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A liberdade gloriosa dos filhos de Deus

Pe. Robert Brucciani, FSSPX

 

Meus queridos fiéis, eu quero ser livre! Eu quero liberdade! Esse é um clamor universal. Ouvimo-lo cantado por pop stars e entoado por multidões efervescentes; vocês recebem a promessa dela por políticos em campanha eleitoral e em propagandas online; vocês a veem em pichações em muros e naqueles detidos contra sua vontade. Liberdade!

Pensar-se-ia que a ânsia universal de liberdade poderia trazer um certo grau de libertação, mas, ao invés, os homens encontram-se escravizados a suas paixões na ordem interior e a um totalitarismo crescente na ordem exterior.

Isso parece ser um grande paradoxo, mas não na realidade quando se compreende o que a liberdade é enquanto uma perfeição no homem e como ela é mal compreendida pelo mundo.

 

Noção moderna de Liberdade

Para o mundo liberdade significa três coisas:

- ausência de coerção externa (nenhum obstáculo exterior à escolha);

- ausência de limites internos (nenhuma limitação inerente à natureza);

- autonomia (permissão de escolher o bem ou o mal).

Essa definição é aprazível ao homem moderno e, por isso, é a moeda da cultura moderna.

 

Ausência de coerção externa

Para o mundo liberal, a liberdade, enquanto perfeição, é a ausência de coerção: a possibilidade de indulgência com qualquer capricho sem inibições, o gozo de todo prazer sem consequências, a abolição de todo tabu.

É a oportunidade sem qualquer regra, exceto, talvez, a regra “desde que eu não machuque ninguém” ou “desde que eu não viole os direitos do outro” ou “desde que todos consintam”. Portanto, um liberal pode proclamar “eu sou livre para usar meu corpo como desejar: embriagar-me, vestir-me como quiser, continuar ou não meu casamento. Sou livre para decidir matar a criança no meu útero. Sou livre para acreditar no que quiser e praticar qualquer religião que quiser – tanto em público, quanto em privado – sem restrições governamentais ou sociais”

 

Ausência de limites internos

A noção de liberdade do mundo não se resume à liberdade de coerções exteriores, mas liberdade das limitações inerentes à natureza humana.

“Eu posso ser aquilo que quiser: um homem ou uma mulher, até mesmo uma galinha. Posso fazer o que quiser se conseguir remover as consequências naturais indesejadas das minhas ações: posso ser promíscuo, se usar contraceptivos; não preciso trabalhar, porque o Estado não me deixará morrer de fome. Não preciso rezar, porque decidi que Deus não existe. Posso decidir, por mim mesmo, onde minha perfeição última (o céu) está: no prazer sensual, na fama, no poder ou no nirvana”

 

Autonomia completa

Para o mundo ser livre significa ter a possibilidade de escolher qualquer coisa: o bem ou o mal. É a posse da autonomia. Para o liberal, a liberdade, enquanto perfeição, é a vontade indeterminada: a vontade em potência, não em ato. A liberdade é pró-escolha: significa ser capaz de escolher como viver sem qualquer referência à natureza, à finalidade, ao bem, a Deus. Para o liberal, a glória do homem está na possibilidade de escolher, não em ter feito a escolha certa.

 

Problemas nas raízes da noção moderna de liberdade

Os problemas na noção liberal de liberdade enquanto perfeição advêm do fato do homem moderno (filósofos, cientistas, políticos e o público em geral) ter uma compreensão equivocada do ser em geral e do homem em particular.

 

Quatro causas do ser

A filosofia aristotélica nos ensina que todo ser criado pode ser definido por suas quatro causas:

- Causa eficiente: como uma coisa é feita;

- Causa material: do que é uma coisa é feita

- Causa formal: o que faz a coisa ser aquilo que é. No homem,

~ isso é a alma (enquanto coprincípio com o corpo);

~ é a essência: a coisa que faz um homem ser o que ele é, a coisa que dá a seu ser coerência, unidade e identidade;

 ~ é a natureza: aquele princípio de todo movimento e descanso da coisa: aquilo que faz o homem desejar o que deseja, odiar o que odeia; aquilo que determina onde sua perfeição última está – onde ele repousaria em estado definitivo

- Causa final: é o fim último, no qual um ser atinge a perfeição. Para o homem, trata-se da contemplação de Deus na Visão Beatífica.

A filosofia e a ciência modernas não têm noção da causa formal de uma coisa (alma, essência ou natureza) e, consequentemente, nenhuma noção da causa final dela. Eles apenas veem causas materiais, algo da causa eficiente, e forças (mecânica, elétrica, magnética e gravitacional).

Os cientistas modernos não conseguem detectar a ordem espiritual com seus instrumentos e, portanto, ou a desprezam, ou negam.

 

Problemas na definição de liberdade como “ausência de coerção externa”

Sem nenhum conceito da natureza da coisa, não há conceitos sobre as regras pertinentes àquela natureza.

Por exemplo, não temos liberdade de beber petróleo, voar por nossas próprias forças, respirar água. Essa coisas são contrárias à nossa natureza e levariam à nossa morte física. Semelhantemente, não temos liberdade de ser promíscuos, de mentir, de ignorar Deus, porque essas coisas levariam à nossa morte espiritual. Se a liberdade deve ser uma perfeição, então ela tem de levar à nossa perfeição quando a praticamos, tanto física quanto espiritualmente.

A Liberdade de fazer qualquer coisa que quisermos, na realidade, é perigosa para nós enquanto indivíduos e enquanto sociedade, porque a liberdade, necessariamente, está correlacionada à nossa natureza. Isso significa que a coerção externa que impede a escolha do mal é boa. Por exemplo, é bom proibir a pornografia, é bom que tenhamos várias de nossas leis civis (não todas) e uma força policial para as garantir, é bom que tenhamos corrimões nas escadas e lacres a prova de violação em frascos de medicamentos. Seria bom se, quando crianças, fôssemos forçados a rezar o terço em família por nossos pais.

Buscar a liberdade como se ela fosse, simplesmente, a ausência de limitações, na realidade, é pedir a escravidão: não apenas à nossa própria vontade desordenada, mas para toda a sociedade. Não apenas os indivíduos se tornam escravos de suas paixões – viciados nos vícios – mas também predispostos a se tornarem escravos do Estado, porque uma sociedade viciosa, muito provavelmente, tenderá ao totalitarismo que multiplica as leis e aumenta seus poderes de aplicar as leis em uma tentativa de escorar a desintegração inevitável da ordem.

E, então, em relação às limitações que o mundo aceita: quando as pessoas dizem que devemos ser livres para fazer tudo que quisermos, desde que não machuquemos alguém, elas esquecem que o homem é um ser social e que tudo que fazemos afetará o resto da sociedade. A garota que passa horas se admirando em segredo ou o menino viciado em jogos de computador no seu quarto, necessariamente, afetará aqueles próximos a ele.

Os que alegam que o consentimento é a condição da liberdade completa erram da mesma maneira, mas tendo cúmplices do seu erro.

“Meus direitos terminam onde os do outro começam” também é um dito popular, mas todos os direitos devem ter em vista o bem comum, não a coexistência ou a competição de bens individuais.

 

Problemas na definição de liberdade como "ausência de limitações interiores”

Crer que eu posso escolher minha natureza e minha própria finalidade é, claramente, uma ilusão. Isso reduz o mundo inteiro ao absurdo e, ironicamente, é mais restritivo:

- Se um homem escolher ser mulher, não terá a liberdade de atingir a perfeição da feminilidade (não poderá ter filhos, não poderá ser uma mãe).

- Se um homem escolher ser uma galinha, então estará mais inapto ainda a atingir a perfeição da natureza da galinha.

Consequentemente, ao escolher uma identidade e uma finalidade diferentes da minha identidade e finalidade reais, torno-me um escravo por minha escolha e causo dano real a mim mesmo. Jamais serei feliz ou atingirei a perfeição da minha real, imutável natureza, que me foi dada pelo meu Criador.

 

Problemas na definição de liberdade como “autonomia”

Para o mundo, liberdade é autonomia. É a vontade em potência com relação tanto ao bem quanto ao mal, o que é o mesmo que dizer: a vontade em potência com relação à perfeição ou à escravidão, ou até mesmo à autodestruição.

Uma perfeição muito maior da vontade é a potência de escolher entre um bem ou outro. E ainda maior é a vontade, já não em potência, mas no ato de escolher o bem. Essa é a liberdade tal qual existe em Deus.

A liberdade do mundo é a mesma prometida por Satã a Adão e Eva: “sereis como deuses, ao conhecerdes o bem e o mal” (Gn 3, 5). É uma liberdade ilusória da lei de Deus: liberdade do Direito Natural, de Jesus Cristo, da Igreja e até mesmo de Deus.

Tanto os homens decaídos quando Satã buscam essa falsa noção de liberdade e, portanto, são escravos. Os homens tornam-se escravos do mundo, da carne e do demônio. Satã é um escravo perpétuo do seu ódio de Deus.

 

A verdadeira Liberdade

Então, o que é a verdadeira liberdade, enquanto perfeição no homem? Essa pergunta é respondida por Santo Tomás no seu tratado sobre os anjos:

 

Se o anjo bem-aventurado pode pecar? (Ia. pars, q.62, a.8, ad 3)

… Por onde, à perfeição da liberdade do arbítrio pertence o poder de eleger diversos meios, conservada a ordem do fim; mas, será um defeito da sua liberdade se eleger algum meio divertindo da ordem do fim, e pecando. Donde, maior é a liberdade do arbítrio nos anjos, que não podem pecar, do que em nós, que podemos.”

A liberdade sempre deve estar relacionada com o fim visado: a finalidade de uma coisa. É livre aquele que se direciona à perfeição suprema relativa à própria natureza.

A maior liberdade, portanto, consiste em estar no céu, onde não podemos escolher nada além do que nos leva a Deus, porque a visão de Deus é inteiramente satisfatória, não terá nenhuma diminuição e é possuída sem o temor de perdê-la.

A verdadeira liberdade não consiste em estar livre da coerção, em ter a escolha entre o bem ou o mal. A verdadeira liberdade é a liberdade de conhecer, amar e servir a Deus Todo-Poderoso. Ela é:

- a liberdade interior de virtude, que nos faz escolher o bem,

- a liberdade exterior de uma sociedade ordenada que nos protege e encoraja a escolher o bem,

- e o ato em si de escolher o bem

Atingimos a Liberdade interior ao viver a vida cristã de oração, mortificação e prática religiosa. Buscamos a liberdade exterior pela Ação Católica. E, pela prática da nossa liberdade, somos livres da sujeição à corrupção, para participar da liberdade gloriosa dos filhos de Deus (Rom 8, 21).

 

(Ite Missa Est, editorial, Julho-Agosto de 2021. Tradução: Permanência)

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