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Semana Santa e o centenário do espiritismo

Gustavo Corção

 

Por uma infeliz coincidência é nos dias 13 a 18 do corrente, e portanto na Semana Santa, que ocorrerão as solenidades em comemoração do primeiro centenário da codificação do espiritismo. E assim, enquanto os cristãos celebram os passos da obra salvadora de Cristo, e seguem o caminho da dor infinitamente fecunda que culmina na Cruz, os espíritas festejam o centenário da obra do sr. Leão Hipólito Denizard Rivail, mais conhecido pelo pseudônimo de Allan Karden. Foi efetivamente em 18 de abril de 1857 que o mencionado autor publicou “O Livro dos Espíritos”, que até hoje é a principal obra de codificação dos ensinos “dados pelos Espíritos Superiores com o concurso de diversos médiuns”. Nessa doutrina, que a seguir tomou o nome de Espiritismo, pretendem seus adeptos, entre outras coisas, ver a verdadeira doutrina ensinada por Jesus Cristo. Em suas “Obras Póstumas” (10ª. Edição, p. 268 e seg.) diz o festejado codificador: “O Espiritismo... restaurará a religião de Cristo, que se tornou nas mãos dos padres objeto de comércio e trafego vil, instituirá a verdadeira religião natural, a que parte do coração do homem e vai diretamente a Deus...” E mais adiante: “Aproxima-se a hora em que te será necessário apresentar o Espiritismo qual ele é, mostrando a todos onde se encontra a verdadeira doutrina ensinada por Cristo...”.

A pretensão dos seguidores de Leão Hipólito, como se vê, não é pequena. Para começar, pulverizam a Igreja Católica. Vinte séculos de tradição, de culto desenvolvido em torno do Sacrifício da Cruz e da instituição da Eucaristia, de sofrimentos produzidos pelas perseguições externas e pelas internas, que ainda são piores, vinte séculos de doutrina apurada e depurada, de doutrina ofendida e defendida, de pensamento teológico e filosófico trabalhado pelas mais altas inteligências e afiançado pelas vidas dos maiores santos, vinte séculos torrenciais de estudo, de arte, de santidade, de apostolado, de missões – tudo isso – as cruzadas, as catedrais, os mosteiros, as fundações, as obras, as escolas – tudo isso, para os seguidores do espiritismo, é coisa a ser corrigida pelos livros de Allan Kardec e pela telegrafia do Além. Lutero e Calvino também quiseram derrubar a Igreja, e todos nós conhecemos as tremendas repercussões históricas dessas tentativas. Para os espíritas a Igreja são “os padres” que adulteraram o ensino de Cristo. Onde é então que está a verdadeira doutrina? Os protestantes ficaram com os Evangelhos, mas os espíritas além de derrubar a Igreja Católica, acabam também com os evangelhos... Como se vê, não é modesta a pretensão.

Aos católicos que vêem no espiritismo uma inofensiva prática ou uma medicina pouco dispendiosa convém lembrar o antagonismo total das duas doutrinas. Apregoam eles uma “religião natural” que parte do homem, e acrescentam que “a missão do Cristo não era resgatar com o seu sangue os crimes da humanidade” porque “cada um deve resgatar-se a si mesmo” (Leão Denis, “Cristianismo e Espiritismo”, 5ª. Ed., pág. 88). Ora, o ensinamento essencial dos Evangelhos consiste em marcar o caráter sobrenatural e transcendente da obra e da herança de Cristo, e em assinalar a iniciativa primeira de Deus em todas as coisas da nossa religião.

Ao contrário do que diz o autor que os espíritas festejam, nossa religião não é natural, é sobrenatural; não parte do homem, parte de Deus. Não é por engenho nosso que perscrutamos os segredos da vida divina, é pela Revelação que temos a notícia que de outro modo seria inacessível. Não é por esforço nosso que galgamos o abismo que separa o Criador das criaturas, é pela Graça que desce de Deus para a Deus nos elevar. “Descida de Deus para subida do Homem”, como disse Camões – eis aí uma fórmula perfeita de nossa doutrina. Dentro dessa doutrina a criatura humana tem uma transcendência sobrenatural, religiosa, pela qual o homem é chamado a viver na intimidade de Deus, em situação acima de tudo, o que poderia ser exigido pela dignidade já bastante alta de sua natureza. A vida religiosa será pois medida pela conformidade com a sobrenatural transcendência de nossa vocação, ou em outras palavras, pela obediência às luzes da Revelação e às operações da Graça. Não nos compete a iniciativa primeira, que é de Deus. Compete-nos responder, corresponder, obedecer. Ainda mais, como é em Cristo que se condensa toda a Revelação e toda a fonte de Graça, a posição religiosa do cristão se aferirá por esse divino Centro. Seremos cristãos se formos seguidores de Cristo; e seremos seguidores de Cristo se estivermos em contacto vivo com a sua herança que são os seus sacramentos e a sua Igreja. E é a realidade dessa obra de Cristo que nos alimenta todos os dias, e que, com ênfase especial, celebramos na Semana Santa, nessa mesma semana em que os seguidores de Leão Hipólito Denizard Rivail celebram, neste ano, o centenário do Espiritismo.

Teologicamente, espiritismo é uma doutrina herética formada pela confusa mistura de diversas heresias antigas. Há um pouco de pelagianismo, de arianismo e de maniqueísmo no conjunto doutrinal recebido do Além por Allan Kardec e seus seguidores. Filosoficamente, e culturalmente, é uma das formas mais espessas e brutais do individualismo que tantas desgraças já trouxe ao mundo nesses últimos séculos de civilização burguesa. Pelo experimentalismo, se liga à filosofia empiricista e assim vem a dar, apesar de todo o seu vocabulário, num mal disfarçado materialismo.

Tomada em seu heteróclito conjunto, a doutrina espírita tem todas as negativas qualidades para medrar numa cultura maltratada. Tem todos os equívocos para agradar, por isto ou por aquilo, às multidões privadas de instrução e de formação religiosa. Tem o nome e o Além, para parecer que é uma espiritualidade; tem os fluidos e a mecânica, para anteder à sede de técnica e de dados sensíveis; tem uma vaga filantropia e uma cômica boa-vontade para nada exigir moralmente de ninguém. Aspira assim à universalidade pela mediocridade, e seduz as almas cansadas pela desvalorização da vida.

O fenômeno do espiritismo brasileiro está ligado a esse conjunto de qualidades negativas. O espiritismo, como o comunismo na ordem social e política, é produzido pelas omissões. No caso brasileiro não hesito em reconhecer que é nossa, dos católicos, a mais grave responsabilidade. O espiritismo se propaga porque o nosso catolicismo é pouco convincente e pouco generoso. A prova disto está na miséria das vocações sacerdotais, e na enorme facilidade com que se misturam com a doutrina católica a convicção divorcista e a prática espírita.

Sendo assim, pouco adiantará combater o espiritismo diretamente, se ao mesmo tempo, e com vigor ainda maior não nos dedicarmos à obra mais positiva de ensinar a doutrina católica, de despertar o gosto por sua coerência, e de formar mentalidades nítidas e sadias que se defendam dos erros. Na verdade, aos kardecistas que sonham acabar com a Igreja Católica, nós podemos responder como um papa respondeu a Napoleão: nós mesmos temos feito o possível para arrasar a Igreja, mas não conseguimos.

(O Estado de São Paulo, 14/4/57)

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