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O devotamento heroico dos padres a bordo do Titanic

Pe. Claude Pellouchoud

Antes da partida do Titanic, um funcionário católico do transatlântico testemunhou blasfêmias e provocações sacrílegas traçadas sobre o casco ou apenas pronunciadas1 por centenas de operários incumbidos da construção do navio; entre eles, muitos ímpios que zombavam dos colegas católicos. Ele escreveu aos seus parentes em Dublin: “Estou persuadido que o barco não aportará na América por conta das odiosas blasfêmias que cobrem seus flancos.” 2

Na noite de 14 a 15 de abril de 1912, no Oceano Atlântico Norte, após ter se chocado na proa a estibordo com um iceberg, este insubmersível rei dos mares foi a pique em menos de três horas. Ao Titanic faltavam desesperadamente botes de salva-vidas. Os 20 barcos de socorro presentes só podiam embarcar 1.178 pessoas, ou seja, a metade do total de passageiros (entre 2.201 e 2.228 estavam a bordo; o Titanic foi concebido para transportar 3.503 passageiros). Somente 711 escaparam. Entre 1.491 e 1.517 pessoas pereceram3, o que faz deste naufrágio uma das maiores catástrofes marítimas em tempos de paz. 

Essa noite fatal tornou-se uma das mais tristemente célebres, inspirando romances, canções, programas de TV, documentários e filmes4. “O relato da trágica travessia inaugural não cessa de apaixonar o grande público nos cinco continentes” 5, o Titanic representa e incarna, para a consciência dos nossos contemporâneos, um mito. Passado um século do drama, e depois das conclusões oficiais há muito terem sido apresentadas6, o Titanic permanece no fundo do Atlântico7 como um símbolo do castigo reservado àqueles que colocam a sua fé na tecnologia.

 

Três sacerdotes católicos a bordo

“Paradoxalmente, o Titanic, que não concluiu sua única viagem, é o transatlântico do qual mais se sabe com relação a passageiros e tripulação.” 8 A despeito da proliferação de publicações relativas a esse naufrágio, um fato foi muitas vezes ignorado. Menciona-se que se encontravam a bordo do transatlântico pastores protestantes de diferentes obediências, ou que o capitão Smith cancelou a simulação de resgate que interferiria no ofício religioso que ele próprio presidiu no salão principal, na primeira classe. Mas nunca lemos nada sobre os três padres que celebravam quotidianamente a missa a bordo do Titanic. 9

- O Reverendo Padre Thomas Roussel Byles, nascido em 26 de fevereiro de 1870, filho de um pastor de uma igreja congregacionalista, fora educado no Balliol College, Oxford, onde estudou matemática, história moderna e teologia. Durante os seus estudos, em 1894, converteu-se ao catolicismo e ingressou no seminário de St. Edmund College, em Ware, Hertfordshire, aí permanecendo até 1899. Em seguida partiu para Roma, onde terminou os seus estudos,  ordenando-se padre em 15 de junho de 1902. Desde 1905 era o reitor da igreja católica romana St. Hellen, em Chipping Ongar, Essex. Viajava a Nova York para celebrar o casamento do seu irmão William, igualmente convertido ao catolicismo, previsto para o dia 21 de abril de 1912.

- O Pe. Juozas Montvila, nascido em 3 de janeiro de 1885, ordenado  em 22 de março de 1908 e designado vigário em Lipskas, na diocese lituana de Seiny, onde atendia secretamente às necessidades espirituais dos Uniatas, havia sido detido e condenado pelo governo russo, que controlava a Lituânia. Não lhe sendo possível retomar esse trabalho pastoral em um futuro próximo, decidiu emigrar para Worcester, no estado norte-americano de Massachussetts, onde viviam seu irmão e muitos outros lituanos, em meio aos quais esse jovem padre, que mal tinha 27 anos, pretendia exercer o seu ministério.

- O Reverendo Padre Joseph Peruschitz, originário da Alta-Baviera, nasceu em 21 de março de 1871, recebendo no seu batismo o nome de Bento. Após ter estudado filosofia e teologia no liceu de Freising, pediu para ingressar no convento beneditino de Scheyern. A tomada de hábito se deu no dia 23 de agosto de 189410. Por ocasião dos seus votos temporários, em 1895, recebeu seu nome de religião: Joseph. Foi ordenado no dia 28 de abril de 1895. Por uma autorização particular, pronunciou os votos solenes pouco após sua ordenação. Embarcava em resposta a um chamado vindo da América do Norte para assumir a direção de um importante colégio dirigido por beneditinos suíços no Minnesota. Sua família ignorava tudo da sua viagem e Dom Joseph Peruschitz queria surpreendê-los pondo-os em face de um fait accompli por um telegrama enviado desde a sua chegada no novo continente.

 

Domingo de Quasimodo

Na manhã do dia 14 de abril, um domingo, o Padre Byles celebrou, na sala de jantar, a missa para os passageiros da segunda classe; em seguida, celebrou outra para os passageiros da terceira classe, dando o sermão em inglês e francês, enquanto o Padre Peruschitz continuava com um sermão em alemão e húngaro. De acordo com um artigo publicado no The Evening World, os dois padres pregaram sobre “a necessidade de ter ao alcance da mão um bote de reconforto religioso para o caso de naufrágio espiritual”.

Pouco antes da meia-noite, reinava no Titanic uma grande excitação. Enquanto massas de água se engolfavam no nível da praça de máquinas, senhoras elegantes bailavam em companhia de seus cavalheiros, admirando o céu estrelado. Quem, entre os passageiros, imaginava o que estava por acontecer? Poucos tomaram as advertências a sério — afinal, o navio era insubmersível! Quando os passageiros entenderam o que se passava, todos foram tomados de pânico; a tripulação distribuía coletes e encaminhava mulheres e crianças para os barcos salva-vidas.

De acordo com numerosos testemunhos, os padres Byles e Peruschitz estavam em “pé de guerra” para ajudar os outros. Temos poucos testemunhos acerca do terceiro padre, mas se sabe que o “jovem padre lituano, Juozas Montvilla, cumpriu sua missão até o fim”. Os três padres ajudaram os passageiros da terceira classe a subir as escadas até o lugar de embarque e a subir nos barcos salva-vidas. Consolavam-nos com boas palavras. Algumas senhoras não quiseram se separar dos seus esposos e preferiram morrer com eles. Quando não havia mais mulheres, permitiu-se que alguns homens subissem nos barcos.

 

Ficar com aqueles que iriam morrer

Por duas vezes, um membro da tripulação tentou convencer o padre Byles a tomar assento em um barco, mas ele recusou. No dizer dos sobreviventes, ao padre Peruschitz também foi oferecido um lugar, mas ele também recusou. Quando o último barco desceu, restavam ainda a bordo cerca de 1.500 pessoas que viam a morte se aproximar. Todos os três ministravam seus serviços sacerdotais, ouvindo confissões e rezando com os que não puderam escapar. Mais de uma centena de passageiros, aglomerados na extremidade de trás do convés do barco, foi ajudada por eles.

Na revista católica America, uma testemunha ocular deu o seguinte relato sobre a conduta dos padres enquanto o Titanic soçobrava:

“Quando a agitação alcançou o ápice, os católicos a bordo desejaram a assistência dos padres com máximo fervor. Dois padres incitaram aqueles que estavam condenados a morrer a pronunciar atos de contrição e a se preparar para o encontro com Deus. Rezavam o rosário e os outros respondiam. O barulho feito pelos que rezavam irritou alguns passageiros que ridicularizavam os que oravam e começaram a fazer um círculo ao redor deles. Os dois padres não pararam, dando a absolvição coletiva aos que iam morrer. Aqueles que tomaram assento nos barcos foram consolados com palavras comoventes. Algumas mulheres recusaram-se a separar-se de seus maridos, preferindo morrer ao lado deles. Finalmente, quando não havia mais mulheres na proximidade, alguns homens foram admitidos nos barcos. Ofereceram um lugar ao padre Peruschitz, mas ele recusou.”

Segundo outra testemunha ocular:

“Todos os sobreviventes com os quais nós conversamos relataram que, em meio a essa desgraça, houve um episódio extraordinário, surpreendente e consolador. O padre Peruschitz, assim como o padre Byles, levaram socorro incessante aos demais. Alguns passageiros, que não tinham percebido o perigo inicialmente, mas que tomaram consciência do que se passava posteriormente, ao ver os padres se aproximarem em meio a um tumulto terrível, rogaram com grande fervor a assistência e o apoio destes últimos.”

O fim estava cada vez mais perto. As águas do mar corriam em torrentes pelos salões. Às duas horas da manhã, muitos passageiros se ajoelhavam, choravam e confessavam os seus pecados.

Os dois homens de Deus se despendiam sem esmorecer para administrar a extrema unção e absolver os que estavam na água e, em breve, estariam em artigo de morte, e os que rezavam no navio e logo seriam engolidos pelo mar. Antes de as luzes do Titanic se extinguirem, a popa ergueu-se como um dedo apontado para o céu por efeito do contrapeso do casco despedaçado, e, com um estalido terrível, enquanto o padre Peruschitz e seu irmão no sacerdócio ainda distribuíam a absolvição geral, uma porta mergulhava nos abismos oceânicos.

Um jornal relatou mais tarde:

“Aqueles que, nas embarcações, testemunharam a desaparição do navio nas ondas, narraram que jamais esqueceram como os dois padres abençoavam, com suas mãos consagradas, a multidão que rezava ao seu redor.”

Eles iam e vinham em direção àqueles que estavam aos seus pés, a quem Deus deu a graça da conversão e que ofereciam a sua vida em sacrifício. Agnès Mac Goy declarou:

“Não se enxergava mais nada, mas não se ouviam gritos de desespero, gemidos ou apelos desesperados. Apenas vozes, completamente apaziguadas pela oração, repercutindo enquanto o navio afundava.”

Nesses últimos momentos do naufrágio do navio, o coral da capela da embarcação entoou e tocou com os instrumentos: “Mais perto de Vós, ó meu Deus, mais perto de Vós!

Os três padres e todos os ministros protestantes morreram no naufrágio. Os pastores, viajando com um ou muitos membros das suas famílias, cuidaram principalmente deles, instalando-os nos barcos salva-vidas e despedindo-se deles.

 

Memorial dos padres

No Brooklyn, o irmão do Rev. Pe. Byles, William Byles, não adiou o seu casamento com Katherine Russel. Outro padre celebrou a cerimônia. Um jornal do Brooklyn relata que os noivos voltaram a casa após o matrimônio, vestiram roupas de luto e retornaram à igreja para uma missa de réquiem. O casal partiu em seguida para uma curta lua de mel em Nova Jérsei.

Na igreja St. Helen de Chipping Ongar, os irmãos do padre Byles instalaram uma porta dedicada à sua memória com três vitrais representando São Patrício, o Bom Pastor e São Tomás de Aquino. No ângulo inferior direito do vitral de Santo Tomás, lê-se o seguinte: “Pray for the Rev. Thomas Byles, for 8 years Rector of this mission, whose heroic death in the disaster to S.S. Titanic April 15 1912 eamestly devoting his last moments to the religious consolation of his fellow passengers, this window commemorates.” (Rogai pelo Rev. Padre Thomas Byles, reitor desta missão por 8 anos, cuja morte heróica no desastre do Titanic em 15 de abril de 1912, consagrando com fervor seus últimos instantes a reconfortar religiosamente seus companheiros de viagem, é comemorada por este vitral.”

Uma placa modesta de mármore colocada em um dos deambulatórios do claustro de Scheyern, e quase não notada no meio de muitas outras, recorda a memória do Padre Peruschitz. Está gravado: “R.I.P: R.P. Josephus Peruschitz, O.S.B qui in nave ista Titanica die 15.IV.1912 pie se devovit aetatis anno 42. Sacerd. et profess. 17” (Que o Padre Peruschitz repouse em paz, ele que sobre o navio Titanic ofereceu sua vida piedosamente”)

O padre Juozas Montvila é considerado um herói na Lituânia e o seu processo de beatificação foi introduzido em Roma. A paróquia lituana que ele havia de fundar em Worcester, Massachusetts, foi criada finalmente no dia 13 de novembro de 1913.

(Le Rocher, tradução: Permanência)

  1. 1. “Nem mesmo Deus é capaz de afundar essa cidade flutuante”, declarava um marinheiro.
  2. 2.Cette lettre est conservée comme une relique”, testemunho do Pe. H. de Jackon, em Ecclesia, abril de 1952.
  3. 3. O número de pessoas a bordo e o balanço da catástrofe variam de fonte para fonte. O número exato das vítimas jamais foi estabelecido; apenas 337 corpos foram encontrados.
  4. 4. Notadamente, o sucesso de bilheteria de James Cameron, em 1997, reexibido em 3D por ocasião do centenário do naufrágio.
  5. 5. Gérard Piouffre, “Nous étions à bord du Titanic du 27 mars au 15 avril 1912”, First Histoire, 2012, p.3
  6. 6. Um grupo de peritos americanos ainda conduz uma pesquisa, reunindo-se uma vez ao ano.
  7. 7. Foi em 1985 que os destroços foram descobertos, a 700 km da costa de Terra Nova e Labrador, a 3.800 metros de profundidade.
  8. 8. Gérard Piouffre, loc. cit.
  9. 9. Testemunho da passageira de segunda-classe Ellen Toomey.
  10. 10. No claustro de Scheyern conserva-se o testamento manuscrito do padre, em escrita gótica. Um ato muito pessoal que Joseph Peruschitz redigira com tinta negra por ocasião da sua entrada no convento, em 14 de agosto de 1894.
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