de Tlatelolco, essa obra é a verdadeira enciclopédia da cultura asteca. Assim também a História das Índias desse outro franciscano, Motolinía, apóstolo desde 1524 inteiramente entregue a esses gentios, que é a fonte do tema do “bom selvagem”, como também de todas as outras crônicas do antigo México.
 
A INQUISIÇÃO CONFIANTE
 
Além disso, os religiosos que foram os autores dos autos-de-fé de arquivos sanguinários, no Yucatan ou na zona asteca, não pertenciam à Inquisição. Pois esta não foi de forma alguma “trazida com eles pelos conquistadores cristãos”: ela só se estabelece no México (e no Peru) meio século depois da conquista, bem depois dos autos-de-fé, em 1571. E, como assinalaremos em nosso capítulo consagrado à Inquisição espanhola, esta, muito mais liberal do que se diz, recusará toda repressão das culturas pré-hispânicas. Concretamente, ela recusará toda perseguição contra os índios97 por idolatria ou superstição98. Tanto mais facilmente que, em 1575, por cédula de Filipe II, os índios foram formalmente excluídos de sua competência.
 
As histórias da Igreja que citamos afirmam, portanto, erroneamente que a Inquisição reforçou a “agressão cultural” contra os índios. Se a Inquisição reforçou qualquer coisa é, pela confiança que deu aos índios, essa nobre e cristã dileção por eles que foi o caráter de todas as instituições espanholas do Padroado.
 
Os índios conservaram naturalmente, em seu cristianismo, sua identidade cultural, seu Testamento, que influenciou seus ritos e práticas. É isso que a Inquisição e Filipe II haviam desejado respeitar: não houve, graças a eles, na América, o desagradável caso semelhante ao dos ritos chineses que Roma havia proscrito. E os índios mereceram essa confiança. Ao fim do século XVI, um religioso que vimos muito próximo deles, o padre Jerónimo de Mendieta, redigindo a História Eclesiástica das Índias, constata: “não se manifestaram heresias entre os índios. Se foram produzidas, penso que seriam devidas ao mau conhecimento99”.
 
Ainda hoje, o catolicismo índio se mostra impressionante no sentido do sagrado e no dom de si, essas essências do cristianismo em perigo de se apagar em nossa Europa. Nunca produziu heresias, o que não é certo no caso do cristianismo europeu.
 
Em seus ritos freqüentemente emocionantes, em seus acentos, por outro lado variáveis segundo os povos, devemos ver, com um olho escandalizado e irônico, apenas “superstições” como o faz uma recente história da Igreja100? Não temos nós na Europa nossos próprios acentos, igualmente variáveis segundo os povos, segundo nossas heranças culturais muitas vezes “supersticiosas”? E estamos tão ricos de ritos emocionantes animando toda a vida, todas as gerações, toda a comunidade, que possamos com justiça rejeitar, de algumas fórmulas pinçadas, aqueles que celebram os índios? Nosso desdém com relação a isso, trazidos a todas as “religiões populares”, não seriam, dessa vez, de nossa parte, a verdadeiras “agressão cultural” que estamos tão prontos a imputar aos outros? Uma verdadeira tentativa, dessa vez, de “processo de aculturação” para empregar o jargão dos sociólogos?
 
Chegamos assim ao maior dos paradoxos revelados neste capítulo: recusamos ao catolicismo indígena a confiança que lhes deram aqueles que chamamos de “opressores”: a Inquisição e Filipe II. A competência que eles se recusaram sobre a alma indígena, nós nos atribuímos. Os processos de idolatria e superstições que eles não iniciaram, nos iniciamos. E somos nós, fazendo isso, que nos permitimos desaprovar nos espanhóis, na América, o “espírito de cruzada” e a “cristianização autoritária101 102. Como se pode depreender disso, nossa lucidez está atrasada com relação à deles de vários séculos! Pois, a propósito da América latina, a dita lucidez nos faz escrever hoje esta frase sob qualquer aspecto incrível: “Ela [a América latina de nossa segunda metade do século XX] revelou surpresas, demonstrando que a religião pode ser tanto um elemento de integração, quanto de alienação103”.
 
ELES SE EVANGELIZARAM POR SI MESMOS
 
Nossa ignorância e nossa cegueira são estonteantes. Se o catolicismo foi para os índios “elemento de integração”, se a Inquisição e Filipe II confiaram neles, é porque houve uma razão. Uma razão emocionante, que não deixa certamente de explicar também esse pequeno fato que agora veremos: a Virgem fez pelos índios o que ela não fez por nenhum outro povo.
 
Essa razão é que, muito rapidamente, não houve nenhuma “cristianização autoritária”. Os índios, com rigor, muito freqüentemente se evangelizaram a si mesmos. E de que maneira impressionante, confirmando de novo, em um relâmpago de pura espontaneidade, a liberação que lhes trouxe o cristianismo. Com o mesmo frescor e no mesmo alegre dom de si que fez por toda parte despontar a arte indo-cristã. Como compreendeu, com um golpe de vista, Arnold Toynbee.
 
Escutemos o som maravilhosamente franciscano, apostólico, das palavras que se seguem, escritas por duas testemunhas diretas, a cinqüenta anos de distância. Uma testemunha não espanhola e uma testemunha espanhola. Em 1558, Pierre de Gand escreve a Filipe II para dar contas do que se passava nas escolas dos mosteiros que acolhiam por toda parte centenas de jovens índios, à noite, após Completas. Eis: “Às oito horas, os jovens índios ensaiavam a pregação para ver qual seria o mais capaz de chegar a pregar nas cidades [...]; e toda semana os mais hábeis e os mais iluminados nas coisas de Deus estudavam o que deviam pregar e ensinar nas cidades aos domingos ou nas festas de obrigação; aos sábados, seus camaradas os enviavam, dois a dois, para pregar104”. Ao fim do século XVI, Jerónimo de Mendieta completa o quadro nos acompanhando nas cidades e nos povoados para assistir às pregações desses jovens apóstolos índios.
 
Eis: “Não apenas eles dizem o que os religiosos lhes haviam ensinado, mas acrescentam ainda muito mais, refutando com vivas razões que haviam elaborado, dizendo sua reprovação dos erros, ritos e idolatrias de seus parentes, declarando-lhes sua fé em um só Deus e lhes mostrando como eles haviam cometido grandes erros e cegueiras que lhes haviam feito tomar por deuses os demônios inimigos da linhagem humana105”.
 
Assim, os jovens anjos de olhos alegres não povoaram apenas com inumeráveis esculturas e pinturas as igrejas de arte indo-cristã. Eles percorreram, em carne e osso, os caminhos e sendas do país indígena, todos os domingos. Uns eram apenas a imagem, a razão, os outros, anjos indígenas106 mensageiros do Deus cristão.
 
POR TODA PARTE ANJOS INDÍGENAS, JOVENS E VELHOS
 
Anjos indígenas no Peru ex-inca, assim como no México ex-asteca ou maia. Pois no Peru ocorre o mesmo que no México. Em seu “Estado Geral da Companhia de Jesus no Peru no ano de 1576”, o padre José de Acosta escreve: “Os jovens rapazes índios, que são tão vivos e hábeis, sabem o catecismo breve e o catecismo desenvolvido em sua língua. E eles vão ensinar a pé [de aldeia em aldeia] aos velhos. Eles aprenderam numerosos cânticos, tão bem em espanhol, quanto em sua língua, que eles amam muito, sendo naturalmente inclinados ao canto. Eles os cantam de noite e de dia, nas casas e nas ruas. Ao vê-los fazendo isso, homens e mulheres fazem o mesmo”. O que confirma o frei Bartolomé de Santiago, filho de um colono (que se fará ele mesmo jesuíta) e de uma índia: “Nós ensinamos aos jovens rapazes a doutrina cristã, e os rapazes voltam para ensinar aos outros nas cidades”. Uma processão de índios do Peru nos é assim apresentada pelo padre Acosta: “Cada grupo de quinze ou vinte índios era acompanhado por dois jovens rapazes que recitavam [as questões] do catecismo em sua língua. Os grupos de adultos respondiam com tal ordem e silêncio que fiquei admirado com isso, sendo isso em uma multidão inumerável. Chegados à praça onde se encontra nossa igreja, os jovens rapazes cantaram cânticos em sua língua, para extremo prazer dos índios que lhes são muito afeiçoados107”.
 
Mas não há apenas jovens índios a fazer a evangelização. Por toda parte, o clero, em número muitas vezes insuficiente, é muito rapidamente cercado de catequistas, pregadores, cantores, sacristãos que são índios adultos. O agostiniano Juan de Grijalva observa nas célebres colônias ou hospitais estabelecidos desde antes de 1550 pelo bispo Vasco de Quiroga no Michoacan mexicano: os índios “uns aprendiam a doutrina, outros a ensinavam108”. Sempre no México, o cura de Tizayucán relata, em 1569: “Tenho em cada aldeia ou domínio quatro ou cinco índios cantores, dentre os mais hábeis, que sabem batizar em caso de necessidade, quando qualquer criatura se encontra em perigo. Para ensinar o catecismo, tenho oito ou dez índios cantores que o ensinam a alta voz ao povo reunido no pátio-esplanada da igreja. Tenho também treze ou catorze índios cantores que ajudam a celebrar a missa aos domingos e nas festas, com oito ou dez sacristãos que ensinam a doutrina às crianças nos dias de trabalho, sempre no pátio-esplanada da igreja109”. Ainda no México, em Santisbebán (Pánuco), o cura relata: “Antes da missa, os índios das aldeias se reunem no pátio-esplanada da igreja, onde dois índios lhes ensinam a Ave Maria, o Pater Noster, o Credo, o Salve Regina, em latim, e os mandamentos de Deus, artigos da fé e obras de misericórdia, em sua língua110”.
 
A TERRA INDÍGENA POR ELA MESMA
 
O que se traduz ainda em uma realidade que salta aos olhos como a arte indo-cristã: esses pátios-esplanadas, onde os índios instruídos evangelizavam diante das igrejas, dobram muitas dessas igrejas em toda América latina, manifestando, assim, que a evangelização foi, mais maciçamente que a do padre europeu em sua igreja, a dos índios por eles mesmos sob seu céu de sempre. Essas esplanadas são o testemunho da sacralização cristã da terra indígena por ela mesma, ao ponto de freqüentemente, em um de seus ângulos, eles possuírem de alguma forma sua própria igreja, remontando muitas vezes aos primeiros tempos da Conquista: a capilla abierta, capela aberta sobre os horizontes indígenas, de onde os evangelizadores indígenas ensinavam seus irmãos.
 
Os mesmos índios instruídos visitam, então, por toda parte os locais ou granjas afastadas para aí pregar e ensinar. Em Tucumán, na Argentina, na encomienda de Hernán Mejía Mirabal, os índios das cidades são catequizados por índios “yanaconas” instruídos, que dão seus cursos duas vezes ao dia, “um de manhã e um a noite111”. Da mesma forma, no Peru e em outros países da América do Sul, funciona uma instituição de evangelizadores ambulantes: a dos menestréis cristãos indígenas que vão às cidades e povoados dirigir as orações e os cantos, acompanhando-os com a harpa. Trata-se de cegos “hábeis” que alimentam as comunidades cristãs112. Há, dessa forma, muito rapidamente, todo um folclore cristão autenticamente indígena. Uma cristandade propriamente indígena, que dará logo origem a numerosas confrarias propriamente indígenas.
 
Muito antes do fim do século XVI, o nono e último rei indígena do Michoacan, no México, se fez jesuíta. Morreu mártir da caridade em 1576, no decorrer de uma epidemia de peste.
 
UMA BELA LIÇÃO DE HISTÓRIA
 
Tudo isso nos oferece uma bela lição de história: desconfiemos de nossos preconceitos113: eles não nos dão verdadeiramente um papel bonito.
 
O retrato-expresso de um personagem particularmente “arriscado” nos levará à verdade complexa, mas muito estimável, que acabamos de reviver. O retrato do primeiro inquisidor do Peru no século XVI. Era um religioso dominicano, como Las Casas. E foi ele mesmo que, em Sevilha, mestre em teologia, já bispo, consagrou bispo seu confrade Las Casas. Primeiro bispo de Cartagena das “Índias”, havia fundado um colégio para os índios. Primeiro bispo, depois primeiro arcebispo de Lima, sustentara vigorosamente esse outro grande “protetor dos índios”, canonizado, enquanto Las Casas não o foi: São Louis Bertrand, também dominicano. No Peru, havia reunido dois concílios provinciais, em 1551 e 1567, capitais na história da evangelização indígena. E, em decorrência de trágicos sobressaltos originados das encarniçadas lutas entre conquistadores e entre estes e o poder central, devia assumir de fato as pesadas responsabilidades do vice-reino, estando compreendidos o comando dos exércitos para fazer face a uma revolta de espanhóis.
 
Era de família nobre e rica, parente do cardeal García de Loaisa, arcebispo de Sevilha (e, portanto, “Patriarca das Índias”), presidente do Conselho das Índias (o governo central da América espanhola) e inquisidor geral de Espanha. Parente também, em todo caso compatriota íntimo (nasceu em Trujillo, como Pizarro, e era de uma família de Talavera), de uma multidão de conquistadores do Peru, particularmente dos “Talaverianos”, uns duros e cúpidos, outros modelos de sabedoria. Desses conquistadores, ele era “a alma [...], a cabeça e o guida” (Juan Pérez de Tudela).
 
Quando os jesuítas fundaram uma cadeira de quichua em seu colégio San Pablo de Lima, ele ordenou a todos os seus curas e padres estudarem a língua indígena. Em 1562, quando lhe foi perguntado se podia pregar aos índios as indulgências pagantes da cruzada (cruzada contra o Turco ameaçador), ele recusou, como seus confrades mexicanos: o tesouro das indulgências, disse ele, só podia ser oferecido a esses pobres gratuitamente, por suas obras e orações.
 
Ele, que havia aceitado como um dever suplementar do cargo de inquisidor do Peru, fundou em 1549 um hospital. E, embora instalado em um miserável reduto, curava ele mesmo os índios a quem esse hospital havia por ele sido reservado114.
 
Assim foi Don Fray Jerónimo de Loaisa115, em que se resumem, contra os preconceitos, o risco e a nobreza de uma época da história da Igreja.
 
Uma nobreza que fez do Peru, após sua morte em 1575, um pomar de santidade, mais fecundo, por exemplo, que a França da mesma época. Com o coração, somando-se a São Louis Bertrand na orla sul-caribenha, então dependente de Lima, o novo arcebispo dessa cidade, também inquisidor e também grande amigo dos índios: São Turíbio. Um modelo dos prelados da Reforma católica, visitador heróico de sua diocese e fundador do primeiro seminário da América. Também Santa Rosa de Lima, doce flor mística de um despojamento indígena desabrochado sobre a terra dos conquistadores: Rosa, terciária, dominicana, que Clemente X dará como patrona da América.
 
No mesmo momento, o México espanhol e índio celebra já há meio século, com fervor, o culto da patrona suprema da América, Nossa Senhora de Guadalupe, um culto que ganhará toda a América latina, espanhola ou portuguesa, como se vê hoje, a ponto de fazer convergir para sua basílica próxima do México, em 1979, não menos de vinte milhões de peregrinos, ultrapassando assim o irradiação de Lourdes ou de Fátima.
 
É importante pararmos um pouco nesse culto totalmente católico de Nossa Senhora de Guadalupe. Sua realidade histórica e religiosa, sua irradiação conferem, de fato, a verdadeira refutação das idéias falsas, que circulam por toda parte, sobre a conquista espiritual da América.
 
Pois é falso que a Virgem de Guadalupe foi “o avatar moderno da Tonantzin asteca de Tepeyacac, deusa ao mesmo tempo terrestre e lunar” anteriormente celebrada no mesmo lugar, como afirma Jacques Soustelle (L”Univers des Aztèques, p. 66). Ou que a  “piedosa lenda” de Guadalupe tenha lugar entre as metamorfoses tardias das antigas crenças indígenas no seio da espiritualidade do México colonial”, como pretende confirmar na monografia universitária recente do culto de Guadalupe, o neo-paganista secretário da Sociedade de Americanistas, Jacques Lafaye (Quetzalcoatl et Guadalupe116, p. 11). Ou ainda que a história de Nossa Senhora de Guadalupe seja “exemplar em muitos aspectos”, porque a superposição de seu culto a uma peregrinação pré-hispânica, onde se reverenciava a deusa Cihuacoalt-Tonantzin, criou “uma confusão e uma ambigüidade que o tempo não dissipou inteiramente”, como avança, inspirada pela monografia precedente, a Histoire vécue du peuple chrétien (tomo II, p. 287).
 
A VERDADE POR NOSSA SENHORA DE GUADALUPE
 
De fato, a “deslumbrante imagem” (preciosa imagen), dada pela Virgem, em 1531117, ao pobre índio Juan Diego no frágil tecido de agave de sua tilma (capa), não deixa lugar para nenhuma “confusão” ou “ambigüidade”. Não é, de forma alguma, uma “metamorfose tardia das antigas crenças indígenas”. É o oposto mesmo de um “avatar moderno da Tonantzin asteca”.
 
Inicialmente, é uma pura Imaculada Conceição segundo a tradição gráfica católica, não podendo de forma alguma ser confundida com a imagem monstruosa da deusa asteca evocada, que foi reencontrada em 1790 no centro da cidade do México. O desenho desssa Inmaculada não tem o menor antecedente na iconografia asteca, como as esculturas e manuscritos pré-hispânicos nos mostram superabundantemente. É, portanto, uma inovação absoluta com relação às “antigas crenças indígenas”. Sua visão é exclusivamente a da mãe de Deus reverenciada de toda antigüidade apenas pelos cristãos. E seu corpo é o da Virgem Maria grávida do Filho de Deus, o que é, de fato, a imagem do próprio conjunto do mistério cristão, não de alguma “mariolatria” superficial.
 
O único sinal de seu dom ao México é, acrescentado antigamente à imagem miraculosa inicial conforme mostrou a análise infravermelha, o pequeno desenho da flor de quatro pétalas em torno de um círculo central, que aparece no vestido da Inmaculada grávida, numa localização correspondente em seu ventre ao do Menino. Esse hieróglifo asteca, representando o Quinto Sol nascido até então pelos sacrifícios humanos, traz aqui a homenagem da antiga mitologia sacrificial à Incarnação redentora. É adesão, abolição, expressa com uma extraordinária economia de meios. Aos índios que vêm orar para Nossa Senhora de Guadalupe era oferecido apenas esse tênue símbolo de confluência, inteiramente dominado pela sedução da pura afirmação marial inicial.
 
Em seguida, a mensagem de Nossa Senhora de Guadalupe é, desde a origem, a da Virgem Maria; e pura e simplesmente, por ela, a do “verdadeiro Deus”. No Nican Mopohua118, manuscrito nahuatl119 que apresenta desde a metade do século XVI o relato da aparição, a Virgem diz a Juan Diego que ela desejava que ele construísse sobre o lugar uma igreja (como ela dirá em Lourdes), mas para a glória de seu Filho: “Lá eu O mostrarei, eu O exaltarei, eu O darei aos homens”.
 
Não há mais nenhum astequismo nas menções que nos foram conservadas das primeiras manifestações do culto devotado à Nossa Senhora de Guadalupe em seguida. Desde 1537, um certo Bartolomé López, habitante da longínqua cidade de Colima, fundada próximo do Pacífico pelos colonos do México, diz em seu testamento: “Peço que se celebrem na casa de Nossa Senhora de Guadalupe cem missas para o repouso de minha alma”. E, em 1563, o cacique índio da próxima Teotihuacán também traz de maneira similar em seu testamento: “Mando que se dêem quatro pesos de esmola a Nossa Senhora de Guadalupe, para que o padre que reside nessa igreja reze missas para mim”.
 
UMA IRRADIAÇÃO MIRACULOSA
 
Assim se confirma, pela própria Nossa Senhora de Guadalupe e por seu culto, a verdade profundamente católica, desde a origem120, do cristianismo indígena que querem nos fazer crer que está submerso em “superstições mágicas121” de origem mitológica pré-colombiana, a ponto de ser apenas um tipo de “utilização” paganista irrepreensível. De resto, como o culto de Nossa Senhora de Guadalupe, se houve essa marca astequista que nos dizem, teria inflamado os espanhóis da colônia desde do século XVI, como o testemunha o inglês Miles Philips nos anos 1570122; depois inflamado as multidões do restante da América Latina que o espaço, assim como o tempo, separam absolutamente da mitologia asteca?
 
Todos nossos leitores que puderem ler espanhol esclarecerão sua religião — é o caso de dizer — sobre esse grande caso de Nossa Senhora de Guadalupe, reportando-se à obra de Fidel de Jesús Chauvet, historiador franciscano: El Culto Guadalupano (O Culto Guadalupano), publicada no México em 1978. Ainda hoje, multidões indígenas que se apertam no átrio da basílica de Guadalupe e nela cantam a “perfeita e sempre Virgem Maria, mãe do verdadeiro Deus”. E o arquiteto não crente, autor do Museu Nacional Mexicano de Antropologia, dedicado prioritariamente às culturas asteca e maia, depois autor da atual basílica de Guadalupe, testemunhou ele mesmo a irradiação miraculosa dispensada pela “imagem”: em 1976, esse Pedro Ramírez, até então laicista paganizante, após ter estudado a “imagem de perto” converteu-se ao catolicismo.
 
CONCLUSÃO
 
Em breve, a história da conquista cristã da América deve ser libertada — esse dever sendo naturalmente primeiro dos católicos — da “lenda que, até hoje, enegreceu com sua fuligem a figura dos conquistadores”, para retomar a fórmula do bem pouco suspeito de hispanismo conformista Américo Castro.
 
A conquista foi, de fato, muito próxima, na ordem leiga e na ordem espiritual, do “mais nobre tipo de cruzada humana, universal e generosa que jamais existiu”, como a vê, com algum excesso de lirismo, o recente mestre da historiografia mexicana José Vasconcelos. E é incontestável, como nota em 1974 esse outro mestre da historiografia mexicana, Octavio Paz, que “depois da segunda metade do século XVI até o fim do século XVIII, a Nova Espanha foi uma sociedade estável, pacífica e próspera”.
 
O preço foi seguramente o sufocamento da “selvageria sinistra de influência asteca”, para ficarmos no México e para tomar os termos de Arnold Toynbee. Em seu julgamento, a recompensa foram as “obras magníficas, alegres” da arte indo-cristão, esse testemunho até aqui desconhecido. A conquista, além das adesões imediatas aos conquistadores de numerosos povos indígenas, foi, portanto, uma libertação e uma libertação cristã123, consciente e apaixonada, como o vimos. Os neo-paganizantes sabem muito bem, embora pouco digam. Jacques Soustelle que, na revista Évasion mexicaines 1980 (p. 10), escreve a propósito dos astecas e de seus maciços sacrifícios humanos124: “Pode-se imaginar onde isso os teriam conduzido se os espanhóis não tivessem chegado [...]. A hecatombe era de tal ordem que teria acabado por ameaçar o equilíbrio demográfico, e eles teriam, sem dúvida, tido de cessar o holocausto para não desaparecerem”.
 
A única questão verdadeira que se pode levantar sobre a conquista é esta: os espanhóis do Padroado, particularmente a Igreja da Espanha, não protegeram demais os índios? De fato, o respeito de sua propriedade das terras e de suas instituições locais, que começa desde as encomiendas, e se completou com a supressão progressiva dessas, chegou ao fim da época colonial ao retorno dos índios a si mesmos. E esse retorno os mantém freqüentemente sob o domínio de suas piores tradições econômicas, sociais e religiosas, ao mesmo tempo que os separa de todas as incitações de progresso.
 
É isso que nota, no início do século XIX, no Michoacan mexicano, o bispo liberal e “filósofo” Abad y Queipo125. “Sua separação, escreve ele, privou os índios das luzes e dos auxílios que teriam podido receber da comunicação e da colaboração com as outras classes da sociedade colonial. Isolados por sua língua e por seu governo [próprio] o mais inútil e tirânico, eles se perpetuaram em seus costumes, usos, superstições grosseiras que mantiveram misteriosamente, em cada cidade, oito ou dez velhos índios vivendo na ociosidade às custas do suor dos outros, e os dominando pelo mais duro dos despotismos”. Assim, os defensores da encomienda126, como meio de comunicação e de promoção tiveram razão. Assim, aqueles religiosos encarniçados demais na repressão das tradições “idólatras” estiveram menos errados do que se vai arrepender-se. Assim, os juízes desdenhosos do catolicismo indígena deveriam se dizer que, em condições tão desfavoráveis (bem pouco aquelas de uma “cristianização autoritária” à qual, além disso, a Inquisição soube se recusar), é de todo admirável que esse catolicismo tenha sabido persistir, e se desenvolver, como se oferece hoje a nós.
 
Se a irradiação vinda da miraculosa Imagem de Guadalupe, reverenciada no local em 1979 por João Paulo II, certamente atinge muitos, o Padroado, cuja Virgem de Guadalupe foi ela mesma a patrona, pode apresentar diante da história um balanço poderosamente positivo127. A conquista da América terminou, cada dia recomeçado, sobre a justiça, a caridade128, a santidade e o fervor; na liberdade indígena que, apenas, foi talvez excessiva.
 
De resto e em definitivo, se essa liberdade indígena sobreviveu, em sua condição mais fundamental que é a da sobrevivência física das multidões indígenas, é à Igreja que isso se deve. Se, por impossível, a Espanha (com Portugal) tivesse passado à Reforma, teria se tornado puritana e teria aplicado, portanto, os mesmos princípios que os puritanos da América do Norte (o “índio era Satã”), um imenso genocídio teria riscado do mapa-mundi a totalidade dos povos indígenas. Os historiadores não teriam tido de se dar ao trabalho de erigir interpretações desobrigantes da encomienda, da evangelização ou da Imagem de Guadalupe. Bastar-lhes-ia, como aos sociólogos, armarem-se da máquina fotográfica do turista ingênuo. Teriam podido, assim, ao acaso de microscópicas “reservas indígenas” pontilhadas de longe em longe do México à Terra do Fogo, fixar sobre a película o pobre rebanho de um quarteirão de sobreviventes testemunhas, um quarteirão so typical. Las Casas teria tido razão129: seus “números incríveis” teriam, enfim, se tornado a realidade.
 
De fato, desde antes de 1500 com Isabela a Católica, desde 1537 com Paulo III, a bela fraternidade multirracial de nosso mundo do século XX foi uma modernidade da Igreja, durante muito tempo exclusiva.
 
Capítulo do livro “Église au risque de l´histoire”, de Jean Dumont”
Traduzido por Joel Tang para Editora Permanência.

  1. 1. A “doação” e o Padroado: A “doação” foi feita pela bula papal Inter cetera I, de abril de 1493, embora pós-datada de 3 de maio do mesmo ano, concedendo aos reis de Espanha todas as terras descobertas e a descobrir; e, pela bula Inter cetera II, de junho de 1493, embora antedatada de 4 de maio, que precisava a linha de demarcação entre essa “doação” em favor da Espanha e a concedida a Portugal. O papa era então reconhecido, pelos soberanos cristãos, como o dispensador da soberania temporal, onde nenhum direito anterior a estabelecia, a título de sua “jurisdição imediata e universal”. Pouco importa, no que se refere a nosso assunto, que essa “doação” fosse, de fato, uma “investidura feudal”, como sustentou o especialista Staedler: a conquista da América foi, de qualquer forma, realizada por delegação da Igreja, sob o “direito eminente” desta. Assim, à “doação” acrescenta-se o Padroado. As bulas papais Eximie devotionis, Piis fidelium et Universalis Ecclesiae, que se sucederam de 1493 a 1508, remetiam aos cuidados e às decisões da Coroa espanhola o envio de missionários para as novas terras, a evangelização, a fundação de locais de culto, sua dotação de benefícios, a fundação de dioceses e sua eventual modificação, a escolha dos bispos que seriam nomeados pelo papa, o recolhimento do dízimo sobre todos os produtos obtidos pelos habitantes, tanto indígenas, quanto imigrantes europeus. Padroado semelhante estabelecia um verdadeiro Vicariato real para todos os assuntos religiosos do continente americano. Esse Vicariato inicialmente se exerceu, particularmente, pelo canal do arcebispo de Sevilha, promovido a “Patriarca das Índias”, cujos bispos na América foram os sufragistas. O arcebispo de Sevilha era freqüentemente presidente, ao mesmo tempo, de um ou mais Conselhos reais. Atualizado nesse ponto por Tarsicio de Azcona, Isabel la Católica, estudio crítico (Madri, 1964, pp. 688 a 692 e 704 a 707).
  2. 2. Paris (Fayard), 1978.
  3. 3. Toulouse (Privat), 1979. É preciso dizer, para desencargo dos autores dessas recentes Histórias da Igreja, que a obra francesa mais ampla sobre esse assunto, e publicada por uma editora católica, também se mostra rica em imputações errôneas, apesar de um simpático, mas superficial, esforço de objetividade. Trata-se de Barthélémy de Las Casas. L’Évangile et la force, de Marianne Mahn-Lot (Paris, Cerf, 1964). Por mal conhecimento da documentação direta, a autora também considera o sistema da “comenda” como uma repartição de terras despojando os índios. Além disso, por focalizar apenas teses lascasianas, a autora silencia sobre as magníficas realidades positivas da conquista espiritual, cujos testemunhos iremos reproduzir.
  4. 4. Comendadorias: A tradução em português da palavra encomienda (feudo leigo) por “comenda” (benefícios eclesiástico) dá uma idéia falsa dessa instituição. “Comendadoria” é uma tradução mais exata. “A encomienda indígena foi uma instituição aparentada ao patronato romano, aos feudos medievais e, mais imediatamente, às senhorias espanholas, conforme expõe brilhantemente Solórzano Pereira no século XVII” (Silvio Zavala). Precisamente, a encomienda indígena é a transposição para a América das “senhorias puramente jurisdicionais” do século XVI espanhol, onde o senhor não possuía nenhuma terra, mas recebia do rei, em privilégio, o poder de governo e o benefício das rendas ou impostos que os habitantes deviam ao monarca. Essas “senhorias puramente jurisdicionais” são descritas por Rafael Altamira, Historia de España, Barcelona 1900-1906, t. III, p. 192. A própria palavra encomiendación (posto em encomienda) é empregada para um tipo próximo de senhorias espanholas, as senhorias livres”, por um outro grande historiador espanhol, Claudio Sánchez Albornoz (Anuario de Historia del Derecho español, Madri 1924, I, pp. 158 e seguintes). Todavia, as encomiendas indígenas eram apenas senhorias limitadas, irregulares, pelo fato de não gozarem de dois atributos fundamentais da senhoria: a perpetuidade e a jurisdição. É um outro erro confundir, como freqüentemente é feito, a encomienda com o repartimiento territorial, cujo direito havia sido concedido nas Antilhas a Cristóvão Colombo pela carta-patente de 22 de julho de 1497. Marienne Mahn-Lot também cai nesse erro (op. cit., pp. 15, 149, 201), induzida nele pelas imprecisões mantidas por Las Casas sobre essas realidades. O repartimiento era a posse plena e perpétua de terras em benefício de um espanhol. As atas precisam, desde esse momento, que certos espanhóis recebem, de maneira distinta, a propriedade perpétua e transferível de terras por repartimiento territorial e o poder sobre os índios, com recebimento de tributo, por encomienda revogável e não transferível (Colección Paso y Troncoso I, 30). Nas terras firmes da América, houve repartimientos apenas nas terras desabitadas (despoblados) ou antigas terras reais pré-hispânicas e “contanto que seja sem prejuízo as heranças dos índios”, conforme estipulam os atos. Repartimientos territoriais e encomiendas são mutuamente exclusivos. Se há heranças de índios sobre as quais possa ser assentada uma encomienda, não pode haver repartimiento territorial. Ou se, apesar da pesquisa prévia obrigatória, houver um deles, os juízes os anulam a pedido dos índios. Veremos um exemplo. Nenhuma dessas precisões é vã: não se pode julgar sem conhecer, com exatidão, todas as peças do processo.
  5. 5. Nova Iorque, 1923, p. 45.
  6. 6. Chapel Hill, 1937, p. 10.
  7. 7. Um sistema de evangelização: Desde as primeiras concessões de encomiendas no México por Cortés, a concessão se fazia formalmente, com respeito ao titular, “encarregado de instruir os índios nas coisas de nossa santa fé católica, aplicando toda a vigilância e solicitude possíveis e necessárias” (Archives des Indes, P.R. 1-2-21).
  8. 8. Título sempre revogável: As concessões de encomiendas se faziam “pelo tempo que for da vontade de Sua Majestade que vós as tenham em comendadoria” (Harkness collection, IX, fl. 117).
  9. 9. Silvio Zavala: Já era o autor do tratado clássico sobre as comendadorias da conquista, La Encomienda indiana, publicado em Madri em 1935. Com base em todas as evidências, a maior parte dos historiadores franceses, se conhecem esse tratado, ignoram o complemento muito importante que nós citamos, publicado cinco anos mais tarde em plena guerra, no México. Mesmo o excelente Marcel Bataillon, “O senhor príncipe dos hispanistas”, refere-se apenas à primeira obra em seus Études sur Bartolomé de Las Casas, em 1965.
  10. 10. Op. cit., México, 1940, p. 8. Como a obra não foi traduzida para o francês, traduzimos aqui, nós mesmos, os textos citados, assim como os de obras americanas anteriormente assinaladas e de outras obras espanholas ou anglo-saxônicas citadas adiante.
  11. 11. Morte de Cortés. A atual historiografia faz desse antigo estudante de Salamanca um soldado sanguinário, morto “desprezado e esquecido”. Na realidade, a primeira proteção dos índios (junta de 1524) e a primeira evangelização lhe são devidas. Suas cartas a Carlos V, verdadeira história da conquista, testemunham a mesma humanidade e caridade cristã. e, no ano anterior à sua morte, foi saldado com o título de “novo São Paulo” pelo porta-voz do humanismo espanhol, Francisco Cervantés de Salazar, na abertura de uma obra que reune os nomes dos mais brilhantes espíritos espanhóis da época; além do precedente, o reitor de Salamanca, Pérez de Oliva, o grande historiador e lingüista, Ambrosio de Morales, o modelo do humanismo tolediano, Alejo Venegas, etc. Obras apresentadas por Francisco Cervantés de Salazar (Sevilha, 1546).
  12. 12. Desapossamento. O erro da maioria dos historiadores, explica Zavala, se deve ao fato de, se a encomienda é embora chamada na época doação (revogável) de terras (tierras) ou aldeias (pueblos), pueblo quer dizer habitantes, povo, e não território, e tierra “não significa sempre, no século XVI, solo e propriedade no sentido moderno”, mas também, simplesmente, aldeias, províncias, pelo fato de serem habitadas. Assim, acrescenta Zavala, erram “aqueles que lêem ocasionalmente os documentos dessa época, sem a técnica [lingüística e jurídica] necessária para os compreender”.
  13. 13. A Igreja inspiradora: É ela, em 1524, no México, com a primeira junta de dezenove religiosos, cinco padres seculares e seis leigos, que reune Cortés, como Alto Conselho da conquista, que marca o desaparecimento do império asteca. É ela, sempre no México, por seu primeiro bispo de Tlaxcala que provoca a publicação da bula Sublimis Deus, na qual o papa Paulo III, em 2 de junho de 1537, escreve: “Os índios são verdadeiros homens [...] capazes de receber a fé cristã [...] pelo exemplo de uma vida virtuosa [...]. Eles não devem ser privados nem de sua liberdade nem do gozo de seus bens”.
  14. 14. Comendadoria ou não. “Todas as aldeias de índios que há na Nova Espanha, tanto aquelas erguidas por Sua Majestade, quanto as de encomiendas, serão taxadas conforme as disposições tomadas em matéria de tributo” (Relato Geral das “Índias” do contador Antonio de Villegas, cerca de 1560). As aldeias de encomiendas eram, além disso, cada vez mais a minoria. Em todas as “Índias”, da Flórida ao Chile, havia, em 1573, apenas 4.000 comendadorias.
  15. 15. Isenções. Veremos que, contrariamente ao que se passava no império asteca, os mais pobres não pagavam tributo. As isenções eram até muito grandes. Em 1549, a audiencia dos Confines havia fixado, por exemplo, que, no Yucatan, seriam isentos de tributo “os viúvos, as viúvas, os jovens celibatários, os doentes e os velhos” (Relación geográfica de Chuaca y de Chechimila). A essas acrescentavam-se freqüentemente as isenções que os religiosos decidiam de sua própria autoridade, para os índios que lhes pareciam dignos ou lhes serviam, o que reclama um enviado de Filipe II, o licenciado Valderrama. Anteriormente, o tributo da época pré-hispânica era um tributo “real”, territorial, devido a título das terras sobre as quais viviam os índios; quer fossem ricos ou pobres, fora do estado de contribuir em razão da idade, da morte do consorte ou de doença, não entrava portanto em linha de conta. Por outro lado, o tributo da época espanhola era, do índio à Coroa espanhola, um tributo “pessoal”, por habitante, o que permitia isentar essa ou aquela categoria de habitantes ou aquela pessoa (Silvio Zavala, op. cit., pp. 59 a 62, nota). As encomiendas indígenas se diferenciavam ainda das repartições de terras feitas na Andaluzia, durante a Reconquista, às quais Marianne Mahn-Lot (op. cit., p. 15) lhes assemelha erroneamente. Pois todos os tributos reais ou senhoriais pagos na Espanha, as infurciones eram tributos territoriais, “reais”, como o tributo pré-hispânico na América. Em sua vontade de favorecer os índios, a Coroa de Espanha manteve firmemente essa diferença, apesar das petições que lhe eram feitas para a aplicação na América do tributo metropolitano, particularmente por seu enviado, o licenciado Valderrama. Novamente, não é possível tratar com verdade e justiça isso tudo negligenciando as instituições concretas, e o verdadeiro caráter das situações históricas que lhes deram origem. Um e outro excluem aqui a confusão proposta por Marianne Mahn-Lot. Pois a Reconquista da Andaluzia dos Mouros e a Conquista da América indígena são dois fenômenos históricos diferentes, portadores de instituições igualmente diferentes. A Reconquista visa a recuperar terras que foram maciçamente retiradas dos hispano-visigodos pelos conquistadores árabes e bérberes, tendo instalado suas tribos no local em uma colonização territorial generalizada; as instituições que exprimem essa Reconquista são, portanto, essencialmente territoriais, “reais”. A Conquista da América visa a estabelecer sobre os povos indígenas uma soberania espanhola, concebida, desde Isabel, confirmada por Carlos V e Paulo III, no respeito aos bens nativos dos índios, de suas terras e para a evangelização; as instituições que exprimem essa conquista-protetorado, de colonização territorial secundária, são, portanto, com relação aos índios, essencialmente “pessoais”.
  16. 16. Ramón Carande, Carlos V y sus banqueros (Barcelona, 1978, t. I, pp. 570, 571, 574).
  17. 17. Corvéias. Eram controladas pelos inspetores das audiencias, como o mostra concretamente Zavala (op. cit., pp. 38-40). Os abusos não foram, portanto, a generalidade que se disse. Essas corvéias não eram de forma alguma, no México, por exemplo, uma invenção, uma exação dos espanhóis. Elas eram o sistema social e econômico indígena que os espanhóis encontraram no local. Os vecinos, tendo recebido disposição de terras contra tributo, deviam ao senhor indígena serviço (corvéia) de artesãos, caçadores, músicos, dançarinos, e certamente combatentes em caso de guerra (freqüente). Os próprios vecinos se beneficiavam do serviço, corvéia generalizada, dos homens e mulheres que eles aceitavam que instalassem suas cabanas em suas terras. A totalidade do serviço doméstico e do cultivo de terras era assegurado por essas corvéias, que nada limitava, contrariamente ao que será na encomienda. Compreendem-se aqui os transportes (Colección docum. inéd. Archivo de Indias, tomo III, p. 535).
  18. 18. Silvio Zavala, op. cit., p. 29.
  19. 19. A incerteza de sua sorte. Essa incerteza é confirmada por uma multidão de testemunhas autorizadas da época. Já o mostrava, desde o século XVI, o primeiro grande vice-rei do México, Antonio de Mendoza. “O que lhe causava maior preocupação eram nossos próprios filhos e netos, escreve um de seus íntimos. Eles só podiam ser numerosos e morrer de fome, porque as encomiendas terminavam”. No Peru, Cristóbal Alvárez de Carvajal fez uma constatação similar e ampliada, no início do século XVII: “Elas são inumeráveis aos índios, e isso não é novo, aqueles que vêem terminar sua fortuna na mesma vida em que a ganharam; a que dura mais não chega ao quarto possuidor”. Ver Américo Castro, Cervantés y los casticismos españoles (Madri 1966, pp. 317, 318, 327).
  20. 20. Idem, p. 33.
  21. 21. Idem, p. 34.
  22. 22. Idem, p. 34.
  23. 23. Sem povoamento. Aqueles que crêem na onda de exploradores espanhóis na América da conquista se corrigirão rapidamente tomando conhecimento dos números ínfimos da imigração espanhola para as “Índias”: 27.787 pessoas em cinqüenta anos, de 1509 a 1559, os mesmos anos da conquista ampliada da Flórida ao estreito de Magalhães. 500 pessoas por ano para esses imensos territórios! Ver Ramón Carande, Carlos V y sus banqueros (Barcelona 1978, tomo I, pp. 24-25).
  24. 24. Rendimento econômico irrisório: Tudo o que escrevemos não é produto de uma visão abstrata, mas de constatações e testemunhos concretos. Constatação do estado dos ejidos de Sonora, feita em companhia de um especialista agrônomo do renome mundial. Testemunho pessoal de um engenheiro mexicano de renome internacional, que, por vontade cristã de serviço, passou dezenove anos de sua vida a ajudar os índios dos ejidos, mas que teve de renunciar, pois seus esforços foram em vão.
  25. 25. Protetorado. A conquista espanhola, depois a colonização em grande parte, são apenas um “rede irregular” de “malhas finas”. Elas têm “necessidade de uma ocupação prévia do solo por uma sociedade indígena”. São, portanto, o oposto de uma colonização de expropriação de tipo norte-americana. As palavras e frases citadas entre aspas são de Pierre Chaunu (Séville et l’Atlantique, Paris, 1959, t. VIII, pp. 145 e 146).
  26. 26. O testamento de Isabel a Católica: “Suplico ao rei meu senhor muito afetuosamente e recomendo e ordeno à princesa minha filha e ao príncipe seu marido [...] a não admitir nem permitir que os indígenas das ilhas e terra firme, conquistadas ou por conquistar, sofram o menor dano em suas pessoas e em seus bens, mas, ao contrário, a mandar que sejam tratados com justiça e humanidade, a reparar os danos que possam ter sofrido”. Codicilho do testamento da rainha de Castela, redigido em Medina del Campo, em 23 de novembro de 1504.
  27. 27. Tarsicio de Azcona. Isabel la Católica, estudio crítico (Madri, 1964, pp. 695 e 696).
  28. 28. Idem, p. 698.
  29. 29. Idem, p. 699. É o que lembrará Carlos V a Cortés em 1523 (cédula de 26 de junho).
  30. 30. Aldeias andaluzas. Assim, três ruas de Vejer de la Frontera, vasto município à la romaine da atual província de Cádiz. Os camponeses e aldeões, como os índios da América em seus pueblos, aí dispunham, e aí dispõem hoje, de terras coletivas, estabelecidas pelo rei santo Fernando, desde a Reconquista. Terras cujo direito de exploração era e é sorteado entre os habitantes a cada quatro anos: as hazas de suerte. São essas terras coletivas que o Duque de Medina Sidonia havia tentado abarcar. Por queixa de um simples camponês, como será freqüente na América a queixa de um simples índio, os oidores da chancelaria de Granada, em 1542, obrigaram o duque a restituir a disposição das hazas aos habitantes. Ver Antonio Morillo Crespo, Vejer de la Frontera y su comarca (Institut d’études gaditanes, Cádiz, 1975, pp. 144 a 158).
  31. 31. Proteção legal dos índios. Infelizmente não ocorre o mesmo no Brasil português. Sua lei fica muito tempo na infância, seus juízes pouco numerosos e sem autoridade. Como escreveu o bem-aventurado jesuíta Inácio de Azevedo, lá “os índios só têm a nós [os missionários] para defendê-los”. Ainda nos séculos XVIII e XIX, as exações com relação aos índios, por parte dos aventureiros da colonização, são freqüentes e abomináveis. O estabelecimento das famosas “reduções” indígenas do Paraguai brasileiro, pelos jesuítas, desde o fim do século XVI, é particularmente um substituto da proteção legal que faltava.
  32. 32. Estado “muito favorecido”. Não é um paradoxo, é uma realidade. Aqueles que duvidarem, leiam, por exemplo, com proveito a página 54 da obra citada de Zavala, onde se vêem os juizados darem razão aos índios contra os criadores espanhóis, de maneira perfeitamente retrógrada e injusta. Não cremos, de fato, que os juizados tenham defendido assim os verdadeiros interesses dos índios, contrariamente ao que crêem certos historiadores americanos, seguidos por Pierre Chanu, que afirmam que “o gado afasta o homem”. Com relação a isso, há muito tempo que o homem havia desparecido de nosso Charolais, por exemplo. O gado só se arriscava a afastar a deplorável cultura neolítica dos índios, baseada na queimada. Essa cultura enfiava um grão de milho com um bastão a cada dois ou três metros quadrados, previamente queimados, exigindo assim superfícies enormes, incessantemente renovadas e praticamente esterilizadas. De fato, como nos dirão da colonização de uma maneira mais genérica, os juizados favoreceram demais os índios: sua defesa estática perpetuou o atraso indígena. A ponto de essa cultura neolítica baseada em queimadas ser ainda praticada hoje pelos índios, como pudemos constatar em 1980, à vista da antiga catedral de Las Casas, esse outro protetor excessivo dos índios, perto de San Cristóbal de Chiapas. Serviram verdadeiramente aos índios aqueles que, como o cura de Pinampiro (Quito), de quem falaremos, incitaram-nos a aprender dos espanhóis a se tornarem eles mesmos agricultores. E a praticar, graças a seus bois, uma verdadeira agricultura de semeadura cerrada, pelo trabalho e a adubação, que somente o gado pode permitir. Esse gado que também pode, sozinho, obter uma alimentação abundante em leite e carne, que faltava à raça indígena, e ainda falta cruelmente.
  33. 33. Op. cit., traduzida em espanhol nas Relaciones de varios viajeros ingleses en la ciudad de México, apresentadas por Joaquin Garcia Icazbelceta (Madri, 1963, pp. 63, 69, 70).
  34. 34. O antigo poder indígena. Esse poder, em seus grandes impérios, era em toda parte muito opressivo, não apenas política e religiosamente, mas também socialmente. Assim, entre os Incas, reinava a segregação: justiça para os pobres, justiça para os aristocratas, e até pontes diferentes entre eles. Sem falar dos escravos, a dependência do camponês era total: havia apenas um direito de usufruto, revogável, não apenas das terras, mas também da casa e de seu jardim. Podia ser, e era muito freqüentemente, deportado a outro extremo do império, a bel-prazer dos funcionários do império. Os astecas também tinham uma nobreza muito privilegiada, uma classe de escravos e uma monarquia ávida, perpetuamente voltada para a guerra de conquista, como a monarquia inca. Ao que se ajunta, entre eles, uma opressão religiosa, para o serviço de insaciáveis sacrifícios humanos, particularmente tirânica.
  35. 35. Genocídio do povo indígena. Esse pretenso genocídio, com afirmação generalizada e exagerada de exações particulares e limitadas, fez floreios em nossas mídias: assim Alain Decaux a contou na televisão, na Antenne 2, em 27 de fevereiro de 1980. No texto escrito essa emissão que se encontra em Alain Decaux raconte 3 (1980), lê-se que Las Casas foi acusado de erro de exagero, os historiadores americanos de Berkeley confirmaram recentemente os números de vítimas apresentadas pelo dominicano. Alain Decaux dá, para referência com relação a isso a obra de Marcel Bataillon e André Saint-Lu, Las Casas et la défense des Indiens, publicada em 1971. Ora, se consultada essa obra, lê-se que os historiadores-demógrafos de Berkeley confirmaram o “testemunho de Las Casas sobre a catástrofe demográfica americana”. O que é completamente diferente, como mostraremos, essa catástrofe sendo resultado principalmente de epidemias maciças. A mesma obra não deixa de pôr em relevo, por outro lado, os “exageros quantitativos” de Las Casas quanto às vítimas diretas dos espanhóis, devidas a “sua ignorância ou subestimação de aspectos econômicas e fisiológicas”.
  36. 36. “La légende noire antihispanique”. Revue de Psychologie des peuples, t. XIX, 1964, p. 223.
  37. 37. Números incríveis: Na Brevíssima Relação, Las Casas faz de Cortés, que não é um sanguinário, um matador capaz, em uma única corte de Cholula, de fazer passar pela espada, cantando um velho romance, “cinco ou seis mil homens!”. Simplesmente por pura maldade, para “fazer tremer essas doces ovelhas”... Em sua História apologética, ele imagina que os templos indígenas destruídos pelos espanhóis foram “mais de dois milhões!” etc.
  38. 38. Em todos os aspectos falso. Com relação ao caso de Cholula, o companheiro de Cortés, Bernardino Vázquez de Tapia, em uma Relacion reencontrada e publicada apenas em 1939, precisou bem o que realmente ocorreu. Os homens de Cortés, em perigo de serem surpreendidos pelos habitantes de Cholula onde passavam a noite, e por um exército asteca que chegou diante da cidade, se decidem por um contra-ataque preventivo. Esse contra-ataque foi uma proeza não apenas de todos os espanhóis, mas também de seus aliados muito mais numerosos, os índios tlaxcaltecas. Os historiadores em geral pensam que as perdas totais de vidas em Cholula não ultrapassaram três mil pessoas nesse ato de guerra, não um massacre gratuito. Ainda mais: Cortés fez de tudo para evitar esse ato de guerra. Estando em Tlaxcala entre seus aliados indígenas, portanto, antes de chegar a Cholula, Cortés havia enviado uma embaixada pacífica ao imperador asteca Moctezuma, no México, composta de dois de seus principais adjuntos, Pedro de Alvarado e nosso cronista Bernardino Vázquez de Tapia. Seus próprios soldados murmuraram contra o que consideravam uma imprudência, pondo em grande perigo dois valorosos capitães. Só se sabe com precisão graças ao relato dado por este último em sua crônica tão recentemente publicada. Las Casas, como os outros historiadores até agora, ignoraram que Moctezuma recusou à embaixada do conquistador a entrada no México, que os dois embaixadores se juntam, portanto, a Cortés sem ter podido cumprir sua missão pacífica. E que eles constataram, então, em Cholula, onde passaram para seguir sua viagem ao México, as evidentes disposições de morte tomadas pelos habitantes de Cholula, em ligação com as pessoas do México, contra os homens de Cortés e seus aliados tlaxcaltecas. Até, diz Vázquez de Tapia, pela camuflagem dos caminhos normais que eles mesmos haviam percorrido pouco antes e pela abertura de falsos caminhos que eles haviam organizado para a emboscada, “como grandes velhacos” (muy bellacos), como os alojamentos que ofereceram a Cortés e aos seus, também diferentes daqueles que os embaixadores do conquistador haviam conhecido. Esses foram, na realidade, o alegre massacrador Cortés e as “doces ovelhas” que nos pinta Las Casas (Bernardino Vázquez de Tapia, Relación del Conquistador [...], publicado pela primeira vez por Manuel Romero de Terreros, membro correspondente da Academia Real de História de Madri, México, 1939).
  39. 39. Op. cit., p. 273.
  40. 40. Autovalorização. A apologia recente de Las Casas pelo professor sevilhenho Giménez Fernández, antigo ministro e grande apaixonado politicamente, faz principalmente, da mesma forma, “descobrir coincidências entre essas duas fogosas personalidades”, como escreve uma enciclopédia espanhola, sevilhenha, publicada em 1980.
  41. 41. Historia de las Indias, Biblioteca de Autores Espanhóis, t. XCV, pp. xi e XCII. Em espanhol.
  42. 42. “Les hyperboles du P. Las Casas”, Revue de la faculté des humanités de San Luis Potosi, 1960, t. II, p. 55. Em espanhol.
  43. 43. “Las Casas et al destruction des Indes”, Études, nº 4, 1927.
  44. 44. Missionalia hipánica (Madri, 1947, nº 10, p. 43).
  45. 45. As línguas indígenas. O religioso franciscano francês Mathurin Cordier (Cordero), um dos primeiros evangelizadores do Michoacan, chegou a conhecer não menos que sete línguas indígenas. Particularmente o tarasco, em que ele publicou inúmeras obras, inclusive uma Gramática e vocabulário da dita língua.
  46. 46. Arizona. O fundador das missões de Sonora e do Arizona, no tempo da colonização espanhola, o padre jesuíta Kino (1645-1711), é hoje celebrado no Arizona americano como um herói nacional. Sua estátua se ergue, desde 1965, na National Hall of Statuary (Galeria Nacionado de Estátuas) de Washington, por decisão do presidente Kennedy. Duas outras de suas estátuas se eguem diante do Capitólio do Estado do Arizona, em Fênix, e na entrada da capital do Sonora mexicano, Hermosillo. Ora, em sua notável vitória, tanto prática (pelo desenvolvimento agrícola), quanto humana (pela afeição obtida dos índios), e artística e espiritual, o padre Kino, se sofrera a brutalidade espontânea de um oficial espanhol, também havia sido ajudado por muitos outros oficiais, que foram os protetores de seus cristãos e os companheiros de suas viagens de exploração e de evangelização até a porta da Califórnia, na embocadura do Colorado que Kino foi o primeiro europeu a contemplar. O padre também havia sido ajudado tanto pelo presidente da audiencia de Guadalajara, Zeballos, quanto pelo vice-rei, Conde de Paredes, e pelas cédulas do rei Carlos II. A homenagem que lhe é prestada é, portanto, típica: a realidade admirável da evangelização hispano-católica se impõe pouco a pouco aos espíritos de nossos contemporâneos. Mesmo em um país de índole reformada, é verdade que no Arizona não se pode enganar: tem-se o nariz e os olhos sobre os fatos. O fato, por exemplo, da graciosa missão de San Javier del Bac, na porta de Tucson, segunda cidade do Estado. E uma missão fundada por Kino, alegremente decorada pelos índios, e onde os índios Papagos da reserva, que começa lá, rezam e cantam sempre em espanhol, após cento e quarenta anos de ocupação ianque.
  47. 47. Charles Polzer, A Kino Guide (Tucson, 1976, 5ª edição, p. 23).
  48. 48. Puramente lascasiana. “A palavra “conquista” aplicada às terras e reinos dos índios descobertos ou por descobrir é um vocábulo digno de maometanos, inícuo, tirânico, infernal [...]. Quanto às terras já descobertas, mas onde ainda não se penetrou [...], que os religiosos comecem a ganhar seus habitantes pela pregação e pelas boas obras”, havia escrito Las Casas em 1543, endereçando-se ao poder real espanhol em seu Memorial de remedios (Memória dos remédios). Com a coroa espanhola se tornando completamente lascasiana, Filipe II havia ordenado em 1573: “Que as descobertas não tomem o nome de conquistas [...]. Onde os pregadores forem em número suficiente para pacificar e converter os índios, que se não consinta em deixar penetrar outras pessoas que possam comprometer essas conversões”. A situação na Flórida-Geórgia, no fim do século XVI, era o resultado dessas incitações lascasianas transformadas em ordens reais. Desde 1548, Las Casas havia, além disso, ajudado na preparação da primeiríssima expedição de evangelização pacífica na Flórida, a de um outro dominicano, Luis Cáncer.
  49. 49. Oito jesuítas, tendo ido evangelizar sem nenhuma proteção os índios do interior, foram por estes massacrados em 4 e 8 de fevereiro de 1571, antes de ter podido converter um único. Seis meses antes dessa matança, São Francisco Bórgia, geral dos jesuítas, havia constatado que não havia “nenhuma esperança de ganhar os selvagens da Flórida para a fé”, dessa maneira (James Brodrick, Origines de jésuites, Paris, 1950, t. II, pp. 168 a 170).
  50. 50. Os termos do memorial. Nós os extraímos do rico dossier de peças de epóca tirado dos “Arquivos gerais das Índias” e publicado por Missionalia hispánica, ano XII (1955), nº 35, páginas 291 a 390, sob o título “Mártires franciscanos na Geórgia”. Essa mesma Geórgia, transformada em um dos Estados Unidos, onde não subsiste um só desses índios, tão numerosos na época espanhola. Eles foram todos liquidados pelos reformados que reeditaram abundantemente as acusações de Las Casas contra os católicos espanhóis. Acusações que tantos outros católicos, enganados por essa propaganda, foram induzidos a levar a sério.
  51. 51. Nº 9, Madri, 1946, p. 472.
  52. 52. Defesa e promoção dos índios. O tomo 1 começa com o relato da primeira junta religiosa, padres e leigos, reunida por Cortés, seguido por uma informação testimonial dos tempos da conquista, pela carta de apelo do primeiro bispo de Tlaxcala ao papa, pela bula Sublimis Deus, pelos decretos dos concílios mexicanos de 1555 e 1565, por uma história biográfica dos bispos das dioceses mexicanas e de seu serviço aos índios (Las Casas não é citado aqui), por um “Aviso da boa conduta dos curas na América”, pelos “Privilégios dos índios” etc. O tomo II apresenta particularmente os decretos do concílio mexicano de 1585.
  53. 53. Na Hispanic American Historical Review, 1964, XLIV, p. 305.
  54. 54. As “Relações de Yucatan”. São em sua maioria notavelmente redigidas pelos próprios titulares de comendadorias. Vários desses encomenderos revelam em detalhes a história maia, desconhecida até esta data. Um colono prepara um grande mapa — o primeiro — da província de Tabasco. Como ressalta o franciscano Motolinia, a maioria dos encomenderos não era de forma alguma de brutais criminosos que Las Casas lançou nas trevas exteriores. Ver Relaciones del Yucatán (Madri, 1898-1900, 2 tomos) e Boletin del Centro de estudios americanistas, ano VII, nº 36 e 37 (Sevilha, 1920).
  55. 55. Martin Pizarro. “Ele falava a língua inca com tal perfeição e tal elegância que mesmo os índios de Cuzco, berço do quíchua, ficavam cheios de admiração”. O padre Blas Valera, filho de encomendero, era também um “indianista” famoso em todo o reino do Peru e grande pregador dos índios. Em toda parte, os índios o chamavam (Missionalia hispánica, nº 10, pp. 9, 14, 36, 54). E de seu pai, o conquistador Luis Valera, em sua encomienda de Chibalta, os evangelizadores jesuítas notam que eles recebiam “muita caridade”. Nessa encomienda de conquistador, “caciques e índios de diversos lugares” se reuniam, esperando os religiosos para “ouvir a palavra de Deus”. “Seria longo demais, escreve um desses religiosos, dizer os arcos e as ruas ornadas de folhagens que os índios haviam preparado para nos acolher, as cruzes processionais com as quais saíam ao nosso encontro, e o grande número de casas onde havia aprontado para nós os cervos, coelhos, perdizes, rolas e frutas que abundam nesta terra”. Essa mesa de bondade cristã em uma encomienda de conquistador não deixa nada a desejar à mesa, incessantemente apresentada como uma pretensa exceção, da recepção de Las Casas em 1545 à capital de sua Vera Paz guatemalteca.
  56. 56. Marianne Mahn-Lot também faz sua essa afirmação infundada que se encontra no Las Casas de Lewis Hanke (La Havane, 1949).
  57. 57. The ancient Civilization of Central America (Londres, 1892).
  58. 58. Ver, particularmente, Angel Losada, Las Casas (Madri, 1970, particularmente p. 250).
  59. 59. Ver, particularmente, Angel Losada, Las Casas (Madri, 1970, particularmente p. 250).
  60. 60. Ramón Menéndez Pidal, El Padre Las Casas (Madri, 1963, p. 360).
  61. 61. Constância. Acrescentemos que, durante sua estadia no México, Las Casas, a despeito dos violentos ataques que havia lançado contra o vice-rei Mendoza, que todos os historiadores julgam “notável”, pôde, em 1546, com autorização dele, desenvolver publicamente suas acusações e as contestações mais radicais. Não havia, além disso nada de surpreendente, o vice-rei Mendoza consagrando dois dias de cada semana para receber pessoalmente qualquer índio que desejasse lhe fazer conhecer uma queixa ou uma proposição. E, nos outros dias, esforçando-se por permanecer aberto a semelhantes recursos, mesmo dos índios mais humildes.
  62. 62. Exações limitadas. A primeira, e a única de importância, é a do curto período de Colombo (1493-1500) e imediatamente posterior, em algumas Antilhas, marcada pelo trabalho forçado, a escravidão e a repressão das resistências que provocavam. Todos fatos que justificam, muito amplamente, a indignação de Las Casas. Mas se os arauaques e caraíbas que povoavam essas ilhas desapareceram quase que completamente, os ocupantes não espanhóis das Antilhas têm sua grande parcela de responsabilidade nesse desaparecimento. Assim, na Martinica, onde os franceses exterminaram totalmente os caraíbas (além disso, muito sanguinários). E, também, não se pode omitir as conseqüências do brutal contágio microbiano trazido pelos conquistadores, que fez, entre os indígenas, um número considerável de vítimas. Quanto às exações cometidas individualmente, em seguida, nas terras firmes da América por esse ou aquele conquistador, nesse momento, deve-se olhar duas vezes antes de crê-las verificadas. Assim, o caso de Cholula é sempre dado como o modelo dessas atrocidades, freqüentemente citando o próprio texto de Las Casas, que vimos gravamente tendencioso. Marianne Mahn-Lot, por exemplo, ratifica a versão lascasiana sem reservas como uma evidência. Cortés é o autor de abomináveis crueldades, pois “Las Casas mostrará seus atos de crueldade em sua Brevísima relación” (op. cit., p. 38). Houve certamente conquistadores cruéis nas terras firmes, sobretudo no início: como Pedrarias Dávila, no Panamá-Venezuela, e Nuño de Guzmán, no México. Mas certamente menos, e menos comumente que se tem dito; e outros que não o foram de forma alguma. Quem tiver lido algumas das milhares das centenas de milhares de páginas da documentação direta, militar, jurídica, religiosa etc., sobre a conquista e a primeira colonização, se comove do pouco espaço que aí têm as exações ao lado das realidades pacíficas. As obras de Las Casas são apenas uma parte ínfima dessa documentação e, fora das Antilhas, freqüentemente a menos direta.
  63. 63. O contágio microbiano: Esse fato foi superabundamente estabelecido por Pierre Chaunu e os historiadores da Universidade de Berkeley. “Divididos muito brutalmente, os índios da América não sucumbiram sob golpes de espadas do aço de Toledo, mas sob o choque microbiano e viral” (Pierre Chaunu, Histoire et foi, Paris, 1980, p. 92). Para maiores detalhes, ver a obra do mesmo autor L’Amérique e les Amériques (Paris, 1964, particularmente pp. 103-105).
  64. 64. A implantação negra. Em 1823, em todo o México, compreendendo então o sudoeste dos atuais Estados Unidos, o geógrafo alemão Humboldt conta apenas 10.000 escravos negros, que serão todos libertados em 1829, para 7 milhões de habitantes. Desde 1763, a colônia inglesa dos futuros Estados Unidos conta não menos de 324.000 escravos negros, que só serão libertados de 1863 a 1865, para apenas 1,6 milhões de habitantes no total: 1 escravo por 4 habitantes livres e, no sul, 1 escravo para menos de 2 habitantes livres. Depois, se os ianques reformados se apoderam do Texas mexicano em 1836, é porque seus colonos do sul foram aí “ameaçados pela legislação mexicana anti-escravagista de 1829” (Grand Larousse encyclopédique, verbete Estados Unidos), uma legislação de país católico hispânico. Foram, além disso, os negreiros ingleses que, no século XVI, impeliram os espanhóis da América ao consumo de “madeira de ébano”, como o célebre John Hawkings. Em suas três viagens de 1562, 1564 e 1567, ele trará da África para a América “um número considerável” de escravos negros, que ele se esforçará de fazer, mediante fraude, os espanhóis comprarem. Outra precisão: na última expedição de Hawkings, em 1567, “os dois maiores navios dos seis que faziam esse tráfico desumano pertenciam à rainha da Inglaterra” (Dr. John Lingard, History of England). Mais uma vez, os denunciadores reformados dos horrores católicos e espanhóis, reeditores encarniçados de Las Casas, não passam de propagandistas interessados em que a atenção não se volte para seus próprios atos.
  65. 65. Colonizadores leigos (França). Contrariamente à colonização espanhola, a colonização francesa na América não foi inspirada por um Padroado e um Vicariato apostólico. Não tendo recebido de Roma esses encargos, foi puramente nacional, regaliana e mercantil. Os missionários enviados às “Ilhas”, em nada ouvidos e submetidos aos poderes coloniais, empreenderam uma dura luta clandestina para defender índios e negros. Essa luta, epopéia desconhecida, será tomada como exemplo no século XIX pelos precursores da promoção dos indígenas mesmo longe da América, como Ismaël Urbain na Argélia.
  66. 66. Conquistadores. Esses (deve ser lembrado, pois isso é freqüentemente esquecido) não tinham por trás, inicialmente, a potência da Espanha, então considerável, mas quase toda empregada na Europa. Eles eram pequenos grupos de homens aventureiros que financiavam e armavam sozinhos, com alguns amigos, suas expedições.
  67. 67. Aliados fiéis. Essa fidelidade será plenamente honrada pelos Espanhóis. Os Tlaxcaltecas receberam do rei de Espanha uma declaração de sua liberdade de autogoverno, de sua universal hidalguia (nobreza) e de sua isenção fiscal. Os viajantes estrangeiros no México do século XVI nos mostram isso, vertendo à Espanha um tributo apenas simbólico (um punhado de grãos por cabeça) e vivendo livres sob seus próprios juizados, controlados apenas, para os casos de importância, por um alcaide mayor, grande juiz espanhol que fazia as vezes de governador.
  68. 68. Os verdadeiros vencedores. Fato notável: os Tlaxcatelcas são ainda mais fiéis à Cortés infeliz e vencido que a Cortés triunfante. Quando os espanhóis são expulsos do México pela revolta asteca, logo após a sua primeira entrada na vila, é a esses “agressores”, bem diferente da famosa “Noite Triste” que os Tlaxcaltecas (que teriam podido exterminá-los facilmente) oferecem reconforto moral e material. São eles que empregam os meios da revanche sobre seus opressores, com uma eficácia extraordinária, perdendo milhares de homens nesse combate.
  69. 69. Jorge Gurria Lacroix, Trabajos sobre historia mexicana, Instituto Nacional de Antropologia e História (México, 1964, p. 37).
  70. 70. Um usurpador. Típico do caráter não histórico da obra de Las Casas é seu tratado das Doze Dúvidas (1564), em que afirma que o dever dos espanhóis é o de restituir o ouro e o reino que eles haviam tirado de Atahuallpa, e que “as crianças, herdeiros e povos de Atahuallpa adquiriram o direito de fazer guerras justas contra os espanhóis”. Tudo como se Atahuallpa não tivesse sido o usurpador sanguinário que, ao mesmo tempo em que era prisioneiro dos espanhóis, havia feito massacrar o Inca autêntico Huascar, depois dois irmãos deste. Tudo como se não tivesse ele mesmo proposto a Pizarro, em troca de sua liberdade e então que não fosse de forma alguma maltratado, de lhe remeter uma pilha de ouro que havia feito aportar pelas caravanas de lhamas do coração do império, fora do alcance dos espanhóis. Tudo como se uma multidão de classes e povos indígenas, ao mesmo tempo, não estivesse aliada a Pizarro, seja para escapar precisamente do poder que Atahuallpa arriscava reconquistar, seja para pôr abaixo o imperialismo inca que os subjugava, aliança que essas classes e povos pagaram até o fim, generosamente, com seu sangue, assegurando, assim, a vitória final dos espanhóis sobre as ressurgências da opressão inca. Certamente os espanhóis, particularmente os brutais e cúpidos Pizarro ou Almargo, não eram eles mesmos mais puros. Mas ver apenas a obrigação de caridade e de restituição com relação aos incas, e particularmente aos “herdeiros” de Atahuallpa, ultrapassa os limites da simplificação escolástica, pois Las Casas jamais foi ao Peru. Ele julgava isso apenas no absoluto que havia construído. Não poderíamos, portanto, seguir nesse ponto o lascasimo sem problema dos autores da recente Histoire de l’Eglise par elle-même (pp. 339 e 340).
  71. 71. Jean-Claude Valla, La Civilisation des Incas (Genebra-Paris, 1976, pp. 29, 30, 266, 276).
  72. 72. El Pueblo del Sol (México, 1953, p. 20).
  73. 73. Esses “um a um”. A doutrina franciscana do México, quanto ao batismo dos índios, em nada laxista, havia sido definida pelo franciscano francês Jean Foucher, doutor em direito canônico da Universidade de Paris, professor do colégio de Tlatelolco, depois da Universidade do México (morto em 1573). A obra de base moderna sobre a história desse batismo dos índios também é francesa: a de Robert Ricard, La Conquête spirituell du Mexique (Paris, 1933). Foi depois confirmada e precisada por um longo estudo do padre franciscano Claudio Ceccherelli: “Le baptême e les franciscains du Mexique (1524-1539)”, publicado no nº 35 (1955) de Missionalia hispánica, pp. 209 a 289. O erro de um pretenso batismo dos índios em massa, com aspersões, foi portanto repetido por autores sérios, como Vicente Beltrán de Heredia, em seu Francisco de Vitoria (p. 125). O que manifesta mais uma vez o perigo de uma abordagem teórica da evangelização americana e de sua história através dos escritos desses grandes escolásticos que são Vitoria e Las Casas. A opinião intelectual, ou mesmo a convicção religiosa, lançada pela bela racionalidade dos princípios e pelo calor da defesa discursiva dos direitos do homem sucumbiu particularmente a essa miragem lógica. Já é hora de dar aos fatos o lugar que os argumentos, versando freqüentemente na polêmica teórica, muito usurparam. Robert Ricard teve o grande mérito de empreender essa tarefa.
  74. 74. Esse testemunho. Faz parte de uma preciosa série de cartas das primeiras missões jesuítas do Peru, reencontrada nos arquivos da província jesuíta de Toledo e publicada pela primeira vez em 1947. Vê-se aí explodir, dia após dia, aldeia ou cidade após aldeia ou cidade, a sede indígena do cristianismo, no concreto de centenas de detalhes saborosos e emocionantes. Esse dossier foi apresentado, sob o título “Premiers pas dans l’évangelisation [jésuite] des Indiens (1568-1576)”, por Francisco Mateos S.J., no nº 10 (1947) de Missionalia hispánica, pp. 5 a 64.
  75. 75. Tradução francesa (Paris, 1963, pp. 61 e 162-163).
  76. 76. Cinco anos de pesquisas. Ninguém ou quase ninguém se interessou até o momento pela arte indo-cristã, exceto por alguns monumentos bem visíveis em algumas vilas, e exceto durante a perseguição anticatólica mais ou menos violeta do século XIX e do início do século XX (até 1930), para então desmontá-los ou danificar um grande número desses testemunhos. Foi preciso, portanto, ao professor Reyes Valerio e a suas equipes realizar uma ampla prospecção em muitas “aldeias quase esquecidas” em “inumeráveis e fatigantes viagens de pesquisa da obra de arte escondida”. Também foi necessário, muito freqüentemente, separar as obras antigas de construções que lhes foram acrescentadas ou de rebocos e argamassa com que haviam sido recobertas. Hoje, o governo mexicano, embora sempre oficialmente leigo, faz um esforço considerável para restaurar essa parte essencial do patrimônio artístico de seu país. E as ordens religiosas, autorizadas pouco depois a retornar ao México, retomam, graças às doações que afluem às suas mãos e ao entusiasmo sempre vivo dos índios e artistas locais, a tarefa de criação artística pela qual ilustram os inícios de sua missão evangelizadora.
  77. 77. Constantino Reyes Valerio, Arte indiocristiano, p. 11.
  78. 78. Idem, pp. 127 e 128.
  79. 79. Idem, pp. 125, 167 e 210.
  80. 80. Idem, pp. 125, 167 e 210.
  81. 81. Idem, pp. 125, 167 e 210.
  82. 82. Menos ricos. A profusão de monumentos da arte indo-cristã é estonteante. Em um raio de algumas centenas de metros em torno da igreja matriz da aldeia de Acatepec (Puebla) se erguem várias outras igrejas notáveis, entre as quais a de Tonantzintla, maravilha do século XVI. Isso porque a própria profusão de implantações de ordens religiosas foi estonteante. Apenas no Estado de Oaxaca, os conventos ou residências de dominicanos, freqüentemente de uma qualidade artística excepcional, não eram menos que 68 no tempo da colônia. E os missionários aí chegaram a quase 1.000: maravilhosa fecundidade da Igreja da Espanha!
  83. 83. Américo Castro, La Realidad histórica de España (México, 1973, p. 292).
  84. 84. A muito brilhante elite intelectual indo-cristã. Típico dos índios que assim se tornaram, no século XVI, grandes escritores de língua espanhola é o índio Ixtlilxóchitl, autor de OEuvres historiques, em que transpõe para o espanhol as antigas crônicas de seu povo, fornecendo-nos uma documentação de considerável interesse.
  85. 85. Historia de los Indios (México, 1969, p. 108).
  86. 86. Historia eclesiástica indiana (México, 1966, p. 218).
  87. 87. Internatos. Conforme nota Mendieta, conclui-se que havia apenas um único internato. Assim, todas as crianças índias, plebéias, assim como dos índios principais, recebiam a mesma educação. O que levava freqüentemente as crianças do povo a ascender mais tarde à direção das comunidades indígenas. O fato não sereia jamais produzido em suas antigas sociedades.
  88. 88. Escola de técnica e de arte. A escola de San José de Mexico ensinava aos índios “todas as ocupações que são necessárias para viver em uma sociedade refinada”: corte de tecidos, carpintaria e marcenaria, fundição, tingimento, pintura, sapataria, contabilidade, impressão, entalhe de pedras, escultura, arquitetura etc.
  89. 89. Constantino Reyes Valerio, op. cit., pp. 102 a 106.
  90. 90. Recusando remunerá-los. A bem da verdade, as peças do processo contra Juan de Torquemada não nos foram inteiramente conservados, ignoramos o que possa ter dito em sua defesa e se foi condenado. Sua culpabilidade não é, portanto, certa. E nos pomos a duvidar da leitura de sua notável crônica, Monarquía indiana, onde faz um longo elogio dos artistas índios, ressaltando sua contribuição essencial, e muitas vezes voluntariamente gratuita, à arte indo-cristã. As acusações indígenas devem, por outro lado, de uma maneira genérica, ser tomadas com prudência. Um excelente bispo, autor de um Itinéraire pour les curés d’Indiens, Alonso de la Peña Montenegro, narra assim como um visitante pôde apreciar em seu justo e pouco valor as acusações de crime lançadas contra um cura, por uma memória em regra de alguns de seus índios paroquianos. Interrogando uma testemunha índia sobre o conteúdo dessa memória, que esta não havia lido, o visitante teve a idéia de dizer: -- Eu vi que vosso cura, num domingo, após as preces, matou o Rei Davi. -- É verdade, respondeu a testemunha. Eu mesmo vi o assassino.
  91. 91. Idem, apêndice, pp. 301 a 305.
  92. 92. Sempre no número de 16 de fevereiro de 1980.
  93. 93. Don Fray Juan de Zumárraga (México, 1881, p. 407). E Marin Quirarte, El Problema religioso em México, Instituto Nacional de Antropologia e História (México, 1967, pp. 28 e 29).
  94. 94. Já extinta. Ninguém, no século XVI, relata os grandes sítios arqueológicos maias de Uxmal e Palenque, que só serão descobertos muito mais tarde. Mesmo os titulares de comendadoria das aldeias próximas os ignoravam. Não eram mais, portanto, centros de culto. E a dura natureza local havia recoberto a antiga civilização maia. O autor do primeiro mapa de Tabasco, em 1579, assinala sobre a localização de Palenque: “Tudo aqui são grandes pântanos e lagunas. Ninguém consegue aí penetrar.”
  95. 95. Legitimamente. Os religiosos do Yucatan, como a “depuração” antinazista, cometeram, todavia, alguns excessos indefensáveis. Sua reprovação dos sacrifícios humanos os levará, em 1562, quando testemunhas sérias lhes preveniram que esses sacrifícios continuavam a ser praticados, a submeter os suspeitos à tortura sem freios, em geral praticada então pelos juízes leigos. Essa tortura fez mutilados e mortos, como haviam feito os sacrifícios. Mas a hierarquia religiosa reagiu. O bispo Toral impôs sanções aos religiosos culpados, revogou a maior parte das condenações lançadas contra os índios nesse caso e reduziu outras.
  96. 96. Martin Quirarte, op. cit., p. 29.
  97. 97. Yolanda Mariel de Ibañez. El Tribunal de la Inquisición en México (siglo XVI). Universidade Autônoma do México (1979, pp. 35, 39, 62, tabela no apêndice).
  98. 98. Idolatria ou superstições. Estas e aquela foram objeto, antes do estabelecimento da Inquisição em 1571, de perseguições à iniciativa dos bispos, às vezes comissionados pela Inquisição da Espanha para a repressão geral da heresia. Mas essas perseguições foram muito pouco numerosas: 15 por idolatria em todo o México. E, ou ficavam sem seguimento, ou as condenações (que não chegaram jamais até a prisão perpétua ou à morte) “não podiam ser qualificadas de excessivamente rigorosas” (Y. Mariel de Ibañez). Além disso, a última perseguição por idolatria no México, fora do Yucatan, ocorreu em 1547. Um drama relativo a um índio se produziu, todavia, em 1539 em um domínio diferente: o cacique de Texcoco foi condenado pelo tribunal episcopal do México como “herético dogmatizante” (a acusação de idolatria havia sido abandonada nesse caso). E ele foi queimado, ao passo que sua culpabilidade era muito frágil (de fato, havia exasperado o tribunal recusando-se a reconhecê-la). Reação significativa: inúmeros espanhóis protestaram, o Conselho Supremo da Inquisição da Espanha e o Conselho Real fizeram saber seu desacordo e se preocuparam em aliviar a sorte dos herdeiros do condenado. A reclamação de uma justiça sempre ponderada, com relação aos índios, preparou partir desse momento a instalação no México de uma filial regular da Inquisição da Espanha. Definitivamente, fora as torturas do Yucatan, elas mesmas punidas, houve apenas esse único e isolado índio morto pelos tribunais eclesiásticos no México. Embora não se tratasse de “idolatria”, o protesto foi generalizado, e as conseqüências reparadas como podiam ser. As “fogueiras espanholas” de índios, supostos fiéis a seus antigos cultos, são uma lenda sem o menor fundamento.
  99. 99. Op. cit., livro IV, cap. XV.
  100. 100. Histoire vécue du peuple chrétien, t. II, não menos de dois capítulos.
  101. 101. Histoire vécue du peuple chrétien, t. II, p. 279.
  102. 102. Cristianização autoritária. Essa só existiu no início, quando, ainda pesando as tradições opressivas, se manifestava nas terras sob o poder espanhol direto uma apatia dos índios diante das ofertas de evangelização, apatia bem longe de ser generalizada conforme vimos. Então, acontecia (nem sempre) que os encomenderos, ou os religiosos, ou os padres seculares, se impunham a autoridade de levar os índios, ou seus filhos, pelos fiscales indígenas que os cercavam, com a finalidade de poder evangelizá-los e lhes ensinar. Mas, também aqui, o batismo não era jamais imposto por autoridade. Bem ao contrário, ele devia ser merecido. E os índios conservavam seu direito de não se fazerem cristãos. Nas atas de inquirições ou de processos, vê-se o testemunho de índios que se declaram não cristãos, sem que isso valha a menor consideração.
  103. 103. Idem, t. II, p. 311.
  104. 104. Códice franciscano (México, 1892, p. 213).
  105. 105. Op. cit., p. 225.
  106. 106. Anjos indígenas. A arte indo-cristã é, de todas as artes cristãs, a que dá mais lugar aos anjos, aos anjos jovens. Estes animam com sua exuberância e seus rostos expressivos monumentos inteiros, como a capela do Rosário de Santo Domingo de Puebla. Essa angelismo plástico, cheio de realismo espiritual, não tem a menor fonte religiosa pré-colombiana. É pura alegria cristã, como um murmúrio, irreprimível, desde que descoberta. E ressalta que o cristianismo indígena foi, em boa parte, um cristianismo da juventude. Para os índios, o cristianismo se traduzia, assim, em seguida, por uma floração de asas enchendo o céu de sorrisos. Não são palavras, são realidades em relevos e cores que as mãos indígenas modelaram no estuque, talhadas na pedra, desenhadas e avivadas com seus pincéis, e realçadas com ouro, em mil lugares e, às vezes, mil repetições em um mesmo lugar.
  107. 107. Missionalia hispánica, artigo citado, nº 10, pp. 28, 36, 61.
  108. 108. Crónica de la Orden de San Agustin en la Nueva España (México, 1624, p. 55).
  109. 109. Mariano Cuevas, S.J., Historia de la Iglesia en México, t. III (México, 1947, p. 148).
  110. 110. Paso y Troncoso, Papeles de Nueva España (México, 1916, III, p. 160).
  111. 111. Pablo Cabrera, Introdución a la historia eclesiástica del Tucumán (Buenos Aires, 1935, II, p. 216).
  112. 112. J. Jouanen, História de la Compañía de Jesús en la antigua província de Quito (Quito, 1941, p. 78).
  113. 113. Nossos preconceitos. Podem ser de filiação recente. Na História da Igreja que acabamos de citar, é um marxismo ingênuo que tinge a pena (o da religião-alienação), não o cristianismo. Na história, inteiramente fabricada, de uma pretensa vítima indígena da Inquisição em 1584 — um frei dominicano índio de nome Martín Durán que teve seu momento de “Savonarola mexicano” — é o anticlericalismo do século XIX que tinge a pena produtora de apócrifos (ver, com relação a isso, a Carta a José-María Vigil de Joaquin Garcia Icazbalceta, México, 1939).
  114. 114. Reservado. Esse hospital reservado aos índios existe sempre, embora tenha sido deslocado. Trata-se do hospital Santa Ana de Lima, que ainda hoje é chamado, comumente, pelo nome de seu fundador e servidor nos tempos da evangelização: hospital Loaisa. O “considerável prestígio pessoal do arcebispo”, “inflamado de amor pelos indígenas” (G. Lohmann Villena), atravessou assim não menos que quatro séculos na memória popular.
  115. 115. Juan Pérez de Tudela, introdução às Crónicas del Perú (B.A.E.); Angel Losada, op. cit.: Année dominicaine 1902; Enciclopedia Espasa-Calpe; A. de Alcedo, Diccionario de las Indias; Ramón Carande, op. cit.; os diferentes estudos peruanos de Guillermo Lohmann Villena; nossas próprias pesquisas nos Loaisa de Trujillo que são também de Pizzaro; etc.
  116. 116. Quetzalcoatl e Guadalupe. Publicada em Paris em 1974, essa monografia histórica do culto de Nossa Senhora de Guadalupe é o tipo de estudos parciais e falaciosos com que nos gratifica a atual ofensiva anticristã dos neo-paganizantes. É ainda mais assombroso que nossas recentes histórias da Igreja se baseiem nessa tese, cujo autor “dá o tom” nas frases de conclusão, em que se lê: “A Guadalupe (sic) será um dia um astro extinto como a Lua à qual está associada”, ao passo que o deus asteca Quetzalcoatl “parece ter as maiores chances de uma recarga sacra a chegar em uma sociedade laicizada, como a do México de hoje” (p. 415). L’Histoire vécue du peuple chrétien, em sua bibliografia consagrada ao México, só assinala ao leitor essa obra sobre o assunto. Ao passo que o católico Centro de estudios guadalupanos, soberbamente ignorado, publica revista, relatórios de congressos e obras que põem por terra a tese acima.
  117. 117. Pela Virgem, em 1531. A Guadalupe “Deus fez o que não fez por nenhuma outra nação”, como diz o papa Bento XIV: oferecer uma imagem da virgem aos crentes, aqui significativamente a um pobre índio. O caráter miraculoso dessa imagem é confirmado pelos mais incontestáveis sábios: o químico Kuhn do “Kaiser Wilhelm Institut”, o cirurgião mexicano Torija, os professores americanos Callahan e Smith, ainda em 1979. Pode-se reportar quanto a esse assunto às publicações do Centro de estudios guadalupanos, presidido pelo cardeal-arcebispo do México.
  118. 118. Edição e tradução espanholas pelo padre Mario Rojas Sánchez (México, 1978, aqui p. 15).
  119. 119. Manuscrito nahuatl. Escrito, portanto, em língua asteca, esse relato da aparição de Guadalupe tem por autor um membro da brilhante elite indo-cristã que evocamos: o gobernador Valeriano, conhecido por numerosas peças de época conservadas na Biblioteca Nacional de Paris (Fundo mexicano). Deve-se mesmo notar — fato considerável — que esse relato mariano nahuatl utilizando pela primeira vez a escrita (os caracteres latinos) é, assim, em sua data, cerca de 1540, “o primeiro texto literário asteca” que jamais foi escrito (Torcuato Luca de Tena, da Academia Real de Espanha, A.B.C., Madri-Sevilha, nº 12 de 12 de dezembro de 1981).
  120. 120. Desde a origem. O neo-pagão Lafaye, na obra citada, pretende, silenciando sobre metade da bibliografia sobre Guadalupe, que esse culto só apareceu na metade do século XVII pela “invenção” de um pregador dessa época tardia, Miguel Sánchez. A imagem só teria aparecido nessa época. Isso é insustentável. Desde 1556, o franciscano Bustamante, muito oposto a Guadalupe porque temia que a idolatria indígena se alimentasse, apesar de tudo, dessa representação, fala da “imagem pintada”. E o vice-rei Martín Enríquez, em 1575, também evoca a “imagem” de Guadalupe, como o inglês Miles Philips o havia feito em 1570. É ainda melhor quanto à antigüidade do culto guadalupiano o Catéchisme de la Doctrine chrétienne do franciscano Pierre de Gand, cuja importância na primeira evangelização já dissemos, oferece a gravura em madeira, várias vezes repetida, da imagem de Guadalupe.
  121. 121. Histoire vécue du peuple chrétien (t. II, pp. 325, 318, 323).
  122. 122. Relação igualmente reproduzida nas Relaciones já citadas, p. 115.
  123. 123. Uma libertação cristã. Essa libertação consciente chegará em nosso tempo à formidável sublevação contra a perseguição anticatólica que foi, no México, a revolta dos Cristeros. Esses camponeses índios e mestiços, de 1926 a 1929, combateram para obter, e obtiveram, a reabertura das igrejas e o retorno dos padres. Ver Jean Meyer, Apocalypse et Révolution au Mexique (Paris, 1974).
  124. 124. Maciços sacrifícios humanos. Da mesma forma, é necessário lembrar que só na inauguração do grande templo asteca do México, cuja destruição por Cortés e os Tlaxcaltecas é tão chorada por alguns, ocorreu em 1487 com o sacrifício de vinte mil jovens, conforme relata o códex de origem asteca chamado de Telleriano-Remensis.
  125. 125. Citado pelo doutrinário leigo mexicano do século XIX, José-Maria Luis Mora, Obras sueltas (Paris, 1837, pp. 54 e 55).
  126. 126. Defensores da “encomienda”. Houve, também para eles, sua “lenda negra”. Assim, o mais sistemático e o mais vilipendiado por certos historiadores: o principal adversário de Las Casas, o padre Juan Ginés de Sepúlveda. “Eu não afirmo, escreve ele, que os índios devam ser submetidos à escravidão, mas apenas que eles devem ser submetidos a nosso comando. Eu não afirmo que devamos privá-los de seus bens, mas apenas submetê-los, sem cometer contra eles nenhum ato de injustiça”. E o silêncio orquestrado vale a “lenda negra”. Onde é visto celebrado como um “protetor dos índios”, o que foi concreta e vigorosamente, no México, durante meio século, ao passo que Las Casas só esteve lá durante alguns anos? Esse verdadeiro “protetor dos índios”, sofrendo por eles todos os tipos de perseguições, ao passo que Las Casas era honrado, é o franciscano Motolinia, além disso, primeiro historiador afetuoso das tradições indígenas. Ora, no México, esse evangelizador modelo totalmente desinteressado, é o mais determinado defensor da encomienda. Não hesita em fazer saber, escrevendo diretamente a Carlos V. Ressalta ao imperador que há, entre os titulares de encomiendas, “muitos bons cristãos preocupados com a cristianização dos indígenas que lhes foram confiados, dando o exemplo de uma piedade e de uma caridade bem superiores àquelas que se mostram na velha Espanha” (Georges Baudot). E, de Las Casas, ele diz: “Fico estupefato com o pensamento de que Vossa Majestade e os membros do Conselho tenham podido suportar durante tanto tempo um homem tão penoso e disputador”. O próprio nome de Motolinia é altamente significativo. É um nome índio que quer dizer “pobre”. O franciscano, cujo nome real é Toríbio de Benavente, escolheu esse novo nome de “Pobre”, porque os próprios índios lho deram quando o viram chegar à costa do México, com seus confrades, a pé, suas vestimentas em farrapos e dormindo no chão duro. É assim que o principal grupo de seus primeiros evangelizadores apareceu aos índios. Esse detalhe apenas coloca muitas coisas em seu verdadeiro lugar.
  127. 127. Poderosamente positivo. Não sem, evidentemente, essas fraquezas a que fizemos alusão mais acima. Alguns membros do clero se instalaram nas facilidades da conquista, na riqueza, até da licença. A emulação entre missionários virou parcialmente lutas ásperas entre ordens religiosas, ou entre elas e o clero secular, os bispos ou os funcionários reais. Lutas que os vice-reis fizeram muito mal em arbitrar. Tudo isso foi bem evidenciado por Robert Ricard em sua Conquête spirituelle du Mexique (Paris, 1933). Mas isso ocorre, mais ou menos, em toda parte e sempre. E resta bem pouca coisa diante da amplidão do trabalho apostólico, caritativo e cultural levado a bom termo. Todavia, a tabela preparada por Robert Ricard deve ser naturalmente complementada graças aos estudos mais recentes que se beneficiaram da publicação de importantes arquivos diretos, negligenciados ou inéditos. Ora, essas publicações ressaltam que as fraquezas evocadas por Robert Ricard foram mais excepcionais do que parecia até agora. Mesmo o clero secular, freqüentemente posto em causa, se mostrou, em sua imensa maioria, totalmente digno de admiração, suas realizações podendo muito freqüentemente se comparar às melhores realizações dos regulares. Se esse fato não chamou a atenção, é porque, nos documentos indiretos até agora utilizados, “louvar, ou simplesmente enumerar, os curas de índios cheios de zelo não vinha mais à idéia que ressaltar o ordinário da vida, como o fato de que o sol se levanta e se põe; só havíamos notado os eclipses, os escândalos coletivos ou particulares É a essa conclusão que chega, produzindo uma multidão de testemunhas de época, Constantino Bayle, em seu estudo “Le domaine propre du clergé séculier dans l’évangélisation américaine”, publicado em Missionalia hispánica, 1946, nº 9, pp. 469 a 510. Dois exemplos: o cura de Pinampiro, no Peru (Quito), não apenas havia construído com seus índios uma bela e rica igreja, mas o fez de modo eles possuíssem em comunidade um campo de algodão, parelhas de bois, cento e sessenta vacas e de três mil e quinhentas ovelhas de Castela, o que lhes permitiu pagar o tributo sem problemas. O cura da redução dos Yaquis, no Sonora mexicano, fez ainda melhor: construiu duas ricas igrejas, introduziu a cultura do linho, abriu uma fábrica de rodas e oficinas de tecelagem, fomentou, além da tecelagem, a chapelaria, a cerâmica, a caldeiraria, a criação de cavalos e de ovelhas, abriu um colégio e até um seminário, que deu dois padres índios. Tudo isso recusando receber qualquer dízimo ou honorário que seja, como o recusaram muitos outros de seus pares.
  128. 128. A caridade. O único católico canonizado por ter sido o protetor e servidor dos escravos negros é um homem do Padroado espanhol, o jesuíta São Pierre Claver. Durante quarenta anos, na primeira metade do século XVII, ele se dá inteiramente aos escravos negros desembarcados em Cartagena das Índias (atual Colômbia) para aliviar sua infelicidade. É esse homem do Padroado espanhol que o papa Leão XIII, em 1896, proclamou patrono das missões perante os negros. Na mesma Cartagena celebrizou-se, meio século antes, esse outro religioso do Padroado que evocamos: o protetor e servidor dos índios, São Louis Bertrand.
  129. 129. Las Casas teria tido razão. Apesar das evidências, reputa-se hoje que Las Casas tenha tido razão em inúmeras publicações ricas em milhares de intenções apologéticas. Esse é o caso do Bartolomé de Las Casas, publicado em 1980, em Paris, por um excelente religioso, sem confrade dominicano, o padre Ph. André-Vincent. O exemplo que fornece essa obra é mesmo típico com relação a isso. Pois, inicialmente, o autor sabe que nenhum historiador que se respeite pode tomar o testemunho de Las Casas por verdadeiramente histórico. Assim, ele escreve: “O autor da Histoire apologétique não é um observador imparcial do mundo colonial espanhol. Esse libertador dos índios, testemunha de um combate, não escreve história [...]”. Ou ainda: “A posição do profeta não é a do juiz imparcial. Advogado da ordem pública [...] defensor dos índios e acusador dos espanhóis, ele só exprime uma parte da verdade”. Mas, ao mesmo tempo, o autor deixa o leitor ignorar qual pode ser, pelo menos, a outra parte da verdade. O bloqueio sobre as teses lascasianas sempre conta o essencial apenas por seus relatos e segundo apenas as teses de Las Casas. Sobre a encomienda são retomadas palavra por palavra as afirmações errôneas de Marianne Mahn-Lot: as encomiendas são calcadas nas repartições da Reconquista da Andaluzia; elas despojam os índios de suas terras em proveito dos conquistadores etc. O autor assinala bem o desacordo muito geral dos missionários, aí compreendidos os dominicanos, com Las Casas; mas sobre qual foi a razão desse desacordo, o formidável sucesso indo-cristão da evangelização a despeito de Las Casas, um grande fato civilizacional, não diz nada. Nas trinta páginas comprimidas com notas, freqüentemente eruditas, e nas treze páginas de bibliografia, não se encontra nenhuma referência aos arquivos jurisprudenciais publicados e analisados por Zavala, nem às Relaciones locais, nem à explosão imediata e magnífica da arte indo-cristã. E não se encontra citada uma única vez a revista missionária especializada para a qual contribuem religiosos da ordem que é a do autor: Missionalia hispánica, essa revista transbordante de testemunhos originais de época, sem cujo conhecimento, como dos arquivos e relações precedentemente evocados, é impossível ao autor e ao leitor saber o que realmente passou. Em compensação, entregando-se inteiramente a uma majoração decidida do teórico, o autor disserta longamente, escolasticamente, freqüentemente de maneira brilhante, sobre os argumentos de Las Casas, comparados aos de São Tomás de Aquino ou de Vitoria, ou de Soto. Saltando no tempo, um tempo sempre teórico, passa aos séculos XVIII e XIX e procura demonstrar que Las Casas não é nem um precursor das teses de Rousseau nem um inspirador da ideologia revolucionária dos “Direitos do Homem”, mas um puro e tradicional “profeta em cristandade e humanidade”. Assim, só voltando aos fatos através dos argumentos, o autor escreve finalmente: “[A] pena [de Las Casas] tem a força de uma espada; a espada tem a forma de cruz”. Las Casas anjo exterminador, portanto? Parece que sim, pois, fechado o livro, não existe mais nada além dele por onde passou. Pobre de mim! O autor não faz mais que confirmar os postulados da “lenda negra” anticatólica. Em proveito apenas do teórico Las Casas e às custas dos outros filhos meritórios da Igreja, leigos e religiosos que fizeram verdadeiramente nascer a América cristã. Pois a “lenda negra”, desde a origem, aceita voluntariamente Las Casas como inspirador e como álibi, utilizando a fundo as “intemperanças” de sua pena-espada, “cultivadas com morosidade”, sua “eloqüência jamais saciada” e sua “fraseologia”, como nota o diretor de Missionalia hispánica, o jesuíta Constantino Bayle (nº 10, pp. 197 a 201). A “lenda negra”, de resto, é a única referência das ilustrações que nos oferece o livro do padre André-Vincent: após um retrato de Las Casas, romântico como convém, essas ilustrações reunem uma braçada de massacres de índios gravadas por De Bry para as edições protestantes de combate do século XVI, uma “revolta contra um encomendero”, uma “revolta de índios contra os monges e colonos”. Nada do florescimento de alegres alianças indo-cristãs, de comunidades de fé e de progresso, de igrejas, de escolas, de vice-reis e de juízes notáveis; nada da Virgem de Guadalupe. Que “morosidade” e que injustiça! Assim, sobre esse grande caso da abertura da América a Cristo, perpetua-se com as melhores intenções a recusa de dar a verdade total da história, a caridade não seletiva para nossos irmãos na fé. E, no mesmo movimento, perpetua-se a recusa de pôr no lugar a prodigiosa efusão da Graça — transbordando de todos os lados as argumentações lascasianas — que, definitivamente, é a marca essencial desse acontecimento. Muito abreviada na imagem de Epinal de uma bio-hagiografia individual que faz nosso autor escrever: “[Las Casas] parte para a Espanha como Joana para Chinon”, a América (cristã) permanece infelizmente por descobrir, ainda hoje.
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