Confesso-vos com toda simplicidade que dou-me perfeitamente conta do ridículo que há por eu vir falar de psicanálise na pátria dos Nuttin e dos Ermel. Há pouco, o Sr. Joseph Nuttin, professor na Universidade de Louvain, publicou, sob o titulo Psychanalyse et conception spiritualiste de l´homme, um ensaio de integração da psicanálise ao conjunto da ciência psicológica, ensaio que constituía uma contribuição positiva, tão notável quanto original, do ponto de vista da psicologia geral, ao estudo da personalidade normal. Eis que acaba de aparecer uma monografia pela qual, sob o titulo: “Où vá la psychanalyse?”, o Sr. Ermel dedica-se, com informações muito confiáveis e perfeita prudência, a elucidar os problemas morais que são suscitados pela prática da psicanálise, e pergunta-se sagazmente por qual caminho ela vai evoluir.
Se é ainda permitido hesitar sobre o sentido desta evolução, era-me impossível, enquanto lia tal obra de objetivo tão enorme, o ter a menor dúvida quanto ao sentido de minha evolução pessoal. Devia eu, necessariamente, achar-me, à noite de 23 de novembro, nesta mesma Bruxelas, diante do mais simpático auditório, e também o mais bem informado, esforçando-me para não decepcionar sua tão benevolente atenção, não contentando-me em repetir o que mestres tão excelentes já lhe apresentaram.
É com tal desejo de não frustrar vossa esperança — mesmo que, à vossa idade, a frustração seja menos intimidante, nos dirão os psicanalistas, que à idade infantil — que senti-me convencido de tentar ir um pouco além de vossos dois guias.
A admirável obra do Sr. Joseph Nuttin tem por característica própria o escudar-se da tirania freudiana pela elaboração da uma teoria dinâmica da personalidade normal. Proponho-me ir além, partindo d´outro principio: ao invés de contentar-me com uma critica psicológica e metafísica, desejaria-vos ajudar a compreender com qual força a realidade existencial do cristão completo recusa-se deixar-se reduzir à psicanálise clássica e requer um método de investigação penetrante e conforme aos seus elementos integrantes. Desta feita, e porque é-me possível complementar a documentação do Sr. Ermel — que, para o essencial, detêm-se em 1950 — mostrar-vos-ei em qual sentido evolui, de fato, a psicanálise, sob a tutela mui poderosa do Dr. Wilfried Daim.
Mas, antes de propor-vos estas reflexões, gostaria de limpar o terreno atraindo vossa atenção sobre dois equívocos fundamentais que, duma parte, explicam em larga medida o sucesso paradoxal da psicanálise clássica, e, d´outra parte, impede-nos de aceitar voluntariamente o caminho que apontam-nos certos psicanalistas freudianos, ávidos em obter o assentimento dos católicos sem modificar em nada seu método naquilo que tem de essencial.
Não posso, todavia, abordar estas considerações preliminares, sem pedir-vos uma grande indulgência, pela dupla razão que apresento-lhes. Falar de psicanálise e de espiritualidade é abordar dois imensos domínios onde não podemos mover-nos cientificamente sem consultar montanhas de livros e brochuras. Uma bibliografia da espiritualidade e de sua história demandaria muitos volumes. A mais recente obra sintética sobre psicanálise, La théorie psychanalytique de névroses, do Dr. Otto Fenichel (cuja tradução francesa apareceu no último ano pela Presses Universitaures de France) contém uma bibliografia — não exaustiva — de 1646 números! D´outra parte, em tudo se mantendo mordicus aos elementos essenciais de sua doutrina, os psicanalistas são freqüentemente personagens ondulantes e variantes que escapam às garras dum pensamento mais definido. Assim sendo, é evidente que não é em alguns instantes que poderíamos propor uma critica cientifica duma disciplina tão largamente divulgada e tão diversamente elaborada. Sob a proteção destas considerações, tentamos ao menos guiar-nos com alguma segurança neste caos.
I
Jamais, sem dúvida, a psicanálise teria conhecido o sucesso prodigioso do qual somos as testemunhas felizes ou entristecidas — se Freud se tivesse enganado completamente. Disso não há duvidas. Não é estranho, porém, que tais vitórias sejam devidas a causas outras que não o acordo do vencedor com a verdade. Aqui, não parece-me deletério revelar umas das razões principais duma inflação que não tem proporções com os méritos científicos da obra. É uma razão completamente alheia à ordem técnica. De ordem puramente lingüística, ela decorre do próprio termo que tem servido para designar menos a psicanálise propriamente dita, que uma psicologia cuja análise supõe a própria existência e deve promover seus progressos. Tal termo é mais engenhoso que sugestivo. Em alemão, Tiefenpsychologie, que em francês resultou em “psicologia das profundezas”. Quaisquer que sejam nossas pretensões à inteligência pura ou ao espírito crítico, não somos menos freqüentemente vitimas que ao tempo de Platão, das palavras que empregamos. Tiefenpsychologie tornou-se uma palavra mágica. Utilizar “psicologia das profundezas” é inevitavelmente ter, e dar a impressão, depois, logo a certeza, que penetramos, desta feita, no ser humano tão mais profundamente de que pudemos tê-lo feito na psicologia clássica: é conferir, por tal fato, às suas pesquisas, ou ao menos às suas afirmações, uma dignidade, um valor que desdenha comparação e crítica: é rejeitar para trás como uma traquitana “démodé” e tudo o que poderia ter sido adquirido por métodos diferentes e de menor penetração. É finalmente impor a convicção de que podemos destrinçar e proferir a palavra definitiva da ciência do homem, pois alcançamos as profundezas além das quais, sem duvida e por hipótese, nada mais há.
Daí vem — não é preciso dissimulá-lo — em grande medida, o prestigio da psicanálise e de tudo que é psicanalítico, juntar a tanto psicólogos, sociólogos, literatos, gentes mundanas, e mesmo, horresco referens, teólogos. A psicanálise trata, por definição, das profundezas do homem, revelando-as ou curando-as — quem, pois, gostaria, deliberadamente, de negar-se a tal aprofundamento? Seria o mesmo que querer, parece, por apego a Hipócrates ou a Galeno, recusar beneficiar-se dos raios X para o conhecimento profundo do corpo humano. Daí, correlativamente, o insucesso prático das raras oposições feitas aqui e acolá contra Freud. Rudolf Allers, outrora apresentado por Louis Jugnet como o Anti-Freud, não conseguiu, de longe, uma audiência comparável àquela do mestre vienense. Prevenidos, Adler e Jung souberam modificar, às vezes mui radicalmente, a doutrina original, sem renegar a herança terminológica que asseguraria seu constante prestígio. Psicólogos como Charles Baudoin, médicos como os doutores Laforgue, Hesnard, Odier, independentes, guardam-se bem de por em questão a aptidão congênita de somente a Tiefenpsychologie perscrutar as profundezas do homem. Se, numa tese memorável, Roland Dalbiez sentiu-se mui filosofo por ter criticado o freudismo como doutrina, não hesitou em aceitar a psicanálise como método, o método que permite adentrar no psiquismo profundo.
Daí, enfim, a adesão ao freudismo de teólogos ou de técnicos da espiritualidade como o padre Oraison, às equipes dos Etudes Carmélitaines, do suplemento de La Vie spirituelle, e o ar de vencedor com o qual uma psicanalista tão convicta, tão destacada e tão ouvida como Mme. Maryse Choisy, estende a mão aos católicos, persuadida de que nenhuma resistência seria legitima doravante.
II
Eu resisto, entretanto, e digo o porquê.
Primeiramente, porque há equivoco, e grave, sobre a noção de profundidade. Que são, de fato, tais profundezas que a analise que tem por dever perscrutar em beneficio da Tiefenpsychologie? Para conhece-las, não podemos esquecer a origem real da psicanálise. Freud não é um filosofo, nem mesmo um psicólogo, que se teria dedicado a definir o homem normal. O neurótico é um ser cuja vida psíquica não é adaptada à realidade. É um médico que procura curar as doenças. Suas doenças eram as neuroses. Diante das anomalias da consciência e do comportamento, várias são as hipóteses possíveis, sobretudo duas: ou bem explicamo-las somente através de perturbações “nervosas”, o que nada explica; ou bem presumimos que tais inadaptações têm causas próprias e um sentido que deve ser possível revelar. O Dr. Freud escolheu esta segunda atitude. Esta escolha, cujas conseqüências tornar-se-iam incalculáveis, apresenta originariamente três características principais cuja importância não pode ser exagerada.
Em primeiro lugar, Freud abandona, por escolha pessoal, a medicina somática para engajar-se na psicologia. É digno de nota que uma tal revolução tenha sido obra de um materialista ateu, enquanto o crente Pasteur inaugurava a medicina de laboratório. Em segundo lugar, decidido a buscar além dos fenômenos a sua causa e o seu sentido, Freud empreende uma exploração da qual somos naturalmente inclinados a dizer que ela constitui um aprofundamento, mas é necessário dizer o quanto antes que trata-se somente de um aprofundamento em relação às aparências imediatas — assim como diz a expressão corriqueira: “mas, no fundo, o que queres?” — e em um plano superficial sobre o qual mantém-se a medicina puramente orgânica. Em terceiro lugar, este “fundo” que a investigação freudiana vai perseguir, não pode ser localizado senão em relação com o único meio de conhecimento interno e de comunicação de que dispomos: a consciência. Materialista, Freud não pode conceber uma profundidade espiritual. Constatando que o comportamento de seus doentes não apresenta nenhum sentido no plano da consciência, limita-se a duplicar esta consciência com um inconsciente onde o inexplicável deve dissimular sua inteligibilidade. Contentemo-nos neste ponto em observar que não há razão alguma de se representar o inconsciente como mais profundo que a consciência. Seja mesmo mais legitimo situa-la à periferia daquilo que constitui a normalidade da conduta humana. Não pode ser senão em virtude de um pessimismo instintivo ou deliberado que, para localizar as causas das condutas aberrantes, escolhamos a metáfora que, per si, sugerirá que este inconsciente é de natureza mais fundamental, mais humana, que a consciência normal.
Assim sendo, não há nenhuma razão científica para prosseguir neste sentido temerário. Há graves razões psicológicas, metafísicas e teológicas para rechaçar energicamente esta fonte de confusão. Não há razão científica, pois a ciência apóia-se no real, não sobre metáforas. E a partir do momento onde concebemos o homem como um composto substancial de alma e corpo, devemos pensar que não alcançamos, de modo algum, o fundo deste ser enquanto contentamo-nos em desvendar as motivações inconscientes de condutas neuróticas. O que é profundo, no homem, são suas faculdades espirituais, sua inteligência, sua vontade. O que é ainda mais profundo é a vida própria da sua alma investida pela divina graça e tornada o templo da Santíssima Trindade. Eis o que Freud e seus discípulos ignoram, e eis porque a Tiefenpsychologie goza de um prestigio usurpado pois ela não é, e nem pode ser, uma psicologia das autenticas profundezas.
III
Seja, nos responderiam, de boa vontade certos psicanalistas mais ansiosos por acordo que apegados a um vocabulário presunçoso, queremos conceder que existe outra coisa no homem e no universo além daquilo que Freud observou ou imaginou. Mas porque uma tal constatação de insuficiência dever-se-ia transformar em condenação? Se a psicanálise aceita a religião católica, por que o catolicismo não aceitaria a psicanálise? A isto, Mme. Maryse Choisy dedicou-se outrora a convencer-nos pelo seu livro intitulado “Psychanalyse et Catholicisme”, livrinho que abalou muitas consciências ainda hesitantes e atrapalhou mais de um leitor. Permiti-me citar-vos algumas passagens significativas onde revela-se o segundo equívoco que quis, antes do mais, dissipar:
Nunca compreendi porque uma religião fundada sobre o amor tinha tanto medo da sexualidade... O amor deve se situar em um encruzilhada biológico-somato-psico-espiritual, essencial para que, ao final de tantos milênios conserve ainda seu mistério, seus imperativos, seus interditos, sua energia, sua plasticidade — para que em 1950 seja indispensável citar os textos exatos de Freud sobre a libido, se não se quiser que sua teoria seja acusada de “pansexualismo” por um público que, entretanto, associa Deus e amor. Para ter tanto medo das palavras, estaríamos nós todos ainda na fase mágica?
Não é das palavras que temos medo, mas do sentido em que se as empregam e do uso que se faz delas. Mais exatamente, não temos medo de nada, mas não temos nenhuma razão para consentir com o contraditório e o erro. Leiamos ainda algumas linhas da mesma autora, e veremos qual preço ela quer fazer-nos pagar pelo acordo que nos propõe:
Um fato impressiona quem examina o aspecto puramente psicológico do amor é a qualidade especial do prazer sexual... Parece que desde o inicio, mesmo no plano somático, o orgasmo seja uma superação e aparenta-se já dum certo modo uma busca do infinito, a uma tentativa de romper os limites do conhecido.
O grande mérito de Freud é precisamente o de ter tentado uma aproximação “dinâmica” do problema sexual. Pioneiro entre os modernos, ele destacou a unidade profunda do amor. É a fonte comum da energia afetiva sob todas as suas formas. Depois disto não lhe resta senão estudar suas modalidades de transformação.
Se tivesse contentado em reduzir a energia afetiva ao amor como sua fonte, não teria tido outro mérito senão o de retornar à psicologia a mais tradicional, pois tal é o pensamento de Santo Tomás de Aquino tanto quanto de Santo Agostinho. Mas ele fez três coisas completamente diferentes, que caracterizam sua doutrina enquanto tal, e que, separando-a violentamente de tudo quanto não é ela, não permite a um católico concordar com ela sem renunciar ao que constitui sua própria doutrina do homem e de seu estatuto existencial.
Primeiramente, este amor, fonte de toda energia afetiva, Freud sexualizou-o radicalmente. Ao fazê-lo, estabeleceu um monopólio e uma finalidade que, no próprio plano da vida somática, são inconciliáveis com uma psicologia espiritualista pela qual o homem é necessariamente ordenado segundo uma hierarquia das sensações e das funções, todas subordinadas a uma finalidade que as transcende.
Em segundo lugar, Freud conferiu a este amor sexual uma unicidade e uma homogeneidade de natureza que não podem concordar de maneira alguma com as necessidades mais elementares de uma psicologia que professe a espiritualidade da alma. Para Freud e para todo discípulo fiel, toda a vida humana deriva com uma tal continuidade desta fonte única que as formas mais elevadas da atividade mental, da produção artística, do pensamento e da afetividade religiosas originam-se por sublimação. Um só e mesmo amor sexual, contrariado em suas plenas satisfações, transforma-se, mascara-se e libera-se por substituição. É o que Mde. Maryse Choisy chama “ a unidade profunda do amor”. Este monismo psicológico ignora a alma espiritual e suas funções especificas. Ele crê que uma fonte de água pura torna-se emissora de ondas hertzianas, simplesmente se impedirmos a água de correr. Por esta eliminação sistemática de diferenças constitutivas, ele vincula à identidade o que, na realidade psíquica, é irredutível. Ele tem por aceito aquilo o que a toda psicologia espiritualista é obrigada a negar. De fato, desde que se concebe o homem como constituído de um corpo e uma alma espiritual, não se pode, sob pretexto algum, aceitar representar suas atividades mais elevadas como procedentes, por sublimação, de seu amor sensível. As faculdades próprias da alma, inteligência e vontade, não possuem outra origem senão própria à alma. Elas se exercem no nível da alma e são capazes de tender para o mais espiritual dos objetos.
Neste nível, o amor é essencialmente distinto do amor sensível. Ele é o comprazimento da vontade num bem proporcionado a sua natureza. Se se tratar de outro ser humano, ele remete, naquele mesmo ser, para o que ele tem de espiritual. E quando se eleva até Deus, ele alcança a ordem do transcendente absoluto, absolutamente despojado de toda conotação sensível.
Em terceiro lugar, Freud deliberadamente recusou aquilo que constitui o essencial do amor cristão. Como não o faria? Para ele, a religião é um delírio, cuja prática decorre da neurose obsessional. Constrangidos a separar-se dele sobre neste ponto, que não se poderia, sem duvida, tratar como negligenciável, seus discípulos católicos tentam conciliar as exigências de sua fé e as exigências da Tiefenpsychologie estendendo a sublimação até à vida religiosa e ao amor místico. “Tudo se passa, escreveu Mde. M. Choisy, como se o amor fosse uma força cósmica, uma atração do centro do universo que se exerce sobre todos os planos do ente, uma pulsão ascensional da matéria a Deus. Seguramente encontraremos, na tradição originada nos Pseudo-Denis, à condição de proceder aos ajustes mais delicados, com que se por em harmonia com esta noção grandiosa de amor cósmico, mas do ponto de vista do que é essencial no estatuto da vida cristã, nada seria mais equívoco e perigoso que uma tal visão das coisas. Em realidade, o amor do qual vive a alma cristã não vem dela. Não apenas ela não vem das profundezas do amor sexual, mas nem sequer procede da alma espiritual nem das faculdades mais elevadas. Ele lhe é dado do alto. É um magnífico acréscimo que responde, não às exigências de nossa natureza, mas à infinita Bondade de Deus. É esta disposição intima, infusa pela graça, que a teologia chama a Caridade. Tal caridade constitui o ser humano em estado de amizade com Deus, amizade fundada sobre a comunicação da vida divina e da Beatitude eterna. Pode acontecer que tais noções sejam ininteligíveis a Freud e a seus discípulos. É uma grande lástima para eles. Mas sobre toda a superfície terrestre, coberta pelos cristãos que administram validamente o batismo, tal é, na ordem existencial, o estado real do homem. Ou bem renunciamos a fé cristã, ou obrigamo-nos a crer que é assim mesmo.
Eis porque nenhum acordo é possível com os psicanalistas que brincam com a ambigüidade semântica da palavra “amor”. Certamente, a religião cristã é fundada sobre o amor, mas o amor sobre o qual está fundado a religião cristã não tem absolutamente nada em comum com as vibrações paroxísticas do orgasmo sexual. É a essência pura e infinitamente espiritual de um Deus que compraz-se em sua perfeição infinita e que por condescendência infinitamente misericordiosa, comunica ao homem sua própria vida.
Três conseqüências capitais decorrem desta iniciativa divina:
1º — Longe de ser dotado de uma unidade profunda, o amor, no homem, é afetado por uma dupla descontinuidade. Descontinuidade, em primeiro lugar, nos limites da natureza, entre o amor-paixão ou sentimento e o amor da vontade. Descontinuidade, em seguida e sobretudo, entre o amor natural ao homem, e a caridade sobrenatural que é de origem divina.
2º — Longe de oferecer-se à análise como uma potência que seria lícito apreciar corretamente, para após corrigi-la, em virtude de uma adequação essencial com os elementos observáveis do psiquismo humano, o amor, no homem real, padece duma desproporção essencial do qual um texto capital de Santo Tomás põe a nu a raiz sobrenatural. Perguntando se a caridade é infusa no homem proporcionalmente à sua capacidade natural, Santo Tomás descobre no Novo Testamento o principio de sua resposta: “O Espírito sopra onde quer”, disse São João, e São Paulo precisa que é somente um único e mesmo Espírito que, distribuindo seus dons a cada um segundo Sua vontade, opera em nós todas as nossas atividades sobrenaturais. Conseqüentemente, não há dúvida possível: a caridade não depende nem da condição do conjunto da natureza onde ela é recebida, nem da capacidade do poder natural onde penetra, mas somente da vontade do Espírito Santo que distribui seus dons segundo seu agrado. Assim sendo, ou rejeitamos a revelação cristã e a teologia que a elabora, ou estamos obrigados a pensar que, na ordem existencial, o regime afetivo de cada um depende duma medida em que ninguém pode presumi-lo, da livre vontade de Deus e da comunicação de seu amor.
3º — Longe, portanto, de alcançar as reais profundezas do ser humano de tal como a natureza e a sobrenatureza conjugadas a ofereçam à sua análise, a “psicologia das profundezas” contenta-se com explorações espantosamente superficiais. O inconsciente que ela imagina para nele descobrir a raiz das neuroses mantém-se inteiramente exterior ao núcleo central onde se situa a vida verdadeiramente profunda de cada um de nós. Ela ignora os conflitos reais que mostram em nós as lutas de nossa liberdade contra as nossas paixões ou contra a graça. O verdadeiro inconsciente é aquele onde se cumprem as operações da graça. Não há, no ambiente cristão, análise psicológica adequada à realidade fora destas perspectivas existenciais. Eis porquê não é possível nenhum acordo sério entre catolicismo e psicanálise, enquanto a psicanálise pretender de atingir as profundezas do homem quando ela ignora-as e quer ignorá-las.
IV
Estes equívocos resolvidos, não é mais difícil compreender nossas hesitações, nossas reservas, nossas recusas. Cada vez que aprovamos o viés da psicanálise clássica, corremos o risco de perder não somente a nobreza natural do homem, criado à imagem de Deus, mas aquilo que constitui a riqueza característica do cristão, sua sobrenatural ligação de amizade com Deus. O que exige, portanto, esclarecimento é a facilidade com a qual tanto psicólogos, filósofos ou teólogos deram prestígio a Freud e subordinando à psicanálise os recursos de suas próprias disciplinas, adotam-na como uma aquisição científica tornada panacéia necessária.
A explicação, dirão, é evidente. A psicologia tradicional no Ocidente, tendo ignorado o inconsciente, permanecia desarmada diante das neuroses. Freud, descobrindo invariavelmente no inconsciente o meio de perscrutá-lo e uma terapêutica eficaz das neuroses, não há mais espaço para reivindicar os direitos de uma psicologia excessivamente restrita frente a uma inovação cujos benefícios são imensuráveis. Reservemos os direitos da psicologia espiritualista para a vida consciente, da teologia moral para a prática das virtudes sobrenaturais; dito de outra forma, deixemos Freud com sua doutrina e aceitemos só o seu método, mas não privemos nossos pacientes do único tratamento que os possa curar, e sobretudo guardemo-nos de restringi-los a uma lei antes que a psicanálise tenha-os liberado de sua enfermidade psíquica, e conseqüentemente moral.
Existe, nesta explicação, não duvidamos, algo de especioso, pois muitos espíritos satisfazem-se nela. Ela me parece entretanto uma mal dissimulada preguiça, uma terrível cegueira e uma certa deslealdade.
É preguiça, no plano cientifico, pois é uma atitude preguiçosa o persuadir-se facilmente de que Freud tinha, de fato, razão. Cegueira, pois, desde que abrimos os olhos sobre o arcabouço do real concreto, constatamos que esta estrutura não permite pensar que Freud tenha tido de fato razão. Deslealdade, pois é cientificamente impossível dissociar um método de uma doutrina que comanda todos seus esforços e que determina sua finalidade.
A técnica psicanalítica só tem sentido e razão de ser se tivermos por adquiridos ao menos alguns dos pontos fundamentais da doutrina freudiana. Não indicarei mais que três. Se não estimarmos a certa a existência do inconsciente, e inconsciente freudiano, o que quer dizer o produto da repressão, e repressão no sentido freudiano da palavra; se não admitirmos a noção freudiana de neurose como conseqüência de um trauma infantil de ordem sexual e como tradução dum conflito inconsciente; se não adotarmos a certeza freudiana de que a neurose se dissipa pela própria passagem do inconsciente ao consciente, é ilegítimo recorrer à psicanálise, pois então submeteríamos um doente a um tratamento que não teria nem razão de ser, nem chance de funcionar. Mas estas três convicções não são de ordem metodológica, mas de ordem dogmática. Elas pertencem à doutrina de Freud e por isso comandam seu método. É o motivo de não poderem impor-se senão àqueles que são incapazes de pensar livremente.
Recapitulemos começando pelo último. É seguro que uma neurose seja curada por pouco que se estenda o campo da consciência, até o seu motivo inconsciente? Sim, se a definição de neurose está correta — mas como então registra-se tantos fracassos? Certamente, a leitura dos livros de psicanálise seria divertida se não se tornasse rapidamente monótona. Neles temos o reino de sucesso absoluto. Dotado, graças ao seu método, dum poder infalível, a psicanálise sempre interpreta todos os sonhos, todas as associações, lidas como um livro aberto no inconsciente e sempre cura o seu cliente ao revelar-lhe que, se hoje ele é atormentado pelos escrúpulos, é porque ele quis matar seu pai quando tinha três dias. A realidade é muitas vezes bem diferente. Depois de submeter-se durante semanas, meses, anos a este tratamento que consiste em diminuir o uso de suas faculdades racionais para esforçar-se em liberar o conteúdo do inconsciente, muitos pacientes perdem a sua unidade psicológica e o seu equilíbrio basilar, experimentando a angustia de sentirem-se despedaçados e, descobrindo neles horrores que os desesperam, podem chegar a uma espécie de melancolia ansiosa que os inclina ao suicídio.
É confiável, além disso, que toda psico-neurose seja de origem infantil e de natureza sexual? Um pouco de pratica médica independente convence-nos rapidamente do contrário. Nossas atuais condições de vida e os problemas às vezes trágicos que elas trazem, engendram bastantes desordens neuróticas que não tem nada de sexuais.
Devemos ter por certas a existência e a natureza do inconsciente freudiano? Mais vale responder não que sim. Pois nem o homem nem o que nele pode-se classificar de inconsciente se reduzem ao que aprouve a Freud pensar deles. O homem não é somente um ser de carne e sangue cujas pulsões biológicas seriam censuradas por um superego de origem social e contraditório com as suas tendências espontâneas. Criado à imagem de Deus, o homem tem em sua própria estrutura a lei de sua grandeza e a exigência de uma ordem interna, capaz de satisfazer sua consciência e de realizar seu destino. Bem mais, desde que é investido pela graça do batismo torna-se o anfitrião do Deus vivo que habita nas profundezas de sua alma e que deseja abranger de todo o seu ser interior pelo continuo desdobramento de sua ação secreta. Tal é o inconsciente do cristão. Se, por livre escolha, o homem recusa esta habitação divina, uma luta enceta-se entre o pecado e a misericórdia: este é um dos conflitos fundamentais que atormentam as almas em ambiente cristão. É contraditório com os dados imediatos da ordem existencial conceber um inconsciente que seria definido só como Freud creu ser possível definir.
Se quisermos respeitar fielmente a estrutura das coisas e a natureza da psicanálise clássica, será preciso dar um passo além, neste sentido. Em realidade, não podemos apenas denunciar o arbitrário e o insuficiente deste método psicanalítico: devemos assumir que entre esta técnica e a espiritualidade viva do cristão há antinomia de dinamismo. Cada uma, de fato, é um movimento orientado num determinado sentido. Ora, estes dois são contrários. A técnica psicanalítica, solicitando do neurótico um relato espontâneo e sem controle, através de puras associações, de suas imagens, sonhos e lembranças as mais incoerentes, encaminha-o para um passado infantil considerado, pelo psicanalista, como repleto de sentimentos conflitantes, para não dizer dos mais absurdos ou obscenos. Conta-se assim alcançar uma tomada de consciência donde se espera a cura, mas que nada assegura que ela mesma não constitua um novo traumatismo, pior que aquele que desejara curar. Partindo, ao contrário, da presença real de Deus na alma batizada, o dinamismo próprio da vida espiritual tende ao fim beatificante da existência real, desenvolvendo ao máximo as capacidades superiores, dilatando, sem outro limite que não a vontade de Deus, as disposições cujo exercício pleno e cuja harmonia Ele assegura; oposto a todo fartar-se de si mesmo, a toda regressão, ele procura não somente um desenvolvimento o mais aperfeiçoado da pessoa humana, mas sua fecundidade social e sua eficiência sobrenatural no corpo místico do Cristo. Comparado a este método constantemente progressivo e divinamente humano, o método psicanalítico parece como uma obsessão dissolvente dum espírito frustrado das mais sublimes realidades da vida cristã — no que ela é eficaz, de fato.
Mas, dir-me-eis, esta comparação é falaciosa, pois a psicanálise e a espiritualidade não se situam no mesmo plano nem no mesmo momento da vida humana. Destinado a liberar o homem das obsedantes neuroses o seu desenvolvimento, a psicanálise não é mais que uma serva da espiritualidade. Deixai-a fazer sua obra própria: a graça será a beneficiária.
É o que pensam os filósofos e os teólogos apaixonados pela psicanálise. E é em reduzir a psicanálise a este papel subalterno que eles esperam pô-la em consonância com as exigências da moral cristã e da espiritualidade. Mas reduzir a psicanálise a este papel subalterno, é fazê-la outra coisa diferente daquela que Freud, e mesmo Adler e mesmo Jung fizeram. Desde que admitamos que o método psicanalítico deva inscrever-se numa psicologia espiritualista e mesmo desaguar-se em dinamismo sobrenatural, não se deve trapacear. Ele precisa evitar a preguiça que se inclina a derramar vinho novo em odres velhos. É preciso deixar de ser discípulo para tornar-se criador. É preciso conceber um método de investigação psicológica que, renunciando ao mecanismo pessimista e unilateral de Freud e adaptando-se aos dados essenciais do dogma e do dinamismo espiritual do homem, verdadeiramente enfrente este abismo autentico do coração humano, fustigado por mil paixões devorantes, mas aberto pela graça à infinidade de Deus. Se se quer ter o direito de perscrutar a alma divinizada do homem em sua situação existencial, não basta aplicar, valha o que valer, um método que só é suficiente numa doutrina de materialismo ateu. É preciso inventar o método adequado ao elemento que realmente importa estudar. Pois, se não se faz este esforço criador, arriscamo-nos simplesmente, sob o pretexto de querer curar, matar as células mais vivas no corpo místico do Cristo.
V
O humor da Providência é algumas vezes cruel com as nossas infidelidades. Enquanto que, finalmente seduzidos pelo prestígio da psicanálise, católicos, teólogos não hesitam mais em aderir ao freudismo, a evolução interna da psicanálise acaba de conduzi-la quase ao ponto aonde declarei que seria preciso que ela fosse levada pelo esforço criador dos teólogos. E por um significativo acréscimo de elegância, é em Viena mesmo, na pátria do freudismo, que tal evolução vem a acontecer. A bem dizer, é antes uma revolução ou, como diz o seu autor em um termo intraduzível, uma transvaloração, uma Umwertung. O autor desta revolução é um psicólogo vienense com quem já tive a honra de conversar na capital da Áustria, o Dr. Wilfred Daim. Influenciado em parte por Frankl, e sobretudo por Igor Caruso, a obra do Sr. Daim, que promete ser considerável e decisiva, começou se fazer conhecer por um volume memorável intitulado Die Umwertung der Psychoanalysis, publicada pela Herold em 1951, e cuja tradução francesa aparecerá pela Páscoa nas Editions Albin Michel. Eu vos convido a dedicar-vos a este livro se vós quereis saber aonde vai a psicanálise e aonde ela deve ir.
O essencial desta Umwertung consiste nisto. Fundamentalmente dinâmica, a psicanálise de M. Daim está inteiramente dirigida pelo seguinte principio. A vida da alma tem uma estrutura normal, quer dizer, uma orientação natural. Naturalmente, a vida da alma é orientada para o Absoluto ontológico, isto é, para Deus. A raiz da neurose acha-se na substituição do Absoluto autêntico por um falso absoluto.
Para esclarecer sua doutrina, o Dr. Daim propõe uma imagem mui sugestiva. Podemos comparar, diz ele, a estrutura natural da alma à curva chamada parábola. Esta curva é caracterizada pelo fato de possuir dois centros, um deles situado no infinito··. Eis o porque da curva ser aberta. Esta parábola simboliza o mundo e seus diversos objetos. O primeiro centro, situado sob nossa vista, representa a pessoa humana; o outro, situado no infinito, representa Deus. Cada objeto do mundo, situado sobre a parábola, tem duas relações: uma com o centro-pessoa; outra com o centro-Deus. Deste modo ninguém pode alcançar nenhum destes objetos sem ser orientado por eles para Deus, de modo que, de toda maneira, seja direta ou indiretamente, a pessoa está em relação com o Absoluto autentico e único. Sua vida esta aberta sobre ele. Tudo está ordenado. Não há lugar para um conflito, logo para uma neurose.
Suponhamos agora que em lugar de respeitar esta ordem natural, a pessoa atribua um valor absoluto a qualquer um dos objetos situados sobre a parábola. O que ocorre? Acontece que este objeto finito, limitado, substitui o centro da parábola situado no infinito. Em lugar de conservar sua relação natural com o verdadeiro Absoluto que é Deus, o homem, absolutizando por seu próprio arbítrio um ser relativo, criou para um deus subjetivo. Substituiu o verdadeiro Deus por um ídolo. Por isso mesmo, tudo se passa para ele como se tivesse trazido para o finito o centro situado no infinito. A parábola fecha-se sobre este segundo centro e transforma-se em uma elipse. Desde que um conteúdo da realidade criada é elevado ao nível de Deus, toda atitude frente à realidade é modificada. O ídolo não corresponde à realidade objetiva. O servidor do ídolo vê-se então obrigado a mentir à realidade, ou antes mudar nele mesmo a realidade em mentira. A realidade está ordenada parabolicamente, em universal abertura para Deus. Obrigado a viver no mundo elíptico e fechado de seu ídolo, o homem não mais pode ver as coisas tais como são. Ele as reprime. Ele não pode confessar para si mesmo esta repressão sem ser logo obrigado a abandonar seu ídolo. Posto assim em contradição com toda a realidade, o servidor do ídolo sofre um conflito interior. Ele não pode, efetivamente, falsear a realidade exterior em proveito de um sistema idolátrico sem falsear, conseqüentemente, sua realidade interior onde instalam-se os complexos. Ordenada para Deus, a alma humana permanece insatisfeita e descontente tanto quanto tempo ela estiver ligada a seu ídolo e não a Deus.
É neste conflito fundamental que o Dr. Daim enxerga a base da neurose.
Ele concorda com Freud que o ídolo é comumente um objeto de pulsão infantil. A criança confere um valor absoluto aos seus pais,seus mestres. A arte da educação consiste em dar a cada ser seu valor relativo. Se tal relativização , freqüentemente dramática, fracassa, resulta aquilo que Freud chamou de “fixação”. Esta fixação consiste precisamente em conservar a esfera do absoluto infantil. Para aquele que é assim “fixado”, a realidade permanece, pois, dirigida para um ídolo infantil. Daim concede ainda a Freud a conveniência de atribuir uma importância primordial aos elementos sexuais. Mas ele retoma logo sua independência e sua originalidade ao lembrar que, na própria medida em que este objeto de pulsão é absolutizado, encontramo-nos em plena problemática espiritual, problemática que Freud não abriu. O homem, declara veemente o Dr. Daim, é sempre um ser biológico E espiritual. Nunca é somente anjo ou animal. Não se deve, portanto, escrutar apenas os dinamismos do desenvolvimento dos instintos. É preciso apresentar a problemática espiritual. Pois a capacidade essencial de todos os homens, aquela que, em última análise, caracteriza o homem como diferente do animal, é o poder de ter um absoluto; mais exatamente, de achar-se na necessidade de tê-lo. É o que dizia Max Scheler: o homem possui ou um Deus ou um ídolo.
Isto posto, o Dr. Daim definiu a terapêutica psicanalítica como a acomodação da vida da alma à realidade plena. Tal acomodação inclui necessariamente a redução do falso absoluto ao relativo. É só por esta relativização que o núcleo da pessoa está liberado. Segue-se daí que o processo psicoterapeutico não visa unicamente, nem mesmo principalmente, evocar os complexos na consciência, mas a faze tomar consciência do ídolo e destitui-lo de seu caráter absoluto. Sobre o que, observa Dr. Daim, está operação é temível. Atingindo a posição mais central do homem, da sua existência em si, e a ninguém agradando separar-se de seu ídolo, esta relativização beira sempre ao suicídio. Mas é somente a este preço que se torna livre a via para Deus e para o desdobramento ilimitado do Eu. Assim está assegurada a adaptação da vida da alma à realidade plena, que inclui Deus.
Umwertang, conclui Dr. Daim empunhando o vocabulário religioso, pois assim a psicanálise passa do 6º mandamento para o primeiro. Enquanto Freud limitava sua psicanálise à pesquisa da própria pulsão, tanto Daim a aprofundava até a problemática espiritual qualificando como falso absoluto os objetos de tais pulsões, e assinalando como dever essencial da psicanálise a redução de todos os ídolos ao seu ser relativo, e como finalidade própria dela a pacificação da alma, restabelecida em sua orientação natural para o verdadeiro Deus.
O que se passou? Um duplo acontecimento, cuja significação histórica e doutrinaria é considerável. Antes de mais nada, por querer-se ser igualmente fiel às luzes conjugadas de sua razão e de sua fé e às lições de sua experiência psicanalítica, o Dr. Daim enfim transformou a psicanálise naquilo que ela devia ser para merecer o nome que foi-lhe conferido indevidamente por seu inventor. Entre suas mãos, pela primeira vez, esta técnica torna-se a analise da alma real, tomada em sua vida concreta e tratada em sua relação existencial com o mundo e com Deus.
Ora, desde que, ultrapassando os limites arbitrários onde a haviam encerrado o ateísmo materialista do Dr. Sigmund Freud e a excessiva docilidade de seus discípulos, a psicanálise alcança as autenticas profundidades do ser humano e a realidade onde ela move-se; ela reencontra um dos temas mais primordiais, mais profundos, mais constantes da tradição cristã: Fecisti nos ad te, Deus, et inquietum est cor nostrum donec requiscat in te, exclamava Santo Agostinho condensando, no começo das suas Confissões, todas as lições de sua dolorosa experiência: “Tu nos fizestes para Ti, ó Deus, e nosso coração está sem repouso enquanto não repousa em Ti!”.
Arrebatador, o encontro não pode deixar de ser decisivo. É necessário explicitar toda sua importância? Enquanto que, seduzidos pelos prestígios usurpados duma mui superficial “psicologia das profundezas”, muitos dos defensores naturais da espiritualidade cristã bandearam-se para o inimigo, intimando-nos a ter como legitimas e definitivas as conquistas de um método psicoterapeutico originariamente ateu, eis que, metamorfoseado pelo audacioso labor dum técnico de gênio, é a psicanálise que consente em adaptar-se às exigências fundamentais da metafísica, da teologia e da espiritualidade. Sem duvida, a metamorfose ainda está incompleta. O Dr. Daim, não tendo explicitado as fronteiras entre a natureza e o sobrenatural, não parece preocupar-se com as livres iniciativas da graça. Mas não perderemos nada por esperar. Sua próxima obra, no prelo, tratará sobre as relações entre a psicanálise e a Redenção.
É então a ele que convém, doravante, observar. Seu esforço merece nossos encorajamentos mais calorosos. É dele que é permitido esperar a colaboração mais legitima e fecunda. Liberta de todos os equívocos, a psicanálise vai poder trabalhar eficazmente em promover a integridade do homem em franca cooperação e na mesma direção com a moral cristã e espiritualidade.
Nada seria mais desejável que um tal acordo, nada nos regozijaria mais fortemente que a certeza de que ele pode ser enfim fechado. Mas seria indiscrição extrair desta historia uma lição que periga, é lamentável! ficar muito tempo oportuna, e sobre todos os demais campos? Não é jamais pondo a verdade na obscuridade ou agindo como se eles fossem detentores de riquezas infinitas que os católicos poderão conquistar a estima dos homens e o direito de cumprir neste mundo o dever que têm por missão cumprir. É sempre sustentando com força o rigor de suas exigências doutrinarias e utilizando ao máximo os recursos que lhes prodigaliza a munificência do Senhor, que eles imporão a seus irmãos o salutar constrangimento de todos os excessos e contribuirão para o progresso em todas os campos, digamos, ao menos, que eles não se exporão mais, então, a arrastar-se na retaguarda quando todos já terão chegado.
(Traduzido do de “La Pense Catholique” nº35, 1955)