Pretendendo invalidar as refutações que tenho produzido contra suas erradas apreciações históricas, voltou de novo o Sr. pastor Alvaro Reis, que não se dedigna de comigo cruzar as armas do debate, posto que (diz ele) já me conheça a ousadia e indelicadeza.
Protesto, pela ordem, contra esta injustiça, que também é contrária a verdade. Espalha-se aí um livro meu, Heresia protestante, contendo uma longa série de artigos em que impugnei graves lapsos doutrinais do Sr. pastor; e em tamanha cópia de páginas não se encontra uma só grosseria endereçada ao meu adversário, que, aliás, como bem se depreende de alguns trechos ali transcritos, não raro baixou ao emprego de motejos e invectivas.
Ainda agora, no segundo artigo da sua réplica, o Sr. pastor já se inflama e textualmente prorompe nesta delicadeza: — "V.S. faltou indignamente à verdade." Apelo para os que nos estão lendo, e eles que digam se jamais usei de tais gentilezas para com o meu antagonista, contra quem me não anima o menor sentimento de ódio, e no qual antes vejo um contendor ideal e cômodo, que me depara oportuno ensejo para escritos de polêmica, pois, não obstante os seus estudos especiais (ou mesmo por causa deles) absolutamente não me obriga a maior esforço, — tão patentes e fáceis de corrigir são os seus deslizes.
Ainda que, todavia, me afastara eu de hábitos que não tenho e usasse de palavras conviciosas, mesmo nisto nada mais faria do que seguir o exemplo de alguém que ao Sr. pastor deve parecer bom modelo: quero falar de Calvino.
Lido (como é provável que seja) o Sr. pastor na história da rebelião protestante, impropriamente denominada Reforma, não há de ignorar com que ousadia e indelicadeza escrevia aquele heresiarca. Peço vênia para em latim, que nos vocábulos brave l'honnête, aqui recordar os epítetos por ele aplicados aos padres do Concílio de Trento. Chamava-os: — indoctos, quisquilios, asinos, porcos, pecudes, crassos boves, Antichristi legatos, blaterones, magnae meretricis filios... A tanto jamais eu me atreveria com relação ao Sr. pastor.
Vamos, porém, à matéria. O Sr. Álvaro não se cansa de dar à manivela, repetindo a estafada cantiga da matança de S. Bartolomeu. Que andaram muito mal os católicos que então mataram protestantes — é coisa que não se discute. Mas que tal se fizesse de ordem ou por conselho ou com aplauso do Papa é falsíssimo. E também não resiste à menor análise que entre os lamentáveis morticínios então ocorridos por motivo de malquerenças religiosas, somente os católicos se tornaram culpados de excessos.
Que o Papa, Gregório XIII, autorizou demonstrações de regozijo, quando a Roma chegou a notícia, nunca se contestou; mas com irrefragáveis testemunhos se prova que, assim procedendo, apenas quis significar o júbilo, aliás partilhado por todas as nações católicas, pelo fato de haver naufragado em França uma temerosa conspiração que ali contra a autoridade real tinham maquinado os huguenotes.
O Sr. pastor apega-se à história dos papas de Lachatre. Faz mal. Estudar os fatos à luz desse historiador é descritério não menor que o de quem, desejando saber teologia, tomasse para compêndio o livro do João do Rio, ou acaso pretendera estudar história sacra nos artigos da Sra. Carmen Dolores.
O citado Lachartre serve-se de Brantôme, para demonstrar a aprovação do morticínio pelo Sumo Pontífice; mas procede com requintada má fé. No mesmo Brantôme vou mostrar a justificação do Papa:
"Como alguns dos Srs. Cardeais, que perto dele se achavam, lhe perguntassem porque chorava e se entristecia, vendo assim despachados aqueles infelizes, inimigos de Deus e de Sua Santidade: — Deploro, retorquiu o Papa, a maneira de que usou o Rei, demasiado ilícita e proibida por Deus, para efetuar tal punição. receio que sobre ele caia um castigo... E também temo que, no meio de tanta gente morta, não hajam morrido tantos inocentes quantos culpados." (T. IV, pág. 306)
Ora, aí está, meu delicado e mansueto pastor. É Brantôme, invocado pelo tal Lachatre, quem nos dá testemunho dos verdadeiros sentimentos do Papa. O Sr. Álvaro há de enganar-se muito com os seus autores de fancaria! Eu lhe aconselho que em melhores fontes procure informar-se. Foi uma peça de todos os diabos essa que lhe pregou agora o Lachatre.
Quando como embaixador esteve Chateaubriand em Roma, pôde obter a correspondência de Gregório XIII com o núncio Salviati, e dela deu conhecimento a James Mackintosh, que a inseriu na sua History of England. Trata igualmente disso Sismondi, Histoire des Français, tomo XII. Estes informes eu facilmente os acho com a nota do Cantú sobre a matança de S. Bartolomeu; e então conclui o sábio historiador italiano que — "de tudo resulta não conhecer o núncio, no momento da execução, as dissensões que agitavam a corte de França." O Papa, por conseguinte, nem antes conhecia, nem depois aprovou aqueles terríveis sucessos.
Bem é de nota que Brantôme, ao citar as supra-transcriptas palavras do Pontífice, engana-se atribuindo a outro Papa, Pio V — que morreu quatro meses antes do morticínio. Era efetivamente Gregório XIII, eleito a 15 de Maio de 1572, quem ocupava a 24 de Agosto o sólio pontifício.
Alega o Sr. Álvaro, em abono da sua infundada opinião, uma balela, segundo a qual a cabeça de Coligny teria sido enviada ao Sumo Pontífice. Quer o Sr. pastor conhecer sobre isto a opinião de um protestante sério e que honestamente cultivou a história, procurando escrevê-la com a devida imparcialidade? Pois abra comigo a Histoire de France, de Guizot, e corretamente aprenderá o que sobre isto se deve pensar.
"Embalsamaram-na cuidadosamente (diz ele, falando da cabeça do almirante) para enviá-la, diz-se, a Roma. O que é certo é que, poucos dias depois, Mandelot, governador de Lion, escreveu ao rei:
"Recebi, senhor, a carta que a Vossa Majestade aprouve mandar-me, e na qual me comunica haver tido advertência de que de lá partiu um homem, com a cabeça que teria tomado ao almirante, depois deste haver sido morto, para levá-la a Roma; e que eu providenciasse, quando o dito homem chegasse a esta cidade, para mandá-lo prender e tirar-lhe a dita cabeça. Ao que logo dei tão pronto cumprimento que, se acaso aparecer o homem, há de ser executada a ordem que a Vossa Majestade aprouve dar-me. Mas, nestes dias ninguém por esta cidade passou, com direção às bandas de Roma, senão um escudeiro do duque de Guise, de nome Paulo, o qual partira havia já quatro horas do mesmo dia em que recebi a dita carta de Vossa Majestade."
"Em nenhuma outra parte (conclui o insuspeito Guizot) achei, sobre este incidente, informação alguma que vá além desta resposta do governador de Lion a Carlos IX." (Histoire de France, tomo III, pag. 354).
Guizot assim prova que, se algum fanático teve a lúgubre idéia, não deve esta ser imputada ao rei, cuja memória já tamanhas responsabilidades infelizmente carrega. Guizot, outrossim, dispondo de arquivos e de valiosíssimos meios para chegar à verdade, nada mais encontrou, e emprega o dubitativo — diz-se, dit-on... O Sr. Álvaro, porém, afirma versando em Lachatre... Risum
Escusado é dizer que, protestante muito embora, Guizot não era do número desses rancorosos sectários que de tudo fazem ainda mesmo arriscando-se a conspurcar as mãos no lodo que atiram aos contrários. Assim sobre os morticínios oriundos de paixões religiosas tem ele uma opinião que extremamente se assemelha à do católico Cesar Cantú, já por mim transcrito em anterior artigo — tanto é certo que, usando de boa fé, podem aproximar-se os homens de bem, por mais que os separem suas convicções religiosas e políticas.
Ouçamos o veredicto do sábio protestante:
"É um engano e uma injustiça demasiado comuns fazer pesar exclusivamente tais fatos e a reprovação que eles merecem, sobre os grandes atores históricos a cujo nome se ligam; os povos, não raro, foram os principais culpados; muitas vezes precederam e impeliram os soberanos aos desastrosos atentados que macularam a história; e não somente sobre os chefes, mas também sobre as turbas deve pesar a justa sentença da posteridade. Em se falando da matança de São Bartolomeu, logo parece que Carlos IX, Catarina de Médicis e os Guiso saem dos túmulos para ouvir tal sentença; Deus me livre de os isentar disso; ela, porém, igualmente fere as gerações anônimas daquele tempo; e os morticínios por motivo de religião antes começaram por mãos populares que por vontades régias... A mor parte, como era de esperar, são atos de católicos, que eram os mais numerosos, e mais freqüentemente vencedores; porém protestantes também às vezes tomaram parte no trágico catálogo, e quando eu nisso os encontrar, não os omitirei." (Op. cit. pág. 294).
Guizot não calunia o Papa. a isto se opunha a sua probidade história... E mais adiante:
"O morticínio (massacre), e a este vocábulo não acrescento nenhuma idéia especial, era uma idéia, um hábito, direi quase uma praxe familiar a esse século (o décimo sexto) e que nem excitava a surpresa, nem o horror que em nossos dias suscita. Tão pouco respeito então se tinha à vida humana e à verdade nas relações entre homens! Não é que os sentimento naturais, que são a honra da humanidade, estivessem de todo extintos nas almas; aqui e ali reapareciam protestando contra os vícios e os crimes da época; mas eram por demais frágeis para eficazmente lutar contra o império das paixões e dos interesses pessoais, dos ódios e das esperanças atrozes, dos desvarios intelectuais e das corrupções morais. Enganar e matar eram atos tão vulgares, que de tal já ninguém se espantava, e todos a isso de antemão se resignavam." (Op. cit., pág. 335.)
Desconhecendo esta feição característica das lutas religiosas na quadra em questão, o Sr. Álvaro acredita, ou finge acreditar, que a matança de 1572 foi um fato isolado, esporádico, uma degolação de inocentes perpetrada pelos Herodes católicos, tendo à frente um Papa façanhudo e sanguinário! É ridículo; sê-lo-ia para qualquer calouro medianamente versado na história moderna; é quase inacreditável em um sujeito que blasona de especialista.
Muito de indústria limito a questão a seus termos principais, evitando as digressões, repetições e mais amolações que aos escritos do Sr. Álvaro dão aquela fisionomia tão rebarbativa, que até no Capistrano de Abreu, velho rato de biblioteca, inspiraram justo pavor; e para todo espírito lúcido e reto ficará demonstrado:
1o. Que nas guerras de religião em França e alhures, a fereza e desumanidade não eram apanágio dos católicos, mas também de huguenotes, uns e outros demasiando-se em deploráveis carnificinas;
2o. Que nenhuma parte coube ao Papa Gregório XII na matança chamada de S. Bartolomeu, nem antes, porque não conhecia o grau de tensão atingido pelas dissensões religiosas em França, nem depois, porque não aprovou tais demasias, antes as lamentou com sinceras lágrimas, no dizer do próprio Brantôme, a que se apegam Lachatre e Álvaro;
3o. Que a historieta da cabeça de Colligny enviada a Roma foi estudada por Guizot, e apenas há sobre o caso uma carta oficial, de que se apura a inculpabilidade de Carlos IX em tal incidente, que o egrégio historiador francês reduz a simples boato: — diz-se... dit-on...
E 4o., finalmente, que, mui dissociado da crítica sã e imparcial, o Sr. Álvaro Reis vive a divulgar caraminholas, logrando talvez impingi-las a seus fiéis menos espertos, mas caindo no desfruto a pretensão de propiná-las a quem quer que regularmente haja lido história.
Muito sinto desagradar ao Sr. Pastor com a minha proverbial ousadia e indelicadeza, e peço que mas desculpe por amor da verdade que lhe estou ministrando.
A mão do operador nem sempre é delicada; mas tudo se lhe perdoa pela intenção caridosa que a leva, armada de ferro e não metida em penugens, até às profundezas do organismo enfermo.
E até breve.
(15 de Abril de 1909)