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Há provas históricas de que os cristãos primitivos rezavam para Nossa Senhora?

Pe. Juan Carlos Iscara, FSSPX

 

Há um pequeno problema quando falamos de “Igreja primitiva” ou “cristãos primitivos”. O começo desse período histórico é claro: a fundação da Igreja, Pentecostes; mas, quando esse período acaba? Para responder a essa pergunta de forma mais segura, vamos nos ater às provas da devoção a Nossa Senhora nos relativamente obscuros Séculos II e III até o reconhecimento magisterial da maternidade divina no Concílio de Éfeso, em 431.

Nas Escrituras, Maria aparece de forma velada nas profecias do Antigo Testamento, sendo exposta nos primeiros capítulos do Evangelho de São Lucas; então, ela volta a uma relativa obscuridade durante o ministério de Cristo e reaparece no Apocalipse. Esse padrão de exposições e obscuridades, de alguma maneira, repetiu-se no desenvolvimento da doutrina e da devoção mariana durante os primeiros séculos da Igreja.

Os primeiros cristãos pregavam um Deus, encarnado em Cristo, criador e redentor, ao contrário da multiplicidade dos deuses pagãos. Nos primórdios dessa pregação, enfatizar a pessoa da Virgem-Mãe poderia ter criado confusão, comparações infelizes ou sincretismos com os mitos pagãos*. Mas, por outro lado, a humanidade e a maternidade de Maria tinham que ser enfatizadas para expor a realidade da Encarnação de Cristo como Homem-Deus, principalmente contra aquelas heresias antigas que negavam a humanidade de Cristo.

Portanto, os Padres dos Séculos II e III enfatizaram apenas com o passar do tempo a excepcionalidade de Maria, sua santidade, os privilégios extraordinários que lhes foram dados por Deus para cumprir sua missão única e universal ao lado de seu Filho. Eles tornam claro que sua doutrina mariana não era supérflua ou uma opinião teológica, mas necessária para preservar a integridade da fé, pois Maria está intimamente unida ao mistério da união das naturezas humana e divina em Cristo. Portanto, nas primeiras profissões de fé, a confissão de Cristo estava inseparavelmente unida à confissão da excepcionalidade de Maria.

O primeiro grande teólogo, Santo Irineu de Lyon (falecido em 202), ao traçar um paralelo entre Eva e Maria, enfatizou essa excepcionalidade. Maria cooperou na obra de nossa salvação: ela “se tornou causa de salvação para si mesma e para toda a raça humana”. Como ela é “o ventre puro que regenera os homens em Deus”, ela se tornou “a advogada de Eva” perante Cristo.

Esses temas foram melhor desenvolvidos por Orígenes em meados do Século III, não apenas se dirigindo a Maria como “Mãe de Deus”, mas, baseado no fato de que ela era a “nova Eva”, também se dirigindo a ela como “mãe dos fiéis”. Sendo duplamente santificada por uma consagração dupla (a descida do Espírito Santo em sua alma e de seu Filho em seu ventre), ela se tornou um canal ativo do Espírito Santo para a santificação dos homens.

Enquanto a compreensão teológica do papel de Maria na economia da salvação se desenvolvia nesses séculos, também a piedade mariana se desenvolvia em correspondência a ela, gerando o recurso à sua intercessão.

A primeira prova dessa piedade dos fiéis é encontrada na decoração e nas inscrições das catacumbas cristãs. As mais antigas e importantes são das catacumbas romanas (Priscilla, Agnes, Coemeterium majus), dos Séculos III e IV, representando a Virgem com seu Filho, ou a adoração dos Reis Magos, com um homem de pé atrás da Virgem e apontando para uma estrela, ou mesmo a Anunciação.

Essas são representações claras, “literais” de passagens evangélicas e da Mãe e de seu Filho, apontando diretamente para o mistério da Encarnação, pois a imagem afirma o que a heresia nega, tanto a realidade da natureza humana de Cristo, quanto a maternidade divina de Maria. Portanto, essas imagens não eram objetos de veneração, mas um sinal de reconhecimento, uma profissão de fé e uma esperança e um convite aos visitantes para rezarem por aqueles enterrados ali.

Nos tempos em que essas imagens começaram a ser pintadas nas catacumbas romanas, isto é, pelo Século II, um peregrino veio à Cidade, Abércio, Bispo de Hierápolis na Phrygia Salutaris (um nome grande do que, hoje, é uma pequena cidade na atual Turquia). Sendo um homem velho, ao retornar de sua longa jornada, ele preparou essa tumba, com uma inscrição que, hoje, está no Museu de Latrão. A inscrição dá testemunho, em termos velados, não apenas da difusão do Cristianismo, da preeminência da Sé de Roma, do Batismo e da Eucaristia, mas também menciona Nossa Senhora:

A fé me levou adiante em todos os locais, e, em todos os locais, providenciou, como meu alimento, um Peixe de grande tamanho e perfeito, que uma Santa Virgem apanhou com suas mãos de uma fonte, e essa fé sempre dá a seus amigos o alimento, dispondo de um vinho de grande virtude, ministrando-lhe misturado com o pão.

A menção do “Peixe” é um acrônimo para Iēsous Christos, Theou Yios, Sōtēr, “Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador”, como Santo Agostinho explica (De Civ. Dei, XVIII:23), e a Virgem é a que trouxe Cristo a nós.

De quase um século mais tarde, temos um fragmento de um papiro egípcio em grego, hoje na Biblioteca John Rylands, Manchester, Reino Unido. Ele data de 250-280, um período de perseguições metódicas e cada vez mais violentas (Valeriano, Décio, até chegarmos a Diocleciano). Ele contém uma versão de uma oração que ainda rezamos, o Sub tuum prasesidium:

Sob vossa proteção nos refugiamos, ó Santa Mãe de Deus! Não desprezeis nossas súplicas em nossas necessidades, mas livrai-nos do mal, puríssima e beatíssima.

Ela expressa a fé da Igreja em Nossa Senhora de maneira simples, sucinta. Ela é a Mãe de Deus, a Theotokos, “portadora de Deus”, Deipara, Dei Genitrix, “a que dá nascimento a Deus”. Ela tem um poder inaudito de intercessão – embora ainda não se lhe tenha dado o título ainda, ela é reconhecida como Mediatrix de todas as graças. Finalmente, ela é a “única bem aventurada”, escolhida especialmente por Deus, e “a única pura”, perpetuamente virgem.

Ao fim do Século IV, no Império Romano do Oriente (Império Bizantino), a festa litúrgica em honra de Nossa Senhora mais antiga de que se tem registro era celebrada no dia após o Natal.

Nos Séculos IV e V, as orações litúrgicas em uso no Oriente ajuntavam, à moda oriental, os termos de louvor a Maria e invocavam sua intercessão. Por exemplo, na Liturgia Antioquena dos Doze Apóstolos:

Celebremos o memorial da toda pura, imaculada, gloriosíssima, bem aventurada Senhora, Mãe de Deus e sempre virgem Maria; que sejamos protegidos do mal por suas orações e súplicas, e que a misericórdia esteja sobre nós em ambos os mundos.

Finalmente, em 22 de Junho de 431, o concílio ecumênico reunido em Éfeso declarou, solenemente: “Se alguém não confessar que Emmanuel é Deus em verdade e que, portanto, a Santíssima Virgem é Mãe de Deus (pois ela trouxe consigo, carnalmente, o Verbo de Deus tornado carne), seja anátema”. A devoção do povo a Nossa Senhora era tamanha que, quando essa frase se espalhou pela cidade, espontaneamente, uma multidão alegre se reuniu na Igreja de Santa Maria, onde o Concílio aconteceu, e acompanhou os padres conciliares na saída, em procissão, com tochas.

Até Éfeso, o discurso teológico sobre Maria estava intimamente conectado à expressão de verdades cristológicas, mas, após Éfeso, a atenção se voltou para Maria em si, e uma veneração triunfante da Theotokos se espalhou como fogo nas Artes, na Liturgia e nas devoções populares.

 

ADENDO DA PERMANÊNCIA:

Tudo o que o Pe. Iscara afirma nesse ponto é verdadeiro; porém, apenas para ilustrar que os cristãos sempre creram e praticaram o culto mariano desde os tempos mais remotos (e que, portanto, essa crença é apostólica), tomamos a liberdade de reunir as seguintes citações:

- Santo Inácio de Antioquia (Séculos I e II): “Existe apenas um médico, carnal e espiritual, gerado e não gerado, Deus feito carne, Filho de Maria e Filho de Deus, vida verdadeira na morte, vida primeira passível e agora impassível, Jesus Cristo Nosso Senhor” (Epístola aos Efésios, Capítulo 7)

“Nosso Deus, Jesus Cristo, foi, de acordo com os desígnios de Deus, concebido no ventre de Maria, da linhagem de Davi, mas pelo Espírito Santo” (Capítulo 18);

“A virgindade de Maria estava escondida do príncipe deste mundo, bem como o nascimento de seu Filho e a morte do Senhor; três mistérios concebidos em silêncio pelo Senhor”; perceba-se que Santo Inácio compara a virgindade de Maria com a própria Paixão de Cristo (Capítulo 19);

- Santo Aristides de Atenas (Século II): “Os cristãos, portanto, remontam o princípio de sua religião em Jesus, o Messias; e Ele é chamado de Filho do Deus Altíssimo. E está dito que Deus desceu do Céu, e de uma virgem hebraica assumiu e cobriu-se da carne [...] “(Apologia de Aristides)

- São Justino Mártir (Século II): “[...] Jesus Cristo, o Filho de Deus, nasceu sem pecado, de uma virgem da linhagem de Abraão” (Diálogo com Trifo, Capítulo 23)

“[...] de acordo com a vontade do Pai, era necessário que elas [as tradições judaicas] tivessem seu fim com Ele, que nasceu de uma virgem, da família de Abraão e da tribo de Judá (Capítulo 43)

“Contemplai: a virgem conceberá e terá um filho, e seu nome será Emmanuel” (Capítulo 43)

“É evidente a todos que, na raça de Abraão, ninguém nasceu de uma virgem de acordo com a carne, nem se diz que alguém tenha nascido de uma virgem, exceto Cristo, Nosso Senhor. Mas, como vós e vossos professores ousais afirmar que, na profecia de Isaías, não está dito ‘contemplai: a virgem conceberá’, mas ‘contemplai: a jovem mulher conceberá e terá um filho’, e como vós explicais a profecia como se falasse de Ezequias, eu me proporei a debater esse ponto com vós em oposição a vós e a mostrar que essa passagem faz referência Àquele que reconhecemos como Cristo (Capítulo 43); o restante do Diálogo faz outras referências a essa profecia de Isaías, atribuindo-a a Cristo, bem como ao fato de que Cristo nasceu de uma virgem

- São Dionísio Areopagita (Século I): “Que [referindo-se a Cristo), sendo concebido, formado e gerado pelo Espírito Santo e do sangue virginal da Virgem Maria, santa mãe de Deus, era verdadeiro Homem [...] (Liturgia de São Dionísio, Bispo de Atenas); o mesmo Santo chega a afirmar que, quando a viu, tê-la-ia tomado por uma divindade – devido aos seus secretos atrativos e à sua beleza incomparável – se a fé, em que estivesse bem confirmado, não lhe tivesse garantido o contrário (Tratado da Verdadeira Devoção, São Luís Maria Grignion de Montfort);

- “[…] E ele [São Gabriel] revelou a Maria como, nela, deveria nascer o mistério supremo divino de Deus” (Da Hierarquia Celestial, Caput IV, Seção IV)

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