Robert Morrison
Como vários católicos atentos observaram, o Motu Proprio Traditionis Custodes, de Francisco, encerrou abruptamente a confusa campanha da “hermenêutica da continuidade”, que tinha por objetivo convencer o mundo de que, apesar de tudo o que transparecia, as reformas do Vaticano II estavam em continuidade com a religião Católica de sempre. Como deixa claro a carta que acompanha Traditionis Custodes, é necessário escolher entre as crenças e práticas que os católicos mantiveram por quase dois mil anos e aquelas que decorreram do Vaticano II. Ora, se fossem as mesmas, por que seria necessário escolher entre elas?
Ao passo que a tentativa de eliminar a ruptura entre o Catolicismo e a religião animada pelo Vaticano II (a Outra[1]) tenha sido sempre irremediavelmente frustrante e fútil, avaliar as diferenças entre as duas religiões é, em comparação, simples e iluminador. Para esse fim, vale considerar: o papel da Outra na guerra movida por Satanás; como e por que as duas religiões são diferentes; o propósito da nova religião; por que o Catolicismo é a única religião rejeitada pela Outra; e, finalmente, quão incoerente é a Outra.
O papel da Outra na guerra movida por Satanás
Poderíamos nos ver tentados a considerar a situação atual da Igreja como uma refutação de sua indefectibilidade. De fato, muitos abandonam a Fé porque acreditam erroneamente que a Igreja foi derrotada. Todavia, Deus tem nos dado razões abundantes para nos mantermos firmes na Fé, mesmo se parece que os inimigos triunfaram: temos a promessa de Nosso Senhor de que as portas do inferno não prevalecerão (Mt 16, 18), e dois mil anos de história onde vemos a Igreja resistir a assaltos aparentemente insuportáveis.
Além disso, há importantes aparições da Santíssima Virgem Maria trazendo avisos proféticos sobre a infiltração na Igreja. No início do século XVII, María del Buen Suceso de La Purificación (comumente conhecida como Nossa Senhora do Bonsucesso) apareceu à Venerável Madre Mariana de Jesus Torres, uma freira de clausura do Convento Real da Imaculada Conceição em Quito, Equador. Sua mensagem a respeito de eventos que ocorreriam no século XX é de particular interesse para os católicos de hoje:
“Nesse momento supremo de necessidade da Igreja, aquele que deve falar, calará. Tempos funestos sobrevirão, nos quais aqueles que deveriam defender em justiça os direitos da Igreja sem temor servil nem respeito humano, darão as mãos aos inimigos da Igreja para fazer o que estes querem. Ai do erro do sábio, ai daquele que governa a Igreja, o pastor do rebanho que meu Santíssimo Filho lhe confiou! Mas quando eles parecerem triunfantes; quando a autoridade abusar de seu poder, cometendo injustiças e oprimindo os fracos, sua queda estará próxima. Paralisados, serão atirados ao chão.”
Claramente Nossa Senhora quis que entendêssemos que haveria um tempo em que pareceria que as autoridades visíveis da Igreja “dariam as mãos aos inimigos da Igreja para fazer o que estes querem”. E ainda assim, não conseguimos detectar ali nenhum sinal de que essas calamidades significariam que a Igreja teria deixado de ser Igreja ou que teria perdido a proteção do Espírito Santo.
Sob a mesma luz das aparições marianas, revelando que a Igreja prevalecerá apesar dos assaltos diabólicos, podemos considerar a visão do Papa Leão XIII de que Deus daria a Satanás uma janela de tempo para que este tentasse destruir a Igreja. Essa visão levou o papa a compor a grande oração a São Miguel Arcanjo incluída nas Orações Leoninas, assim como um exorcismo contra Satanás, que inclui a seguinte passagem (na versão original):
“As hostes astuciosíssimas encheram de amargura a Igreja, Esposa Imaculada do Cordeiro, e inebriaram-na com absinto; puseram-se em obras para realizar todos os seus ímpios desígnios. Ali onde está constituída a Sede do Beatíssimo Pedro e Cátedra da Verdade para iluminar os povos, aí colocaram o trono de abominação da sua impiedade, para que, ferido o Pastor, dispersassem as ovelhas.”
Certamente o Papa Leão XIII não considerava que uma situação tão terrível na Igreja representasse uma negação da consoladora doutrina da indefectibilidade. E nem nós devemos fazê-lo. Antes, à medida que vemos os assaltos contra a Igreja aumentarem, devemos multiplicar nossos esforços para aceitar toda graça com que Deus nos cumulará.
O estabelecimento da Outra em oposição ao Catolicismo é uma das mais importantes realizações de Satanás e de seus lacaios na guerra contra Deus. Satanás busca insultar a Deus e Sua Igreja e levar para o inferno tantas almas quanto possível. Mas sabemos com certeza que, no fim, Satanás perderá — temos de lutar para nos encontrarmos do lado vencedor, aderindo sempre ao verdadeiro Catolicismo, custe o que custar.
Como e por que as duas religiões são diferentes
Não fosse pela continuidade visível do papado (que, é claro, os sedevacantistas negam), seria auto-evidente que o Catolicismo e a Outra são religiões diferentes: as crenças de uma estão frequentemente em desacordo com as da outra, e quase não há semelhança entre as práticas litúrgicas das duas religiões. Nenhum Santo do período anterior ao Vaticano II reconheceria a Outra como católica; nenhum profeta da Outra aceita realmente as crenças que os mártires morreram para proteger.
Além das diferenças entre crenças e práticas litúrgicas, há uma profunda disparidade na forma como seus adeptos creem nas verdades professadas por essas religiões. No Ato de Fé, podemos ver a base católica para crer:
“Senhor Deus, creio firmemente que há um só Deus em três pessoas realmente distintas, Pai, Filho e Espírito Santo; que dá o céu aos bons e o inferno aos maus, para sempre. Creio que o Filho de Deus se fez homem, padeceu e morreu na cruz para nos salvar, e ao terceiro dia ressuscitou. Creio em tudo mais que crê e ensina a Igreja Católica, Apostólica, Romana, porque Vós, ó Deus, revelastes todas essas coisas; Vós, que sois a eterna verdade e sabedoria que não pode enganar nem ser enganada.”
O Ato de Fé contém certas Verdades católicas, e naturalmente omite muitas outras — mas cremos “em tudo mais que crê e ensina a Igreja Católica” porque Deus, que não pode enganar nem ser enganado, as revelou. Uma vez que vemos a Igreja como o organismo estabelecido por Jesus para transmitir fielmente a Fé a todas as pessoas até o fim dos tempos, cremos baseados na autoridade da Igreja e sabemos que possuímos a mesma Fé que possuiu cada católico que foi para o Céu.
E na Outra, como se crê? Felizmente essa religião tem apenas sessenta anos de idade, então deveria ser relativamente fácil rastrear suas crenças até chegar àquelas de seus pais fundadores. Infelizmente, entretanto, as crenças da Outra mudam o tempo todo. Mesmo quando as crenças permanecem as mesmas, isso talvez só aconteça porque um grupo de bispos não obteve os votos necessários para persuadir outro grupo de bispos de que a religião deve mudar.
Esse processo de mudança contínua é, na verdade, um aspecto importante dessa religião. Em seu discurso de encerramento do Vaticano II, o Papa Paulo VI falou sobre o amor da nova religião pela mudança perpétua:
“Nunca talvez como no tempo deste Concílio a Igreja se sentiu na necessidade de conhecer, avizinhar-se, julgar retamente, penetrar, servir e transmitir a mensagem evangélica, e, por assim dizer, atingir a sociedade humana que a rodeia, seguindo-a na sua rápida e contínua mudança.”
Não temos a menor ideia das mudanças que ocorrerão amanhã, porque apenas uma coisa é certa na Outra: não pode haver qualquer retorno ao verdadeiro Catolicismo!
O propósito da nova religião
Se nos dermos conta de que a verdadeira mente por trás da Outra é o Príncipe das trevas, poderemos ver que o propósito da nova religião não pode ser outro senão insultar a Deus e à Sua Igreja e levar almas para o inferno. Mas os agentes humanos da nova religião não acreditam mais no inferno (exceto, talvez, como um destino para aqueles terríveis católicos tradicionalistas), então geralmente buscam outro propósito para promover a Outra.
Podemos ver os propósitos dos agentes humanos em várias declarações proeminentes do próprio Vaticano II:
“A isto se propõe o Concílio Ecumênico Vaticano II, que, ao mesmo tempo que une as melhores energias da Igreja e se empenha por fazer acolher pelos homens mais favoravelmente o anúncio da salvação, como que prepara e consolida o caminho para aquela unidade do gênero humano, que se requer como fundamento necessário para que a cidade terrestre se conforme à semelhança da celeste.” [João XXIII – Discurso de abertura do Vaticano II]
“Em virtude da sua missão de iluminar o mundo inteiro com a mensagem de Cristo e de reunir sob um só Espírito todos os homens, de qualquer nação, raça ou cultura, a Igreja constitui um sinal daquela fraternidade que torna possível e fortalece o diálogo sincero.” [Gaudium et Spes, Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Moderno]
“Promover a unidade é, efetivamente, algo que se harmoniza com a missão essencial da Igreja, pois ela é, ‘em Cristo, como que o sacramento ou sinal e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano’. Ela própria manifesta assim ao mundo que a verdadeira união social eterna flui da união dos espíritos e dos corações, daquela fé e caridade em que indissoluvelmente se funda, no Espírito Santo, a sua própria unidade.” [Gaudium et Spes, Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Moderno]
“O humanismo laico e profano apareceu, finalmente, em toda a sua terrível estatura, e por assim dizer desafiou o Concílio para a luta. A religião que é o culto de Deus que quis ser homem, e a religião — porque o é — que é o culto do homem que quer ser Deus, encontraram-se. Que aconteceu? Combate, luta, anátema? Tudo isso poderia ter-se dado, mas de fato não se deu. (...) A descoberta e a consideração renovada das necessidades humanas — que são tanto mais molestas quanto mais se levanta o filho desta terra — absorveram toda a atenção deste Concílio. Vós, humanistas do nosso tempo, que negais as verdades transcendentes, dai ao Concílio ao menos este louvor e reconhecei este nosso humanismo novo: também nós — e nós mais do que ninguém — somos cultores do homem. [Paulo VI – Discurso de encerramento do Vaticano II]
O propósito da nova religião é unir e servir a todos os homens, o que só pode ser feito removendo do Catolicismo tudo o que o mundo rejeita. Em seu Prometeu: A Religião do Homem, o Pe. Álvaro Calderón descreve a nova religião como “a Religião do Homem”, construída sobre os princípios do humanismo (que Paulo VI ratificou acima). O Pe. Calderón identifica uma mudança chave que precisava ser feita no Catolicismo para criar a nova religião:
“Tudo que o humanismo precisava para tornar o Evangelho amável e tirar proveito de seus benefícios era dissolver a Cruz de Cristo. Para o humanismo integral, o grande defeito do cristianismo medieval, em certo sentido o seu único, foi ter centrado o mistério de Cristo no Sacrifício, tingindo a religião com um matiz negativo, tão repugnante ao coração do homem. (...) O Verbo se fez homem para satisfazer a dívida dos homens com Deus, pois por sua obediência até a morte glorificou-O infinitamente, e trouxe aos pecadores a possibilidade da redenção. Para abolir a necessidade do preço de sangue, os magos do humanismo anularam a nota de débito. Se o pecado não nos deixa em dívida com Deus, o sacrifício da Cruz é um pormenor desnecessário no mistério de Cristo, e podemos deixá-lo de lado.”
Uma vez que se remove a Cruz de Cristo, com todas as suas implicações doutrinais e morais, a religião se torna muito mais confortável e aceitável para não-católicos. Quantas novidades trazidas pela Outra realmente permaneceriam de pé se seus proponentes ainda acreditassem e ensinassem que qualquer um que queira salvar sua alma tem de tomar sua cruz e seguir Jesus?
Cada mudança feita em nome do Espírito do Vaticano II tentou esvaziar o Catolicismo para desenvolver uma religião falsificada que possa avançar os objetivos globalistas com a autoridade visível da Igreja Católica. Assim, em vez de erradicar o pecado, podemos desviar o foco para a erradicação das emissões de carbono; em vez de ensinar o Evangelho às nações, podemos abraçar todos os homens do jeito que estão (contanto que estejam vacinados, é claro). A Outra é a força mais importante na tentativa de convencer a humanidade a abandonar sua resistência às demandas da Nova Ordem Mundial. Se, ao olhar para Roma, o mundo visse o verdadeiro Catolicismo em vez da Outra, o grande Reset jamais teria chance de êxito.
Por que o Catolicismo é a única religião rejeitada pela Outra?
Sabemos, pelo Encontro de Oração do Papa João Paulo II em Assis, que a nova religião abraça todas as outras. Francisco, é claro, voltou a enfatizar isso de várias maneiras.
O documento Nostra Aetate, do Vaticano II, forneceu a base para esses esforços de aceitação de todas as religiões, ainda que reserve um papel especial para Cristo:
“A Igreja Católica nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e santo. Olha com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas que, embora se afastem em muitos pontos daqueles que ela própria segue e propõe, todavia, refletem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens. No entanto, ela anuncia, e tem mesmo obrigação de anunciar incessantemente Cristo, “caminho, verdade e vida” (Jo 14,6), em quem os homens encontram a plenitude da vida religiosa e no qual Deus reconciliou consigo todas as coisas (cf. 2 Cor 5, 18-19). Exorta, por isso, os seus filhos a que, com prudência e caridade, pelo diálogo e colaboração com os seguidores de outras religiões, dando testemunho da vida e fé cristãs, reconheçam, conservem e promovam os bens espirituais e morais e os valores sócio-culturais que entre eles se encontram. A Igreja olha também com estima para os muçulmanos.”
Isso estabelece um padrão bastante baixo para que uma religião seja aceita pela Outra. Sem dúvida, então, a Outra deveria aceitar o Catolicismo, certo? Mas agora vemos, mais claramente que nunca, que a religião chamada Catolicismo é a única que Francisco não aceita mais. Isso é necessário porque, se o Catolicismo é aceito, todas as outras religiões devem ser recusadas. A observação do Pe. Calderón a esse respeito é perspicaz:
“O inimigo mortal do ‘humanismo integral’ é o catolicismo integral, em particular o tomismo, porque este possui de verdade todos os benefícios que aquele possui de aparência, além de saber de cor os seus sofismas.”
Tendo subvertido a Fé para servir a toda a humanidade, os inovadores têm de silenciar aqueles que realmente sabem que isso é heresia. Assim, o Catolicismo é a única religião que tem de ser esmagada pela Outra.
Quão incoerente é a Outra?
Pode-se pensar que a nova religião é apenas tão estulta quanto qualquer seita protestante média, com sua rejeição da Verdade católica em favor de crenças modificadas para se adequarem aos caprichos dos homens. Entretanto, diferentemente das seitas protestantes, a Outra tenta reter sua identidade católica para que possa servir melhor aos interesses da Nova Ordem Mundial. Por isso, a Outra sofre de uma esquizofrenia que seria cômica se não fosse tão destrutiva.
Assim, por exemplo, em nome da promoção da unidade católica, Francisco promulga Traditionis Custodes para banir a mais importante e visível fonte de unidade da Igreja, a Missa Tridentina. Então, em vez de uma Missa que conecte católicos uns com os outros mundo afora e ao longo da história da Igreja, o que resta é o Novus Ordo, que serve como um símbolo visível de divisão entre todos os católicos. É evidente que o Novus Ordo não apenas divorcia o católico de hoje dos católicos que viveram ao longo dos séculos, mas também de seus irmãos católicos que estão do outro lado do mundo. E porque Satanás tem um prazer perverso em escarnecer da Igreja, o Novus Ordo também é diferente de paróquia para paróquia dentro da mesma diocese; e diferente dentro da mesma paróquia dependendo do celebrante; e diferente até para um mesmo celebrante dependendo de qual versão das “Orações Eucarísticas” ele decide dizer num determinado dia.
Por pior que seja a situação litúrgica da Outra, temos de nos perguntar se a situação doutrinal — ao menos na prática — não é ainda mais incoerente. Há salvação fora da Igreja? Existe um inferno? Mulheres devem ser sacerdotes? Uniões simplesmente civis são louváveis? O pecado mortal deve impedir que alguém receba a Comunhão? Existe mesmo algo chamado pecado mortal?
Em cima disso tudo, adicionemos a incansável busca da Outra pela feiura na arte, na arquitetura e na música. Tragicamente, a obsessão da Outra pela feiura estética é comparada apenas à sua grotesca imoralidade.
Temos ouvido dizer que na nova religião 2+2=5, mas dizer isso é muito generoso. O paralelo adequado para a nova religião é dizer que 2+2=5, ou 7, ou talvez infinito, ou um Volkswagen, ou sua canção favorita, ou qualquer outra coisa que você queira, exceto 4. Se isso soa despropositado, pergunte a si mesmo por que não podemos manter as crenças e práticas que todos os Santos reconheceriam como católicas. Como pode o Catolicismo ter sido o único caminho de salvação ao longo de dois mil anos, e então — por meio de decretos de homens imorais — tornar-se o único banido?
Agora é evidente que Deus precisará intervir de maneira extraordinária para livrar a Igreja do flagelo da Outra, mas não estamos impotentes. Fomos avisados de que estes dias chegariam e que precisaríamos nos voltar para a Bem-aventurada Virgem Maria em busca de auxílio para perseverarmos. Que ela possa esmagar a cabeça de Satanás e a Outra que ele tenta impor sobre a Igreja! Rainha do Santíssimo Rosário, rogai por nós!
(Fonte: The Remnant Newspaper. Tradução: Permanência)
[1] O autor utiliza, no original em inglês, o neologismo Vatican2ism. Em nossa versão, optamos pela expressão “a Outra”, termo utilizado por Gustavo Corção na década de 1970 para designar a nova religião de Vaticano II.