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Machado de Assis e o Eclesiastes

Gustavo Corção

 

Num artigo do mês passado, sugeri a leitura de Machado de Assis a quem desejasse apurar o ouvido para o áspero e aflitivo timbre do Eclesiastes. Reciprocamente, sugiro hoje a leitura do livro atribuído a Salomão a quem desejar compreender um pouco melhor o famoso pessimismo de Machado de Assis. “No Eclesiastes há tudo para todos” dizia em 1895 o cronista da Semana. Haverá, pois, para os críticos uma chave que permita abrir os cofres secretos desse mesmo autor que em outra crônica, de 1893, escrevia: “Onde há muitos bens, há muitos que os coma, diz o Eclesiastes, e eu não quero outro manual de sabedoria”

São numerosas as passagens em que Machado se refere a esse manual de sabedoria tão adequado ao seu estilo, mas o que nos autoriza a dizer que o livro sagrado exerceu poderosa influência sobre o autor de Brás Cubas não é a frequência da citação. É antes a profunda, a misteriosa perspicácia com que Machado penetrou o espírito do angustiado Qohelet.

Naquele artigo de janeiro, se o leitor porventura ainda se lembra, seguíamos a hermenêutica traçada por sábios comentadores, pela qual o Eclesiastes seria um livro existencial, uma espécie de filosofia do absurdo, um manual de contrassenso escrito na pauta da limitação marcada pelos horizontes terrenos. Se a sorte do homem é o que se vê, sob o sol, então a vida é absurda. A forte estimulação desse livro consiste na confiança incondicionalmente posta na fé dos mandamentos. Esses, aconteça o que acontecer, não podem ser absurdos. Serão incompreensíveis como os sofrimentos de Jó e como o sacrifício pedido a Abraão. No dinamismo das propulsões negativas, ou melhor, do vácuo produzido por essa bomba pneumática, tira-se a conclusão: a sorte do homem não pode limitar-se ao que se vê. Ou ainda, do que se vê tira-se um prenúncio do que está escondido.

Os autores das modernas filosofias do absurdo optaram pelo absurdo. O que vale dizer que não optaram, que ficaram detidos, imobilizados, sem ímpetos para atravessar o espelho e entrar no mundo das maravilhas. Dessa paralisação da inteligência resulta um pessimismo real, profundo, desconsolado e cínico que não era, de modo algum, o pensamento de Machado de Assis. Melhor do que a maioria de nossos críticos viu o inglês que comentou a tradução de Brás Cubas e que assinalou o pessimismo estimulante do grande brasileiro.

Até seus últimos dias, na desolação da velhice e da viuvez, Machado de Assis conserva intacto o senso moral. Se nos romances parece ter atingido um cansaço de vida e um desconsolo supremo, aí está sua correspondência para nos mostrar o outro lado do homem que persiste em crer no homem e na realidade moral. E a explicação desse dualismo está no Eclesiastes, ou melhor, naquilo que falta ao Eclesiastes que é um livro onde o principal é justamente aquilo que falta: a descoberta da transcendência de nosso destino, a notícia da ressurreição. O princípio da complementariedade que tem tanta importância na física moderna, e que dá uma das regras capitais para a interpretação do Livro Santo, mostra-nos o desolado discurso de Qohelet como um sequioso apelo à outra metade da história que só muito mais tarde será revelada. O sábio louco diz “tenho sede” como o Cristo na Cruz, momentos antes da ressurreição. Sede de complemento, de completação, de consumação. Sede de solução.

Ora, há uma passagem onde se vê claramente que Machado de Assis compreendeu essa complementariedade dos mistérios de Cristo, e onde, ao Eclesiastes contrapõe o Sermão da Montanha. Em 25 de março de 1894, o cronista da Semana, disfarçando com guizos de frivolidade sua sabedoria, entra a descrever um Ofício da Paixão a que assistira. E termina assim a crônica com aquele seu ar de quem não sabe que está dizendo coisas enormes:

“Soou o cantochão. Chegou-me o incenso. A imaginação deixou-se-me embalar pela música e inebriar pelo aroma, duas fortes asas que a levaram de oeste a leste. Atrás dela foi o coração, tornado à simpleza antiga. E eu ressurgi, antes de Jesus. E Jesus apareceu-me antes de morto e ressuscitado, como nos dias em que rodeava a Galileia, e, abrindo os lábios, disse-me que a sua palavra dá solução a tudo.

— Senhor, disse eu então, a vida é aflitiva, e aí está o Eclesiastes que diz ter visto as lágrimas dos inocentes, e que ninguém os consolava.

— Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados.

— Vede a injustiça do mundo. “Nem sempre o prêmio é dos que melhor correm, diz ainda o Eclesiastes, e tudo se faz por encontro e casualidade”

— Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos.

— Mas é ainda o Eclesiastes que proclama haver justos, aos quais provêm males...

— Bem-aventurados os que são perseguidos por amor da justiça, porque deles é o Reino do Céu.

E assim por diante. A cada palavra de lástima respondia Jesus com uma palavra de esperança. Mas já então não era Ele que me aparecia, era eu que estava na própria Galileia, diante da Montanha, ouvindo com o povo. E o Sermão continuava. Bem-aventurados os pacíficos. Bem-aventurados os mansos...”

Como se explica, pergunto eu, sem apelos ao acaso, essa aproximação que tem finuras de sutil hermenêutica. Nós outros, depois de ler muitos sábios exegetas, chegamos à essa mesma conclusão. Depois de vivermos longos anos no convívio dos Doutores, conseguimos entrever as escondidas intenções do antigo escritor inspirado. Machado de Assis achou aquilo sozinho, talvez na Rua do Ouvidor, na mesma onde teve notícia do 15 de novembro: “Disseram-me na Rua do Ouvidor que os militares proclamaram a República...”

Como se explica tal acuidade que faltou aos perseverantes exegetas que procuram no Eclesiastes não sei que filosofia do moderado meio termo? Como se explica a intuição que teve ele, Machado, na sede de complemento que é a negativa substância do grande livro? Se aqui lembramos ao leitor que o Sermão da Montanha é o programa dos ressurrectos, ou o manifesto que vinha dilatar os horizontes do humano destino, e dizer que muito mais existe do que tudo o que se vê sob o sol, então o contraponto que Machado improvisou ganha a majestade de uma grande lição espiritual. Como se explica isto?

O gênio, por si só, explica muita coisa. Mas no caso é preciso acrescentar ao gênio a ressonância íntima, a assimilação perfeita que só pode vir de uma profunda conaturalidade.  As almas irmãs se encontram por cima dos mares e das idades. Machado de Assis encontrou na Rua do Ouvidor o antigo judeu, e completou-lhe o discurso com aquele outro discurso que apesar da secura dos tempos não lhe fugira da alma.

Tudo isto prova que o pessimismo de Machado de Assis é de espécie totalmente diversa daquele moderno que leva à imobilização e ao cinismo. É o pessimismo condicional do Eclesiastes, é o “stimulating pessimism” que o inglês descobriu.  A miséria do homem presta-se às lágrimas ou ao riso. “Eu fosse ela preferia que rissem...”. Riu ele de tudo ou quase tudo, mas esse riso que a miséria das coisas e dos homens lhe ditava, trazia disfarçado o riso do fim dos tempos. E eu creio não estar forçando a simpatia se disser que há na obra de Machado de Assis, como no seu manual de sabedoria, uma escondida gata borralheira que sofre os prestígios do mundo à espera das transfigurações.

 

(Diário de Notícias, 13/02/1955)

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