Pe. Luis Cláudio Camargo, FSSPX
[Nota da Permanência: O texto seguinte é a transcrição de uma conferência do autor dada na Capela Nossa Senhora da Conceição, Pendotiba/RJ, em 24 de novembro de 2012, sobre a natureza do homem e da mulher na obra "Romeu e Julieta". Optamos por conservar o estilo oral]
Breve introdução sobre o catolicismo de Shakespeare
Por que Shakespeare? Shakespeare foi um católico que viveu no período da perseguição anglicana. Não terei tempo aqui para apresentar as provas do seu catolicismo, mas acreditem em mim. Chegou-se a dizer que ele foi um católico covarde; isso não é verdade. A sua família, tanto paterna como materna, está no centro da resistência católica contra a rainha Isabel I, “A Sangrenta”. Shakespeare presenciou a execução de seu confessor, o jesuíta São Roberto Southwell, que fora preso. Naquele período, ser católico era crime de alta traição (lesa-majestade), cujo castigo era a pena máxima denominada Hanged, drawn and quartered. Primeiro as vítimas eram enforcadas – mas sem que o condenado morresse –, em seguida lhes abriam o ventre, arrancavam as vísceras e depois cortavam os braços e as pernas. Era uma técnica satânica em que se tentava manter a pessoa viva com o intuito de que sofresse o máximo possível. Por fim, somente depois de a vítima estar morta, cortavam-lhe a cabeça. Era essa a pena aplicada aos católicos. A quantidade dos mártires isabelinos é enorme. A tortura, o grau de horror que sofreram foi algo terrível. Shakespeare pertencia a uma família de resistentes católicos. Seu pai fora preso por ser católico e não frequentar o rito reformado. Os católicos viviam clandestinamente, e na casa de Shakespeare celebrava-se uma das missas clandestinas de Londres.
Linhas de interpretação nas obras de Shakespeare
Nas obras de Shakespeare há quatro linhas de interpretação.
A primeira linha incide sobre a maneira como que ele escreve. Todos os grandes autores se deslumbram com a perfeição do movimento das linhas do enredo, a harmonia, o ritmo com o qual ele conduz as linhas do drama apresentado, a fineza da ironia nas palavras utilizadas. Shakespeare é intraduzível, pois usava muito o recurso que em inglês se chama pun, isto é, jogo de palavras. Ele é um mestre no uso desses jogos.
A segunda linha de interpretação incide sobre o que podemos chamar de drama humano, as considerações mais altas da vida do homem. Um dos temas mais recorrentes são os mecanismos que usamos para nos esconder, os mecanismos de hipocrisia com os quais enganamos o próximo e a nós mesmos. A fineza com que analisa essa série de mecanismos gera uma identificação do leitor com os personagens. Tomamos um susto quando nos vemos caricaturados no papel, pois as descrições são muito finas, claras, evidentes, e demonstram que o autor tinha um conhecimento incomum da alma humana, muito elevado e profundo. Ele trata da nobreza, do heroísmo, do amor verdadeiro, do amor falso, da sensualidade, da humildade verdadeira e de todas as grandes virtudes.
A terceira linha de interpretação das obras de Shakespeare, a mais velada, porém evidente para os católicos que sofriam a perseguição naquele momento, diz respeito à história da Inglaterra durante as perseguições. Os católicos entendiam perfeitamente a linguagem figurada e metafórica que o autor usava.
A quarta linha de interpretação é uma autobiografia. Ele se retrata, mostra e revela nos seus livros. Quem conhece a sua biografia e as circunstâncias histórias e lê as obras percebe que ele faz uma confissão, conta a sua vida, pecados e virtudes. É admirável. Ele consegue colocar essas quatro linhas de inteligência na mesma obra, e fazer com que as palavras se encaixem exatamente para cada uma delas, demonstrando genialidade sem igual. Comparo essa genialidade literária à genialidade musical de Bach.
Shakespeare portanto não é um autor fácil. Em razão da complexidade dos textos o leitor pode equivocar-se facilmente: por ex., na terceira linha de interpretação, a sua intenção é enganar os leitores não católicos. Ele escreve ao modo renascentista, utilizando-se de todas as más inclinações e a aparente futilidade renascentista. Nosso Senhor, citando Isaías, diz: “Para que vendo, não vejam e, ouvindo, não ouçam nem compreendam1”. Shakespeare consegue concretizar tal ideia: ele raramente cria um enredo original – algo que certamente poderia fazer, pois era dotado de genialidade extraordinária – mas preferia sempre histórias que estavam “na moda” (contos, histórias antigas), a fim de não chamar atenção, pois às vezes queria denunciar algo terrível; quanto menos chamasse a atenção sobre o que estava dizendo, melhor. Romeu e Julieta, por ex., é uma obra que já existia, emprestando-a de um autor italiano, se não me engano. Juntamente às linhas de interpretação, estão os períodos da vida de Shakespeare.
Períodos da vida de Shakespeare
Podemos marcar três períodos muito claros na vida de Shakespeare.
O primeiro período (1590-1601) é o da adolescência e começo da vida adulta, em que se nota um catolicismo muito valente, no entanto há uma euforia ingênua, como se dissesse: “Já vencemos, tudo é fácil”. Romeu e Julieta data dessa época. A história dos jovens vencidos, que venceram apesar de perseguidos, e cuja morte motivou a união das duas famílias inimigas, transmite uma mensagem aos católicos: “Não se preocupem, em breve retomaremos o poder, e recuperaremos a coroa, estamos sendo perseguidos, muitos dos nossos estão sendo executados, mas isso é bobagem, em breve tudo ficará bem, já vencemos, já ganhamos.”
Por ser muito brilhante e suas obras muito admiradas, ele foi rapidamente associado à Companhia de Teatro Real (The King’s Men). A rainha percebeu que ele era católico, mas o achou inofensivo. Ela admirava tanto as obras dele que não conseguia lhe fazer mal. Quem estuda com cuidado a vida da rainha Isabel I percebe que ela dava sinais claros de possessão diabólica, era uma figura terrível. Poderíamos dizer que esse primeiro período é um pouco mais humanista que os seguintes e um pouco mais otimista, semelhante ao otimismo de um noviço que entra no mosteiro e pensa: “Já cheguei à sétima morada.” Desse período são as obras Henrique VIII, A comédia dos erros, A megera domada, Os dois fidalgos de Verona, Ricardo III, Rei João, Tito Andrônico, Trabalhos de amor perdidos, Romeu e Julieta, Ricardo II, Henrique IV, Henrique V, e Sonhos de uma noite de verão – obra esta que despertou a atenção de Isabel, que começava a suspeitar dele, após o que Shakespeare escreve a sua obra mais renascentista, que é quase uma adulação à rainha, a fim de desviar as suspeitas.
O segundo período (1601-1608), podemos dizer que é o período da crise. A perseguição não terminava, o número de mártires só aumentava e os católicos começavam a se cansar. Morre a rainha Isabel e há certa tranquilidade. Sobe ao trono Jaime I, casado com uma católica, e os católicos sentem-se aliviados. É desse período a obra Tudo bem quando termina bem; o título evidencia o alívio sentido após a morte da rainha. Mas os calvinistas puritanos se lançam contra Jaime I, o qual, diante da instabilidade do trono, retoma a perseguição aos católicos de forma ainda mais violenta que Isabel. É um período de perplexidade e desânimo entre os católicos, que chegam à pobreza, à miséria, perdendo os bens; são despojados e desamparados. Dois tios de Shakespeare, irmãos de sua mãe, são executados como traidores da pátria, por se terem envolvido na Conspiração da Pólvora, uma armadilha preparada pelo governo inglês, com o intuito de que os católicos tentassem assassinar o rei e assim a coroa pudesse ter a oportunidade de retomar as perseguições. Os católicos caíram como bobos. Até hoje se celebra o dia da Conspiração da Pólvora, em que o rei se salvou dos “pérfidos” católicos.
A obra emblemática desse período é Hamlet. O príncipe Hamlet é o próprio Shakespeare, que se pergunta: por que lutar contra a corrupção do reino da Dinamarca? A minha mãe (a Inglaterra) abandonou meu verdadeiro pai (a monarquia católica) e se juntou a essa monarquia corrupta e vil. Os reis são irmãos (Rei Hamlet e Rei Cláudio), mas há uma diferença infinita entre os dois, pois um deles é assassino e perverso. Eu, filho da pátria inglesa, que devo fazer? O espírito do meu pai pede que eu ponha as coisas no lugar, que devo fazer? “The time is out of joint/ O cursed spite, That ever I was born to set it right: O tempo está fora do seu eixo/ Ó desgraçada ventura de ter nascido para colocá-lo de volta no lugar.” Parece-me a descrição da vida de Monsenhor Lefèbvre, mas se trata dele, da tentação de suicídio que ele sofre – é autobiográfico.
Em Otelo, a esposa fiel ama o marido, no entanto, movido pelo pérfido Iago, o marido começa a se deixar influenciar até que a mata. Nessa obra ele mostra a fidelidade dos católicos, fiéis à Igreja, fiéis à Inglaterra, e que morrem fiéis. Desse período são também Antônio e Cleópatra e Coriolano.
O terceiro período (1609- 1623), a sua última época, pode ser chamado de o período da virtude teologal da esperança. A obra emblemática desse período é A tempestade, na qual um rei traído e abandonado tem a ocasião de se vingar e, no entanto, perdoa. É uma mensagem para os católicos: “Prestem atenção, a nossa solução é sobrenatural, não vamos recuperar o reino com a força dos braços, mas que a nossa resistência não nos faça perder o céu; resistamos, mas façamo-lo com as armas mais altas, não devemos cometer o mesmo erro que eles; se nos odeiam, nós os perdoamos.” Essa é a grande solução dele, é quando o seu coração descansa. Ele morre como católico fervoroso.
Romeu e Julieta
Essa obra está mais centrada nas duas primeiras linhas de interpretação. A briga entre as famílias é aparentemente o seu aspecto central, por ser a causa da morte dos jovens esposos, mas na verdade é um problema secundário, a tela de fundo.
A ideia central que Shakespeare quer abordar em Romeu e Julieta é uma comparação entre três homens: Frei Lourenço, Romeu, e Mercúcio. Frei Lourenço é a figura do homem sábio, Romeu é a figura do homem afetivo e Mercúcio a figura do homem carnal. São descritos de modo exímio.
Mercúcio, jovem rico e inteligente, parente do príncipe, parece estar afastado do antagonismo das duas famílias de Verona e, no entanto, é a primeira vítima da obra. As suas qualidades, como nobre que era, não lhe dissimulam os vícios profundos. Desbocado e libertino, contente com a vida viciosa, olha a mulher como simples ocasião de prazer; é cínico e burlesco, consegue desprezar absolutamente tudo ao redor, leva a desordem até a morte, e morre insultando. A morte dele é uma morte impenitente: a morte de um homem carnal.
Romeu é a figura do homem afetivo: trata-se dos sentimentos, pois estamos no campo das paixões. Certo, não é um homem carnal, mas ainda não é um homem sábio. Seus afetos são nobres, normalmente, mas ele é capaz de ira irracional, medo irracional e amor irracional, embora o seu amor seja apresentado com nobreza.
O campo dos afetos é enorme, é um mar infinito e sem fundo. É possível que o homem afetivo se mantenha flutuando na altura de sentimentos nobres, mas qualquer movimento, qualquer correnteza forte arrasta-o para tal ou qual paixão. Tanto o homem carnal como o homem afetivo não alcançam a realidade, não conseguem descobrir as coisas como são. O desespero de Frei Lourenço consistia em tentar fazer Romeu entendê-lo, mas Romeu não o entendia, não era capaz de fazê-lo.
Frei Lourenço é a figura do homem medieval: um frade franciscano, sábio, conhecedor dos segredos das ervas, do drama de seu povo, profundo entendedor das almas, da situação histórica e das famílias. Ele é admirado, mas não é seguido. Pedem-lhe conselhos, mas não lhe obedecem. É o Renascimento diante da Idade Média, o qual olha esta com certa admiração, mas lhe diz: “Já passou, agora estamos em nível mais alto.” Romeu é a figura do homem renascentista.
Tendo em mãos essa chave de leitura, é muito interessante notar a relação entre os três personagens. Frei Lourenço, por exemplo, nunca fala com Mercúcio, e Mercúcio não faz nenhuma alusão a Frei Lourenço. Romeu fala com Frei Lourenço, Frei Lourenço fala com Romeu, Romeu fala com Mercúcio e Mercúcio fala com Romeu.
Outro ponto interessante, sublinhado na obra, é que Frei Lourenço entende muito bem Romeu e Mercúcio, ou seja, de cima para baixo o entendimento é possível. Porque está acima, Frei Lourenço entende-os, compreende os afetos de Romeu, quer conduzi-lo, protegê-lo e salvá-lo, mas Romeu não entende Frei Lourenço. De baixo para cima não é possível entendê-lo. Romeu não consegue sentir a sabedoria de Frei Lourenço, mas Frei Lourenço consegue entender os afetos de Romeu.
Romeu olha Mercúcio com benignidade e amabilidade, mas nunca entra no seu campo. Romeu é nobre, e a nobreza dos seus sentimentos – superiores aos sentimentos de um homem carnal – convence-o de que está à altura de Julieta. Shakespeare queria mostrar justamente que Romeu não estava à altura de Julieta. Romeu era um homem afetivo, e só o afeto não basta para que um homem alcance a sua esposa. Nem o homem carnal nem o homem afetivo são capazes de alcançar a esposa.
A insensatez de Romeu diante de Frei Lourenço é muito impressionante. Romeu merecia uma surra, não é um herói de modo algum. O cinema o retrata como galã de cabelo ao vento, mas é um homem desprezível, pois não chegou a ser homem, e é isso o que Frei Lourenço vai afirmar quando, de pé, diz a Romeu, que está jogado no chão tentando suicidar-se, que a solução para os seus dramas é a filosofia; estas são as palavras centrais da obra. Etimologicamente, filosofia significa amor à sabedoria, ou seja, sair do campo afetivo e chegar a ser homem verdadeiro, alcançar a altura da natureza humana. E a resposta de Romeu para Frei Lourenço é esta:
“Põe a filosofia numa forca, a menos que a filosofia possa fazer uma Julieta, uma cidade mudar, ou deixar írrito um decreto. Se não, de nada vale, para nada pode servir-me. Não me fales nisso (...) Falar não podes sobre o que não sentes 2.”
(É claro que se pode falar do que não se sente; não se pode é sentir aquilo que não se pensa. Justamente por não sentir os afetos de Romeu e por saber domar os próprios afetos, Frei Lourenço lhe entende perfeitamente.)
“Se, como eu, fosses moço; se Julieta te pertencesse, por se ter tornado tua esposa há uma hora; se tivesses morto Tebaldo, e louco, apaixonado como eu te visses: bem, assim podias falar, arrepelar a cabeleira, jogar-te ao solo como o faço agora, para dar a medida de uma cova que ainda vai ser aberta.”3
Frei Lourenço lhe responde:
“Detém essa desesperada mão. Acaso és homem? Tua postura o afirma, mas as lágrimas são de mulher, mostrando esses teus atos desesperados o furor selvagem dos próprios animais. Ó deformada mulher, sob a aparência de um mancebo, ó animal deturpado, sob a forma de ambos: pasmado estou. Pela minha ordem sagrada: sempre fiz outro juízo de teu temperamento. Não mataste Tebaldo? Agora queres suicidar-te e, assim, matar a tua própria esposa, que de tua vida vive, revertendo contra ti próprio esse ódio amaldiçoado?”4
Essa resposta de Frei Lourenço é a demonstração de como o homem sábio enxerga o homem afetivo. Nós somos indulgentes demais: não sendo homem carnal parece-nos que já basta, parece-nos que já se é homem. Não é verdade.
Aqui tocamos o ponto central desta conferência: a obra do homem e a obra da mulher. A ideia é muito clara: a esposa vive dentro da alma do esposo, e a esposa vai estar na altura em que o esposo estiver. Se o esposo se matar, ele matará também a esposa. De fato, Julieta se suicida.
“(...) Por que insultas o berço, o céu e a terra? O berço, o céu e a terra unidos se acham em ti, e de uma vez perdê-los queres? Ora, envergonhas tua forma, o espírito, amor, que em barda tens, como usurário, sem que nada uses no seu vero emprego para te ornar a forma, o amor, o espírito. Tua nobre figura é como imagem de cera, se o vigor viril lhe falta; teu amor tão prezado, oco perjúrio que mata o amor que proteger juraste; espírito, esse ornato da postura, como do amor, se encontra deformado pela conduta de ambos, como pólvora no frasco de um soldado inexperiente (...)”5
A razão está submetida aos afetos, e é capaz de explodir e lhe conduzir à morte.
“(...) que por tua própria ignorância explode, com tuas próprias armas desmembrando-te. Vamos, homem: levanta-te! Está viva tua Julieta, por quem te achas quase no ponto de morrer. Estás com sorte. Tebaldo quis matar-te; a morte deste-lhe. Nisso foste também mui venturoso. A lei se mostra tua amiga, a pena de morte atenuando para exílio: outra ventura. Sobre o dorso um fardo de bênçãos te caiu. Com seus mais ricos atavios te vem fazendo a corte sempre a felicidade; mas no jeito de um rapaz não polido e caprichoso, com a sorte e o amor amuado te revelas. Toma cuidado! Quem assim procede, acaba sempre mal."6
Shakespeare consegue descrever a estrutura da alma humana e a grande obra do homem. É necessário chegar à sabedoria para chegar a ser homem, eis o ponto central de Romeu e Julieta. Só quem chega à verdadeira sabedoria merece o título de homem. Somente na sabedoria é possível buscar a esposa. É necessário subir a rude escada do balcão de Julieta para estar à altura dela.
A mulher, se me permitem a expressão, tem uma natureza que poderíamos chamar de espelho. Como o que define a mulher é a sua maternidade, quer física ou espiritual, há nela um aumento do campo afetivo, pois este é um elemento necessário para o cumprimento da sua obra. A mulher tem, em razão dessa natureza afetiva, uma capacidade de percepção do particular, do concreto, muito superior ao homem – abstrato.
O homem deve vencer os seus afetos e alcançar a abstração. Se o homem não transcender o concreto e o particular, não realiza a sua obra. A mulher, por sua vez, deve, tal como um espelho, refletir o abstrato em concreto e particular.
O homem tem uma visão do fim muito mais clara que a mulher, que enxerga com mais clareza os meios. A grande obra do homem, depois de chegar à sabedoria, é transmiti-la. O grande meio de transmissão dessa sabedoria é a esposa, é a natureza feminina, que consegue transformar o que vê no esposo em instituições concretas e tangíveis.
O esposo tem uma ideia abstrata do que é a autoridade paterna ou a relação familiar. A esposa deve pensar em que lugar da casa a mesa vai estar para que a relação familiar funcione, que lugar ela vai ocupar na mesa para que a autoridade paterna seja exercida quando a família estiver reunida, ou seja, ela precisa transformar os ideais do marido em instituições práticas. É nesse sentido que Frei Lourenço diz que a esposa estava dentro de Romeu.
Vocês poderiam acusar-me de estar diminuindo a atividade feminina. Não, de modo algum. O homem é incapaz da sua obra sem a mulher. E a mulher é incapaz da sua obra sem o homem.
Poderiam perguntar-me: “E quanto ao sacerdócio?” Pois bem, a Igreja é feminina. Diz-nos o direito canônico: “Não se pode usar a batina suja; é preciso barbear-se, etc.”; esta expressão é a mais feminina possível da Esposa de Cristo, que transforma o que vê na alma do Esposo em costumes, instituições e obras. Mas é preciso que a ideia do esposo seja clara, específica, explícita, que ele saiba o papel que a esposa deve cumprir, o que é o meio, o que vai em direção ao fim e o que desvia do fim; assim, ele deve pronunciar-se: “Isso sim, isso não.” É preciso que o fim ilumine constantemente os meios, ou seja, é preciso olhar o fim e concretizar os em meios. A grande obra são os filhos: a transmissão por meio da esposa.
A mulher consegue facilmente perceber o que está acontecendo na alma do filho. Todavia, se perde de vista o fim, ela como que acelera em ponto morto, porque os meios não passam de meios, e perdem importância, se o fim não os ilumina. Se se perde a referência do fim e deixa-se de ser iluminado por ele, bem, tudo passa a ser igual. E, quando há ausência da iluminação do fim, o mecanismo de defesa feminino é a multiplicação dos meios.
O grande perigo do homem é não alcançar à sabedoria, e o grande perigo da mulher é a destruição e deformação do campo afetivo, é a perda da fineza afetiva, por carência de virtude e descontrole dos afetos. Que o homem não tenha afeto é uma deformação, e é errado, porém não é tão grave. Uma moça que destruiu os próprios afetos sofreu o que podemos chamar “masculinização”. Na sociedade atual há a destruição dos afetos ou a exacerbação deles, de tal modo que não podem ser iluminados pela razão. Há portanto destruição de ambos os lados.
Iluminados pela sabedoria, os afetos encontram o lugar e o sentido verdadeiros, são domados; os afetos são como cavalos puxando a carruagem, mas sem a iluminação superior da inteligência, são como cavalos selvagens, não domados, que seguem direções opostas: é a destruição da pessoa.
(Originalmente publicado na Revista Permanência, 270)