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Em Paris

Gustavo Corção

 

No mesmo número em que rememora os sucessos e a fascinação de Adolf Hitler, a revista francesa de maior tiragem, Paris-Match, dedica uma página inteira à figura de Dom Hélder Câmara a gritar, no Palais des Sports, a vinte mil ouvintes, a frase que o jornalista destaca: “oui, dans mon pays on torture”. E o autor da reportagem, Jean Cau, não somente acredita na sinceridade do orador como também a admira. E admira os jovens que correm a ouvir Dom Hélder; e assinala, com a maior simpatia do mundo, a presença do Arcebispo de Paris, na primeira fila dos ouvintes.

Mas o curioso aspecto dessa reportagem está nas fotografias, mais do que nos comentários fabricados por um profissional que está “por fora” e não esconde o seu sentimento de estar em terra alheia e em mundo desconhecido.

O conferencista leva a Paris a notícia de que o Brasil é um país onde se torturam os presos, e onde esse comportamento, longe de ser acidental, emana do próprio sistema que governa o país. Ora, o que se vê no auditório é uma multidão de rostos sorridentes. O Arcebispo de Paris sorri como se estivesse a acompanhar acrobacias ou palhaçadas. E o repórter depaysé tenta inculcar a ideia de que Dom Hélder esteja a demonstrar uma grande coragem, dada a incrível ferocidade do povo brasileiro, mas não consegue a modulação estilística que se impunha para tornar convincente a “coragem” de Dom Hélder.

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Em tudo isto, que já bastava para nos encher de vergonha e tristeza, eu não me impressiono demais com o personagem Hélder Câmara e com o seu sucesso. Na mesma revista rememoramos o personagem Hitler e o seu sucesso. Em vão procuraríamos em Hélder e em Adolf o ramalhete de qualidades peregrinas ou de vícios geniais que explicassem o sucesso. Uma das maiores e mais torpes tentações do espírito humano é a que o leva a se prosternar diante do sucesso. Adolf Hitler era um pobre títere, insignificante e destinado a voltar ao pó sem deixar nenhuma lembrança na mente dos homens se um conjunto de circunstâncias o não tivesse colocado no pedestal da esperança de um povo ressentido.

O que espanta nesses espetáculos não é Hitler nem Hélder, são os “outros”; é a multidão que se eletriza e que elege, inventa, ou julga descobrir um representante de uma secreta ressonância. A reportagem de Jean Cau não prova que Dom Hélder esteja fazendo um sucesso doido em Paris; prova que Paris se tornou capaz de produzir tal phenomêne.

Lendo a reportagem de Jean Cau e examinando as fotografias que a ilustram, eu sinto duas vergonhas profundas. A primeira é a de imaginar que é um brasileiro, cearense, e ainda por cima arcebispo, que está espalhando no estrangeiro a difamação da pátria que cumpriu o dever de expulsar e reprimir os comunistas. A segunda vergonha, mais profunda, é a de ver Paris ouvir com tamanha atenção um personagem que aqui no Brasil só conseguiu cativar a meia dúzia de senhoras e senhoritas que o serviram no Palácio São Joaquim. Parece inevitável esta conclusão: o planeta está acometido de um ataque de estupidez. Há uma depressão cultural, uma bolha na história, um buraco em vez de pedra no caminho do homem, e parece que Paris, Tout-Paris, caiu nesse buraco. O sucesso de nosso Hélder Câmara em Paris prova aquilo a que já me referi em vários artigos: Paris é o centro da guerra revolucionária, a capital da contestação, o foco da peste que imbeciliza o mundo. E é esta contestação inevitável que me mergulha numa envergonhada melancolia como se no Palais des Sports estivesse sendo vaiada, ou por derrisão aplaudida a caricatura do Homem.

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Um amigo meu estava outro dia no Galeão e, sem querer, assistiu à chegada de Dom Hélder. Chegou, com sua batina e sua mala. Ninguém o esperava. Até aqui não se admirou meu amigo, e até se algum francês estivesse no Galeão seria capaz de atribuir tal apagamento à humildade de Dom Hélder. Mas meu amigo teve a ideia de seguir de longe a trajetória do padre até o momento em que tomou um taxi e observou o seguinte: ninguém, absolutamente, ninguém aproximou-se de Dom Hélder, cumprimentou, sorriu-lhe.

Mas então como se explica a popularidade em Paris? A chave não está no valor próprio do personagem; nem está no campo de força da multidão. Onde está então? Creio que a explicação que se impõe é esta: o fenômeno é produzido e comandado por um “aparelho” que organiza, promove e escolhe seus títeres e seu público. Sem esse “aparelho” Dom Hélder volta ao pó do andar térreo do Palácio São Joaquim.

E de onde vem a força e o comando desse “aparelho”? Não sei. Devem estar relacionadas com as conhecidas organizações que assaltam a Igreja e aprisionam o Papa. Mas quem é que puxa os cordões que fazem Dom Hélder abrir os braços, abrir a boca, parolar, e faz o Arcebispo D. Marthy sorrir beatamente? Quem é que comanda o “aparelho” que imbeciliza durante uma ou duas horas vinte mil parisienses? Não sei, mas tenho uma pista, uma desconfiança.

 

(O Globo, 20/06/1970)

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